o poder normativo da justiça do trabalho

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308 Rev. TST, Brasília, vol. 77, n o 2, abr/jun 2011 * Advogado. O PODER NORMATIVO DA JUSTIÇA DO TRABALHO José Tôrres das Neves * A competência normativa da Justiça do Trabalho está prevista, expressa- mente, no art. 114, § 2º, da Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 5 de outubro de 1988, in verbis: “§ 2º Recusando-se qualquer das partes à negociação coletiva ou à arbitragem, é facultado às mesmas, de comum acordo, ajuizar dissídio coletivo de natureza econômica, podendo a Justiça do Trabalho decidir o conflito, respeitadas as disposições mínimas legais de proteção ao trabalho, bem como as convencionadas anteriormente.” O texto, de redação técnica pouco feliz, contudo, deixa bem claro o seguinte: 1º – Quando as categorias econômica e profissional recusarem a negocia- ção direta sobre o estabelecimento de novas condições de trabalho, bem como rejeitarem a arbitragem, poderão, de comum acordo, ajuizar dissídio coletivo de natureza econômica. A mesma faculdade é atribuída à parcela de determi- nada categoria profissional ou mais de uma e à empresa envolvida no conflito de interesses, na solução do estabelecimento de novas condições de trabalho. A parte do Texto Constitucional não está restringindo ou ampliando a competência da Justiça do Trabalho. Está, apenas e tão somente, criando uma nova modalidade de dissídio coletivo. Aqui, ao contrário da prática tradicional, não haverá Suscitante e Suscitado. As partes, não conciliadas, figurarão como Suscitantes. E não haverá Suscitados como resultado de lógica elementar. Não haverá inicial, no seu sentido tradicional, e nem, tampouco, contestação. Os interessados buscam a solução do conflito social, por meio do Estado-Juiz, equi- distante e imparcial, que sentenciará dispondo a respeito das novas condições de trabalho, estabelecendo direitos e obrigações. Os litigantes acionam a Justiça do Trabalho, para o exercício soberano, nos limites da própria Constituição Federal, de sua competência normativa. TST 77-02.indb 308 8/8/2011 08:07:42

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Artigo sobre redução do Poder Normativo da Justiça do Trabalho

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  • 308 Rev. TST, Braslia, vol. 77, no 2, abr/jun 2011

    * Advogado.

    O PODER NORMATIVO DA JUSTIA DO TRABALHO

    Jos Trres das Neves*

    A competncia normativa da Justia do Trabalho est prevista, expressa-mente, no art. 114, 2, da Constituio da Repblica Federativa do Brasil, promulgada em 5 de outubro de 1988, in verbis: 2 Recusando-se qualquer das partes negociao coletiva ou

    arbitragem, facultado s mesmas, de comum acordo, ajuizar dissdio coletivo de natureza econmica, podendo a Justia do Trabalho decidir o conflito, respeitadas as disposies mnimas legais de proteo ao trabalho, bem como as convencionadas anteriormente.

    O texto, de redao tcnica pouco feliz, contudo, deixa bem claro o seguinte:

    1 Quando as categorias econmica e profissional recusarem a negocia-o direta sobre o estabelecimento de novas condies de trabalho, bem como rejeitarem a arbitragem, podero, de comum acordo, ajuizar dissdio coletivo de natureza econmica. A mesma faculdade atribuda parcela de determi-nada categoria profissional ou mais de uma e empresa envolvida no conflito de interesses, na soluo do estabelecimento de novas condies de trabalho.

    A parte do Texto Constitucional no est restringindo ou ampliando a competncia da Justia do Trabalho. Est, apenas e to somente, criando uma nova modalidade de dissdio coletivo. Aqui, ao contrrio da prtica tradicional, no haver Suscitante e Suscitado. As partes, no conciliadas, figuraro como Suscitantes. E no haver Suscitados como resultado de lgica elementar. No haver inicial, no seu sentido tradicional, e nem, tampouco, contestao. Os interessados buscam a soluo do conflito social, por meio do Estado-Juiz, equi-distante e imparcial, que sentenciar dispondo a respeito das novas condies de trabalho, estabelecendo direitos e obrigaes. Os litigantes acionam a Justia do Trabalho, para o exerccio soberano, nos limites da prpria Constituio Federal, de sua competncia normativa.

    TST 77-02.indb 308 8/8/2011 08:07:42

  • 7 0 A N O S D A J U S T I A D O T R A B A L H O

    Rev. TST, Braslia, vol. 77, no 2, abr/jun 2011 309

    Este novo e revolucionrio tipo de dissdio coletivo traz, no seu bojo, outras questes jurdicas relevantes. Uma vez que os litigantes acordarem que a soluo seja dada pela Justia Especializada, a sentena normativa superve-niente dever ser aceita. No teria sentido que as partes em confronto pedissem a soluo do conflito, de comum acordo, e, depois, acionassem o direito recursal. O legislador, a toda evidncia, pretendeu atribuir s partes litigiosas uma forma clere de solucionar o conflito social, com a atuao da Justia Especializada. Por outro lado, foroso assinalar-se que, sempre, na esfera do dissdio coletivo gravitam interesses de considervel parcela da sociedade.

    Isto to evidente, que o prprio constituinte derivado estabelece a possibilidade de outro tipo de dissdio coletivo, o de greve, deflagrada na rea de atividade essencial. Na ocorrncia de necessidade do ajuizamento de dis-sdio coletivo, nem sempre est presente possibilidade de leso do interesse pblico. Todavia, certamente, todos os dissdios coletivos envolvem interesses de parte da sociedade, na proporo que est em foco o prprio processo pro-dutivo a cargo das relaes de trabalho, com a presena obrigatria do capital e do trabalho humano.

    2 O poder normativo da Justia do Trabalho restou fortalecido, quando se estipula que o seu exerccio dar-se-, respeitadas as condies mnimas de proteo ao trabalho, bem como as convencionadas anteriormente.

    Faz-se necessria a comparao entre os dois textos pertinentes com-petncia normativa da Justia do Trabalho, o constante da relao primitiva e o advindo com a Emenda Constitucional n 45/04.

    A redao anterior do 2 do art. 114 da Carta Magna dispunha:

    2 Recusando-se qualquer das partes negociao ou arbitra-gem, facultado aos respectivos sindicatos ajuizar dissdio coletivo, po-dendo a Justia do Trabalho estabelecer normas e condies, respeitadas as disposies convencionais e legais mnimas de proteo ao trabalho.

    A Justia Especializada, no exerccio da sua competncia legiferante, tinha que respeitar as disposies legais e convencionais mnimas de proteo ao trabalho.

    Com a redao da Emenda Constitucional n 45/04, est obrigada a respeitar toda e qualquer condio convencionada anteriormente.

    Esta novidade, ao contrrio do que pensam alguns, implica ntido forta-lecimento do poder normativo da Justia do Trabalho.

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  • 7 0 A N O S D A J U S T I A D O T R A B A L H O

    310 Rev. TST, Braslia, vol. 77, no 2, abr/jun 2011

    Como notrio, muitas sentenas normativas so homologatrias de acordos celebrados nos autos dos processos de dissdio de natureza econmica e at mesmo no de greve. Ora, se devem ser respeitadas as condies conven-cionais anteriores, isto significa dizer que elas gozam de atividade operante, mesmo aps o trmino da vigncia. A Carta Magna determina a incorporao por tempo indeterminado das vantagens aos contratos individuais de trabalho. Se tais condies estabelecidas, anteriormente, no mais tivessem eficcia, ento perderia qualquer sentido o mandamento constitucional. A consequncia lgica do respeito ao novo Texto Constitucional que as sentenas normativas homologatrias de acordos celebrados nos autos dos processos de dissdio co-letivo no tm sua vigncia limitada, no tempo, em ateno ao art. 614, 3, da Consolidao das Leis do Trabalho. O texto consolidado no foi recepcionado pela Emenda Constitucional n 45/04.

    Sob esta viso, sendo inaceitvel outra, do texto em comento, o poder normativo da Justia do Trabalho restou fortalecido. No mais se cogita de uma garantia provisria, restrita a determinado prazo de vigncia. Alis, esta viso, que defende eficcia temporria para a sentena normativa, se mostra incompatvel com a prpria finalidade desta. Tratando-se de instrumento normativo dirigido a um determinado universo de abrangidos, se reveste da verdadeira natureza de lei. No sem motivao que a sentena tida como deciso judicial, com esprito de lei.

    A limitao da eficcia da sentena normativa, ao prprio perodo nela estipulado, conduz a situaes atentatrias a um dos ditames mais importantes da Carta Magna.

    O art. 7, VI, da Carta Poltica estipula:

    VI irredutibilidade do salrio, salvo o disposto em conveno ou acordo coletivo.

    A interpretao de uma determinada norma legal ou constitucional no pode conduzir sua prpria ineficcia. Isto seria teratolgico.

    Em todo instrumento normativo, seja acordo coletivo de trabalho, seja sentena normativa de trabalho, seja sentena normativa, via de regra, consta como clusula relevante a do reajustamento dos salrios.

    No se concebe como razovel que o reajustamento salarial seja zerado, ao trmino da vigncia do instrumento normativo. Semelhante soluo levaria deriva da inflao, seja ela baixa, mdia ou alta, com o consequente esface-lamento da prpria base de sustento indispensvel manuteno de condies de vida do trabalhador.

    TST 77-02.indb 310 8/8/2011 08:07:43

  • 7 0 A N O S D A J U S T I A D O T R A B A L H O

    Rev. TST, Braslia, vol. 77, no 2, abr/jun 2011 311

    A prpria jurisprudncia do Egrgio Tribunal Superior do Trabalho tem entendido que o poder de reduo salarial atribudo aos acordos coletivos ou conveno coletiva de trabalho no absoluto. Isto s seria possvel, em con-dies especialssimas e com algum tipo de compensao.

    No jurdico ou mesmo conveniente para as relaes empregatcias, a servio de interesses maiores da paz social, que fiquem jungidas ao pressuposto do nascimento de um direito j contaminado com a sentena de morte.

    como se algum agarrasse o prmio da vida e, ao mesmo tempo, j soubesse a data certa do seu fuzilamento.

    O novo texto constitucional afasta semelhantes absurdos.

    A norma da sentena normativa, como lei que , traz a marca da perma-nncia indeterminada dos direitos nela institudos. Esgotada sua vigncia, os novos trabalhadores admitidos, sob a gide do vnculo de emprego, no sero beneficirios das vantagens institudas no instrumento normativo pretrito, com vigncia esgotada. Todavia, os contratos de trabalho influenciados pela norma coletiva ficam intactos. Houve a incorporao do direito. Esta a razo maior por que a sentena normativa deve respeitar as clusulas convencionais anteriores.

    Da, decorre a convico de que o poder normativo da Justia do Trabalho restou fortalecido. Deparando-se o julgador, em autos do processo de dissdio coletivo, com a existncia de normas constantes de acordo homologado, por sentena normativa, no poder afast-las. Devem ser respeitadas. Isto , elas devem continuar eficazes, existentes.

    DO SIGNIFICADO JURDICO DA EXPRESSO DE COMUM ACORDO, CONSTANTE DO ART. 114, 2, DA CONSTITUIO FEDERAL

    Antes, neste trabalho, defendi que a expresso de comum acordo ins-culpida no 2 do art. 114 da Carta Magna tem como desiderato a criao de mais uma modalidade de dissdio coletivo de natureza econmica. A questo jurdica, de significao facilmente compreensvel, vem sendo complicada pelos doutrinadores no muito apegados s prprias regras de hermenutica do direito, mas, muito mais, movidos por concepo ideolgica a respeito da Justia do Trabalho.

    Recentemente, na solenidade de posse da nova administrao do Egrgio Tribunal Superior do Trabalho, o Ministro Horcio Raymundo de Senna Pires, em discurso de saudao aos novos dirigentes, pontuou:

    TST 77-02.indb 311 8/8/2011 08:07:43

  • 7 0 A N O S D A J U S T I A D O T R A B A L H O

    312 Rev. TST, Braslia, vol. 77, no 2, abr/jun 2011

    Nenhum homem, se pensasse no que necessrio para julgar outro homem, aceitaria ser juiz.

    Ouso discordar, afirmando: Todo homem, que pensasse na grandeza de julgar, em benefcio da paz social, lutaria para ser juiz, especialmente, na Justia do Trabalho, Justia Especial, porque aplica um Direito Especial, voltado para diminuir os efeitos das desigualdades econmico-sociais entre os poderosos e oprimidos.

    Exatamente, o equvoco maior dos que defendem que o 2 do art. 114 da Constituio Federal extinguiu o poder normativo da Justia do Trabalho consiste no esquecimento de que se trata de uma Justia Especial, vocacionada para uma misso histrica, jamais conferida a qualquer outro ramo do Poder Judicirio.

    Os detratores do poder normativo da Justia do Trabalho esto bem inter-pretados por Conrado Di Mambro Oliveira, em trabalho divulgado na Revista LTr n 75, janeiro de 2011, p. 46 e seguintes, quando pontifica:

    A primeira concluso a que se chega diz respeito incluso expressa do requisito do comum acordo para o ajuizamento de dissdio coletivo de natureza econmica. Neste aspecto, vale lembrar que no existem palavras inteis na lei, especialmente na Lei Fundamental, sen-do imperioso notar que o texto claro e no permite a instaurao de instncia de maneira unilateral, mas apenas de comum acordo.

    Com muita lucidez, Jlio Bernardo do Carmo (2005), no artigo nominado Do mtuo consenso como condio de procedibilidade do dissdio coletivo de natureza econmica, argumenta a alterao feita no contedo do art. 114, 2, da CF /88:

    A Emenda Constitucional n 45/04 ao mencionar com todas as letras no 2 do art. 114 da Constituio Federal que o dissdio coletivo de natureza econmica agora s pode ser exercitado se as partes envol-vidas no conflito o ajuizarem de mtuo acordo, criou iniludivelmente um pressuposto de procedibilidade do ajuizamento do dissdio coletivo que antes no existia, sendo que sem o atendimento desse requisito o dissdio coletivo de natureza econmica deve sim ser de pronto indeferido pelo Tribunal Competente, sabido que o direito de ao, em que pese preser-vado no texto da Lei Maior, ficou condicionado ao chamado exerccio conjunto das partes, no mais se admitindo o ajuizamento unilateral do dissdio coletivo em epgrafe. A faculdade a que se reporta o dispositivo constitucional sob comento de que as partes, querendo, podem sim

    TST 77-02.indb 312 8/8/2011 08:07:43

  • 7 0 A N O S D A J U S T I A D O T R A B A L H O

    Rev. TST, Braslia, vol. 77, no 2, abr/jun 2011 313

    ajuizar o dissdio coletivo, mas desde que atendido o novo pressuposto de sua admissibilidade, que agora o mtuo consenso.

    Outra concluso a que se chega pelo cotejo da antiga e da nova redao dada ao art. 114, 2, do Estatuto Supremo, refere-se supresso da possibilidade de a Justia do Trabalho estabelecer normas e condies de trabalho. Neste ponto, reside a matriz constitucional para aqueles que sustentam o fim do Poder Normativo da Justia obreira. Atualmente, a Justia do Trabalho apenas poder, se assim o desejarem as organizaes sindicais envolvidas, manifestando o comum acordo na instaurao da instncia, decidir o conflito, respeitadas as disposies mnimas legais de proteo ao trabalho, bem como as convencionadas anteriormente.

    Em excelente trabalho a respeito do assunto, Eduardo Pragmcio Filho defende, aps a EC n 45, o fim do Poder Normativo da Justia do Trabalho:

    A primeira corrente diz que o poder normativo foi suprimido, pois na redao anterior do art. 114 havia disposio expressa de que a Justia do Trabalho era autorizada a criar normas e condies de trabalho. Como no existe mais essa autorizao expressa, a Justia do Trabalho no mais detm o poder normativo.

    a ela com quem nos filiamos.

    (...)

    Aps a EC n 45/04, verifica-se que realmente o poder normati-vo da Justia do Trabalho, cujas origens remontam Itlia fascista de Mussolini e a Carta Del Lavoro, foi extinto, pois com a nova redao do art. 114, 2, da Constituio, o dissdio coletivo de natureza econmica s pode ser ajuizado de comum acordo e no sero mais criadas novas normas e condies de trabalho como na redao anterior. (2004, p. 89)

    Marcos Neves Fava (2005 citado por Pragmcio Filho, 2004), tambm se posiciona no sentido de que no mais existe o Poder Norma-tivo da Justia Especializada:

    A expresso estabelecer normas, repetidas nas Constituies de 1946 e 1967, na Emenda n 1 de 1969 e na Carta Cidad de 1988, foi extirpada pela Emenda Constitucional n 45, o que aniquila o poder de criar normas. Aos Tribunais do Trabalho, quando provocados por ambas as partes, de comum acordo, decidiro o dissdio coletivo econmico, baseando seu pronunciamento com observncia das garantias mnimas

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    314 Rev. TST, Braslia, vol. 77, no 2, abr/jun 2011

    legais e nas clusulas que j vigeram entre as partes litigantes (...) Com efeito, ao retirar da Constituio Federal a autorizao dos Tribunais para estabelecer normas, a Reforma do Judicirio subtraiu o alicerce criativo da Justia Laboral (...) Se no h raiz constitucional a permitir a transposio da atividade tpica do Legislativo ao Judicirio, inexiste Poder Normativo da Justia do Trabalho.

    Com tais observaes, conclui-se que a EC n 45 estabeleceu novo pressuposto para o ajuizamento de dissdio coletivo de trabalho de natureza econmica o comum acordo, sendo que o Poder Normativo conferido Justia Especializada sofreu drstica restrio (para alguns, foi mesmo extinto) em face da supresso da expresso estabelecer nor-mas e condies de trabalho contida na redao original do art. 114, 2, da Constituio Federal.

    O art. 114 da Carta Magna determina:

    Art. 114. Compete Justia do Trabalho processar e julgar:

    (...)

    2 Recusando-se qualquer das partes negociao coletiva ou arbitragem, facultado s mesmas, de comum acordo, ajuizar dissdio coletivo de natureza econmica, podendo a Justia do Trabalho decidir o conflito, respeitadas as disposies mnimas legais de proteo ao trabalho, bem como as convencionadas anteriormente. (Redao dada pela Emenda Constitucional n 45, de 2004)

    A Justia do Trabalho pode decidir o conflito. O poder de decidir am-plo. A nica restrio imposta o respeito s normas convencionais existentes.

    No se percebe outra forma lgica de decidir o conflito, seno por meio do estabelecimento de normas relativas s condies de trabalho assalariado, impondo direitos e obrigaes.

    Esta a funo social e histrica da existncia de uma Justia Especia-lizada. Cassada a competncia normativa da Justia do Trabalho, esta perde qualquer razo de sua existncia autnoma, soberana como qualquer outro ramo do Poder Judicirio.

    No compatvel com qualquer mtodo exegtico do direito, a interpre-tao de determinado texto normativo, para concluir-se pela prpria ineficcia.

    No teria sentido lgico que o poder normativo derivado pretenda, a um s tempo, reconhecer competncia da Justia do Trabalho para decidir conflito

    TST 77-02.indb 314 8/8/2011 08:07:43

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    Rev. TST, Braslia, vol. 77, no 2, abr/jun 2011 315

    de interesses entre o capital e trabalho e, ao mesmo tempo, proibir a Justia do Trabalho de normatizar sobre as prprias condies de trabalho, essncia mesma do conflito.

    A respeito, cabe a invocao da lio de Carlos Maximiliano, em Her-menutica e Aplicao do Direito, 17. ed., Forense, p. 110-111:

    Sempre que descobre uma contradio, deve o hermeneuta des-confiar de si; presumir que no compreendeu bem o sentido de cada um dos trechos ao parecer inconciliveis, sobretudo se ambos se acham no mesmo repositrio (3). Incumbe-lhe preliminarmente fazer tentativa para harmonizar os textos; a este esforo ou arte os Estatutos da Universidade de Coimbra, de 1772, denominavam Teraputica Jurdica.

    141 Inspire-se o intrprete em alguns preceitos diretores, for-mulados pela doutrina:

    a) Tome como ponto de partida o fato de no ser lcito aplicar uma norma jurdica seno ordem de coisas para a qual foi feita.

    Se existe antinomia entre a regra geral e a peculiar, especfica, esta, no caso particular, tem a supremacia. Preferem-se as disposies que se relacionam mais direta e especialmente com o assunto de que se trata: In toto jure generi per speciem derogatur; et illud potissimum habetur quod ad speciem directum est em toda disposio de Direito, o gnero derrogado pela espcie, e considera-se de importncia preponderante o que respeita diretamente espcie.

    b) Verifique se os dois trechos se no referem a hipteses diferentes, espcies diversas. Cessa, nesse caso, o conflito; porque tem cada um a sua esfera de ao especial, distinta, cujos limites o aplicador arguto fixar precisamente.

    c) Apure o intrprete se possvel considerar um texto como afir-mador de princpio, regra geral; o outro, como dispositivo de exceo; o que estritamente no cabe neste, deixa-se para a esfera de domnio daquele.

    d) Procure-se encarar as duas expresses de Direito como partes de um s todo, destinadas a completarem-se mutuamente; de sorte que a generalidade aparente de uma seja restringida e precisada pela outra.

    e) Se uma disposio secundria ou acessria e incompatvel com a principal, prevalece a ltima.

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    316 Rev. TST, Braslia, vol. 77, no 2, abr/jun 2011

    f) Prefere-se o trecho mais claro, lgico, verossmil, de maior utili-dade prtica e mais em harmonia com a lei em conjunto, os usos, o sistema do Direito vigente e as condies normais da coexistncia humana. Sem embargo da diferena de data, origem e escopo, deve a legislao de um Estado ser considerada como um todo orgnico, exequvel, til, ligado por uma correlao natural.

    Insisto na assertiva de que o 2 do art. 114 da Carta Magna no abriga nenhum quesito contrrio premissa do caput do prprio artigo. Amplia a com-petncia da Justia do Trabalho, para possibilitar nova modalidade de dissdio coletivo de natureza econmica. Todavia, se contradio houver, pelo menos na aparncia, deve prevalecer a norma principal, pertinente competncia da Justia Especializada.

    A Justia do Trabalho no existe, por imposio de um ditador, Getlio Vargas, nem, tampouco, tem ela mera inspirao, no fascismo italiano.

    Ensinam Arnaldo Sssekind, Dlio Maranho e Segadas Vianna, em Instituies de Direito do Trabalho, 11. ed., LTr, p. 113-114:

    Aps a mais famosa obra de Georges Gurvitch inegvel que a ideia do direito social como terceiro gnero do Direito tem encontra-do valorosos adeptos, embora tenha recebido a crtica da maioria dos tericos do Direito. Defendem-na, entre outros, Mohl, Ehlich, Louis le Fur, Gierke, Aguinaga Telleria, Cesarino Jnior e Souza Neto. Esclarece Gurvitch que a estrutura jurdica de toda uma srie de novas instituies ou figuras de direito na qual se verifica a interferncia do direito pblico no direito privado, faz-nos concluir que, ao lado desses, se encontra um novo ramo do direito: o direito social. Contratos coletivos de trabalho, democracia industrial, federalismo econmico, parlamentarismo social, primazia do direito internacional sobre o direito nacional, Sociedade das Naes, Organizao Internacional do Trabalho etc. constituem para ele um pluralismo de ordens e instituies jurdicas que s pode ser com-preendido com a ideia do direito social. Esse, ento, caracteriza-se como tertium genus que dirige o novo sistema de categorias jurdicas e pessoas coletivas complexas que absorvem a multiplicidade dos seus membros na vontade nica da cooperao e do solidarismo. Para os seus adeptos, por no poder o direito social ser enquadrado exclusivamente no Direito Pblico ou no Privado, nasce com ele um terceiro, com substantividade prpria e autonomia plena. Neste sentido o encaram Blun e Galland, que enquadram o Direito do Trabalho no mbito do terceiro gnero do mundo jurdico.

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    Rev. TST, Braslia, vol. 77, no 2, abr/jun 2011 317

    Esta realidade histrica, ditada por interesses maiores da prpria humani-dade, no poderia ser destruda, em sua essncia, por meio de uma sub-reptcia emenda constitucional editada pelo poder constituinte derivado. Se este fosse o propsito sub-reptcio, ento a Emenda Constitucional n 45/04 , de todo, inconstitucional. Nem mesmo admissvel que a expresso ...de comum acordo... se constitua como condio da prpria ao de dissdio coletivo de natureza econmica.

    O dispositivo atentaria contra o princpio da inafastabilidade da juris-dio, garantia constitucional fundamental, insculpida no art. 5, XXXV, da Constituio da Repblica Federativa do Brasil.

    A lei no pode excluir da apreciao do Poder Judicirio leso ou ameaa a direito.

    O Poder Legislativo no pode aprovar texto normativo de qualquer na-tureza, que subtraia do Poder Judicirio o dever de apreciar leso ou ameaa a qualquer direito. E nem se alegue que o dissdio de natureza econmica no tem como finalidade a proteo de direito preexistente. Isto verdadeiro. No menos verdade que ele visa proteo maior, qual seja, a soluo de conflitos sociais de interesses das partes em litgio e da prpria sociedade. Por outro lado, direito de uma determinada categoria profissional buscar a normatizao heternoma, capaz de solucionar conflitos de interesses; isto tanto verdadeiro que, na hiptese de greve em atividades essenciais, at mesmo um terceiro, o Ministrio Pblico poder instaurar o dissdio de greve. E nem permitido pensar-se que este tipo de dissdio vise apenas o decreto de abusividade ou licitude do movimento de paralisao. Os Tribunais Trabalhistas, como regra geral, solucionam o dissdio de greve, com o estabelecimento de condies de trabalho contemplativas dos interesses de empregados e empregadores.

    A Justia do Trabalho chamada no apenas para punir ou absolver, mas, antes e acima de tudo, para compor o litgio, estabelecendo regras normativas impositivas de direitos e obrigaes. A funo normativa da Justia do Trabalho muito mais nobre e abrangente do que pensam os menos avisados.

    A inafastabilidade da jurisdio, como direito fundamental, reconhe-cida pelo Supremo Tribunal Federal, como bem revela o seguinte precedente:

    Ementa: Impe-se observar, por isso mesmo, que a instaurao de processos judiciais traduz legtima expresso de uma prerrogativa constitucional assegurada, pela Carta Poltica, a qualquer pessoa, entidade ou organizao que se sinta lesada ou ameaada de leso, em

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    318 Rev. TST, Braslia, vol. 77, no 2, abr/jun 2011

    seus direitos, por comportamentos abusivos ou ilegais praticados quer por particulares, quer pelo prprio Poder Pblico.

    Na realidade, o acesso ao Poder Judicirio reflete, na significativa projeo dos seus efeitos, uma expressiva garantia de ndole constitu-cional destinada a permitir a interveno do Poder Judicirio com o objetivo de restaurar a ordem jurdica vulnerada por atos eivados de ilicitude ou de desrespeito ao sistema normativo. A possibilidade de soluo jurisdicional dos conflitos sociais representa ndice revelador do grau de desenvolvimento cultural dos povos e significa, por isso mesmo, a diferena fundamental entre civilizao e barbrie. O direito ao processo mesmo quando exercido numa perspectiva multitudin-ria constitui prerrogativa jurdica da maior relevncia. Funda-se em proclamao formal, que, introduzida, de modo explcito, pela Consti-tuio democrtica de 1946 (art. 141, 4), tem sido reiterada, ao longo do nosso processo histrico, pelos sucessivos documentos constitucio-nais republicanos at hoje promulgados. O legislador constituinte, ao consagrar o postulado assegurador do ingresso em juzo, fez uma clara opo de natureza poltica, pois teve a percepo fundamental sob todos os aspectos de que, onde inexiste a possibilidade do amparo judicial, h, sempre, a realidade opressiva e intolervel do arbtrio do Estado ou, at mesmo, dos excessos de particulares, quando transgridem, injustamente, os direitos de qualquer pessoa. por essa razo que a nor-ma constitucional garantidora do direito ao processo tem sido definida por eminentes autores como o pargrafo rgio do Estado Democrtico de Direito, pois, sem o reconhecimento dessa essencial prerrogativa de carter poltico-jurdico, restaro descaracterizados os aspectos que tipificam as organizaes estatais fundadas no princpio da liberdade. Da a correta observao feita pelo eminente Ministro Gilmar Mendes, quando, como Relator (RE 408.109-MC/RO), assinalou, com indiscutvel propriedade, em causa idntica ora em anlise, que (...) a sistemtica criada pela medida provisria no excluiu, nem pode excluir da apre-ciao do Judicirio controvrsia dela decorrente. Salvo melhor juzo, a disposio que condiciona o pagamento dos atrasados no prazo de sete anos s se pode aplicar queles que aceitaram, de forma expressa ou tcita, as condies estabelecidas no questionado ato normativo (gri-fado). Impende considerar, portanto, que o parcelamento, em at sete (7) anos, do resduo de 3,17% parece vincular, apenas, aqueles que se submeteram, voluntariamente, s condies fixadas no art. 11 da MP n 2.225-45/01, no se aplicando, desse modo, aos que, dele dissentindo,

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    Rev. TST, Braslia, vol. 77, no 2, abr/jun 2011 319

    ingressam, em juzo, legitimados pelo princpio da inafastabilidade do controle jurisdicional, para vindicar o pagamento imediato e integral, em parcela nica, dos atrasados. (grifado e destacado)

    (RE 422.642 MC/DF, Medida Cautelar no Recurso Extraordin-rio, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 20.05.04, p. 00094, j. 23.04.04; RE 406089 MC/GO)

    Ademais, o Poder Constituinte derivado estaria exorbitando de sua competncia, com ostensiva ofensa ao art. 60, 4, da Constituio Federal. O dispositivo determina que no poder ser objeto de deliberao proposta de emenda tendente a abolir:

    IV os direitos e garantias individuais.

    Ora, o art. 5, inciso XXXV, est inserto no Ttulo II Dos Direitos e Garantias Fundamentais.

    A Emenda Constitucional n 45/04, ao estabelecer, no art. 114, 2, o poder soberano de uma parte inibir outra do direito Jurisdio, viola a garantia insculpida em clusula ptrea da Carta Magna. eivada de inconstituciona-lidade.

    Por outro lado, a norma, sendo compreendida como inibidora do prprio direito de ao, fere o princpio constitucional da razoabilidade. Admite-se que pode haver conflito entre as parcelas das duas foras produtivas da sociedade: capital e trabalho, sem envolvimento da atividade essencial.

    Apesar disso, no se pode negar que sempre haver interesses da socie-dade em jogo. Por exemplo, uma greve na indstria de produtos farmacuticos, pode envolver apenas a fabricao de remdios, cuja utilizao pode ser flexi-bilizada. Todavia, pode afetar produtos mdicos de uso obrigatrio e continuo.

    Em tal circunstncia, o dissdio de greve no pode ser utilizado, por no se tratar de atividade essencial, de interesse pblico. Sem o acordo de uma das partes envolvidas, no conflito social, no poder instaurar-se o dissdio coletivo de natureza econmica. E como consequncia final, se nega o direito ao coletiva e se inibe a Justia do Trabalho do exerccio de sua funo maior, a normatizao de condies de trabalho, como o estabelecimento de direitos e deveres, em prol da paz social. Semelhante previso constitucional atentaria contra o princpio da razoabilidade.

    TST 77-02.indb 319 8/8/2011 08:07:44

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    320 Rev. TST, Braslia, vol. 77, no 2, abr/jun 2011

    O PODER NORMATIVO DA JUSTIA DO TRABALHO COMO INSTRUMENTO DA DEMOCRACIA

    Os defensores da extino do poder normativo da Justia do Trabalho, bem representados por Conrado Di Mambro Oliveira, em LTr de n 75, alinham diversos fundamentos contrrios competncia da Justia do Trabalho para legislar, por meio de sentenas normativas proferidas em autos de dissdio coletivo de natureza econmica, a saber:

    1 O legislador constituinte originrio e derivado estimulam a soluo autnoma das controvrsias dos interesses coletivos entre capital e trabalho, visando reduzir ou mesmo suprimir o poder normativo da Justia do Trabalho.

    2 O poder normativo constitui interveno do Estado nas relaes de trabalho, por meio de uma competncia anmala.

    3 O poder normativo da Justia do Trabalho possui visceral influncia italiana e fascista, com ideias corporativistas.

    4 No corporativismo, no se admite lutas de classe. Trabalhadores e empresas colaboram com o fim maior do Estado onipresente, ... que a produo e o bem-estar social.

    5 A principal funo poltica da Justia do Trabalho seria preencher o vazio deixado pela proibio de greve.

    6 O poder normativo da Justia do Trabalho incompatvel com o atual Estado Democrtico, porque baseado em ideias autoritrias.

    7 Trata-se de instituto anacrnico, imprestvel para os fins a que se destina.

    Destaque-se, prontamente, que as mazelas apontadas se referem, apenas, aos dissdios de natureza econmica. O dissdio de greve no sofre qualquer restrio. O poder normativo da Justia do Trabalho, quando for acionado para inibir o nico poder eficaz do trabalhador, isto , o exerccio do direito de greve, constitucional, timo. A incongruncia manifesta e serve bem para identificar a inspirao ideolgica das crticas.

    Inicialmente, preciso rever a verdade histrica da Justia do trabalho.

    Passo a palavra ao doutrinador Henrique Macedo Hinz, em trabalho pri-moroso publicado pela LTr n 74, que desmente a falcia das origens fascistas da legislao trabalhista, traduzida na CLT e leis especficas. O Autor acentua:

    TST 77-02.indb 320 8/8/2011 08:07:45

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    Rev. TST, Braslia, vol. 77, no 2, abr/jun 2011 321

    A Consolidao das Leis do Trabalho CLT o maior corpo legislativo de disposies materiais e processuais de natureza trabalhista, j beira 70 anos de existncia, tendo passado quase que inclume por diferentes regimes econmicos e polticos em nosso pas, sem sofrer profundas alteraes, hoje, to reclamadas por setores da sociedade. E uma anlise cuidadosa (e imparcial) de nossa consolidao permite a identificao de inmeras disposies de cunho corporativo na mesma.

    Por fim, e no menos importante, Arnaldo Sssekind, um dos participantes da elaborao da CLT, em 1943, quem estatui em Gomes (2004, p. 78):

    A alegao de que a CLT uma cpia da Carta Del Lavoro, repe-tida por 99% das pessoas que nunca leram esse documento de Mussolini, absolutamente falsa. Desde logo convm lembrar que a CLT tem 922 artigos; e a referida Carta apenas 30. Desses, somente 11 diziam respeito aos direitos e magistratura do trabalho.

    H, por sua vez, os que defendem que a legislao trabalhista brasileira fruto das agitaes provocadas pelos imigrantes, principal-mente italianos anarquistas, que para c vieram, no incio do sculo XX, trabalhar no s no campo, mas tambm nas cidades.

    No comungamos dessa tese.

    Afinal, se no deixa de ter relevncia social os movimentos popula-res e, mesmo trabalhistas, nesse perodo muito rico da histria brasileira, sabido que, para se poder defender que a legislao do trabalho, num regime capitalista de produo, decorre dos conflitos entre os represen-tantes do trabalho com os do capital, necessrio seria a existncia de uma estrutura econmica desse tipo, o que, efetivamente, no era o caso da sociedade brasileira at a dcada de 1930.

    Como a seguir se ver, justamente nesse perodo, mormente aps o Estado Novo, que se pode dizer que o Brasil se insere num regime capitalista de produo e, antes disso, os conflitos, as greves, raras vezes se desenvolviam contra os empregadores, sendo o mais comum as greves por carestia, contra o regime poltico vigente poca, etc.

    , assim, mais com a finalidade de reabrir e incentivar o debate sobre a questo do que propriamente defender uma tese definitiva, que passo a discorrer sobre uma maneira de se interpretar as origens da re-gulao do trabalho no Brasil.

    TST 77-02.indb 321 8/8/2011 08:07:45

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    322 Rev. TST, Braslia, vol. 77, no 2, abr/jun 2011

    O trabalho se estende, por vrias pginas, com informaes histricas e fundamento irrespondveis.

    A assertiva de que a funo poltica da Justia do Trabalho preencher o vazio deixado pela proibio do direito de greve, para combater o poder nor-mativo da Justia do Trabalho chega s raias do absurdo. O direito de greve, no Brasil, no absoluto, tendo em conta os interesses maiores da sociedade. Todavia, est previsto, na Constituio, e regulamentado em lei especfica. Portanto, no se pode falar no preenchimento do vazio deixado em razo da proibio do direito de greve.

    A Justia do Trabalho, mesmo ao julgar dissdio de greve, no tem se limitado a absolver ou punir os grevistas. Normalmente, soluciona o conflito social, estabelecendo normas instituidoras de direitos assegurados aos trabalha-dores envolvidos no movimento paredista. Exemplo edificante desta prtica a sentena normativa proferida nos autos do processo n TST-DC 35.830/91.5, instaurado pelo Ministrio Pblico do Trabalho, envolvendo a Confederao Nacional dos Trabalhadores nas Empresas de Crdito e o Banco do Brasil S.A, com base no art. 8 da Lei n 7.783/89 Lei de Greve. O TST decretou a no abusividade da greve e deferiu vrias clusulas postuladas pelos trabalhadores. A deciso serviu aos interesses dos grevistas, da instituio bancria e da prpria coletividade usuria dos servios bancrios.

    Fica muito difcil a caracterizao dessa atividade legiferante da Justia do Trabalho como incompatvel com o atual Estado Democrtico.

    A razo principal das crticas ao poder normativo da Justia do Trabalho reside na mesma ideologia de combate ao prprio Direito do Trabalho. Esta prtica est bem denunciada pelo Jurista Mauricio Godinho Delgado, em LTr, n 69, p. 41:

    Face negativa do novo art. 114: Incorporao da cultura de desprestgio ao Direito do Trabalho

    A reforma do Judicirio, entretanto, produto de 12/3 anos de ar-ticulaes polticas no Congresso, lamentavelmente tambm evidenciou a assimilao da cultura de desprestgio do Direito do Trabalho, to exacerbada ao longo dos anos de 1990 no pas.

    No Brasil conforme ser melhor examinado no item IV, a seguir sempre foi recorrente o isolamento e certo desprestgio cultural do ramo justrabalhista, em contraponto com o largo prestgio e insero social alcanados na histria dos pases capitalistas europeus mais avanados.

    TST 77-02.indb 322 8/8/2011 08:07:45

  • 7 0 A N O S D A J U S T I A D O T R A B A L H O

    Rev. TST, Braslia, vol. 77, no 2, abr/jun 2011 323

    Tais isolamento e desprestgio exacerbaram-se na dcada de 1990 na realidade brasileira, em meio ao iderio de descomprometimento social do Estado, aqui veiculado laudatoriamente desde o incio daqueles anos (iderio que j manifestara sua fora na Europa Ocidental ps-1970). Os efeitos deletrios deste desprestgio e isolamento disseminaram-se ainda mais em decorrncia do apelo da variante intelectual especificamente brandida Contra as conquistas da Democracia Social no Ocidente, qual seja, a ideia do fim da sociedade do trabalho, da centralidade do trabalho e do emprego no mundo capitalista.

    Nesse contexto, o Direito do Trabalho a mais significativa conquista das grandes massas populacionais na economia e socieda-de capitalistas ocidentais, a mais eficiente e generalizada poltica de distribuio de renda e poder na histria do capitalismo passou a ser acentuadamente desgastado, em irresistvel blitzkrieg de crticas, as quais curiosamente, originavam-se desde os segmentos mais conservadores da sociedade, passando pelas novas vertentes, de renovao ideolgica do sistema hegemnico, despontando at mesmo de certas searas oriundas do clssico pensamento democratizante e distributivista gestado nos sculos XIX e XX.

    O estratagema de imploso das conquistas socioeconmicas alcan-adas pelas macropopulaes nas sociedades capitalistas, das polticas pblicas distributivistas de poder e renda, supunha a derruio da matriz filosfico-cultural de todo o avano da Democracia Social no Ocidente, qual seja, a noo de sociedade do trabalho, a centralidade do trabalho e emprego, o trabalho e o emprego como valores, fundamentos e prin-cpios do Direito contemporneo.

    O dinamismo da Justia do Trabalho, no exerccio do seu poder norma-tivo, incomoda bastante queles que advogam o prprio desmantelamento do Direito do Trabalho, em nome de um regime capitalista selvagem, cujo deside-rato maior a explorao do trabalho humano, com o consequente auferimento de lucros exorbitantes.

    Este tipo de capitalismo no encontra respaldo na prpria Constituio Federal, ao dispor no art. 170, que a ordem econmica deve fundar-se na valorizao do trabalho humano, visando assegurar a todos existncia digna, conforme os ditames da justia social. A propriedade h de ter finalidade so-cial. Esta no ser observada, com a indiferena do Estado. Especialmente do Poder Judicirio.

    TST 77-02.indb 323 8/8/2011 08:07:45

  • 7 0 A N O S D A J U S T I A D O T R A B A L H O

    324 Rev. TST, Braslia, vol. 77, no 2, abr/jun 2011

    A tese de que o anacrnico poder normativo da Justia do Trabalho se mostra incompatvel com o Estado Democrtico, que estaria sendo vivenciado, no Brasil atual, parte de premissas abstratas, sem qualquer respaldo na prtica histrica das ltimas dcadas.

    Improcede, igualmente, a tese de que a soluo para os conflitos sociais ocorrentes nas relaes empregatcias encontram melhor soluo por meio das negociaes diretas entre empregados e empregadores, representados pelos respectivos rgos sindicais.

    Cabe citar ensinamento ministrado por Henri Lacordaire: Entre o forte e o fraco, a liberdade escraviza e a lei liberta.

    Falar-se na eficcia plena das negociaes diretas entre empregados e empregadores, quando existem, no mercado de trabalho, milhes de desempre-gados, milhes de terceirizados, passa a ser fruto de verdadeiro sonho e do real propsito de ludibriar a conscincia de todos quantos se interessam pelo assunto.

    A tese favorvel extino do poder normativo da Justia do Trabalho tem a mesma fonte ideolgica e os mesmos propsitos dos que a advogam a preconizao do Direito do Trabalho.

    A respeito, leciona Francisco Antonio de Oliveira, em LTr, v. 73, p. 552:

    Sempre houve crtica sobre o poder normativo, sob o argumento de que a Justia do Trabalho exerce atividade prpria do Poder Legis-lativo. Guardadas as devidas propores, h, induvidosamente, exagero daqueles que criticam. A verdade que a Justia do Trabalho um ramo diferente do Poder Judicirio, dotado de inmeras peculiaridades, e, entre elas, o poder normativo que, durante cerca de sessenta anos, resolveu as desavenas entre o capital e o trabalho no plano coletivo. Graas ao poder normativo sempre se conseguiu certo equilbrio entre empregados e empregadores. Estes querendo uma maior remunerao dos capitais alocados e os empregados em luta constante para que a inflao reduzisse menos o seu salrio. Tivemos poca em que a inflao chegou ao patamar de oitenta por cento ao ms.

    E, mais adiante, acrescenta:

    Certamente, ainda existem inmeros sindicatos cujo poder de negociao diminuto ou mesmo inexistente. Credite-se essa realidade lei, no existncia do dissdio coletivo. A Justia do Trabalho, sem o poder normativo, transforma-se num ramo muito prximo da justia comum, conservando apenas as suas peculiaridades. E com a EC n 45

    TST 77-02.indb 324 8/8/2011 08:07:45

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    Rev. TST, Braslia, vol. 77, no 2, abr/jun 2011 325

    alargando a sua competncia (relao de trabalho) essa aproximao j aconteceu em parte. Mas existem os que veem no dissdio coletivo o enfraquecimento da liberdade de negociao, incompatibilidade com o regime democrtico em face interveno do Estado, descumprimento das normas coletivas impostas s partes e o impedimento da negociao coletiva, etc. No vemos enfraquecimento da liberdade de negociao. O que pode haver a falta de expresso do sindicado para gerir uma nego-ciao a bom termo; no vemos nenhuma ofensa ao regime democrtico, pois a presena do Poder Judicirio no constitui interveno indevida do Estado. Depois, o Judicirio no age de ofcio; o descumprimento de normas coletivas no se d pelo fato de serem impostas: primeiro no foram impostas, as partes se socorreram do dissdio para resolver impasse e para que o equilbrio social no sofresse sequelas. A resoluo rpida e evita soluo de continuidade na vida do pas.

    O conceito de democracia gravita em torno de trs ideias: liberdade, igualdade e regime de representao poltica do povo, como bem resume Igncio da Silva Telles, em Enciclopdia Saraiva do Direito, p. 267.

    E adita:

    Tanto Plato como Aristteles referem-se democracia com crticas, confrontando, com os luminosos tempos anteriores sua implan-tao, o confrangedor espetculo de decadncia a que as cidades gregas haviam chegado, entregando-se demagogia e corrupo.

    Aristteles, ao classificar as formas do governo quanto sua le-gitimidade, diz que a tirania o sistema pervertido da monarquia; a oli-garquia, o da aristocracia; e a democracia, o do governo constitucional.

    No lcito falar-se em igualdade entre o trabalhador, que percebe o salrio-mnimo de quinhentos e poucos reais, para o labor dirio de 8 horas, enquanto outros, que pouco trabalham, percebem quase vinte mil mensais, alm de outras mordomias. Desmente a real ideia de democracia, quando os Poderes Legislativo e Executivo concedem reajuste salarial de 6%, mais ou menos, e reajustam os seus prprios proventos em mais de 60%.

    No parece legtimo falar-se em Democracia, quando as eleies custam somas fabulosas, fruto de financiamento de organizaes empresariais, direta-mente interessadas em todo o processo legislativo.

    O poder normativo da Justia do Trabalho est muito mais prximo do conceito de democracia, quando, em pleno regime de exceo, lutou, brava-mente, para assegurar o poder aquisitivo dos salrios.

    TST 77-02.indb 325 8/8/2011 08:07:45

  • 7 0 A N O S D A J U S T I A D O T R A B A L H O

    326 Rev. TST, Braslia, vol. 77, no 2, abr/jun 2011

    Assim que manteve, em sentenas normativas, fruto de debates me-morveis da SDC do TST, o direito ao reajuste salarial integral, nos autos dos dissdios coletivos envolvendo o Banco do Brasil S/A, Caixa Econmica Fede-ral, Banco do Amaznia S/A, o Banco do Nordeste do Brasil S/A, o Banco de Desenvolvimento Econmico e Social. O TST, em todas estas oportunidades, deixou de aplicar as restries dos chamados planos econmicos Bresser Pereira, Plano Cruzado e Plano Vero.

    Cabe a transcrio, como exemplo do acrdo proferido nos autos do processo n TST-DC 39/89.0. Tendo como relator o Ministro Almir Pazzianoto Pinto:

    Vejamos, guisa de ilustrao, como se passou o fenmeno da inflao desde o ms da data-base: setembro/88, 24,01%; outubro/88, 27,25%; novembro/88, 26,92%; dezembro/88, 28,79%; janeiro/89, 70,28%; fevereiro/89, 3,60%; maro/89, 6,09%; abril/89, 7,31%; maio/89, 9,94%; junho/89, 24,83%; julho/89, 28, 76%; agosto/89, 29,34%; setembro/89 desimportante para o processo, mas nem tanto para o trabalhador, acusa inflao recordista de 35,95%.

    No sendo o todo superior acumulao das parcelas mensais o ndice de 1.084% no concede aos trabalhadores da categoria, quando incidente sobre os salrios da data-base, descontados os adiantamentos nada mais do que a reposio daquilo que matematicamente perderam, por fora de um processo inflacionrio, em relao ao qual no tem nenhuma dose de responsabilidade. Se os seus salrios parecem ser nominalmente altos, comparativamente com os padres salariais da po-pulao que sobrevive com o mnimo legal, j eram altos em setembro de 1988, quando receberam um reajuste da ordem de 120,41%, mediante acordo homologado.

    Se porventura as antecipaes conferidas em janeiro estavam cor-retas, e zeraram a inflao at ento verificada, pelo simples processo de deduo sero neutralizadas. Se no zeraram o que certamente aconte-ceu os suscitantes recebero simplesmente aquilo a que fazem jus por fora do princpio constitucional art. 7, inciso VI e do imperativo legal art. 1 da Lei n 7.788, de 3 de julho de 1989.

    Devo lembrar que a Justia do Trabalho preserva apenas salrios nominais, e nada mais alm disso consegue fazer. Mesmo concedendo o IPC do perodo, no esto resguardando salrios reais, verdadeiramente indefesos diante de inflao to impetuosa.

    TST 77-02.indb 326 8/8/2011 08:07:46

  • 7 0 A N O S D A J U S T I A D O T R A B A L H O

    Rev. TST, Braslia, vol. 77, no 2, abr/jun 2011 327

    Mais de uma vez polticas econmicas de salvao se voltaram contra os salrios, conquanto confessando-se impotentes diante do ven-daval dos preos.

    Investida hoje de Poder normativo Constitucional bem mais am-plo, a Justia do Trabalho no deve se arrecear das dificuldades de uma deciso em momento alegado difcil.

    No havendo as partes chegado ao desejvel acordo, que lhes permitiria at mesmo a reduo dos salrios, conforme determina a Constituio em vigor, somente nos resta, como integrantes do TST, re-por as perdas padecidas pela categoria. Polticas voltadas para o corte de salrios no contribuem para o combate inflao, como demonstraram as malogradas experincias dos anos 60 e 70.

    To s para argumentar, questiono a validade de legislao que, diante de reconhecido processo inflacionrio em acelerao, pretendesse limitar o Poder Normativo desta Justia, declarando-a impedida de, em ao coletiva revisional de sentena normativa anterior, reajustar os salrios na data-base.

    Esta legislao, obviamente, acusaria mais de uma falha de con-cepo.

    No caso dos autos, a deciso anterior teve sua vigncia fixada para o perodo de um ano. Logo, as partes estavam impedidas de promover negociaes salariais, quaisquer que fossem as taxas de desvalorizao da moeda, e dos salrios, antes de decorridos doze meses. Toda e qual-quer medida destinada a repor perdas, fosse de natureza contratual, ou tivesse fundamento legal, teria o carter de antecipao ou adiantamento. Assim, na condio de adiantamentos compulsrios categoria recebeu as URPs e as antecipaes dos primeiros meses do ano. Apenas com o carter de adiantamentos, dedutveis do reajuste global assegurado, em sua integralidade, na data-base.

    De outro ngulo, nenhuma medida contratual ou legal subtrai o Poder Normativo da Justia do Trabalho, por ser este de origem consti-tucional, como no retira parte o direito de petio ao Poder Judicirio e de a ele recorrer para que aprecie leso sofrida ou mesmo simples ameaa a direito (Constituio Federal, arts. 114 e 5, XXXIV e XXXV).

    Seria extremamente cmodo ao Poder Executivo, sobretudo quando parte interessada por explorar atividade econmica, e possuir centenas de milhares de empregados, diante do violento processo infla-

    TST 77-02.indb 327 8/8/2011 08:07:46

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    328 Rev. TST, Braslia, vol. 77, no 2, abr/jun 2011

    cionrio, ao invs da adoo das medidas de profundidade para: combat-lo, retomar a prtica da manipulao dos ndices, dos expurgos e tentar afastar da apreciao do Poder Judicirio as brutais perdas sofridas pelos assalariados em razo da alta constante e inclemente do custo de vida.

    No compete ao Tribunal, data venia, fundar suas decises em vagos argumentos, segundo os quais determinada categoria bem re-munerada. Esta informao no consta do processo, para o qual jamais vem a folha de pagamento, seja dos modestos funcionrios, seja de uma alta diretoria. O Tribunal julga conforme a Lei, a Jurisprudncia e os critrios estabelecidos, os quais constituem os seus precedentes. Julgar o caso no implica em julgar casuisticamente.

    A circunstncia de ser empresa pblica federal no confere CEF tratamento diferenciado, para melhor ou para pior. O art. 173 da Consti-tuio determina, a esse propsito, que A empresa pblica, a sociedade de economia mista e outras entidades que explorem atividade econmica sujeitam-se ao regime jurdico prprio das empresas privadas, inclusive quanto s obrigaes trabalhistas e tributrias. Esta norma salutar j fazia parte da Constituio de 67, Emenda n 1/69, pois dispunha o art. 170, 2, acerca dessa matria que: na explorao, pelo Estado, da atividade econmica, as empresas pblicas e as sociedades de economia mista reger-se-o pelas normas aplicveis s empresas privadas, inclusive quan-to ao direito do trabalho e das obrigaes. Nenhuma novidade, portanto.

    Havendo redigido o voto antes do julgamento do Dissdio Coletivo n 21/89.8, em que foi suscitada a EMBRAPA, e que tem como data-base 1 de maio de 1989, devo acrescentar que, mantendo, neste Dissdio, a orientao adotada quando do julgamento do DC-38/89.2, em que foi suscitante a CONTEC e suscitado o Banco do Brasil S/A data-base 1 de setembro advirto que, assim procedendo, este Tribunal, por expressiva maioria, firmou jurisprudncia quanto concesso do IPC Pleno descontados os adiantamentos.

    Perguntar-se-ia se a Lei n 7.788, de 3 de julho de 1989, poderia alterar essa tradicional orientao. Sustento que no, apoiado em seu texto. Nem a Lei n 7.777, de 19 de junho de 1989, que expediu normas de ajustamento do Programa de Estabilizao Econmica de que tratou a Lei n 7.730, de 31 de janeiro de 1989, menos, ainda, a Lei n 7.788, de 3 de julho de 1989, promulgada simultaneamente Lei n 7.789, que dispe sobre o salrio-mnimo, tecem mais do que regras de antecipao, confirmando as datas-bases das categorias econmicas e profissionais

    TST 77-02.indb 328 8/8/2011 08:07:46

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    e, por via de consequncia, o princpio do reajustamento anual, quando espera-se so neutralizados os efeitos da inflao sobre os salrios avenados ou fixados na data-base anterior.

    Lei alguma no perodo democrtico iniciado a 15 de maro de 1985 buscou retirar parcelas do comando normativo da Justia do Trabalho realado pela Constituio de 5 de outubro de 1988.

    Em sua independncia sem a qual o Poder Judicirio perde a ra-zo de sua existncia a Justia do Trabalho pode e deve zerar os efeitos da inflao e, por decorrncia do aumento do custo de vida, restituindo dos salrios o valor nominal que lhe foi sugado pelo turbilho dos preos.

    Claro que de acordo com o art. 7, inciso VI, da Lei Fundamen-tal podem as partes reduzir salrios atravs de conveno ou acordo, se assim lhes recomendar ou impuser o conhecimento da situao em que se encontra a empresa, e em que se acham os seus empregados. O mesmo princpio est assentado pelo art. 1 da Lei n 7.788, de 3 de julho ltimo, pargrafo nico.

    O dissdio envolvia a Caixa Econmica Federal e a Confederao Na-cional dos Trabalhadores nas Empresas de Crdito CONTEC.

    Noutras oportunidades, o TST defendeu a democracia, o Estado de Direi-to. Em determinada poca, a chamada legislao salarial previa que a Sentena Normativa deveria fixar reajuste salarial igual ao previsto nos ndices oficiais apurados pelo Poder Executivo.

    A SDC adotou a jurisprudncia do arredondamento. Assim, se previstos 6,65%, o reajuste seria de 7%.

    O significado econmico era, como se percebe, insignificante. Todavia, a mensagem relevante que importava. O Tribunal afirmava sua independncia. No aceitando o papel de simples carimbador de dados contbeis do Poder Executivo. Esta a prtica de democracia verdadeira. No se trata, apenas, de discursos demaggicos perante plateias de congressos e seminrios.

    Algumas leis e at a prpria Constituio cidad se inspiram na jurispru-dncia normativa do TST. Apenas como exemplo, citam-se as frias de trinta dias e o adicional do trabalho extraordinrio de at 100% sobre o valor do salrio da hora normal de trabalho; o abono de falta ao trabalho do estudante, em determinadas circunstncias; as creches nos locais de trabalho; limites para os descontos nos salrios; impossibilidade de transao dos diretos assegurados empregada gestante; desvalia do acordo coletivo de trabalho, quando defere

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    direitos inferiores aos previstos na lei; diversos precedentes normativos prote-tores de direitos relevantes para os trabalhadores rurais, como o que assegura a moradia em condies de habitabilidade, e da concesso de terra; pagamento de salrio, mesmo sem a prestao de trabalho, por impedimento causado pela chuva.

    Figura como real sustentculo do Estado de Direito a atividade legife-rante da Justia do Trabalho, em razo da celeridade como soluciona graves conflitos nas relaes de trabalho entre empregadores e empregados, como repercusso nos interesses da prpria sociedade. Contrariamente, desserve ao Estado de Direito, quando o Poder Legislativo engaveta, anos a fio, projetos at de leis complementares, com graves prejuzos para a prpria sociedade. A gravidade da inrcia do Congresso Nacional revelada pela grande quantida-de dos mandados de injuno julgados pelo Supremo Tribunal Federal, sem qualquer resultado prtico.

    At hoje, os trabalhadores esperam a lei complementar prevista no art. 7, I, da Constituio da Repblica Federativa do Brasil, destinada a disciplinar a garantia de emprego. Enquanto isso, as empresas podem demitir, sem justa causa, pagando apenas a multa do FGTS, correspondente a 40% dos valores depositados.

    A Justia do Trabalho decide, por meio do poder normativo, com celeri-dade incomparavelmente maior do que ocorre no Poder Legislativo. A atividade legiferante da Justia do Trabalho independe dos interesses polticos partidrios, vinculados diviso do poder e at mesmo diviso do bolo oramentrio da Unio. Na Justia do Trabalho no se tem notcia de mensalo ou mensalinho.

    Nem mesmo se compreende como a Justia do Trabalho interfere na efi-ccia das negociaes diretas dos envolvidos no processo produtivo, inclusive porque exige que a instaurao do processo de dissdio coletivo seja precedida de tentativa de negociao coletiva pelas partes em conflito.

    Enquanto o poder normativo da Justia do Trabalho teve e tem influncia importante na adoo de uma poltica salarial nacional, especialmente, na esfera das instituies financeiras, as negociaes diretas das entidades sindicais com o Poder Executivo levam ao estabelecimento dos reajustes nacionais e abrangentes de todos os servidores pblicos, embora previsto no art. 37, X, da Constituio Federal. Assim, so deferidos diversos ndices de reajustamento dos vencimen-tos dos servidores pblicos, conforme avaliao arbitrria do Poder Executivo, quase sempre justificados com a existncia de prvias negociaes. O resultado mais nefasto dessa poltica sofrem os servidores pblicos aposentados.

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    A credibilidade das negociaes diretas, a cargo de foras desiguais, precria.

    Basta que se cite a denncia gravssima feita pelo Ministro Ives Gandra Martins Filho, em LTr, v. 74, p. 1.415:

    Tal como concebida, a Emenda Constitucional n 62, de 9 de dezembro de 2009, representa um terceiro calote constitucional no que diz respeito ao pagamento de precatrios pelos entes federativos brasi-leiros, deixando claro o carter atico do Estado brasileiro, que possui das mais altas cargas tributrias do mundo, cobrando-a com rigor, mas no pagando ou atrasando a quitao de suas dvidas.

    Fala-se em terceiro calote porque, com a Constituio Federal de 5 de outubro de 1988, deu-se um primeiro calote, mais modesto, porque o prazo era de 8 anos e no inclua os precatrios de natureza alimentcia (ADCT, art. 33). O segundo calote se deu com a Emenda Constitucional n 30, de 13 de setembro de 2000, que, mesmo preservando os precatrios de natureza alimentcia, postergou por mais 10 anos o pagamento dos precatrios atrasados (ADCT, art. 78).

    A Emenda Constitucional n 62/09 representa novo calote, quer por novamente postergar o pagamento dos precatrios atrasados, e ainda por cima incluindo nele os precatrios de natureza alimentcia, quer porque as contas da Emenda no batem: depositar mensalmente de 1% a 3% da receita corrente lquida das entidades devedoras durante 15 anos (ADCT, art. 97, 2 e 14) absolutamente insuficiente para pagar os precatrios vencidos e a vencer.

    Os calotes so impostos pelo Poder Constituinte Derivado e se aplicam a variada gama de credores, muitos deles no muito desfavorecidos, econmica e socialmente. Quais sero as perspectivas para as solues emergentes de con-flitos sociais, no processo produtivo, no qual figuram foras desiguais? Frente s poderosas instituies capitalistas, os trabalhadores dispem de um direito de greve engessado pela lei ordinria, para no se falar na organizao sindical debilitada ou atrelada aos desgnios do Poder Executivo. Basta citar-se que as poderosas centrais sindicais manifestaram a aceitao de um salrio-mnimo inferior a seiscentos reais, embora o DIEESE revele que o mnimo, nos termos da Constituio, deveria girar em torno de dois mil reais.

    A respeito do tema, alerta Arnaldo Sssekind, em LTr, v. 74, p. 391:

    A conveno coletiva de trabalho um instrumento peculiar ao Direito do Trabalho. Por ter normatividade abstrata, constitui fonte for-

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    mal de Direito, razo pela qual as condies de trabalho nela estipuladas incidem sobre os contratos de emprego a que se aplica.

    A Constituio brasileira de 1988, inovando o tema, admitiu a flexibilizao em matria de salrio e jornada de trabalho por meio dos instrumentos resultantes da negociao coletiva entre sindicatos de tra-balhadores e empresrios.

    O sucesso da negociao coletiva, seja entre sindicatos de empre-gadores e de trabalhadores (conveno coletiva), seja entre empresas e os sindicatos representativos dos seus empregados (contrato ou acordo coletivo), depende de vrios fatores, dentre os quais cumpre destacar:

    a) garantia da liberdade e da autonomia sindical;

    b) razovel ndice de sindicalizao do grupo representado;

    c) espao para a complementao e suplementao do sistema legal de proteo ao trabalho.

    No necessrio alto nvel de conhecimento da organizao sindical bra-sileira para se concluir que tais condies no so atendidas. Basta a constatao de que a prpria condio de sobrevivncia de quase totalidade das entidades sindicais depende dos recursos advindos do chamado imposto sindical, hoje, previsto no art. 8, IV, da Constituio Federal.

    A pouca filiao dos trabalhadores aos sindicatos pblica e notria.

    Assim, no subsistem as teses dos defensores da extino do poder nor-mativo da Justia do Trabalho.

    Amauri Mascaro Nascimento, em acentuado e erudito trabalho, divulgado no v. 70 da LTr, p. 651, ensina:

    Teria todo sentido a escolha, pelas partes, da arbitragem por proposta comum. Mas no tem nenhum sentido o processo judicial do dissdio coletivo, como tal, ajuizvel somente quando as duas partes de-sejarem o processo, figura inexistente no direito processual contencioso. Se a natureza jurdica do dissdio coletivo a de processo, condicion-lo autorizao do ru, para que o processo possa ser movido, seria o mesmo que transferir o direito de ao do autor para o ru, portanto uma hiptese absurda e que contraria o princpio constitucional do direito de ao e a inafastabilidade da jurisdio, na medida em que bvio que ningum autorizar outrem a process-lo porque como contestante no processo, seria total a incompatibilidade entre o seu consentimento para

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    que fosse demandado e a contestao que teria que fazer ao pleito para cuja propositura deu a sua aquiescncia.

    Essas razes mostram que a diretriz jurisprudencial que vem admitindo o dissdio coletivo econmico por impulso unilateral, como, tambm, o dissdio coletivo de greve e o dissdio coletivo jurdico, correta e a mais prxima do interesse tanto dos sindicatos de emprega-dos, que esto ingressando com esses dissdios, e de empregadores, que nos casos de greve no teriam uma forma judicial de resolver o conflito que a motiva.

    No sustentvel a afirmao de que no dissdio coletivo no h direitos, mas apenas interesses, para com esses pressupostos concluir-se que o princpio da inafastabilidade da jurisdio no foi violado. Dizer que no dissdio coletivo econmico no h um direito, mas um interesse e por tal razo nenhum direito teria sido violado deslocar a discusso do seu ncleo. No se discute o direito material pretendido. O que se verifica se foi afetado o direito processual. que a premissa equivocada. H um direito violado, sim: o direito de ao.

    Mais adiante, no mesmo trabalho, pp. 655-656, o jurista fulmina a tese, segundo a qual, quando o novo Texto Constitucional no repete o anterior, que previa o poder da Justia do Trabalho, para ... criar normas e condies de trabalho, teria cassado o poder normativo da Justia do Trabalho. Confira-se:

    No sustentvel a tese de que o poder normativo da Justia do Trabalho foi extinto. Como ser possvel defender o fim do poder normativo da Justia do Trabalho quando a EC n 45 manteve o dissdio coletivo econmico que s pode ser solucionado com deciso de mrito com pronunciamento sobre as condies de trabalho pleiteadas? No h dvida que o dissdio coletivo econmico foi mantido pela EC n 45. certo, tambm, que a referida Emenda suprimiu, ao se referir ao mes-mo, a expresso, criar normas e condies de trabalho, substituindo-a pelo poder de julgar os dissdios coletivos. Mas, como ser possvel um Tribunal do Trabalho julgar dissdio coletivo econmico sem solucio-nar o pleito que o motivou? E ao julgar o pleito, como ser possvel ao Tribunal faz-lo sem decidir sobre as normas e condies de trabalho em torno das quais as partes controvertem e no chegaram a um acordo na negociao coletiva?

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    O fim principal da jurisdio a satisfao do interesse pblico do Estado na realizao do direito e a composio dos litgios pelas pessoas ou rgos investidos, pela lei, desses poderes.

    necessria a distino entre a atividade judicante da Justia do Trabalho, quando legisla e no momento de aplicao da norma j existente. Aqui, a sua funo interpretar bem o texto normativo, emprestando-lhe efetividade. Ao legislar, a Justia do Trabalho procura solucionar o conflito social de trabalho, estabelecendo novos direitos e novas obrigaes.

    Seria bastante curiosa a situao de acionamento do Poder Judicirio, para solucionar conflitos sociais, sem nada estabelecer. Estar-se-ia diante de uma atividade jurisdicional intil, estril. O ilogicismo da tese dispensa maiores comentrios.

    Diante das razes expostas, algumas concluses so imperativas:

    O poder normativo da Justia do Trabalho no foi extinto, nem diminudo. Restou fortalecido, por fora da aplicao exata da Emenda Constitucional n 45/04. Alis, esta soluo consequncia lgica da prpria ampliao da com-petncia da Justia do Trabalho. Esta perderia sentido, se admitida a subtrao da principal caracterstica especial da Justia do Trabalho.

    A expresso ... de comum acordo..., constante do 2 do art. 114 da Constituio Federal, no implica a impossibilidade do ajuizamento do diss-dio coletivo de natureza econmica apenas por uma das partes em conflito de interesses. Ela permite um novo tipo de dissdio coletivo.

    O poder normativo da Justia do Trabalho no inibe a possibilidade de negociaes diretas entre empregados e empregadores, por meio das respectivas representaes sindicais.

    O poder normativo da Justia do Trabalho no atentatrio ao Estado de Direito. Contrariamente, traduz o exerccio prtico de democracia.

    TST 77-02.indb 334 8/8/2011 08:07:47