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1 INTRODUÇÃO Desde há muito a doutrina parece ter renunciado ao propósito de elencar exaustivamente todas as hipóteses de ocorrência dos delitos comissivos por omissão na Parte Especial dos Códigos Penais; ou pelo argumento da impossibilidade fática desta tarefa ; ou pelas lacunas na punibilidade que isto geraria. É de questionar se talvez não fosse esse o preço a se pagar para que se tivesse uma regulamentação mais respeitosa ao princípio da taxatividade (GRASSO, 1983, p.448), pois, “por não se tipificar legalmente um grupo de condutas que praticamente esgotam os exemplos doutrinários e jurisprudenciais, se coloque em quebra o princípio da legalidade e toda segurança jurídica” (ZAFFARONI, 1982, p.37). O fato é que a doutrina em algum momento da história acreditou ter chegado ao seguinte dilema: ou não punia nenhuma omissão semelhante à da mãe que mata o filho por inanição; ou punia a todas abrindo mão do princípio da legalidade. 1 Neste sentido parece ter havido um “acordo” de que só abrindo mão do princípio da legalidade se poderia regular devidamente esta espécie de delito, já que se tornara inaceitável sustentar a causalidade natural da omissão. A omissão imprópria surge como uma espécie de exceção a este princípio. 1 Obviamente não houve “um momento” tampouco um “acordo”, a hipótese é puramente metodológica, da mesma forma como fez Rousseau, analogamente, para explicar o contrato social. 1

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Page 1: O PERFIL DOS DELITOS DO OMISSÃO IMPRÓPRIA NO BRASIL -em  busca de  legitimação por meio da identidade material e estrutural com a ação

1 INTRODUÇÃO

Desde há muito a doutrina parece ter renunciado ao propósito de elencar

exaustivamente todas as hipóteses de ocorrência dos delitos comissivos por omissão

na Parte Especial dos Códigos Penais; ou pelo argumento da impossibilidade fática

desta tarefa ; ou pelas lacunas na punibilidade que isto geraria.

É de questionar se talvez não fosse esse o preço a se pagar para que se tivesse

uma regulamentação mais respeitosa ao princípio da taxatividade (GRASSO, 1983,

p.448), pois, “por não se tipificar legalmente um grupo de condutas que praticamente

esgotam os exemplos doutrinários e jurisprudenciais, se coloque em quebra o princípio

da legalidade e toda segurança jurídica” (ZAFFARONI, 1982, p.37).

O fato é que a doutrina em algum momento da história acreditou ter chegado ao

seguinte dilema: ou não punia nenhuma omissão semelhante à da mãe que mata o filho

por inanição; ou punia a todas abrindo mão do princípio da legalidade.1

Neste sentido parece ter havido um “acordo” de que só abrindo mão do princípio

da legalidade se poderia regular devidamente esta espécie de delito, já que se tornara

inaceitável sustentar a causalidade natural da omissão. A omissão imprópria surge

como uma espécie de exceção a este princípio.

A fórmula encontrada foi a inclusão das cláusulas genéricas nas Partes Gerais, a

equivalência com a ação e a causalidade jurídica. A aceitação desta sofrível estrutura

perdurou por tanto tempo e está, atualmente, tão arraigado em nossa doutrina que

muitas das vezes se confunde omissão imprópria com a própria fórmula, sem se

questionar de uma compatibilidade ou não com o Estado Democrático de Direito.

Lembremos que “no Estado de Direito, as relações entre a autoridade e a

liberdade devem estar claramente definidas” (MUNHOZ NETTO, 1983, p.27).

A esse respeito a doutrina nacional parece que se resignou com o acréscimo do

§2º do art.13 sem se dar conta que isto, malgrado melhore, não contribui lá grandes

coisas em relação à segurança jurídica.

1 Obviamente não houve “um momento” tampouco um “acordo”, a hipótese é puramente metodológica, da mesma forma como fez Rousseau, analogamente, para explicar o contrato social.

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Longe de soluções estes problemas tendem a caminhar a se tornarem ainda

mais graves com as flexibilizações e relativizações (SILVA SANCHEZ, 2002, p.21) dos

princípios penais deflagradas pela Sociedade de Risco2 e pelo seu Direito Penal do

Risco (GOMES e BIANCHINI, 2002, p.118). Os delitos omissivos impróprios, neste

contexto, transformam-se em poderosa arma do jus puniendi estatal, insurgindo-se nas

legislações na forma de tipos imprecisos e demasiadamente abertos e fomentando o

que Ferrajoli (2002, p.36) criticou de decisionismo ou Baratta (1994, p.12) de Direito

Penal jurisprudencial.

Se não bastasse os riscos incalculáveis à segurança jurídica que surge da

flexibilização ao princípio da taxatividade, não nos damos conta também que o critério

da equivalência entre os delitos de omissão com os de ação parte flagrantemente para

analogia in malam partem, haja vista que a equivalência radica-se na semelhança de

injustos entre ambos.

Nada mais atual, portanto, que a frase de Radbruch quando afirma que“ o

problema dos delitos comissivos por omissão não está em se encontrar uma cláusula

geral melhor, senão algo melhor que uma cláusula geral (apud , TOCILDO, 1995,

p.52).”

Pelos motivos já relatados e pela atualidade do tema é que escolhemos os

delitos comissivos por omissão como objeto desta monografia, ou seja, como forma de,

com isto, somar, mesmo que de forma singela, alguma contribuição a este assunto tão

complexo.

Razão assiste à doutrina quando afirma que a omissão é uma das questões mais

controversas da dogmática e que “sempre representou, na verdade, um ponto nebuloso

na teoria do delito” (Tavares, 1996, p.21). Tal argumento se aplica mais ainda para os

delitos comissivos por omissão, visto que até hoje a doutrina ainda não encontrou uma

explicação totalmente convincente de por que e de quando não evitar a ocorrência de

um resultado equivale a causá-lo.

A presente monografia, portanto, debruçou-se nas respostas às seguintes

perguntas: 1º)No que consiste a omissão? 2º)O que são os crimes comissivos por

omissão? 3º)Como é tratado no Direito Penal Brasileiro? 4º) Como é tratado pela

2 Denominação dada por ULRICH BECK para sociedade atual, caracterizada pelo aparecimento de riscos de dimensões globais.

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doutrina nacional? 5º) Esta forma de regulamentação fere o Princípio da Legalidade?

6º) O modelo adotado pela doutrina nacional fere o Princípio da Legalidade? 7º)Como

de lege ferenda é possível corrigir esta incompatibilidade? 8º)De lege lata qual é a

melhor saída?

Cumpre por último registrar, mesmo que adiantando as respostas da última

pergunta formulada, que procuramos nos trabalhos de um dos mais prestigiados

autores da atualidade, Silva Sanchez, as soluções para muitos dos questionamentos

levantados acima.

Com efeito, a identidade estrutural, assunto pouco ou quase nada tratado no

meio acadêmico nacional, se mostra sem sombra de dúvidas, senão apto a dirimir

todos os problemas oriundos da omissão imprópria, no mínimo um mecanismo eficaz e

coerente no manuseio das categorias dogmáticas de modo a adequá-las aos

paradigmas do Estado Democrático de Direito.

Por fim é de se esclarecer que esta monografia deve ser encarada tão-somente

como uma introdução ao pensamento do autor e não um meio de explicar

exaustivamente o tema da identidade estrutural, o que seria a princípio impossível;

tanto pelo exíguo espaço; como pela complexidade do assunto.

Explicado isto, passemos a uma maior pormenorização dos capítulos.

O capítulo I procura responder a primeira pergunta nº1, no que consiste a

omissão? Partindo das principais concepções normativas, quais sejam: a ação

esperada; o aliud agere; e a omissão como relação de discordância. Optamos por não

eleger uma definição deixando a cargo do leitor esta tarefa, todavia esclarecemos sob a

necessidade de um substrato material que oriente a norma, sob pena da criação de

crimes mera desobediência. Substrato que será na ação esperada, a expectativa social;

no aliud agere, a ação praticada diversa da ordenada; e na teoria da omissão como

discordância, o fato que fundamenta o juízo, ou seja, a efetiva conduta seja ela passiva

ou ativa.

O capítulo II volta-se para a pergunta nº2, o que são os crimes omissivos por

omissão? Com a intenção de diminuir um pouco a confusão terminológica da doutrina

no momento de classificar e distinguir os crimes omissivos enumeramos os critérios

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mais adotados. Expusemos, ademais, as principais classificações, sejam bipartidas

quanto tripartidas.

No capítulo III elencamos sistematicamente os modelos de regulamentação que

a omissão imprópria tem recebido, tanto na legislação estrangeira, com o decorrer da

história, quanto o modelo sui generis como foi concebida no direito penal brasileiro.

Deixamos expresso o inconformismo com o mero paliativo que representa o

art.13§2º, prestando-se apenas a mascarar o problema da legalidade dos delitos

comissivos por omissão.

No mais, demonstramos que dentre os países que possuem tal cláusula geral, o

modelo por nós adotado pelo possui alguns pontos positivos, pois alem de enumerar as

situações em que o agente se encontra na posição de garantidor, não equipara a

omissão à comissão por meio da equivalência, restando §2º compatível com o critério

da teoria da identidade estrutural.

Preocupou-se, evidentemente, em responder a pergunta nº3, como é tratado no

direito penal brasileiro?

No capítulo IV voltou-se para as perguntas nº 2, 3, 7,8,quais sejam: O que são os

crimes comissivos por omissão? Como é tratado no direito penal brasileiro?Como de

lege ferenda é possível corrigir esta incompatibilidade? De lege lata qual é a melhor

saída?

O presente capítulo demonstrou que não há relação de causalidade na omissão,

nem natural e nem qualquer outra. O que há é imputação. Em seguida aponta os

critérios que a doutrina tem adotado para esta imputação e explica porque o critério da

criação do risco é, atualmente, o que melhor responde o problema da imputação.

Mais adiante expõe o modelo incoerente assumido para o caput do art.13 com a

reforma de 1984 e as conclusões a que chega a doutrina brasileira acerca da

causalidade dos crimes comissivos por omissão.

.Por último conclui com as soluções de lege ferenda para corrigir o caput do

art.13 e de lege lata com a adoção doutrinariamente do critério da criação do risco para

a imputação do resultado.

Apenas no capítulo V é que expusemos com mais vagar o critério da identidade

estrutural como fundamento à punibilidade dos delitos omissivos impróprios. Antes,

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contudo, explicamos as nuances do critério adotado, de uma maneira geral, pela

doutrina nacional e estrangeira, ou seja, a equivalência axiológica com a comissão

como resposta à fundamentação de sua punibilidade e de como ela se mostra falha em

relação ao Estado Democrático de Direito, seja por ampliar demasiadamente os crimes

que podem ser cometidos por omissão; seja por incluir o argumento analógico como

fundamento.

A pergunta que o presente capítulo se direcionou foi a eminentemente a nº 4,

Como é tratado pela doutrina nacional? Todavia já acena para conclusão do capítulo

seguinte referente às perguntas nº 6 e 8, ou seja ,O modelo adotado pela doutrina

nacional fere o Princípio da Legalidade? De lege lata qual é a melhor saída?

O capítulo VI se identifica com a procura das soluções para os problemas

levantados até então, tanto de lege ferenda quanto de lege lata. Começa demonstrando

a flagrante inconstitucionalidade tanto na forma em que a legislação nacional

regulamenta os delitos comissivos por omissão, quanto na maneira como a doutrina o

concebe. (perguntas nº5 e 6) De lege ferenda, enumera as soluções apontadas pela

doutrina como inclusão de tipos na Parte Especial ou a adoção de um regramento dos

delitos comissivos por omissão semelhante à culpa,( pergunta nº 7); e de lege lata parte

para exposição detalhada do critério da identidade estrutural e material como a única

saída coerente para a equivalência entre a omissão e a ação.

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2 PRINCIPAIS TEORIAS NORMATIVAS ACERCA DA OMISSÃO

2.1 OMISSÃO COMO AÇÃO ESPERADA OU DETERMINADA 3

Após a doutrina perceber que a omissão não se caracteriza necessariamente

por um não fazer nada, nihil facere, como até então se pensava (muitas vezes se

pratica uma conduta comissiva diversa, como a mãe que tricota enquanto o filho morre

de inanição) e por outra, também não se restringia ao não fazer algo, passou-se a

compreendê-la como um juízo normativo através de um conceito de expectativa criado

primeiramente por Von Liszt, passando por Rohland, Gallas até ser desenvolvido mais

precisamente por Mezger. (KAUFMANN, 2006, p.70)

Segundo o autor omitir é “não fazer algo, não é simples não fazer. O

fundamento de todo delito de omissão se constitui ‘uma ação esperada’ ”(MEZGER,

1955, p.289). Passou a doutrina a definir a omissão como um não fazer algo esperado,

ou não fazer algo determinado.

Neste sentido podemos encontrar fartos exemplos, tanto na doutrina nacional

como estrangeira que definem a omissão como : “expectativa frustrada de ação”.

(SANTOS, 2002, p.111), “abstenção de uma ação esperada” (GOMES, 2004, p.179) “o

não empreendimento de uma ação determinada e esperada” (LISZT, 2006,

p.208),“omissão de uma ação determinada pela norma” (BITENCOURT, 2003, p.171)

“omissão de uma ação determinada” (MUNHOZ NETTO,1983, p.15)“omissão consiste

em não fazer algo determinado” (NOVOA MONREAL, 1984, p.51)etc.

Diverge a doutrina, todavia, sobre a origem desta expectativa. Uma parte afirma

que as normas sociais geram expectativas de ação, outra, por outro lado, sustenta que

essa expectativa só pode se originar do tipo penal.

3 Existem sutis diferenças entre e o conceito de omissão como “non facere quod debetur” (não fazer algo determinado pela lei) e a doutrina da ação esperada. tanto assim que pelas duas teorias se digladiaram Grispigni e Mezger. A primeira refere-se à ação que era esperada, a segunda à ação que era de se esperar. (ANTOLISEI apud COSTA JUNIOR, 1982, p.61). Pelas semelhanças normativas que apresentam julgamos metodologicamente conveniente tratá-las da mesma forma, como um só conceito.

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A bem da verdade todos são unânimes de que existem omissões à outras

normas que não as jurídicas , como as sociais e morais. O Problema surge quando se

questiona se existe identidade entre elas e as omissões jurídico-penais, ou seja, se

omissão para o Direito Penal é outra coisa completamente diversa deste tipo de

omissão ou não.

2.1.1 defraudação às expectativas extrajurídicas ou sociais.

Para este setor da doutrina as omissões têm relevância e existência mesmo fora

do Direito.

Neste sentido, omitimos quando deixamos de cumprimentar algum conhecido

que encontramos na rua; quando não recolhemos o nosso lixo que o gato espalhou na

calçada; quando deixamos de avisar a polícia de que a casa de um vizinho está sendo

roubada, etc. “Apesar da expectativa social de uma ação, o sujeito não a realiza”

(JESCHECK apud MIR PUIG, 2007, p.165).

Obviamente, conquanto relevantes, nem todas as ações que realizamos ou

aquelas que nos furtamos de realizar são considerados crimes pela norma penal: “o

Direito só de ocupa com a omissão injurídica (LISZT, 2006, p.208)”.

O Direito Penal, segundo esta concepção, quando ordena um mandamento

apenas está selecionando os comportamentos omissivos já preexistentes que de

alguma forma agridem os bens jurídicos tutelados.

Alerta-se para que a omissão assim entendida não pode ser confundida como

ontológica, pois continua existindo para alguém que espera, ou seja, por um juízo

normativo. Quer-se, com isso, preservar um substrato natural para omissão que

atenda ao princípio do cogitationis poenam nemo patitur.

Argumenta-se ainda, com razão, que compreendida a omissão apenas como

criação do tipo penal, isto poderia justificar a criação de omissões como mera infração

de dever.

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Mourullo, atento a isto, afirma que o próprio Mezger se apercebeu que a doutrina

da ação esperada caminhava para compreensão da omissão como essencialmente

normativa, razão pela qual o professor de Monique fez questão de distinguir a ação

esperada de ação exigida. Omissão ilícita seria apenas a omissão esperada e exigida

(apud COSTA JUNIOR, 1982, p.64)

O Direito Penal Brasileiro, no entanto, parece afastar-se deste entendimento

quando afirma no §2º do Art. 13: “A omissão é penalmente relevante quando...”

Tavares (1996, p.32-33), buscando fundamentos na teoria personalista de Roxin,

critica este posicionamento do Direito Brasileiro:

[...] deve-se considerar que, ao lado das imposições decorrentes da norma jurídica, subsistem deveres sociais de convivência, que integram o substrato das categorias axiológicas. Justamente esse fundamento social é que assinala o conteúdo extrajurídico da omissão. Não podemos, assim, partir do princípio de que a omissão só tem relevância para o campo do Direito, porque então estaremos emprestando à norma jurídica, além do seu objetivo regulamentador, o efeito exclusivo de criadora de deveres sociais [...]

No Brasil podemos encontrar referências a um substrato natural para omissão

ainda em (MUNHOZ NETTO, 1983, p.16), (COSTA JUNIOR, 1996, p.123), e (COSTA

JÚNIOR, 1982, p.64).

2.1.2 defraudação a uma expectativa jurídica.

Por este conceito de omissão, de raízes neokantianas, só quem poderia esperar

de alguém determinada ação seria apenas e tão-somente o Direito, ou melhor, o tipo

penal.4

O conceito de omissão se confundiria com o conceito de omissão antijurídica.

O principal argumento para quem sustenta este tipo de pensamento é que em

algumas situações o Direito Penal prevê omissões que não encontram nenhum

correspondente social ou moral.

4 Não faremos distinção nesta monografia entre a corrente que afirma que só há omissões para o Direito das que, mais especificamente, afirmam que só há omissões típicas. Deixemos apenas o registro.

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Neste sentido baseia-se a crítica de Gallas (apud MIR PUIG, 2007, p.165), autor

que levou a extremos a normativização do conceito de omissão:

Para a presença de um delito omissivo não é imprescindível a existência de uma expectativa social pré-jurídica, defraudada pela conduta do sujeito, pois ainda que a mesma faltasse, bastaria o dever de atuar imposto pela lei penal.

Lenckner (Apud SILVA SANCHEZ, 2006, p.123-124) acrescenta que tipos como

determinados deveres de denúncia, apenas são fundamentadas pelo mandado jurídico

não existindo qualquer expectativa prévia

Pensamos que a ação esperada como defraudação de uma expectativa limitada

ao tipo penal só se sustentaria nos regimes totalitários, onde o direito penal não está

vinculado ao princípio da lesividade, podendo, portanto, tipificar condutas a seu bel

prazer, v.g, como o simples não levantar-se para saldar o Governador do Estado

(ZAFFARONI,1982, p.37).

2.2. ALIUD AGERE

Aliud Agere significa fazer algo diverso. Tem origens que remontam o próprio

Luden, porém não se identifique propriamente com seu pensamento, haja vista que o

que há atualmente é uma reformulação do sustentado no século XIX.

Comentou Heitor Costa Jr (1982, p.73): “representa a volta do aliud agere, sem

os defeitos originais de Luden, que afirmava a causalidade da omissão.”

O aliud agere parte do pressuposto de que só existem normas proibitivas.

Podem, todavia, se transformar em enunciados proibitivos (tipos comissivos) ou em

enunciados mandamentais (tipos omissivos). O tipo proibitivo proíbe determinada

conduta, v.g não matarás. Por outro lado o tipo mandamental também tem origem em

uma norma proibitiva, qual seja: “proíbe ações distintas da devida, que é a descrita pelo

tipo” (ZAFFARONI, 1982, p.32)

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Bacigalupo (1974, p150-151) explica: “Ao tipo proibitivo resulta adequada

somente a ação que coincida com a descrita no tipo. Ao tipo imperativo é adequada

toda ação que não coincida com a ordenada pela norma [...]”

O autor, contrapondo-se ao conceito de ação esperada ou determinada, afirma

que omissão como um “não fazer determinado” deve transformar-se em “um fazer que

não seja o determinado (apud COSTA JUNIOR, 1982, p.63)”.

Ontologicamente, por conseguinte, só existiriam ações. É o tipo que definirá se

esta ação será um delito comissivo ou omissivo. Assim sendo, se estuda; se trabalha;

se dirige; se respira. Sempre se está realizando alguma ação. Mir Puig (2007, p.166)

observa que mesmo quando um sujeito omite passivamente, este comportamento está

ligado a um significado social positivo. Assim, quando alguém simplesmente observa

um acidente, efetivamente “está parado observando”, ou seja, um comportamento ativo.

Ação e omissão, neste sentido, são apenas “técnicas legislativas distintas”

(ZAFFARONI e PIERANGELI, 1997, p.538), formas que assumem a norma proibitiva.

Concluindo: omissão é apenas uma técnica utilizada pelo tipo penal para proibir

condutas distintas daquela ordenada pelo enunciado mandamental.

2.3 OMISSÃO COMO RELAÇÃO DE DISCORDÂNCIA (SILVA SANCHEZ).

Os tipos penais interpretam as condutas de maneira atributiva (adscrição).

Deduz-se daí, que o que os tipos penais imputam como homicídios, lesões, etc. não

coincide necessariamente com a linguagem que usualmente definimos como condutas

de matar, lesionar, etc. (descrição)

O conteúdo de sentido deste juízo pode adotar um caráter omissivo ou

comissivo, portanto, o fato, objeto do juízo, poderá tanto dar lugar a uma realização

típica comissiva (crimes comissivos) como uma realização típica omissiva (crimes

omissivos).

Omissão não é de nenhuma forma uma espécie de comportamento. Não

corresponde a um não fazer como também não é um fazer diverso. Aqui se distingue

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claramente do aliud agere. É uma relação de discordância da conduta realizada com a

pretensão que dimana do bem jurídico. (a ação também seria uma relação de

discordância entre a conduta realizada e a pretensão)

É o juízo típico adscritivo (imputação) que dirá se a conduta realiza um tipo

comissivo ou omissivo. Omissão, propriamente, só surgirá a partir de uma

interpretação realizada pelo tipo penal, todavia, não é um juízo sobre um nada, o

substrato material sempre será uma conduta efetiva, real, seja ela uma atividade ou

uma inatividade.

Nestes moldes, a omissão não corre o risco de cambiar-se para uma mera

infração de dever

Ademais, a diferença entre comissão e omissão não se fundamenta em um

conceito meramente formal de normas de mandato e de proibição (de proibição,

proíbem uma conduta, de mandato, ordena) posto que em toda norma proibitiva

também esteja contido um comando e nas preceptivas uma proibição.

Mandato e proibição se distinguem sim, mas em um plano material. Mandato

expressa um conteúdo de salvaguarda de um bem jurídico e proibição expressa um

conteúdo de dever de não ingerência na esfera jurídica alheia.

A partir deste modelo traçado, Silva Sanchez (2006, p.180) definiu omissão

como:

[... ]um juízo típico mediante o qual se imputa a uma conduta a não realização de uma pretensão positiva de salvaguarda (tipicamente) indicada como necessária ex ante para proteção do bem jurídico.

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3 NOMENCLATURA E CLASSIFICAÇÃO

Os crimes omissivos impróprios possuem tantos pontos de embate travados pela

doutrina que podemos dizer que desde sua gênese, ou seja, em sua própria

nomenclatura, já reina demasiada divergência. Com efeito, a doutrina sempre criticou e

continua a criticar o nome omissão própria e omissão imprópria. Se repararmos

bem, não há qualquer motivo justo para denominarmos uma de própria e outra de

imprópria. “Imprópria por quê?” pergunta Tavares (1996 p.64)

Costuma-se também denominar esta espécie de delito de delitos comissivos

por omissão, nomenclatura não menos livre de críticas. De fato, o crime não é

praticado de forma comissiva, como sugere o nome, mas sim de maneira omissiva

tanto quanto os delitos comissivos próprios.

Essas imprecisões terminológicas, ao contrário do que se possa parecer, não

são recentes. Na verdade são, como bem observou Giovanni Grasso (1983, p.11),

resíduos históricos de Luden, seu criador, para quem esta espécie de delito seria “no

fundo” delitos de comissão uma forma de causação do resultado proibido (LUDEN apud

MIR PUIG, 2007, p.270).

Alguns autores estrangeiros distinguem ainda entre os delitos omissivos

impróprios e os comissivos por omissão. Para eles, apenas estes últimos não estariam

expressos no tipo penal (MIR PUIG, 2007, p.269).

Chegou-se a batizá-los de omissões simples e omissões qualificadas

(JESHECK apud TAVARES, 1996, p.64) sem que, contudo, obtivesse o mesmo êxito

do nome tradicional.

Malgrado a denominação usual não ser a mais apropriada, parece haver entre

ela e a doutrina um sentimento ambivalente, misto de amor e ódio. Mesmo com as

constantes críticas, se firmou de modo tão arraigado, que não podemos deixar de usá-

la sob o risco de não nos fazermos entender. Deixada registrada a crítica,

continuaremos daqui por diante a nos utilizar do seu nome tradicional.

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Após este breve comentário acerca de sua nomenclatura, cumpre partirmos para

distinção entre os delitos omissivos próprios e impróprios ou comissivos por omissão.

Como vimos a doutrina tradicionalmente tem classificado os delitos omissivos

em: próprios e impróprios5,todavia, ainda não há um critério seguro para a distinção

entre elas.

Com efeito, dependendo do critério utilizado chegaremos a resultados totalmente

diversos, causando confusão ainda maior em quem procura desatar este nó górdio que

se constituem os delitos omissivos.

Neste sentido, crimes como o previsto no art.133,§1º e 2º do CPB possuem uma

natureza nebulosa, seriam omissões próprias ou impróprias?O que dizer então da

omissão prevista no art.164, cuja tipo, que não prevê características especiais para o

autor, exige um resultado material para sua configuração?

Vejamos, de uma maneira geral, cada critério de classificação e suas críticas.

3.1 CONCEITO BIPARTIDO

O conceito bipartido de omissão classifica as omissões em próprias e impróprias,

variando, contudo, quanto aos critérios de distinção. Vejamos:

3.1.1Critério quanto ao caráter da norma violada (critério normológico)

Este critério remonta as lições de Von Liszt. Embora hoje praticamente

abandonado, talvez tenha sido este o primeiro critério de distinção entre os crimes

omissivos próprios e impróprios. Assim sendo, nos crimes omissivos próprios haveria

uma desobediência a uma norma mandamental (que impõe o cumprimento de

5 A doutrina tem falado em crimes “omissivos por comissão” para situações em que mesmo o agente tendo praticando uma conduta ativa se subsume em um tipo omissivo. São exemplos desta situação o dona da casa que fecha a porta, antes aberta, quando vê que alguém iria entrar por estar fugindo de cachorros que o perseguiam, ou de alguém que retira o salva-vidas logo após haver jogado, por reconhecer no socorrido desafeto seu. Esta espécie de delitos todavia não se constituem em uma nova modalidade de crime omissivo ao lado da omissão própria e imprópria, posto que necessariamente se configurará em uma omissão própria, imprópria ou um delito comissivo (ORDEIG, 2003, p.53)

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determinada ação) e nos impróprios, a uma norma de proibição (que proíbe a causação

de um evento). Isto ocorria porque os crimes de omissão imprópria, como vimos

anteriormente, eram tidos como particular manifestação do agir ilícito (GIOVANNI

GRASSO, 1983, p.4-5).

Não obstante o seu abandono, de uma maneira geral, pela doutrina, este critério

ainda possui alguns defensores. É o caso de Novoa Monreal (1984, p 124) para quem a

distinção entre os dois delitos repousa no fato de que: um tem origem em uma norma

mandamental, omissão própria, e outro, comissivos por omissão, em uma norma

proibitiva.

No mesmo sentido propugnava Maurach (apud MESA, 2005, p.66), porém, tendo

abandonado esta distinção ao longo do tempo.

3.1.2 Critério quanto à previsão do evento no tipo penal

Outro critério que normalmente se utiliza a doutrina para diferenciá-los é a

necessidade ou não da produção do resultado. Os crimes omissivos próprios,

comparados aos comissivos, corresponderiam aos crimes de mera conduta, enquanto

os crimes omissivos impróprios se corresponderiam aos crimes materiais. Dizendo de

outra maneira: nos crimes omissivos próprios o evento não é elemento do tipo,

enquanto que nos crimes omissivos impróprios a realização do resultado pertence ao

tipo. (GRASSO, 1983, p.6-7)

Podemos encontrar, nesta esteira, a definição proposta por Ivo Caraccioli (apud

JESUS, 2002, p.132). Omissivos próprios seriam:

[...]os que perfazem coma simples abstenção da realização de um ato, independentemente de um evento concreto posterior” e os impróprios “aqueles em que o sujeito, mediante uma omissão, permite a produção de um resultado posterior que o condiciona

No Brasil, encontramos o exemplo de vários autores que partem do mesmo

critério. Luiz Flávio Gomes (2004, p.184):

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[....]Crimes omissivos próprios são os que não descrevem e não exigem nenhum resultado naturalístico para sua consumação formal” e omissivos impróprios ,seriam os que “descrevem e exigem resultado naturalístico e caracterizam-se pela não execução (omissão) pelo agente da conduta esperada para evitar esse resultado

Munhoz Netto (1983, p.11) define os crimes de omissão da seguinte maneira:

[...]O que distingue estas formas de crimes omissivos, é que, na primeira a punição independe da produção de qualquer resultado, enquanto que, nas demais, a superveniência real ou potencial do resultado é elemento caracterizador do crime consumado ou de sua tentativa.

Encontramos, igualmente, fartos exemplos na doutrina estrangeira. Wessels

(1976, p.158) distingue os dois delitos nos seguintes termos:

[...] Fatos puníveis que se esgotam na infração a uma norma mandamental e na simples omissão de uma atividade exigida pela lei. [...] São delitos omissivos impróprios, em contrapartida, os fatos puníveis nos quais o omitente está obrigado, como garantidor, a impedir o resultado, e nos quais o omitir-se corresponde valorativamente a realização do tipo legal através de um fazer ativo

Mir Puig (2007, p.269), na mesma esteira de classificação leciona que, assim

como os comissivos- que podem ser classificados em de delitos de mera atividade e

delitos de resultado- a omissão pode contentar-se apenas com o não fazer ( própria)

ou podem exigir a não evitação de um resultado (omissão imprópria)

Vale ressaltar que a distinção por este critério, por vezes, encontra algumas

falhas. Como bem lembrou Novoa Monreal (1984, p.52) em algumas situações

podemos nos deparar com crimes omissivos próprios com resultado material, como é o

caso do nosso art.164 do CPB

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3.1.3 Critério do círculo de autor

Critério muito utilizado é o do círculo de autores, sendo este inclusive o assumido

doutrinariamente pelo finalismo (TAVARES, 1996, p.63).

È corrente se lecionar nos manuais que os crimes omissivos impróprios se

diferenciam dos omissivos próprios pelo fato de que: neste existe a obrigação a todos

imposta; naqueles há uma omissão qualificada, ou seja, há uma norma mandamental

que ordena a certa categoria específica que impeça o resultado, por conta de ter uma

especial relação com o bem jurídico em questão.

Assim, a mãe tem o dever de impedir que o filho morra de fome; o salva-vidas de

impedir que nadador morra na piscina; a enfermeira contratada para cuidar de pessoa

idosa de ministrar os remédios necessários; o criador da ação precedente perigosa de

impedir que o resultado se produza.

Embora este critério nos pareça, a primeira vista, resolver bem o problema

conceitual que existe nestes delitos, por vezes se mostra precipitada.

Veja que adotando apenas o critério do círculo de autores haveria crimes de

omissão imprópria em toda omissão que exigisse características especiais do sujeito

ativo, ou seja, crimes próprios. Entre outros, os previstos nos artigos 168-A, 312, 315,

318 do CPB.

Vê-se desde logo, portanto, que não corresponde exatamente à essência dos

delitos omissivos impróprio.

No Brasil, Juarez Tavares (1996, p.74) parece adotar um critério misto entre o

critério do autor e o critério legal que veremos a seguir, tendendo, entretanto, mais a

este último.6

6 A bem da verdade, o autor começa por defender uma conjugação dos critérios dentro, todavia ,de uma classificação bipartida, e parece concluir adotando uma classificação tripartida, qual seja : crimes omissivos próprios, impróprios e omissivos impróprio de resultado

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3.1.4 Critério legal

Segundo o critério legal, cujo criador foi Kauffmann, o que distinguiria os crimes

de omissão seria apenas a forma adequação típica. Enquanto nos delitos de omissão

própria essa subsunção se dá imediatamente e de forma direta, isto não ocorre,

todavia, com a omissão imprópria, onde a subsunção se dá por meio de uma norma

mandamental e extensiva (cláusula geral) que é prevista no nosso Código Penal no

art.13 §2.

Neste sentido, o delito previsto no art.133§ 1º e 2º seria omissivo próprio pelo

simples fato de se encontrar expresso no CPB.

3.1.5 Crítica aos critérios expostos

A bem da verdade, salvo o critério da norma violada, em todos os outros

podemos encontrar características de ambos os crimes omissivos, portanto, não estão

de todo errados.Examinados individualmente, todavia, não encontramos em nenhum

deles a essência dos delitos comissivos por omissão.

Partindo exclusivamente do critério do autor, teríamos necessariamente omissão

imprópria em todo e qualquer crime omissivo que exige características especiais para o

autor, como os artigos 168-A, 312, 315, 318 do CPB.

Adotado o critério legal, deixaríamos de fora situações idênticas às previstas no

art.13§ 2ª, como o delito previsto no art.133 do CPB.

Por outro lado, o critério do resultado também não satisfaz observado que há em

alguns tipos omissivos previstas na Parte Especial a exata previsão de um resultado.

A doutrina nacional tem partido para uma conjugação entre os vários critérios

como única solução.

Nessa esteira, v.g, Juarez Tavares (TAVARES, 1996, p.73), chama atenção que

apenas adotando um critério do círculo de autores não bastaria para explicar a

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distinção, sendo imprescindível outro critério. Existirá, portanto, omissão própria,

quando “a não realização da ação possível implique por si mesma na violação de uma

norma mandamental”. Estaremos diante de omissão imprópria, por sua vez, quando “a

não realização da ação possível, por parte de um sujeito na posição de garantidor,

implique no não impedimento do resultado, na mesma medida de sua produção por

ação”

Não podemos negar que crimes como o de abando de incapaz qualificado,

art.133,§1 e § 2 e o de omissão de socorro, art. 135, valorativamente, nada têm em

comum. Por outro lado, também é evidente que entre aqueles e os delitos omissivos

previstos no art.13§2º há uma abissal diferença de estruturas.

É neste sentido que a doutrina tem sugerido classificações tripartidas para os

delitos de omissão, que responda de forma mais coerente às nuances dogmáticas

presentes nas diversas espécies de omissão.

3.2 CONCEITO TRIPARTIDO

A par da conhecida classificação bipartida um setor cada vez maior da doutrina

vem sugerindo uma classificação tripartida. Algumas dessas classificações se originam

apenas por aspectos meramente formais, outras, no entanto, acrescentando um critério

valorativo. Estas últimas, subdividem os delitos comissivos por omissão em: omissões

que se equiparam à ação e omissões que não chegam a se equiparar. Vejamos alguns

dos mais importantes:

Rodriguez Mourullo (apud SILVA SANCHEZ, 2006, p.423) propõe uma

subdivisão dos crimes comissivos por omissão sob um aspecto meramente formal, qual

seja : se estão expressamente tipificados ou não.

Começa o autor por distinguir os delitos omissivos de mera conduta e de conduta

e resultado. Até aqui coincidiria, embora com outra nomenclatura, ao conceito bipartido

de omissões já conhecido por nós.

Ocorre que estes últimos se subdividem em delitos de omissão e resultados e os

comissivos por omissão. Os primeiros seriam os expressamente tipificados pela lei; os

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segundos não estariam tipificados. Por esta classificação o delito do art.133 do CPB

seria chamado de omissão e resultado.

O mesmo caminho parece seguir Huerta Tocildo (TOCILDO, 1997, p.71).

Primeiramente a autora critica o fato de que crimes como o de “denegação de

assistência sanitária ou abandono dos serviços sanitários” (o tipo exige um risco grave

para saúde das pessoas) e “omissão de socorro” art. 195 e art.196 do Código Penal

Espanhol, estejam no mesmo título, “da omissão do dever de socorro”, dando a idéia de

que o primeiro seja apenas uma forma agravada de omissão de socorro.

Mais adiante, afirma que estes delitos poderiam ser chamados de delitos de

omissão e resultado, porém conclui que tal classificação tripartida não valeria à pena.

Silva Sanchez (SILVA SANCHEZ, 2006, p.425) adicionando um critério

valorativo, começa distinguindo omissões equivalentes à comissão e não equivalentes

à comissão.

Por sua vez, acaba por classificá-las em: (a) omissões puras gerais, (b)

omissões puras de garante e (c) comissão por omissão.Omissões puras gerais

decorreriam de um dever de solidariedade geral,a todos, e coincidem com o conceito de

omissivos próprios. Todas são tipificados expressamente e são, em geral, menos

graves.

Omissões próprias de garante são omissões de determinado círculo de sujeitos

de gravidade intermediária, cujos injustos não são equiparáveis à comissão. Como

exemplos destas omissões estariam a ingerência e as omissões oriundas de relação de

parentesco em geral e as que não há um compromisso inequívoco do garante. Estes

crimes omissivos; às vezes se encontram tipificados na Parte Especial; às vezes não.

Os comissivos por omissão seriam apenas aquelas omissões praticadas por

garantidores e que possuem identidade estrutural com os delitos comissivos,

fundamentadas na responsabilidade de organização ou domínio do risco, sejam elas

expressamente tipificados ou não.

De lege lata o autor sugere que, devido à amplitude do delito de omissão de

socorro e se a construção típica permitir, as omissões de garante sejam punidas como

se fossem omissões de socorro.De lege ferenda propõe que sejam criados tipos

qualificados de omissão de socorro.

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Solução semelhante parece ter optado o Direito Penal brasileiro nos §4º e 7º dos

artigos 121 e 129, do CPB e nas omissões de trânsito descritas no Código de Trânsito

Nacional, ou seja, nestes casos o agente não se transforma em garante e não responde

pelo delito de comissão, mas por uma omissão pura qualificada.

E neste sentido que Sheila Bierrenbach (2002, p.90) afirma que a ingerência

“quase não encontra acolhida no direito positivo brasileiro”.

A própria autora parece ter uma classificação própria quando admite a existência

dos delitos omissão e resultado, para crimes como o previsto no art.164, por exigir o

tipo o efetivo dano, e de omissivos próprios de garante, art. 133 ,134,136 e 138, por

ser praticado por autores especiais (garantidores) (Idem, p.25).

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4. DAS DIVERSAS FORMAS DE TRATAMENTO DA OMISSÃO IMPRÓPRIA, TANTO

NO DIREITO COMPARADO, QUANTO NO DIREITO BRASILEIRO

Para melhor compreensão da maneira como os delitos comissivos por omissão

são tratados no direito brasileiro se faz necessário uma pequena incursão nas

legislações estrangeiras. Obviamente, por serem esses delitos frutos de longas

construções jurisprudenciais e dogmáticas, muitas dessas formas de tratamento já

encontraram modificações pelas legislações atuais respectivas, possuindo relevância

para nós apenas histórica. Este é o caso da legislação espanhola, modificada

recentemente pela reforma de 1995 e da alemã.

A importância de compararmos os diversos modelos é manifesta: todos se

mostram deficientes. Até hoje, nenhum sistema logrou um êxito total, mas apenas

experimentou algumas pequenas melhorias apenas paliativas.Certamente este é o caso

da legislação brasileira com a inclusão da posição de garantidor deflagrada pela

reforma de 1984.

Outro ponto que surge da análise destes diversos modelos é a irrefutável

conclusão de que não há, nem nunca houve, um tratamento uniforme dispensado a

esses delitos. Por conseguinte, por mais que a dogmática penal trabalhe com

categorias universais, como dolo, culpabilidade, tipicidade, etc. O mesmo não ocorre,

necessariamente, com a omissão imprópria. Se compararmos algumas legislações

entre si, veremos que em muitos casos há total incompatibilidade na forma de

regulamentação em relação a esta espécie de delito. Portanto, é apenas a partir do

modelo implementado em cada estatuto penal que poderemos traçar os contornos dos

delitos comissivos por omissão e não o inverso.

Sendo assim, passemos à verificação dos diversos modos com que a omissão

imprópria foi disciplinada pelas legislações no decorrer da história para, em seguida,

aprofundarmos o modelo brasileiro.

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4.1 EXPERIÊNCIA DA LEGISLAÇÃO ESTRANGEIRA

As formas com que as legislações têm disciplinado os crimes comissivos por

omissão são, de uma maneira geral, as seguintes: ou deixa-se a cargo da doutrina e

jurisprudência esta tarefa; se prevê figuras omissivas (com posição de garantidor) na

parte especial, da mesma maneira como se faz com as omissões próprias; cria-se uma

cláusula geral de equivalência sem, contudo, eleger as fontes da posição de garantidor;

prevê-se cláusula de equivalência e elege as posições de garantia; ou como foi feito no

Direito Brasileiro, indicando as fontes do dever de garantidor, apenas aponta quando a

omissão é relevante.

4.1.1 Sem previsão expressa, mas como construção jurisprudencial e doutrinária.

Esta foi, sem dúvida, a primeira forma de tratamento dos delitos de omissão

imprópria. A falta de previsão legal em legislações de países como Alemanha e Áustria

não impediu sua a subsunção por meio dos correspondentes tipos comissivos, oriundas

de construções jurisprudenciais e doutrinárias.

Por mais que se intuíssem os riscos ao princípio do nullum crimem sine lege,

como não punir o homicídio por omissão se crimes como dano a saúde e abandono de

incapaz eram explicitamente previstos nos códigos penais?

Ademais, alegava-se a impossibilidade da legislação prever todos os casos em

que a jurisprudência havia equiparado o omitir ao equivalente fazer positivo (GRASSO,

1983, p.25)

Os delicta per omissionem commissa experimentaram, nesta primeira fase,

demasiado alargamento. De fato, chegou-se a responsabilizar o cônjuge que não

impedia crime do outro; o réu que não revelava a mentira de testemunha; o vendedor

de bebidas que não impedia a saída do bêbado e até mesmo o dono do restaurante

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passou a ser responsabilizado como co-autor por não impedir lesão corporal ocorrida

em seu estabelecimento. (Idem p.19)

Na Alemanha, tão-só em 1969 foi incluída cláusula de equivalência, ou seja,

somente após de os delitos comissivos por omissão alcançaram seu período de

máxima ampliação com o nacional-socialismo e pela Escola de Kiel (Idem, p.17).

Atualmente, ainda existem legislações onde não há qualquer previsão legal,

embora a tendência do Direito Penal seja diametralmente oposta: retirar das mãos da

doutrina e da jurisprudência, optando cada vez mais por delimitá-las legalmente, para o

bem da segurança jurídica.

Em países do common law, de tradição anglo-saxônica, poderia ser até

justificado a jurisprudência assumir semelhante papel, no entanto, em países como o

Brasil, de tradição romano-germânica, não há como conciliar com o princípio elementar

do nullum crimem nulla poena sine legem.

4.1.2 Com previsão na parte especial

Alguns países como a França e a Bélgica, diferentemente da Alemanha, desde

cedo, prudentemente, compreenderam que não poderiam deixar os delitos comissivos

por omissão apenas a cargo da doutrina e da jurisprudência sem encontrar o princípio

da legalidade como obstáculo

Ao invés de formularem uma cláusula de equiparação, primeiramente, preferiram

criar alguns tipos de omissão na Parte Especial. Assim é o caso de abandono material

da lei francesa de 1898, ou das omissões do art.62, 63§1º de 1941, que puniam quem

não impedia ou não comunicava o cometimento de um crime.

Em um momento posterior a doutrina e a jurisprudência atentaram-se de que a

interpretação estrita dos tipos penais só impedia que os delitos comissivos por omissão

se subsumissem em um tipo doloso, haja vista que semelhante empecilho não existia

nos delitos culposos (tipos abertos)

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De fato, a imprudência, como ensina a doutrina, é proteiforme:7 pode consistir

em um fato positivo ou em uma simples abstenção (GRASSO, 1983, p.74).

Para corrigir os vazios na punibilidade que inevitavelmente surgiam passou-se a

converter os delitos os delitos omissivos dolosos e comissivos culposos (JESCHECK

apud SOUZA, 2003, p.39).

Se é certo que a maneira mais segura de regramento dos delitos comissivos por

omissão só poderá ocorrer com a previsão de tipos na Parte Especial, não é menos

correto que a experiência de países como a França e Bélgica, todavia, não

demonstraram uma utilização deste método de forma satisfatória, posto que não

chegaram a implementar um sistema que correspondesse efetivamente aos moldes que

propugna a doutrina.

Com efeito, é de se questionar as reais vantagens deste modelo se comparado

ao nosso atual. À semelhança destes países, também possuímos delitos comissivos

por omissão tipificados na Parte Especial, como o abandono material, art.244, ou como

o abandono de incapaz, art. 133 ou até mesmo os §4º e 7º dos artigos 121 e 129, do

CPB e as omissões de trânsito descritas no Código de Trânsito Nacional, ou seja: de

certa forma também possuímos um tratamento dos delitos de omissão imprópria na

Parte Especial.

Certamente, o que não possuímos é um modelo uniforme e coerente de

tratamento na Parte Especial.

Giovanni Grasso, atento a isto, referiu-se ao sistema franco-belga como “os mais

coerentes seguidores do liberalismo”. Conclui, todavia, que apesar da coerência de tal

solução, ela não veio acompanhada de uma efetiva “racionalidade” e “suficiência” do

sistema. (GRASSO, 1983, p78)

Ademais, transformar delitos dolosos em culposos nos parece uma saída no

mínimo incongruente

7 Que muda de forma freqüentemente. (referência a Proteu, deus grego)

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4.1.3 Previsão de cláusula de equivalência sem indicar as fontes de dever

Seguindo uma orientação do Código Penal italiano de 1930 (Código penal de

Rocco) passou-se a incluir nos textos uma cláusula geral que permitia a equivalência

entre o crime omissivo e o comissivo, procurando solucionar tanto o problema da

causalidade, quanto às exigências do nullum crimen nulla poena sine legem.

Hodiernamente, existe tendência mundial de se incluir tal cláusula, porém,

poucos são os países que indicam as fontes de posição de garante como fez o Brasil.

O Código penal italiano possui a seguinte redação:

Art. 40. Nexo de causalidade. Ninguém pode ser punido por um fato previsto na lei como crime, se o evento danoso ou perigoso, do qual depende a existência do crime, não é conseqüência de sua ação ou omissão. Não impedir um evento, que se tem a obrigação jurídica de impedir, equivale a o causar

O Código Penal alemão seguiu os moldes do CP de Rocco acrescentando em

seu texto:

§ 13. Comissão por omissão: Quem se omite de impedir um resultado pertencente ao tipo legal de uma lei penal, só é punível quando tenha o dever jurídico de evitar tal resultado e a omissão equivale à sua produção por ação.

A pretensa solução que a cláusula de equivalência traria não satisfaz, no

entanto, de nenhuma forma as exigências decorrentes do princípio da legalidade

Lembramos mais uma vez a frase de Munhoz Netto (1983, p.27) “no Estado de

Direito, as relações entre a autoridade e a liberdade devem estar claramente definidas”

Ademais, a opção em equiparar a ação à omissão pela mera equivalência, que

de maneira geral parece ser a tendência dos códigos penais atuais, no entanto, utiliza-

se do argumento analógico, incompatível com o princípio da legalidade. (ver tópico 6.1)

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4.1.4 previsão da cláusula de equivalência e eleição expressa das fontes da

posição de garantidor

Segundo a doutrina dominante, de maneira geral, esta parece ser a via eleita que

dissiparia as criticas e os questionamentos de cujos crimes omissivos são acusados.

Destarte, com a cláusula expressa de equivalência, pretensamente se resolveria o

problema do nullum crimem sine lege, proporcionando o mínimo de segurança que

exige os delitos comissivos por omissão. Elegendo as fontes do dever de garante, por

sua vez, retiraria das mãos dos juízes e da doutrina a decisão de quando há ou não a

situação de garantidor.

Sem dúvidas a indicação das fontes de dever por meio de critérios objetivos é

louvável, porém, não especifica claramente, por si só, quando de fato se está na

posição de garante.

. Por outro lado, a cláusula de equiparação por meio da equivalência não só se

presta como mero paliativo, como atropela o princípio da legalidade por meio da

analogia in malam partem. Daí talvez a doutrina espanhola muito ter relutado até a

reforma do Código Penal espanhol de 1995.

O Direito Penal espanhol, portanto, é hoje a legislação mais recente e

representativa desta forma de tratamento:

Artigo 11. Os delitos ou faltas que consistam na produção de um resultado somente se entenderão cometidos por omissão quando a não evitação deste, ao infringir um especial dever jurídico do autor, equivalha, segundo o sentido do texto da lei, a sua causação.Para tal efeito se equiparará a ação à omissão: a) Quando exista uma específica obrigação legal ou contratual de atuar. b) Quando o omitente tenha criado uma ocasião de risco para o bem juridicamente protegido mediante uma ação ou omissão precedente

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4.2 A EXPERIÊNCIA BRASILEIRA

O Direito Brasileiro possui uma forma bastante peculiar de sistematização da

omissão imprópria. Se comparado aos modelos acima apresentados, até que podemos

encontrar alguns pontos positivos nesta forma sui generis, porém, não há como negar

sua flagrante inconstitucionalidade, como veremos melhor no tópico 7.1

Disto isto, passemos à análise de suas características.

Em primeiro lugar, incongruente, cria uma omissão cuja natureza teratologicamente

parece ser mista, causal-normativa, como veremos no Capítulo 5. Por outro lado, como

ponto positivo, não segue o exemplo espanhol partindo para equivalência entre a

omissão e a comissão, além de que indica textualmente as fontes do dever de

garantidor.

Conquanto presentes algumas imprecisões técnicas, cremos que podemos lucrar

de alguma forma com este modo de disciplina dos delitos comissivos por omissão,

desde fique claro, a curto prazo, ou seja, antes que venha reforma que regule de forma

satisfatória os delitos comissivos por omissão na Parte Especial.

Passemos a uma breve incursão nos códigos e projetos brasileiros a fim de

melhor compreender o contexto da sistemática atual.

O Código do Império, de 1830, em seu art. 2º § 1º, apenas referia-se vagamente

à omissão quando dispunha sobre o crime:

Código Penal de 1830

Art.2. julgar-se-á crime ou delicto:§ 1º Toda a acção ou omissão voluntária contraria às Leis penaes

Sem grandes modificações seguiram-se o Código de 1890 e o Projeto de 1899,

apenas indicando a omissão ao lado da ação como condutas delitivas.

Código Penal de 1890

Art. 2º A violação da lei consiste e acção ou omissão; constitui crime ou contravenção

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Projeto de 1899

Art. 11 Constitui crime ou contravenção toda cação ou omissão, contrária à lei penal

Como vimos no tópico 4.1.3, o primeiro código a tratar expressamente os delitos

de omissão imprópria foi o Código de Rocco de 1930, em que não impedir o evento

equivale a causar. Partia o Código Italiano, portanto, do critério da equivalência para

equiparar a omissão à ação.

Copiando o modelo inaugurado pelo Código de Rocco e o Código Uruguaio de

1933 o Projeto Alcântara Machado, em seu texto original, procurou fundamentação para

equiparação, da mesma forma, na técnica da equivalência adotada na Itália e pela

doutrina estrangeira e nacional.

Projeto Alcântara Machado (1938)

Art. 9º. O agente só responderá pelo evento que for efeito de sua ação ou omissão§1º.Faltar à obrigação jurídica de impedir o evento equivale a causá-lo

A comissão revisora, todavia, suprimiu tal sistemática por achá-la desnecessária.

Ocorre que a doutrina da época travava sérias contendas sobre a causalidade na

omissão, inclinando-se a uma postura naturalística. Discutia-se, portanto, a

necessidade de uma cláusula de equivalência. Nelson Hungria (1959, p.69-70) um dos

componentes da comissão revisora, é apenas um dos autores que nela não qualquer

utilidade.

O Código de 1940, distinguindo-se da tendência de outras legislações

contemporâneas, optou pela supressão da previsão da cláusula de equivalência do

Projeto Alcântara Machado, deixando a critério da doutrina e jurisprudência a busca de

uma solução.

CPB-1940

Art.11. O resultado, de que depende a existência do crime, somente é imputável a quem lhe deu causa. Considera-se causa a ação ou omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido

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Posteriormente, com o novo projeto para o Código Penal que lhe foi incumbido,

Nelson Hungria reviu sua posição anterior. A exposição de motivos do Código de 1969

possuía a seguinte explicação:

Importante é o que agora aparece como referência aos crimes comissivos por omissão. Não se encontram especificados na lei vigente, nem nos Códigos de sua época, os pressupostos da conduta típica, dessa categoria de delitos, defeito que as legislações penais modernas vêm corrigindo. Como se demonstrou, amplamente, a ilicitude aqui surge, não porque o agente tenha causado o resultado, mas porque o não impediu, violando o dever de garantidor. È indispensável fixar na lei as fontes de tal dever de atuar.

O Código de 1969, no entanto, nunca experimentou vigência, sendo revogado

pela lei 6016/73. In verbis:

CPB-1969

“Art.13. O resultado de que depende a existência do crime, somente é imputável a quem lhe deu causa. Considera-se causa a ação ou omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido.§2º. A omissão é relevante como a causa quando o omitente devia e podia agir para evitar o resutado.O dever de agir incumbe a quem tenha por lei obrigação de cuidado, proteção ou vigilância; a quem, de outra forma, assumiu a responsabilidade de impedir o resultado; e a quem, com seu comportamento anterior, criou o risco de sua superveniência”

Antes que a Reforma de 1984 viesse, a doutrina, ciente do risco que sofria o

princípio da legalidade, clamava por uma reforme que incluísse uma cláusula geral de

equivalência e indicasse as fontes do dever de garantia. As palavras de Alcides Munhoz

Netto (1983, p.26) representam bem os anseios da doutrina:

Enquanto a expressa previsão das hipóteses de dever de evitar o resultado não for incorporada ao nosso direito positivo, persistirá o problema de compatibilizar os crimes de omissão imprópria com o princípio da anterioridade da lei penal [...]. Com isso, o princípio do nulla poena sine lege experimenta profunda limitação, já que a conduta não está inteiramente determinada

Presidida por Francisco de Assis Toledo, a reforma de 1984, continha

originalmente a seguinte redação:

29

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Texto original da reforma de 1984

Art.13. O resultado de que depende a existência do crime, somente é imputável a quem, por ação, o tenha causado ou, por omissão, não o tenha imputado.

§ 2º – A omissão é penalmente relevante quando o omitente devia e podia agir para evitar o resultado. O dever de agir incumbe a quem:

a) tenha por lei obrigação de cuidado, proteção ou vigilância;

b) de outra forma, assumiu a responsabilidade de impedir o resultado; c) com seu comportamento anterior, criou o risco da ocorrência do resultado

O Deputado Egídio Ferreira de Lima, todavia, não se sabe lá muito bem o

porquê, achou por bem apresentar emenda, cuja conseqüência foi a supressão do

caput do presente artigo, retornando assim ao vetusto pensamento naturalístico do

legislador de 1940.

Chegamos à atual sistemática dos delitos comissivos por omissão do Código

Penal Brasileiro. Um misto de equívocos naturalísticos de Nelson Hungria e da

nostalgia conservadora do Deputado Egídio Ferreira Lima, ou seja, uma colcha de

retalhos.

A parte os sérios problemas conceituais quanto à causalidade e a conseqüente

inconstitucionalidade gerd pela criação de tipos vagos, até que podemos tirar algum

proveito daí. Vejamos:

Primeiramente a reforma adicionou a tão esperada delimitação das fontes do

dever de garante, embora recorrendo às fontes formais, há muito abandonada pela

doutrina e jurisprudência alemã (HUERTA TOCILDO, 1997, p.14). Não esqueçamos

que não são fartos os exemplos de países que delimitam, de forma tal como a nossa, a

posição de garantidor, mesmo que isto, repetimos, não satisfaça completamente o

problema da legalidade.

Certamente não bastará a mera indicação formal para esta delimitação, devendo

haver uma conjugação entre este critério formal e um critério material, cabendo ao

intérprete esta tarefa ( BIERRENBACH, 2002, p.76).

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Pois bem, além da enumeração do elenco das fontes do dever de atuar a

reforma não adotou a equivalência como é tendência entre os países que prevêem

expressamente uma cláusula geral. È o caso da Itália, Alemanha e Espanha.

Como veremos com mais vagar em capítulo posterior, a mera equivalência de

injustos entre a omissão e a ação, causa sérios riscos à legalidade, uma vez que utiliza

da analogia in malam partem.

Importante deixar claro, no entanto, que parte da doutrina parece caminhar

noutro sentido, ou seja, buscando o caput da redação de Alcântara Machado suprimida

por Nelson Hungria, aos moldes do Código de Rocco.

Sheila Bierrenbach (2002, p.104) chega a propugnar de lege ferenda a

modificação de tal artigo “corrigindo de forma a integrá-lo pela equiparação entre o

conteúdo materiais de injustos entre a omissão e a comissão”. Conclui a autora, que

“melhor seria se o Código Penal houvesse copiado fórmula italiana que afirma que não

impedir o resultado equivale a causá-lo (2002, p.56).”

Para nós, se houvesse uma reforma apenas pontual no art.13 e não sistemática

como propõe a doutrina, esta não deveria se espelhar na redação do Projeto Alcântara

Machado, mas sim, no próprio caput original da reforma de 1984. Só assim teríamos

um modelo, pelo menos, congruente com a doutrina moderna.

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5 CAUSALIDADE E OMISSÃO

5.1 CAUSALIDADE NA OMISSÃO

5.1.1causalidade mecânica, naturalística

Causalidade é o vínculo físico-natural que liga um efeito a sua causa(imputatio

facti). Juridicamente está representada pela teoria da equivalência formulada por Glaser

e introduzida nas jurisprudências dos tribunais do Reich por Von Buri, segundo a qual

causa é toda condição de um resultado que não pode ser mentalmente eliminada, sem

que o resultado também o seja em sua manifestação concreta.8

Muito bem, em um primeiro momento da omissão os autores do século XIX

procuraram encontrar um vínculo natural para ligar a inatividade ao resultado, da

mesma forma como o faziam com os delitos comissivos de resultado.

Luden, 1840, foi quem primeiro distinguiu claramente entre os crimes omissivos

próprios e os impróprios, sendo, para ele, aqueles uma infração a uma norma

preceptiva e estes a lesão de um direito subjetivo alheio.

A partir dele, portanto, é que se percebeu que além do repertório expresso de

delitos oriundos de um não fazer, a maioria dos crimes de ação podia ser executada

também por uma inação.

Era intuitivo que a doutrina passasse a uma procura de causalidade na omissão,

tal qual nos crimes comissivos, de forma a fundamentar a punibilidade desses delitos. É

a chamada fase causal.

Luden sustentava que omitir é um obrar de outro modo, para tanto, encontrava

a causalidade na conduta positiva que o agente realiza simultaneamente à omissão.

Outros como Krug, Glaser, Merkel, por outro lado, procuravam este momento

causal na conduta anterior; Binding, Von Buri, Orteman, Halschnar, Janka, Bünger, na

omissão mesma.9

8 Não trataremos aqui das inúmeras falhas que a teoria da conditio sine qua non possui. Para ver mais (TAVARES, 2000, p.206-222)9 Para uma análise melhor das várias teorias ver (COSTA JÚNIOR., 1996, p.114-117)

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Todos os esforços no sentido de procurar causalidade na omissão, todavia,

foram inúteis, pois que há muito se intuiu que do nada, nada surge.10

Como explicava Von Listz(LISZT, 2006, p.212): o resultado produzido não é em

momento algum causado pela omissão, mas sim pelas forças que exercem atividade

colateralmente à omissão. Assim, a criança que a mãe deixou morrer, morre pela

consumpção; o nadador a quem o companheiro recusa a mão de asfixia, etc.

Por óbvio, esta fase causal, para nós, apenas tem um interesse meramente

histórico, pois que há muito abandonada pela doutrina.

5.1.2 “causalidade” lógica, “causalidade” jurídica ou quase-causalidade.

A partir do momento em que se renunciou a encontrar um nexo-causal entre a

inação e o resultado, passou-se a afirmar que a causalidade, nestes casos, não seria

igual à das ciências naturais, mecânica, mas representaria uma categoria do

pensamento. Neste sentido, toda modificação no mundo exterior possuía condições

positivas e condições negativas. Por este argumento quando um trem colide com um

automóvel, a condição positiva é o fato que ambos se encontraram em um determinado

momento entre a estrada e a via férrea; a negativa seria o fato de não terem abaixado a

barreira de proteção que alertaria o motorista. Ambas as condições teriam causado o

acidente.

Outro exemplo é fornecido pela doutrina de Everaldo Cunha Luna (1982, p.51):

[...] diga-se que o não impedir o resultado pressupõe, na cadeia causal, uma condição negativa (Antolisei, Mourullo). Assim, no fato de deixar a mãe de alimentar o próprio filho, para matá-lo, uma condição negativa foi posta para a causação do resultado morte. Condições tão necessárias ao resultado como seriam, exemplificando, as condições positivas de atirar com a arma de fogo ou de ministrar veneno mortal.

Conclui o autor que no exemplo da mãe que não alimenta o filho e que vem a

morrer de fome, a causa da morte não são as forças naturais, a inanição, porém a

10 Frase atribuída a Radbruch

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própria omissão. O processo orgânico de desnutrição, ao contrário, seria o próprio

resultado. (1982, p.52)

Alguns autores, não obstante entenderem que o não emprego de energia gera

uma condição negativa e, neste sentido, a omissão como causal, afastam-se um pouco

deste pensamento. Sustentam que o que não é causal é o omitente e não propriamente

a omissão, pois que, eliminado o omitente o resultado ainda assim ocorreria.

Kaufmann (2006,p.80-81) foi quem inaugurou este intrincado raciocínio.

Seguindo a mesma linha de pensamento, Bacigalupo (1974, p.165) dá o exemplo de

alguém se afogando na piscinha e de outra pessoa na borda apenas olhando. Se

estivesse ou não o omitente no local, ainda assim, o resultado ocorreria. Conclui o autor

“o omitente em si, portanto, não é causal, a diferença do que ocorre no delito de ação.

A causalidade da omissão não provém do omitente.”

Para os defensores da causalidade jurídica, para que o omitir seja considerado

causa, deveria ser aplicado um processo hipotético semelhante à fórmula da conditio

sine qua non. Toda vez que incluído a conduta esperada o resultado desaparecesse na

mente, a omissão seria verdadeira causa.

5.2 IMPUTAÇÃO E OMISSÃO

Deixadas de lado as concepções causais acerca da omissão, passemos a

aprofundar a sua verdadeira natureza.

Primeiramente, se faz necessário colocar os pingos nos is. No atual estágio de

evolução da doutrina, não há mais como confundir relação de causalidade com

imputação. Semelhante confusão só se justificava em época anterior à imputação

objetiva, em que a doutrina, com malabarismo, necessitava criar causalidades para

tentar corrigir a amplitude que significava a conditio sine qua non.

A primeira, imputatio factis, se caracteriza por se tratar de um nexo real,

ontológico, ou seja, do mundo as coisas, que liga um resultado a sua causa. Já a

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segunda, imputação, imputatio juris, significa “atribuição de resultado de lesão ao bem

jurídico ao autor, como obra dele( SANTOS, 2002,p50)”.

É preciso esclarecer que com as modificações trazidas pela mecânica quântica e

pelo princípio da indeterminação, a causação, como indica a doutrina moderna, não

pode ser mais entendida como um juízo de certeza, tal qual dantes (TAVARES, 1996,

p.15),(SANTOS, 2002,p.42-43)Todavia, para o Direito Penal a causalidade deve ser

baseada na certeza, embora isto só seja possível ex post, (TAVARES, 2000,p.209),

antes, só poderíamos falar de probabilidades.

Conclui-se daí que nos delitos comissivos há causação e imputação, todavia

pode haver atribuição sem que, contudo, haja necessariamente causação. É o caso dos

delitos comissivos por omissão.

A causalidade ou quase-causalidade na omissão só foi um lamentável e inútil

recurso que a doutrina encontrou para não assumir que a forma de regramento dos

delitos comissivos por omissão que se adotava feria claramente o princípio da

legalidade, posto que não houvesse aí, real causalidade.

Muito a propósito são as palavras de Paulo Queiroz (2005, p.169) citando

Kelsen: “a causalidade só pode ser concebida enquanto causalidade material

pertencente ao mundo do ser, regido pelo princípio da causalidade; no mundo

axiológico (dever ser) vige o princípio da imputação”. Semelhante confusão

terminológica tão-só se justifica porque “o legislador não fala a linguagem da crítica do

conhecimento, e sim aquela da vida prática”, pode, portanto “promover a omissão à

categoria causal (COSTA JUNIOR, 1996, p.122)”.

Conclusão semelhante já chegava Von Liszt (LISZT, 2006, p.212-213) no século

XIX. Transcrevemos as palavras lúcidas do autor: “Usamos, pois, de uma linguagem

indubitavelmente inexacta, quando falamos em causar por omissão. Trata-se sómente

de saber si a sciencia deve conservar ou não essa linguagem commum” (sic). E conclui

sobre a pergunta que deve ser formulada: “Não deve ella ser formulada n’estes termos;

‘quando a omissão é causal?’ E sim d’este modo: ‘quando a omissão é illegal?’” (sic)

Cabe repensarmos o motivo pelo qual, atualmente, continuarmos repetindo

frases do tipo: a omissão só é causa do resultado quando...

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5.2.1. equivalentes da causação

Desde os trabalhos de Kauffman que a maior parte da doutrina entende que

ação e omissão possuem estruturas totalmente diversas. Negada a causalidade da

omissão era necessário, portanto, encontrar um elemento que desempenhasse função

semelhante à causação, ligando o resultado não impedido ao omitente da ação devida,

como obra sua.

A doutrina aponta basicamente o juízo hipotético de não evitação, como requisito

que possibilita atribuir o resultado ocorrido ao agente, como obra sua. As hipóteses

seriam as seguintes: estando o agente na posição de garante, se ação omitida

pudesse, com uma probabilidade próxima da certeza, evitar o resultado, então, a

omissão equivale a causar; ou, de outra forma, estando o agente na posição de

garante, se ação omitida tivesse diminuído o risco da produção do evento, então, o

omitir equivale a causar.

Outro setor em ascensão11, por outro lado, afirma que não se pode procurar na

ação não realizada o vínculo de imputação, posto que, por não ter ocorrido de fato, só

poderia este vínculo se embasar na mera probabilidade. Ao revés, buscam este nexo

na própria omissão em si, como criadora do risco para o bem jurídico, ou seja, um juízo

de certeza.

Alguns desses autores fazem diferença ainda entre o equivalente à causalidade

e o critério de imputação12. Neste sentido os juízos hipotéticos não seriam propriamente

equivalentes da causalidade, mas meras regras de imputação:

Probabilidade próxima da certeza

JUÍZOS HIPOTÉTICOS : Diminuição do risco

11 Liderada por nomes como Gimbernat Ordeig e Luzon Peña12 Neste sentido Silva Sanchez. Para o autor o equivalente funcional da causalidade na omissão seria a posição de garante nos casos de identidade estrutural (2006, p.465) e o critério para imputação a domínio do risco idêntico ao da comissão, que surge com o descumprimento do compromisso de atuar como uma barreia de contenção (p.471). Não obstante o autor afirmar que a omissão em si não cria risco nenhum para o bem jurídico parece que posição é apenas aparente, como afirma Rodriguez Mesa, pois falar que o que cria o risco é a infração do dever de atuar como uma barreira de contenção ou dizer que a omissão cria o risco, não há lá tamanha diferença.(2005,p.144)

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JUÍZO DE CERTEZA Criação do risco pela omissão.

5.2.1.1 Nexo de não evitação com probabilidade beirando a certeza

Este sem dúvida é o critério mais utilizado pela doutrina. Os que adotam este

critério baseiam-se em uma espécie de paralelismo com os delitos de comissão.

(inversão da fórmula de thyrèn). Ora, se exige para que se realize o nexo causal entre

uma ação e um resultado a certeza de que suprimida a conduta o resultado não

ocorreria, e como isto seria impossível de se averiguar na omissão, conformou-se a

doutrina, como único remédio, em contentar-se com um alto grau de probabilidade.

Se o controlador de tráfego ferroviário não comunica a partida do trem e o

motoqueiro morre porque a cancela não foi abaixada “pode se afirmar que a realização

da ação mandada excluiria o resultado com probabilidade próxima da certeza

(SANTOS, 2002, p116)”, ou seja,“ a probabilidade muito grande de que a conduta

devida teria interrompida o processo causal que desembocou no resultado

(ZAFFARONI; PIERANGELI, 1997, p.541).”

Em algumas situações este critério poderia resolver suficientemente o problema,

entretanto, em outras mais complexas, ele se mostra irremediavelmente deficiente.

É o caso em que há mera possibilidade e o omitente é conhecedor disto. A

doutrina cita o exemplo do médico que recusa medida terapêutica que apenas pudesse

diminuir pouca coisa os riscos de morte. Neste caso o médico não poderia ser

responsabilizado, pois não haveria como se constatar a probabilidade próxima da

certeza.

Juarez Tavares (1996, p.95) fornece o exemplo do pai que vendo seu prédio

pegar fogo, encontra-se com o dilema: jogar as crianças para os vizinhos segurarem no

solo ou esperar o salvamento. Ora, de qualquer maneira as crianças poderiam morrer.

Por esses e outros problemas é que a doutrina, baseada na teoria da imputação

objetiva elaborada por Roxin, vem passando a utilizar o critério da diminuição do risco

para dirimir as dúvidas que surgem com a imputação da omissão.

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5.2.1.2 Critério da diminuição do risco

Como é sabido, a teoria da imputação objetiva surgiu primeiramente com Larenz

e Hardwig, posteriormente sistematizada e aplicada na teoria do delito por Roxin

(TAVAREZ, 2000, p.223) como forma de corrigir a amplitude da causalidade. Hoje, se

caracteriza mais como uma “exigência geral da realização típica” (MIR PUIG, 2006,

p.202). Por conseguinte, a rigor “é mais uma teoria de ‘não-imputação’ do que uma

teoria “da imputação’” (QUEIROZ, 2005, p.175).

Pois bem, um dos critérios que se utiliza a imputação objetiva é o critério da

criação ou incremento de um risco. Por ele só poderá haver imputação quando se cria

ou incrementa risco proibido e relevante ao bem jurídico.

Transpassado para omissão imprópria, da mesma forma que fez com a fórmula

de thyrèn (causação), a doutrina transformou o critério do incremento do risco em

diminuição do risco, como requisito para atribuição do resultado (imputação).

Neste sentido a pergunta que se deve fazer é: a ação omitida teria diminuído o

risco para ocorrência do resultado?

Gimbernat Ordeig (2003, p.45) afirma que este critério apenas desmascara o

critério da probabilidade próxima da certeza, ou seja, quando os tribunais julgam estar

utilizando o critério da probabilidade, na verdade, estão fazendo uso do critério da

diminuição do risco:

[...] se o mais que se pode dizer é que, se o omitente houvesse atuado ( mais ou menos) provavelmente haveria evitado o resultado, então o que procede é chamar as coisas por seu nome e formular que basta com que a ação exigida houvesse diminuído o risco de produção do resultado para que entre em joga a responsabilidade por uma comissão por omissão consumada[...]A teoria da diminuição do risco não faz outra coisas que desmascarar a atual doutrina dominante[...]”.

Se este critério se mostra original ou se nada mais faz do que dar nome aos

bois, não importa muito. O que salta aos olhos e que a doutrina vem chamando atenção

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é o fato de sua utilização poder dar margem a uma espécie de vulneração ao princípio

do in dúbio pro reo, transformando os delitos comissivos por omissão em delitos de

perigo.

No exemplo do médico, a possibilidade não seria interpretada em favor do

médico, mas sim contra ele, critica Ordeig (2003, p.48)

Rodriguez Mesa (MESA, 2005, p.139) leciona que o problema real não reside

nem tanto nas objeções já levantadas, mas sim no fato de que, no critério da diminuição

do risco, a “perigosidade se constrói sobre a relação entre algo que nunca existiu e o

resultado: sobre uma ficção e não sobre uma realidade”

5.2.1.3 critério da criação ou incremento do risco pela omissão.

Imaginemos primeiro o seguinte exemplo:

Um pai se compromete a ministrar diariamente ao filho determinado remédio sem

o qual ele morreria. Não o dando, vem o filho em uma semana a falecer. Ocorre que se

comprova, posteriormente, que devido a um erro do laboratório o remédio não possuía

seu princípio ativo. Aplicado tanto o critério da probabilidade próxima da certeza, quanto

da diminuição do risco, nenhum juízo hipotético explicaria a imputação do resultado.

Diferentemente dos critérios expostos, se tem dito que a omissão em si cria

normativamente um risco não permitido para o bem jurídico, distinguindo-se, portanto,

dos critérios anteriores, processos causais hipotéticos, em que a relação é com a ação

omitida e não com a própria ação.13

Explica Gimbernat Ordeig (apud MESA, 2005, p.141) que o juízo de perigosidade

se estabelece tanto pelo foco de perigo, quanto em razão de sua não neutralizada por

medidas de precaução. Como os focos de perigo têm uma tendência expansiva a se

estenderem além do nível do permito, o legislador prevê que determinadas pessoas

apliquem medidas de contensão. É dentro dessa perspectiva que a desobediência em

interpor medidas de contensão, possibilitando, desta forma, a expansão de um perigo,

equivale a causá-lo.

13 Neste sentido Gimbernat Ordeig, Luzón Peña, Rodriguez mesa

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No juízo de perigosidade nos delitos comissivos, como é sabido, analisa-se se

conduta se mostra adequada, conforme critérios de previsibilidade objetiva, a produzir

um resultado desvaloroso.

Diferentemente da perigosidade dos crimes comissivos, proveniente da própria ação do

sujeito, na omissão, estes riscos são oriundos ou da natureza ou de outros

comportamentos humanos. Na omissão se valora, pela experiência, a possibilidade de

estes riscos virem a se desestabilizar, transformando-se em riscos não permitidos.

Deve-se levar em conta a experiência para se aferir se este resultado aparece ou

não como conseqüência possível da omissão.

No caso do pai que não leva o filho doente ao médico, não é o caso de se

perguntar se o filho morreria ou não com o atendimento médico, mas sim, se o

falecimento do menino se deve à criação do risco pela omissão. É perigosa a omissão

que ex ante é adequada a desestabilizar o risco da enfermidade, transformando-o, de

um risco tolerado a um risco não permitido.

No caso do médico, ciente disto, que recusa medida terapêutica que apenas

pudesse diminuir pouca coisa os riscos da morte do paciente, não se puniria porque a

ação omitida pudesse diminuir os riscos de morte, mas sim porque o omitente, estando

na posição de garantidor, tinha o dever de neutralizar os riscos criados pela natureza,

impedindo que se desestabilizassem e se transformassem em riscos não permitidos.

Ademais, para que haja imputação deve a omissão se encaixar nos fins de

proteção da norma, ou seja, alem da criação do risco pela omissão, este risco deve ser

tão-somente aquele que a norma tinha como intenção de evitar e não outro qualquer.

Neste sentido se o filho morre de um acidente com a ambulância que o levava

para o hospital, pelo fato de a mãe não ter lhe alimentado adequadamente, o resultado,

neste caso, obviamente, não poderá ser imputado à mãe.

Com efeito, este critério tem a enorme vantagem de trabalhar com juízo de

certeza e não de probabilidade. Ademais, se a essência da omissão é normativa, não

faz sentido a insistência em procurar critérios de imputação semelhantes aos da

causação, como ocorre nos juízos hipotéticos.

Restará, portanto, saber quando de fato o omitente possui, de forma inequívoca,

o dever jurídico de agir para interromper o curso causal.

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5.3 CAUSALIDADE, IMPUTAÇÃO E O ART. 13§ 2º DO CPB

Como vimos no tópico 4.2, até o Projeto Alcântara Machado a legislação

nacional dava pouca ou quase nenhuma atenção ao problema dos delitos omissivos.

A doutrina da época, todavia, travava grandes discussões acerca da causalidade

na omissão. Questionava-se se havia de fato causalidade aos moldes dos crimes

comissivos ou apenas uma causalidade jurídica.

São conhecidos os elogios tecidos por Nelson Hungria à Comissão Revisora do

Código de 1940 por ter retirado de seu texto a cláusula de equiparação copiada do

Código de Rocco e que constava originariamente no Projeto Alcântara Machado.

Ora, o que equivale, por óbvio, não causa. A equivalência é puramente

normativa.

Nelson Hungria resume bem o pensamento da doutrina da época sobre a

omissão. Para este autor a omissão era sim causal, todavia, não mecanicamente

causal como ocorre com a ação, o que segundo ele corresponderia à tentativa de

explicar a quadratura do círculo, mas sim logicamente causal (1959, p.69-70).

A doutrina de maneira geral, antes do movimento de reforma que deu origem as

modificações de 1984, seguia a mesma posição de Nelson Hungria, “embora alguns

continuassem a aceitar a causalidade naturalística da omissão (MUNHOZ NETTO,

1983, p13)” sendo poucos os que já sustentavam a omissão como juízo normativo

(FRAGOSO, 1982, p.43).

O Código de 1940 e o natimorto Código de 1969 nenhuma contribuição

significativa trouxeram ao problema da causalidade omissiva.

Alteração de tal monta só viria a ocorrer em nossa legislação com a Reforma de

1984, cuja redação original do caput do art.13 definia a omissão como juízo normativo,

coerente com a doutrina da época. Todavia, modificada por emenda, sua redação

passou a repetir a mesma fórmula naturalística dos Códigos de 1940 e 1969. Em sua

redação original, o caput do art.13 previa:

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O resultado de que depende a existência do crime, somente é imputável a quem, por ação, o tenha causado, ou, por omissão, não o tenha impedido

Assim é que temos o atual art.13 §2º do Código Penal Brasileiro, o qual se

analisado precipitadamente haveríamos de chegar à conclusão de uma teratológica

omissão de natureza mista, causal e normativa. A propósito, a doutrina com razão tem

criticado esta redação. Com efeito, o caput do art.13 do Código Penal trata a omissão

como causal e o § 2 como normativa, in verbis

Art.13 – O resultado, de que depende a existência do crime, somente é imputável a quem lhe deu causa. Considera-se causa a ação ou omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido [...].[...] §2º – A omissão é penalmente relevante quando o omitente podia e devia agir para evitar o resultado [...].

Se não bastasse esta confusão de critérios, a própria redação demonstra-se no

mínimo claudicante, pois que, como bem lembrou Sheila Bierrenbach (2002, p.56), não

são apenas nas hipóteses enumeradas pelas alíneas do § 2º que se pode considerar a

omissão como relevante, se levarmos em conta que há, certamente, semelhante

relevância nas omissões próprias.

Atento ao problema para a causalidade gerado pela redação do art.13

Cernicchiaro classifica a Emenda do Dep. Egídio Ferreira Lima como “verdadeira

afronta à unidade e coerência do sistema (apud SOUZA, 2003, p.50)”.

O fato é que a omissão não é causal. Nem o Código Penal atual quis que

tratássemos como causal, de outra forma não acrescentaria o parágrafo segundo. Se

repararmos bem, não há uma fidelidade à conditio sine qua non sequer nos crimes

comissivos, haja vista o acréscimo de um critério de imputação inserido com o

parágrafo primeiro, que “praticamente desnatura a teoria da condição por ele adotada

(TAVAREZ, 200, p.216).”

A explicação mais convincente é que “o legislador não fala a linguagem da crítica

do conhecimento, e sim aquela da vida prática”, pode, portanto “promover a omissão à

categoria causal (COSTA JUNIOR, 1996, p.122)”.

Francisco de Assis Toledo (1991, p.116), idealizador da reforma de 1984,

comentando o problema da causalidade assim se referiu aos delitos comissivos por

omissão:

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[...] O problema da causalidade nestes delitos comissivos por omissão tem

ensejado inúmeras disputas doutrinárias que, entre nós, com a reforma penal,

perde relevância. Com efeito, o legislador pátrio estabeleceu um nexo de

causalidade normativo entre a omissão e o resultado, no art.13 e parágrafos do

Código Penal, especificando as hipóteses em que esse nexo deve ser

reputado presente, a saber: A omissão terá o mesmo valor penalístico da ação

quando o omitente se colocar, por força de um dever jurídico (art.13§2º) na

posição de garantidor da não ocorrência do resultado

A bem da verdade, chamem do que for: causalidade normativa, causalidade por

ficção jurídica, não importará muito. Certamente mais prudente seria se déssemos às

coisas seus respectivos nomes, pois se a omissão é normativa, o que há é imputação e

não causação.

Mais importante, entretanto, é o tratamento que dispensamos a ela. Não faz

sentido algum, por conseguinte, adaptarmos à omissão as mesmas e velhas fórmulas

empregadas para a causação, como o da eliminação hipotética. As regras da

imputação são próprias.

6 DO ATUAL ESTÁGIO DO FUNDAMENTO DE PUNIBILIDADE DOS DELITOS

COMISSIVOS POR OMISSÃO

No capítulo passado averiguamos quando o não evitar um resultado se equipara

ao causá-lo. O presente capítulo se trata de saber por que a não evitação do resultado

deve receber a mesma pena de quem houvesse causado, ou seja, qual o fundamento

da punibilidade dos delitos comissivos por omissão.

Ora, nos crimes comissivos a responsabilidade é intuitiva: se pune o agente

porque foi ele o causador do resultado. É certo que os critérios da imputação objetiva

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podem surgir em auxílio, porém nunca poderiam substituir a causalidade (GOMES,

2004, p.113) como propõem alguns autores, entre eles Jakobs (TAVARES, 2000,

p.223) e Damásio (2002, p.XVII).

Como resposta a fundamentação da punibilidade dos delitos de omissão

imprópria, atualmente, a doutrina caminha em dois sentidos: a) segundo esta corrente

(ampla maioria), comissão e omissão possuem estruturas ontológicas e normativas

completamente diversas, daí porque tão-só cabe aferir quando, do ponto de vista

axiológico de merecimento da pena, elas se equivalem. Grosso modo, aqui estariam

presentes os delitos comissivos por omissão; b) como outro ponto de vista, parte da

doutrina, cada vez mais ascendente, sustenta ser possível ação e omissão possuírem

conteúdo de desvalor idêntico, em um plano normativo, quando respondam pelo

mesmo e único fundamento material de injusto.

Predominantemente, tanto a doutrina nacional como estrangeira, segue o

entendimento da omissão imprópria como estrutura ontológica e normativa totalmente

diversa da comissão. Como conseqüência, o que poderia haver de comum entre ambos

é uma equivalência axiológica e isto, segundo afirma-se, fundamentaria sua

punibilidade.

Abre-se, todavia, uma nova via de compreensão dos delitos comissivos por

omissão, em nosso entender, muito mais coerente e consentânea com o Estado

Democrático Direito. Por ela o que fundamentaria a equiparação entre omitir e o atuar

não seria propriamente uma equivalência axiológica dos delitos omissivos com os

crimes comissivos, mas sim uma efetiva e real identidade estrutural entre eles.

Há, por conseguinte, praticamente duas formas diametralmente opostas de

compreensão dos delitos comissivos por omissão. Certamente com reflexos dogmáticos

diversos, cujas características trataremos neste tópico.

6.1 DA EQUIVALÊNCIA AXIOLÓGICA COMO CRITÉRIO PARA A EQUIPARAÇÃO

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A partir de Kaufmann (2006, p.265) passou-se a compreender a omissão

imprópria como um tipo completamente diverso da comissão, um subtipo dos delitos de

omissão.

Havia, portanto, diferenças materiais e estruturais intransponíveis entre comissão

e omissão, haja vista que as primeiras resultam da vulneração às normas proibitivas e

as segundas às normas mandamentais.

Segundo o autor, era impossível que uma mesma norma motivasse tanto um

fazer como um não fazer, haja vista mandato e proibição terem diversos destinatários.

Enquanto as normas proibitivas eram destinadas a todos, erga omnes, isto não

ocorreria com as normas mandamentais, as quais se destinavam apenas a um pequeno

número de pessoas ligadas estreitamente aos bens jurídicos tutelados.

Afastando-se do pensamento de Nagler, para quem a posição de garante como

elemento implícito do tipo permitia que a omissão imprópria realizasse o tipo comissivo,

sustentava Kaufmann (2006, p.263):

[...] A posição de garante não é um elemento implícito do tipo do delito comissivo, senão um requisito do tipo de delito de omissão (imprópria). Porém, então a omissão imprópria não realiza o tipo do delito comissivo, senão outro tipo distinto, precisamente o delito de omissão imprópria

Este tipo de comissão imprópria seria distinto do correspondente comissivo, não

só pelo fato de que, nestes últimos, há causação e os primeiros não, mas também

porque os delitos de omissão imprópria necessitam da posição de garante, os

comissivos, pelo contrário, não.

Ora, se havia diferenças estruturais e materiais intransponíveis a única solução

possível para equiparação com a comissão só poderia radicar-se em critérios

puramente axiológicos, ou seja, na semelhança de injustos e no merecimento da

mesma pena, “ no sentimento de justiça” (BACIGALUPO Apud MESA, 2005, p.48) ou

na “mais elementar sensibilidade jurídica”(MUÑOS CONDE,1988,p33).Omitir-se

“corresponderia valorativamente à realização do tipo legal através de um fazer ativo”

(WESSELS, 1976 p.158).

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A posição de garante, segundo a doutrina, surge como o elemento da tipicidade

dos delitos comissivos por omissão que permitiria que estruturas tão diferente

recebesse a mesma pena.

Dito de outra forma: quando a mãe deixa de amamentar a criança não a mata,

pois que não causou sua morte. No entanto, castiga-se como houvesse matado, tendo

em vista que a não evitação do resultado morte por alguém com responsabilidade

qualificada (garantidora), art.13§2º, “mostra-se equivalente, ao menos

aproximadamente, em merecimento de pena à conduta de matar” (SILVA SANCHEZ,

2006, p.455) prevista no art.121 do CPB, sendo merecedora, por conseguinte, da

mesma pena.

Segundo este posicionamento, o art13§2º do Código Penal Brasileiro deveria ser

lido como fundamento à tipicidade dos crimes omissivos impróprios, pois é somente

nele que se encontra prevista a norma de mandamento e só através dele é possível

que o juiz no caso concreto construa o tipo omissivo, tendo como base o tipo comissivo

correspondente. A omissão imprópria, portanto, tendo como fundamento de tipicidade a

posição de garantidor, não perfaz o mesmo tipo que o do delito comissivo

correspondente. (MESA, 2005, p.51)

A cláusula de equivalência contida nos códigos penais, por conseguinte, seria

peça chave para resolver o problema da legalidade. Como conseqüência da

equivalência axiológica, em tese, “todos os crimes comissivos, portanto, poderiam ser

cometidos através da omissão imprópria” (TAVARES, 1996, p.81), pois que todos eles

podem ter semelhança axiológica, mesmo crimes que descrevem condutas

eminentemente positivas, como estupro e furto (ZAFFARONI, 1982, p.37)

Como lecionaram ZAFFARONI e PIERANGELI (1997, p.543) “não restaria outro

recurso senão considerar que praticamente detrás de todos os tipos ativos há uma

espécie de ‘falsete, que é o tipo omissivo equivalente não escrito [...]”

Veja que posicionamentos de doutrinadores14 que seguem o critério da

equivalência, mas restringem sua aplicação aos tipos da Parte Especial, cuja redação

permita sua subsunção, conquanto louvável em termos de segurança jurídica, são

14 Serve como exemplo Heleno Fragoso (1984, p.231)

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totalmente incoerentes, posto que a omissão não se subsumem, como vimos, não só

em tipos que descrevem condutas eminentemente ativas, mas em nenhum tipo causal.

Resulta daí as seguintes conclusões:

Nº1) Omissão e ação não pode ser estruturalmente idênticas, pois originam-se de

normas diferentes.(proibitivas e mandamentais)

Nº2) Os tipos comissivos por omissão não realizam diretamente os tipos

correspondentes da Parte Especial. Estes devem ser lidos como eminentemente

causais.

Nº3) Os delitos comissivos por omissão só recebem a mesma pena do

correspondente comissivo pela aplicação de um critério axiológico, ou seja,

merecimento de pena, haja vista possuírem carga de injusto semelhante.

6.2 IDENTIDADE MATERIAL E ESTRURAL COMO FUNDAMENTO PARA

EQUIPARAÇÃO

Quanto à primeira conclusão nº 1 do tópico 6.1, a doutrina moderna vem

refutando tal distinção meramente formal, entre mandato e proibição. Mandato e

proibição não seriam diferentes tipos de normas, mas apenas duas distintas formas que

podem expressar o conteúdo imperativo das normas penais. Ambas, portanto, possuem

a mesma carga valorativa, qual seja: evitar a lesão ou exposição de perigo de um bem

jurídico.

Sentido semelhante podemos encontrar em lições que remontam Luden, Savigny

e Kelsen15, para os quais as normas de mandato e proibição têm natureza idênticas,

podendo expressar qualquer conteúdo normativo indistintamente, ou seja, uma ação

mandada e uma omissão proibida e vice-versa.(Apud SILVA SANCHEZ, 2006, p.188),16

15 Afirmava Kelsen(Apud KAUFMANN, 2006, p26) “toda proibição pode transformar-se em mandato e todo mandato em proibição” 16 No mesmo sentido leciona Jakobs (2003. p.35) que as relações negativas não se compõem apenas de proibições de iniciar lesões e as relações positivas não se compõem tão-somente de mandatos. O autor dá o exemplo de um motorista que desacelera (omitir) seu automóvel para não atropelar pedestre, mas

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Os tipos previstos na Parte Especial, não obstante serem eminentemente

proibitivos, não significa dizer que não possam expressar conteúdo material preceptivo.

Desta forma, atrás de um enunciado proibitivo é possível advir duas normas primárias:

uma de proibição, outra de mandato (MESA, 2005, p.78)

Argumenta-se que distinção simplista de que as normas penais ou são apenas

mandamentais ou proibitivas se encontra em franco declínio. Parte-se, portanto, do

caráter de mão-dupla das normas contidas no tipo.

Com efeito, não se pode, no atual estágio dogmático, compreender as normas

penais como puramente proibitivas ou mandamentais, pois que dessa maneira os bens

tutelados pelo direito penal não receberiam a devida proteção (TAVARES, 1996, p.37).

Senão vejamos:

Se levássemos em conta que a norma mandamental fosse exclusivamente uma

ordem de fazer, não haveria o seu desrespeito com uma atividade diversa, mas apenas

com o não fazer.

Por outro lado, contido em uma norma proibitiva que ordena o não fazer, está

também uma atividade. Como argumenta Juarez Tavares tratando da complexidade da

norma proibitiva: “ao mesmo tempo que proíbe uma atividade, por exemplo, a atividade

de matar, impõe, também, uma atividade de respeito á vida humana. Isto está implícito

na norma proibitiva” (Idem,.p.37)

Em decorrência do exposto acima, a conclusão nº 2 do tópico 6.1, ou seja, de

que os tipos de resultado da Parte Especial devem ser lidos como tipos que descrevem

condutas causais e que, por conseguinte, não abarcariam a omissão, cai por terra.

Acerca desta objeção, Silva Sanchez (2006, p.178) explica que a filosofia

analítica faz distinção entre descrição e adscrição, entendida esta como atribuição de

um resultado moral por um fato, ou seja, imputação. O que existe no tipo não seria

apenas descrição, mas adscrição, pois o tipo penal não deve ser entendido apenas

como um preceito legal, mas também como categoria dogmática.

Tipo preceito legal é o tipo escrito, o pressuposto de fato da norma secundária,

aquele que atende às exigências do principio da legalidade sob um aspecto formal. Tipo

categoria dogmática é expressão do injusto específico do delito.

se não reduz deve frear (ação). Completa exemplificando que o médico que deve operar (ação) também está obrigado a não embriagar-se (omitir)

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Desta forma, aquilo que os tipos penais imputam como homicídios, lesões, nem

sempre coincide com o que estimamos como condutas de matar, lesionar etc. Eles não

possuem o significado de descrição de causalidade, mas de adscrição, ou seja,

imputação de responsabilidade (MESA, 2005, p.80).

Trocando em miúdos, podemos dizer que na Parte Especial do Código Penal

estão presentes tipos omissivos, comissivos, omissivos e comissivos e aparentemente

apenas comissivos, cuja redação (tipo como categoria dogmática) permite também a

adscrição de condutas omissivas.

Vale trazer as lições de Mir Puig( apud MESA, 2005, p.80) :

[...] Uma concepção social prevista pela lei permite incluir nos tipos de causação a comissão por omissão. Não haverá o uso, com isso, da analogia, senão de uma interpretação que, embora extensiva, segue sendo licita por respeitar os limites do ‘sentido literal possível

Fica a pergunta se isto não feriria o princípio da legalidade constituindo-se em

analogia in malam partem, todavia, cabe aqui lembrarmos a distinção feita por

Gimbernat Ordeig entre analogia e interpretação analógica dentro do sentido literal

possível.

[...] É perfeitamente possível distinguir aplicação analógica e analogia. E a delimitação entre ambas se efetua, efetivamente, quando se pensa no 'sentido literal possível'. A interpretação analógica trata de determinar o que diz o Direito Penal em relação a uma questão duvidosa quando recorre à comparação de outras figuras delituosas ou instituições penais similares. A interpretação analógica pode estender (como o caso do conceito 'moradia' do art. 490 (hoje art. 202) ou a restringir (como no caso de roubo com homicídio) o comportamento punível. Mas, tanto restringindo como estendendo, deve manter-se sempre dentro do marco do 'sentido literal possível'

Exemplos semelhantes de interpretação extensiva permitida já nos eram

fornecidos pela doutrina de Nelson Hungria (1955, p. 82) cujas lições explicavam a

clara distinção entre analogia e interpretação.

[...] Quando o Código incrimina a bigamia (artigo 235) está necessariamente implícito que abrange na incriminação a poligamia; quando incrimina o rapto (artigo 219), sem outra distinção que a referente aos meios executivos, compreende não só o rapto per abductionem (com remoção da vítima de um lugar para outro) como o rapto per obsidionem (com arbitrária retenção da vítima em lugar aonde fora por sua livre vontade); quando um fato é incriminado por criar uma situação de perigo (v.g.: o fato previsto no art. 130 do

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Código Penal), também o é, não obstante o silêncio da lei, quando cria uma situação de dano efetivo (crime exaurido)

Assim sendo, dentro de um sentido literal possível, artigos como o 121 do CP,

proibido não é apenas matar em si, termo que implicaria na produção de uma morte

que, como qualquer resultado, não pode ser objeto de proibição, mas a conduta que

levam ao resultado morte (SILVA SANCHEZ, 2006, p.460)17

Neste sentido leciona Bacigalupo (1974, p.149):

[...] em certas condições, e a pesar de não existir nenhuma prescrição penal que o autorize, tanto a doutrina como a jurisprudência tem aceitado que um tipo penal proibitivo estruturado sobre a base da realização ativa de uma ação),pode, sem embargo, levar-se a cabo mediante uma omissão, por exemplo o tipo de homicídio, art.79 do Código Penal, não só é cometido pela forma ativa que expressamente caracteriza a lei, senão que também o é em certas circunstâncias de maneira omissiva. Portanto, baixo um tipo proibitivo (ex. matar a outro) resulta possível subsumir a conduta do que não impede a realização do resultado (ex. a morte de alguém).

Obviamente, mesmo que alguns tipos permitam a atribuição, não serão todas as

omissões que alcançarão uma identidade de desvalor, tanto da ação quanto do

resultado, com os crimes comissivos. Ou seja, não é toda omissão que se identifica

materialmente e estruturalmente com a comissão. Nestes casos, não haverá delitos

comissivos por omissão, podendo, em cada caso concreto e devido a amplitude do

delito de omissão de socorro, responderem por este delito(SILVA SANCHEZ, 2006,

p.425).

Apenas haverá identidade de desvalor da ação e do resultado, quando o

omitente, na posição de garante, possuía um domínio do risco típico normativamente

idêntico a quem, ativamente, colocou em marcha um curso causal (MESA,2005 p.116).

A partir deste ponto os autores que defendem a identidade material e estrutural entre a

omissão e ação divergem no que consistiria este controle sobre o risco. Seguiremos a

proposta de Silva Sanchez.

Para o autor, haverá domínio do risco quando o omitente, embora com sua ação

anterior haja assumido voluntariamente18 um compromisso específico e efetivo de atuar 17 Note que a redação de alguns tipos pode impedir totalmente a adscrição omissiva. Tomemos o exemplo do crime de homicídio previsto no CP italiano: “ art. 575. omicidio.- Chiunque cagionare la morte di um uomo........” ou seja, “Qualquer um que ‘cause’ a morte de um homem...”18 Poderia haver dúvidas quanto à assunção voluntária, v.g, nos casos em que a mãe deixa de alimentar o filho e este morre de inanição. Nestes casos a assunção voluntaria não se dá porque o sujeito escolheu ser pai ou ser mãe, mas sim, porque poderia ter renunciado ao poder familiar e não o fez, impedindo a

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como uma barreira de contensão dos riscos, não age, excluindo assim a possível

intervenção de terceiros. Dizendo de outra forma: com ação anterior, cria-se um risco

para o bem jurídico, abandonando-o posteriormente, quando este estava em sua

dependência pessoal. (2006, p.463-466)

Temos, portanto, o substituto funcional da causalidade. Com um comportamento

ativo cria-se naturalisticamente o risco, com a omissão, nestas hipóteses, cria-se

normativamente um risco para o bem jurídico19.

Apanágio obrigatório desta teoria, portanto, haveria omissão imprópria tão-

somente em casos restritos, inequívocos, quando não houvesse dúvidas da identidade

matéria e estrutural entre o ato que viole a norma mandamental e o ato violador do

preceito proibitivo.

Tal, evidentemente, leciona com lucidez Juarez Tavares( 1996,p.82) referindo-se

a identidade estrutural:

[...] afora os casos expressos, só se dá nos delitos contra a vida, a integridade corporal e a liberdade, cujos objetivos jurídicos, pela sua natureza e pelas conseqüências, necessitam de uma imediata e oportuna intervenção protetiva, que não pode ser postergada para não se tornar inócua.

A doutrina moderna tem seguido a mesma linha restringindo os crimes

comissivos por omissão para os bens jurídicos mais essenciais.

É o caso de Juarez Cirino dos Santos (2002, p.115) quando ressalta que “reduzir

a responsabilidade do garantidor aos bens mais importantes, como a vida e o corpo do

sujeito protegido, parece indicado pela natureza especial da omissão de ação

imprópria”

Neste sentido, Luiz Flávio Gomes (2004, p.185) ensina que a melhor doutrina

informa que “somente os relacionados com bens jurídicos de elevada importância (vida,

integridade física) é que se acham enquadrados no referido dispositivo legal”

Quando analisamos a conclusão nº 3 do tópico 6.1 vemos que não há porque a

equivalência contentar-se com critérios axiológicos quando é possível uma identidade

ação de terceiros.19 Esta criação do risco, critério para identidade estrutural, não pode ser confundida com a criação do risco, imputação objetiva.

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estrutural e material entre ação e omissão. Ademais, como veremos mais adiante, a

equivalência se traduz em analogia in malam partem.

7.1 DAS IMPLICAÇÕES CONSTITUCIONAIS

Com todo o exposto até então, cumpre que nos perguntemos: é constitucional a

forma com que a legislação brasileira regula os delitos comissivos por omissão? É

constitucional a forma com que a doutrina concebe estes delitos?

É válido deixar claro desde logo que não vemos qualquer inconstitucionalidade

na omissão imprópria em si, posto que, sendo o Brasil um Estado Democrático e Social

de Direito, derivam daí não só obrigações de se abster de ações lesivas à esfera alheia,

como também, excepcionalmente, obrigações de salvaguarda de bens alheios postos

em perigo.20

Fazemos nossas as palavras de Everaldo Cunha Luna (1982, p.54) quando

afirma que: “a questão básica, fundamental, portanto, não está na própria essência da

omissão imprópria, mas no modo como deve ser disciplinada pelo Direito Penal”

A Constituição Federal de 1988 prevê o princípio da legalidade em seu art.5º,

XXXIX, à semelhança do art.1º do CPB, in verbis: “Não há crime sem lei anterior que o

defina, nem pena sem prévia cominação legal”.

Nada mais fazem que repetir a frase cunhada por Feuerbach: “nullum crimem,

nulla poena sine lege”.

A doutrina aponta quatro desdobramentos ou vedações que derivam daí:

a)nullum crimen, nulla poena sine lege praevia ( proibição da edição de leis retroativas que fundamentam ou agravem a punibilidade);

b)nullum crimen, nulla poena sine lege scripta ( proibição da fundamentação ou do agravamento da punibilidade pelo direito consuetudinário);

c) nullum crimen, nulla poena sine lege stricta (proibição da fundamentação ou do agravamento da punibilidade pela analogia); 20 Não concordamos, portanto, com o Prof. Paulo Queiroz (2005, p.174) cujo posicionamento parece ser contrário à omissão imprópria em si, quando afirma que os delitos comissivos por omissão seriam inconstitucionais por ofenderem o princípio da pessoalidade da pena, tendo em vista imputar ao omitente ação de outrem ou evento puramente natural, sendo ilegítima, portanto, qualquer responsabilização de resultado senão ao próprio autor da ação.

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d)nullum crimen, nulla poena sine lege certa (a proibição de leis penais indeterminadas).

Vimos no tópico 4.1 “A EXPERIÊNCIA BRASILEIRA” que antes da reforma de

1984 não existia em nossa legislação nenhum artigo que previsse os delitos comissivos

por omissão, o que, todavia, veio a ocorrer com a inclusão do art.13§2º. Cumpriu-se,

com isto, as exigência formais da lei anterior derivante do princípio da legalidade.

Resta nos perguntar se o atual art.13§ 2º, da mesma forma, responde aos sub-

princípios: c) e d), ou seja, a taxatividade e a proibição ao uso da analogia in malam

partem nas normas incriminadoras.

Vejamos primeiramente a taxatividade.

Carmo Antonio de Souza (2003, p.161-162) defendendo a constitucionalidade

desses delitos, leciona que o princípio da legalidade deve ser entendido de forma

relativa e não absoluta. Argumenta o autor que em algumas situações é inviável uma

perfeita adequação do fato à sua moldura legal. Fornece como exemplo as normas

penais em branco e os elementos normativos do tipo. Aduz, ainda, que nos delitos

comissivos por omissão seria impossível o magistrado não dispor de certa

discricionariedade e termina por concluir que o art.13, §2º não infringe de maneira

nenhuma o princípio da legalidade.

Pois bem, a doutrina faz distinção entre reserva legal absoluta e relativa. A

primeira ocorreria quando a Constituição faz exigência de edição de lei formal para

regulamentação integral da norma constitucional. A reserva legal relativa, de outra

forma, ocorre quando há permissão feita, pela própria Constituição, de que esta lei

formal apenas venha a fixar os parâmetros de atuação para o órgão administrativo, que

poderá complementá-la por ato infra-legal.(MORAES, 2005, p.37)

Certamente o autor quando se refere à relativização da reserva legal não está

fazendo alusão a esta hipótese, até porque ela tão-só poderia ocorrer com a

autorização expressa da própria Constituição.

Por ora, continuemos o raciocínio acerca da taxatividade.

Explica Regis Prado (2006, p.133) que o princípio da legalidade tem a função

garantista de procurar “evitar o arbitrium judicis através da certeza da lei, com a

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proibição da utilização excessiva e incorreta de elementos normativos, de casuísmos,

cláusulas gerais e de conceitos indeterminados ou vagos”. Continua o autor:

[...] O princípio da taxatividade significa que o legislador deve redigir a disposição legal de modo legal de modo suficientemente determinado para uma mais perfeita descrição do fato típico (lex certa). Tem ele, assim, uma função garantista, pois o vínculo do juiz a uma lei taxativa o bastante constitui auto-limitação do poder punitivo-judiciário e uma garantia de igualdade.

Neste contexto, os tipos penais abertos (aqui se incluem os elementos

normativos e lei penal em branco e os delitos culposos) só se sustentariam em um

Estado Democrático de Direito, como explicou Zaffaroni e Pierangeli (1997, p.449-450)

quando é de todo impossível para o legislador, por mais cuidadoso que seja, especificar

todas as variantes do conteúdo proibido pela norma.

Não à-toa, autores mais sensíveis ao tema chegam a criticar o uso abusivo pelo

legislador de formas sintéticas, como: provocar aborto ou injuriar alguém como

atentatórias a princípio da legalidade(TAVARES, 2000, p.187),(QUEIROZ, 2005, p.28).

Ora, trocando em miúdos, o que o autor quer dizer quando afirma que o princípio

da legalidade deve ser entendido de forma relativa é que, pela natureza das coisas,

não haveria como o legislador explicitar todas as hipóteses típicas dos crimes

comissivos por omissão, portanto seria constitucional sua sistematização na Parte

Geral, delegando, assim, a tarefa de fechá-lo ao juiz.

Como veremos mais adiante, perde todo o sentido justificar o atual tratamento

dos delitos de omissão imprópria pelo fundamento da pretensa impossibilidade de

previsão na Parte Especial pela natureza das coisas, resultando daí que a abusiva

“abertura” do tipo dos delitos comissivos por omissão não se legitima.

Repetimos mais uma vez a frase de Munhoz Netto: “no Estado de Direito, as

relações entre a autoridade e a liberdade devem estar claramente definidas (1983,

p.27)”. Por conseguinte, só poderia haver certa dose de indeterminação quando fosse

de todo impossível ao legislador optar pela via mais segura o que, sem dúvidas, não

ocorre nos delitos comissivos por omissão.

De mais a mais, em um Estado Democrático de Direito a aplicação da pena só

tem sentido quando o agente podia só motivar na norma, mas não se motivou.

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(MUNÕS CONDE, 1988, p130) Ora, como um indivíduo poderia se motivar na norma,

se esta norma não especificar com clareza o que proíbe?

Seria algo semelhante á situação que Kafka descreveu em seu livro, O processo,

cujo enredo descreve o protagonista sendo processado, julgado e executado sem saber

exatamente o que fez para merecer tal castigo.

Por esta razão, a doutrina vem chamando atenção para o fato de que a forma de

tratamento que os delitos comissivos por omissão têm recibo fere flagrantemente o

princípio da legalidade.

Mais precisamente, neste sentido, Paulo Queiroz (2005, p.173) se manifesta:

[...] é evidente que o Código, ao se utilizar de uma cláusula geral e grandemente vaga, que equipara ação a omissão, não atende a tal exigência político-criminal e se revela claramente antigarantista. Porque, afinal, o legislador limita-se, simplesmente, a esclarecer os pressupostos gerais do dever de agir e de impedir o resultado, mas nada esclarece quanto ao seu conteúdo, remetendo, ainda, a complementação de seu significado (lei penal em branco) a uma outra lei, a um contrato ou uma situação concreta de criação de risco em gera, ainda mais imprecisos e indeterminados, de sorte que fixar os limites da posição de garante é especialmente problemático.

A esse respeito, mesmo que timidamente, Munhoz Netto (1984, p.29) já alertava

para amplitude que representava a cláusula geral. “Talvez a fórmula legislativa não seja

a mais perfeita, constituindo-se em simples indicação genérica orientadora, ou em

‘mera frase programática’.”

Eduardo Novoa Monreal (1984, p.179-180) em obra que escreveu em

homenagem à Munhoz Netto é bem mais contundente em suas críticas quanto à

legalidade.

Primeiramente, ao tratar das expressas cláusulas de equiparação e enumeração

das fontes do dever, tal qual presentes em nosso Código Penal, art. 13§ 2º, leciona que

“em razão de sua generalidade e falta de firmeza seguem sendo objeto de crítica por

toda a doutrina”.

Mais adiante, comentando sobre os variados problemas que os delitos de

comissão por omissão representam, aponta que o principal deles é se chocar com o

princípio da legalidade que inspira o Direito Pena, além do fato que em muitos casos,

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alguns delitos da Parte Especial possuírem características incompatíveis com os delitos

de omissão.

Em seguida conclui que a falta de um delito expresso que os inclua, viola o

princípio da legalidade e a proibição penal da analogia, pois constituem fatos não

tipificados.

Assumindo uma postura resignada Jeschek e Luiz Luíse (apud SOUZA, 2003, p.

160) entendem que a técnica analítica de indicação do dever de agir satisfaz, no

possível, as exigências do princípio da legalidade.

A despeito do ponto de vista da constitucionalidade, a doutrina moderna, chega à

única e inarredável conclusão: a de que a cláusula de equiparação, não obstante

amenizar o problema da legalidade indicando as fontes do dever de garante, de

maneira nenhuma se aproxima de sua completa resolução.

Com efeito, a odiosa indefinição e demasiada abertura do tipo penal atenta

ferozmente contra as garantias mais comezinhas do Estado Democrático de Direito,

acabando por solapar com duros golpes um dos seus mais proeminentes alicerces : o

princípio da taxatividade do tipo penal,ou seja, a segurança jurídica, deixando ao

arbítrio do juiz a definição do que seria e não seria crime.

A história não nos deixa esquecer, até porque bastante recente, a experiência

hecatômbica da escola de Kiel, cujo tipo penal chegou a tal ponto de tamanha

abstração a proibir tudo que ofendesse “o são sentimento do povo alemão (ASÚA,

1950, Tomo II, p.169)”, incluindo aqui, certamente, o odioso tipo penal de autor, o qual

proibia por ser algo e não por fazer. Zaffaroni aventa a possibilidade de se chegar ao

absurdo de considerar fato típico previsto no art.33 da Lei de Segurança Nacional

Brasileira fato de não se levantar para saldar o Governador do Estado (1982, p.37).

A taxatividade, todavia, é apenas um dos problemas que surgem decorrentes da

legalidade. Outra grave ofensa, esta certamente muito mais sutil, refere-se ao uso da

analogia in malem partem.

Analogia, grosso modo, significa dar tratamento idêntico entre algo que não está

na lei e algo que por ela foi regulado, em razão da semelhança existente. O termo é

originário do grego, na (entre) logos (razão). A vedação originária do principio da

legalidade é ao uso da analogia in malam partem, ou seja, aquela que de alguma forma

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prejudica o réu. Lembremos o sub-princípio derivante do princípio da legalidade:

nullum crimen, nulla poena sine lege stricta (proibição da fundamentação ou do

agravamento da punibilidade pela analogia).

É preciso deixar claro a distinção entre analogia e interpretação, enquanto

aquela cria, pois de nenhuma forma compreendida no texto legal, esta apenas busca

um sentido dentre os sentidos que a lei possa ser compreendida, respeitando o sentido

literal possível (MIR PUIG, 2007, p.91).

Normalmente, a analogia ocorre nos limites que fundamentam a imposição da

pena. Assim estaríamos diante de analogia, em que pese alguns posicionamentos

esdrúxulos, se compreendêssemos que no termo arma, art.157, §2º, I, se inclui

brinquedo.

Em outros casos, a analogia não se ocorre nos limites da punibilidade, mas sim

na própria punibilidade.

Com efeito, a maioria da doutrina entende que a fundamentação da punibilidade

reside na equivalência entre o injusto dos delitos omissivos impróprios e os comissivos.

Não apenas a taxatividade, portanto, se encontra sob grave ameaça. Não há

como fugir ao fato de que a equivalência se configura em vergonhosa analogia há muito

proscrita do Direito Penal moderno, portanto inconciliável com o Estado Democrático de

Direito.

Não nos esqueçamos que a equivalência significa assumir que determinado

delito não foi praticado no mundo do ser, mas que por conter semelhante carga de

desvalor (injusto) merece a mesma aplicação da pena.

Silva Sanchez (2006, p.456) explica que a analogia, aqui, ocorre não na

limitação, mas sim na própria fundamentação da punibilidade:

[...] a analogia tem lugar nestes casos, não na limitação, senão precisamente na fundamentação da punibilidade [...] de modo que resulta ser claramente uma analogia contra o réu [...] é pois inconstitucional e não é possível mantê-la nem um minuto a mais

Com propriedade, Juarez Tavares (1996, p.81) afirma:

[...] a inserção de uma cláusula de equivalência entre ação e omissão nada mais faz do que admitir na interpretação integrativa dos tipos legais o argumento analógico, vindo a ampliar indevidamente as possibilidades da punição por omissão [...] Não basta para fundamentar a punibilidade que se

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afirme uma semelhança entre ação e omissão, será preciso que o legislador indique,com absoluta precisão, os elementos que compõem essa punibilidade

Zaffaroni (1982, p.34-35) também afirma haver analogia na hipótese em tela,

mas para o autor, ela ocorre pelo fato de o juiz para construir o delito impróprio não

escrito, a partir da comparação dos tipos comissivos por omissão previstos na Parte

Especial. Some-se a isso o fato de que, sendo possível em tese qualquer delito previsto

na Parte Especial ser praticado por omissão imprópria, isto gerar alto teor de abstração

e indeterminação, trazendo conseqüências irremediáveis ao princípio da culpabilidade,

haja vista não se ter a exata e prévia noção do conteúdo da proibição, impossibilitando

assim a motivação na norma.

Fala-se, ademais, em ataques aos princípios da pessoalidade da pena e da

proporcionalidade, o que tornariam os delitos comissivos por omissão, da maneira

como tratados, irremediavelmente inconstitucionais (QUEIROZ, 2005, p.172).

7.2 SOLUÇÕES DE LEGE FERENDA

Não pode haver dúvidas de que a solução que de fato pode por fim a todos os

problemas levantados até então não se encontre presente na legislação, mas tão-só

possa surgir com uma reforma sistemática na forma de disciplinar os delitos comissivos

por omissão, ou seja, na Parte Especial.

Argumenta-se pela impossibilidade de previsão na Parte Especial de todas as

hipóteses de delitos comissivos por omissão, entre outros Bockelmann, Mezger e

Welzel (GRASSO, 1983, p.34), (MONREAL, 1984, p.193), limitação esta supostamente

decorrente da natureza das coisas (ZAFFARONI, 1982, p.35). Todavia, entendemos

que qualquer reforma que pretenda efetivamente resolver a questão da legalidade deve

deslocá-lo para Parte Especial.

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No mesmo sentido se manifestou Juarez Tavares (1996, p.70):

[...] A solução mais coerente com a exigência do princípio da legalidade, embora não exaustiva e nem perfeita, seria a previsão, na Parte Especial do Código Penal, dos delitos que comportassem a punição pela omissão.

Ora, o que seria impossível pela natureza das coisas seria o legislador prever,

com todas as suas variações, os modos que se pudesse lesionar os bens jurídicos de

forma omissiva. Teríamos que ter tipos como, v.g matar o filho por inanição, não

impedir, o salva-vidas, que alguém se afogue, etc.

Aliás, semelhante impossibilidade também existiria para os crimes comissivos,

como percebeu Munhoz Netto (1983, p.27):

[...] Há semelhante dificuldade quanto á definição de todos os comportamentos comissivos capazes de ofender bens jurídicos fundamentais à co-existência entre homens. E nem por isso pensa-se em substituir o princípio da legalidade.

O certo é que é possível sim um regramento dos delitos comissivos por omissão

na Parte Especial, de modo a satisfazer as exigências do princípio da legalidade.

Passemos às sugestões indicadas pela doutrina. Ambas, tanto uma quanto

outra, se fossem levada a efeito, pensamos que chegaríamos a uma efetiva conclusão

do eterno embate, delitos comissivos por omissão vs. segurança jurídica.

7.2.1 previsão na parte especial

A primeira proposta apresentada pela doutrina é a previsão de, certas categorias

de delitos de omissão imprópria, na Parte Especial. Ora, se só ocorrem os delitos

comissivos por omissão em ataques aos bens jurídicos mais sérios, como indica a

doutrina, não haveria tanta dificuldade de sua previsão na Parte Especial.

Neste sentido, Zaffaroni (1982, p.37-38) escreve:

[...] Dado que em circunstâncias normais, quer dizer, no marco de um Estado de Direito democrático, os casos em que a jurisprudência e a mesma doutrina acodem a tais construções não são tão numerosos, não é impossível elaborar por escrito tais tipo impróprios de omissão

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Conclui, mais adiante, que é inconcebível que:

[...] por não se tipificar legalmente um grupo de condutas que praticamente esgotam os exemplos doutrinários e jurisprudenciais, se coloque em quebra o princípio da legalidade e toda segurança jurídica (1982, p.37)

Esta parece ser a solução também cotejada na por Giovanni Grasso (1983,

p.448-449). Argumenta o autor italiano que o que estaria fadado ao insucesso seria

apenas a tentativa de formular exaustivamente as singulares situações de garantia que

possam vir em consideração em relação a cada crime de evento

A solução, portanto, seria a previsão apenas e tão-somente direcionada a crimes

de homicídio omissivo, lesões ou exposição a perigos graves.

7.2.2 solução semelhante à culpa

A Doutrina, de maneira geral, tem apontado uma solução semelhante à culpa

para o regramento na Parte Especial, até porque ambos possuem conteúdo muito

similar (TAVARES, 2003, p.240).

A saída seria: ao invés de a omissão ser tratada, tal qual a tentativa, como ocorre

atualmente, deveria se seguido o mesmo caminho que foi trilhado pela culpa.

Com efeito, do crimen culpae, nemerus apertus, que permitia que qualquer crime

da Parte Especial fosse cometido por culpa, partiu-se para uma delimitação expressa,

numerus clausus, definindo as hipóteses quando isto poderia ocorrer.

Entre nós, Munhoz Netto (1983, p.30) já partia pela via semelhante à culpa como

única saída viável à compatibilização dos delitos comissivos por omissão com o Estado

de Direito.

Alberto Silva Franco (1993, p.74) criticando a opção que fez a reforma de 1984

de regrar os delitos comissivos por omissão da atual maneira, afirma:

[...] diante da alternativa ou enumerar em artigos de lei, as fontes geradoras do dever de atuar, ou compor, tal como ocorre com o crime culposo, figuras típicas de omissão imprópria não há dúvidas que a opção que melhor atende ao direito de liberdade do cidadão é a segunda. O legislador de 84 preferiu, contudo, definir-se pela primeira, acolhendo, em linhas gerais, no texto legal, a tipologia clássica das fontes geradoras do dever de atuar, sem concessão

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algum às considerações da doutrina mais moderna, a respeito das fontes desse dever, de conotação ética e moral

Explica Paulo José da Costa Jr.(1996, p.132) a forma como deveria efetivar-se

esta alteração

[...] em razão dos motivos expostos e em benefício de segurança do direito, sugeriu-se a introdução, na Parte Geral, de cláusula mediante a qual a omissão imprópria só seria punida em casos expressos, em que a conduta constasse de preceito contido na Parte Especial. Seria algo de semelhante àquilo que se dá com o crime culposo: ‘salvo os casos expressos em lei, ninguém pode ser punido por fato previsto como crime, senão quando o pratica dolosamente’( art.17, parágrafo único). Constaria da Parte Geral preceito em que se estabeleceria que, ‘salvo os casos expressos em lei, ninguém pode ser punido pela prática de conduta omissiva imprópria.

Atualmente, Paulo Queiroz (2005, p.173) também propõe semelhante saída.

Aos críticos de plantão que venham alegar que qualquer reforma na omissão

imprópria levada a efeito nesses moldes traria um vazio à punibilidade, haja vista, que

poderiam ficar de fora situações que colocariam em risco o bem jurídico, Zaffaroni

(1982,p.36) alerta do perigo de se buscar uma legislação sem lacunas, e chama

atenção para o fato de, na culpa, ficarem de fora crimes como furto e estupro, todavia,

ninguém se escandaliza com a atipicidade do furto culposo ou do estupro culposo.

7.3 SOLUÇÕES DE LEGE LATA

Pois bem, enquanto não advir tal reforma, pensamos que não é tarefa da

doutrina cruzar os braços esperando o porvir, mas sim apontar saídas razoáveis e

coerentes, manipulando a dogmática de forma a proteger os bens jurídicos, sem

atropelar os direitos fundamentais.

Se este tipo de delito ainda esteja longe de chegar à perfeição, tratemos então

de adequá-los, da melhor maneira possível, às limitações necessárias para que não se

tornem, ao alvedrio dos juízes, arma aplacadora da fome punitiva do estado.

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Com efeito, serão, portanto, as cores que imprimiremos à omissão imprópria,

com tintas liberais ou reacionárias, que teremos uma tela mais próxima ou afastada do

ideário do Estado Democrático e Social de Direito.

Neste sentido, apenas nos utilizando de uma espécie de interpretação

conforme haverá a possibilidade de legitimação dos delitos comissivos por omissão.

Cremos, desta forma, que a teoria da identificação estrutural senão conduz à

respostas definitivas, pelo menos se constitui em meio coerente de limites à

problemática dos delitos de omissão, daí porque, no mínimo, por si só já mereceria um

debate e aprofundamento maior por parte da academia.

A proibição ao uso da analogia in malam partem mostra-se a principal vantagem

quando se trabalha com a identidade estrutural. Ora, como vimos, a equivalência por

merecimento semelhança de injusto é totalmente inconstitucional por tratar-se de

analogia contra o réu, do mesmo mal, a identidade estrutural e material não padeceria.

De fato, o que há é uma identidade normativa com o ação, o que permitiria a sua

coerente equiparação.

Por outro lado, se é certo que os delitos comissivos por omissão se constituem

em delitos abertos por natureza, a taxatividade estará um pouco mais segura se houver

identificação estrutural entre o atuar e o omitir, e não mera semelhança de injusto,

posto que responderiam pelo mesmo e único fundamento material de injusto. Mormente

porque corresponderiam apenas às infrações mais graves aos bens jurídicos mais

importantes e que não causem dúvidas ao senso comum.

Segundo esta proposta haverá crimes comissivos por omissão toda vez em que:

a da conduta omissiva de um garantidor (art.13§ 2º) tendo completo domínio do risco,

puder ser imputada por meio de um tipo da Parte Especial, equiparando-se, com isso, à

ação.

Nas hipóteses que isto não ocorrer; ou pelo omitente não controlar efetivamente

o risco, portanto, não se transformando em garante; ou pelo tipo penal não permitir a

adscrição, ou seja, quando a omissão não puder ser equiparada a comissão, o que

pode ocorrer, lege lata, é a subsunção nos delitos de omissão de socorro, haja vista

sua amplitude, certamente, se presente seus requisitos. De lege ferenda seria a criação

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de omissões de socorro qualificadas, como ocorre com o §4º e 7º dos artigos 121 e

129, do CPB e nas omissões de trânsito descritas no Código de Trânsito Nacional.

No que diz respeito à proporcionalidade da pena cremos que o critério da

identidade fornece, da mesma forma, alguns pontos positivos.

De fato, como leciona Silva Sanchez (2006, p.477) não são todas as omissão

que podem ser consideradas idênticas à omissão. Segundo o posicionamento do autor,

existem omissões próprias, omissões impróprias que não chegam a se igualar à ação e

por último, omissões impróprias iguais à ação Apenas essas poderiam ser chamadas

de comissivos por omissão. Pois bem, diferentemente, tem se aplicado a equivalência a

estes dois grupos, ou seja, tanto à omissão idênticas á ação, quanto à não-idênticas à

ação, causando uma flagrante desproporção entre as condutas e penas.

Problema semelhante não ocorreria com a utilização do critério da identidade

estrutural, haja vista que os delitos comissivos por omissão ocorreriam tão-somente

quando ação e omissão fossem idênticas.

CONCLUSÃO

Cumpre que respondamos ás perguntas formuladas na introdução, quais sejam: :

1º)No que consiste a omissão? 2º)O que são os crimes comissivos por omissão?

3º)Como é tratado no Direito Penal Brasileiro? 4º) Como é tratado pela doutrina

nacional? 5º) Esta forma de regulamentação fere o Princípio da Legalidade? 6º) O

modelo adotado pela doutrina nacional fere o Princípio da Legalidade? 7º)Como de lege

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ferenda é possível corrigir esta incompatibilidade? 8º)De lege lata qual é a melhor

saída?

A essência da omissão é normativa,ou seja, deixar de fazer alguma coisa que a

lei exige. Não importará a teoria adotada, o mais importante é preservar o seu substrato

natural, que na ação esperada seria a expectativa social; no aliud agere, a conduta

positiva diversa; e na omissão como relação de discordância, a conduta real valorada

pela norma, seja ela positiva ou negativa.

A definição dos delitos comissivos por omissão não pode resultar apenas de um

dos critérios apontados pela doutrina, mas sim, a partir da conjugação deles. Podemos

defini-los como a não evitação de um resultado por alguém que se encontra em

situação de garante, estando este obrigado pela lei a agir.

Os delitos comissivos por omissão são tratados no Direito Penal Brasileiro por

meio do art.13§ 2º, ou seja, com a previsão de uma cláusula genérica e a enumeração

das hipóteses de dever de garantia.

A doutrina nacional, em sua maioria, entende que ação e omissão possuem

estruturas diversas e inconciliáveis, portanto,os crimes de comissão não poderiam ser

lidos como normas mandamentais. A única coisa que justifica a mesma pena entre a

omissão e a comissão é a semelhança de injusto entre ambos, ou seja, a equivalência.

Para atribuição do resultado como “obra sua” deverá ter havido um nexo de

evitação, a pergunta, portanto, que deveria se impor seria: “ a ação do omitente teria

evitado o resultado com probabilidade próxima da certeza?”

O modelo escolhido pelo Código Penal Brasileiro para regular os delitos de

omissão imprópria confronta diretamente com o princípio da legalidade.A forma vaga e

imprecisa prevista no art.13§ 2º fere flagrantemente o princípio da taxatividade.

A equivalência defendida pela doutrina se utiliza do argumento analógico para

fundamentar a punibilidade dos destes delitos, ofendendo com isto o princípio da

legalidade que proíbe a analogia in malam partem.

A solução de lege ferenda para corrigir o confronto com o principio da legalidade

é a previsão na Parte Especial desta espécie de delito.

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Como a doutrina moderna afirma que só há omissão imprópria nas infrações

mais graves aos bens jurídicos mais importantes, seria possível prevê ,em poucos tipos

na Parte Especial, os delitos comissivos por omissão.

Outra alternativa é um tratamento semelhante à culpa.

De lege lata propõe-se a teoria da identidade estrutural como resposta imediata

ao principio da legalidade. Como as normas penais não são apenas proibitiva ou

mandamentais, ou seja, as norma proibitivas também são mandamentais e vice-versa,

é possível a adscrição direta dos delitos comissivos por omissão nos tipos tidos da

Parte Especial.

Apenas haveria delitos comissivos por omissão quando a omissão se

identificasse, normativamente, material e estruturalmente com á comissão.

Com esta teoria pretende-se obter uma melhora quanto à taxatividade, haja vista

que apenas haveria identidade estrutural entre os delitos mais graves. Da mesma

forma, a teoria possui a vantagem de não utilizar do argumento analógico, preservando

o princípio da legalidade.

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