o pensamento sanitarista no brasil

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1 SANTOS, Luiz Antonio de Castro. O pensamento sanitarista na Primeira República: Uma ideologia de construção da nacionalidade. Dados. Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v.28, n.2, p.193-210, 1985. O PENSAMENTO SANITARISTA NA PRIMEIRA REPÚBLICA: UMA IDEOLOGIA DE CONSTRUÇÃO DA NACIONALIDADE * Luiz A. de Castro Santos Mais cedo do que se imagina, o governo, diante do clamor cada vez maior, terá que atender aos reclamos da opinião nacional. Então veremos que a obra de saneamento iniciada por Oswaldo Cruz no Rio de Janeiro se dirigirá por todos os caminhos para o interior do Brasil, em verdadeiro trabalho de redenção nacional. Artur Neiva ** Em artigo anterior 1 , analisei as relações entre Estado e sociedade no Brasil que presidiram à formação do movimento de saúde pública no início do século. Discuti, em particular, o sanitarismo urbano do início do período republicano, e os fatores econômicos, políticos e ideológicos que desaguaram no movimento pela reforma sanitária nas cidades. O presente artigo aborda o sanitarismo rural – a “descoberta dos sertões” – que se seguiu ao sanitarismo urbano. Por volta de 1915, as políticas públicas na área de saúde ainda se limitavam às capitais e demais centros urbanos de importância. O interior do país, particularmente o “sertão”, permanecia esquecido. O texto analisa o movimento nacional em favor da reforma sanitária naquelas áreas esquecidas do interior do país. Uma preocupação central deste trabalho é revelar a força simbólica do movimento pelo saneamento dos sertões, enquanto ideologia de construção nacional. Outra preocupação é a de discutir as políticas públicas que marcam a crescente intervenção do Estado na área de saúde durante a Primeira República. * Agradeço as críticas e sugestões dos colegas do grupo de trabalho sobre Pensamento Social no Brasil, da Anpocs, com os quais discuti, em outubro de 1984, uma primeira versão do texto. Agradeço também as sugestões feitas pelo conselho editorial de Dados. Para a redação de parte deste trabalho contei com bolsa de pesquisa concedida pelo CNPq. ** Artur Neiva, O saneamento do Sertão: Discursos Pronunciados em 18 de Novembro de 1916, Rio de Janeiro, 1917. 1 Ver “Estado e Saúde Pública no Brasil, 1889-1930”, Dados, vol. 23, n. 2, 1980, pp.237-250.

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SANTOS, Luiz Antonio de Castro. O pensamento sanitarista na PrimeiraRepública: Uma ideologia de construção da nacionalidade. Dados. Revista deCiências Sociais, Rio de Janeiro, v.28, n.2, p.193-210, 1985.

O PENSAMENTO SANITARISTA NA PRIMEIRAREPÚBLICA: UMA IDEOLOGIA DE CONSTRUÇÃO

DA NACIONALIDADE*

Luiz A. de Castro Santos

Mais cedo do que se imagina, o governo, diante do clamor cada vez maior, terá que atender aos reclamos da opinião nacional.

Então veremos que a obra de saneamento iniciada porOswaldo Cruz no Rio de Janeiro se dirigirá por todosos caminhos para o interior do Brasil, em verdadeiro

trabalho de redenção nacional.

Artur Neiva**

Em artigo anterior1, analisei as relações entre Estado e sociedade noBrasil que presidiram à formação do movimento de saúde pública no início doséculo. Discuti, em particular, o sanitarismo urbano do início do períodorepublicano, e os fatores econômicos, políticos e ideológicos que desaguaramno movimento pela reforma sanitária nas cidades.

O presente artigo aborda o sanitarismo rural – a “descoberta dossertões” – que se seguiu ao sanitarismo urbano. Por volta de 1915, as políticaspúblicas na área de saúde ainda se limitavam às capitais e demais centrosurbanos de importância. O interior do país, particularmente o “sertão”,permanecia esquecido. O texto analisa o movimento nacional em favor dareforma sanitária naquelas áreas esquecidas do interior do país. Umapreocupação central deste trabalho é revelar a força simbólica do movimentopelo saneamento dos sertões, enquanto ideologia de construção nacional.Outra preocupação é a de discutir as políticas públicas que marcam acrescente intervenção do Estado na área de saúde durante a PrimeiraRepública.

* Agradeço as críticas e sugestões dos colegas do grupo de trabalho sobrePensamento Social no Brasil, da Anpocs, com os quais discuti, em outubro de1984, uma primeira versão do texto. Agradeço também as sugestões feitaspelo conselho editorial de Dados. Para a redação de parte deste trabalho conteicom bolsa de pesquisa concedida pelo CNPq.** Artur Neiva, O saneamento do Sertão: Discursos Pronunciados em 18 deNovembro de 1916, Rio de Janeiro, 1917.1 Ver “Estado e Saúde Pública no Brasil, 1889-1930”, Dados, vol. 23, n. 2,1980, pp.237-250.

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A descoberta dos sertões

Uma das questões mais provocantes no estudo da Velha República écompreender como a luta pelo saneamento ganha uma força simbólica tãogrande a ponto de conquistar as primeiras páginas dos periódicos nas grandescapitais, o Brasil denunciado como um “vasto hospital”. A análise do movimentodas idéias permite desvendar em parte como se deu a politização da questãosanitária durante o primeiro período republicano.

Durante esse período, mais particularmente depois da primeira grandeguerra, a produção literária e sociológica tornou-se marcadamente nacionalista,à medida que as esperanças de salvação do Brasil voltaram-se para a tarefade construção da identidade nacional2. Havia duas correntes de pensamentonacionalista. Uma sonhava com um Brasil “moderno” e atraía intelectuais queviam no crescimento e progresso das cidades brasileiras os sinais da conquistada civilização. A outra corrente preocupava-se em recuperar no interior do paísas raízes da nacionalidade, e buscava integrar o sertanejo ao projeto deconstrução nacional.

1. O Passado nos Condena

O primeiro grupo a que me referi abraçava princípios contraditórios. Deum lado, a preocupação nacionalista impunha superar o atraso, modernizar opaís. Entretanto, para esta corrente nacionalista, um Brasil moderno significavanecessariamente um Brasil europeizado. Só a imigração estrangeira –estritamente branca e européia – poderia limpar os brasileiros da nódoa dopassado escravocrata e dos efeitos perniciosos da miscigenação. O sanguenovo – “sangue bom” – permitiria ao brasileiro redimir-se e purificar-se dacontaminação de raças supostamente inferiores. Tratava-se, em uma palavra,do whitening ideal de que fala Skidmore3.

O alto número de trabalhadores europeus chegados ao Brasil depois de1904 e até o início da primeira guerra resultou do enorme impulso dado pelogoverno central à política imigratória. Aqui se dá o nexo imigração & questãosanitária: o terror inspirado pela ameaça da febre amarela nos principais portosbrasileiros reduziu drasticamente o número de imigrantes. Entre 1890 e 1899,perto de 120 mil imigrantes chegavam ao Brasil por ano. Entre 1900 e 1904, asentradas anuais baixaram para 50 mil. Em 1903, ano em que Rodrigues Alvese Oswaldo Cruz iniciavam a campanha pela erradicação da febre amarela noRio de Janeiro, o número de imigrantes caiu a 34 mil. Ao sucesso dos esforçosde Oswaldo Cruz segue-se nova curva ascendente da corrente imigratória4.

2 Veja-se João Cruz Costa, Contribuição à História das Idéias no Brasil, 2a. ed.,Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1967, pp. 401-402.3 Thomas E. Skidmore, Black into Write: Race and Nationality in BrazilianThought, Nova York, Oxford University Press, 1974, cap. 4.4 Assinale-se, surpreendentemente, que os dados relativos à mortalidade porfebre amarela parecem relacionar-se de modo positivo com as variações nosfluxos imigratórios. Por exemplo, os anos de mais alta mortalidade associada àdoença (1891-1894) foram anos de alta imigração européia. O que isto parece

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Vê-se, pois, que a corrente nacionalista que estou examinando, àmedida que lutava pela vinda de imigrantes europeus para o Brasil e via nasmás condições sanitárias das cidades brasileiras um obstáculo para amodernização, acabou contribuindo para o progresso do movimento de saúdepública. Mas tratava-se, ainda, do movimento em sua primeira fase – a fase deOswaldo Cruz – que antecedeu a guinada para os sertões.

Com as novas ondas imigratórias, parte da comunidade científicaexultava. Em 1911, o diretor do Museu Nacional no Rio, João Batista deLacerda, proclamava que em um século os mestiços teriam desaparecido doBrasil em razão dos processos de miscigenação e imigração. Estamiscigenação era bem-vinda. O racismo “científico” contagiava um grupoconsiderável de profissionais de saúde pública. Em 1916, o médico Gouvea deBarros, deputado federal por Pernambuco e ex-diretor do serviço sanitário deseu estado, proclamava na Câmara dos Deputados que o Brasil tinha umapopulação fraca, sem resistência às doenças dos trópicos. À herança africanaatribuía a maior parcela de culpa pela pouca resistência dos brasileiros, ArturNeiva, um dos cientistas mais renomados do Instituto Oswaldo Cruz, vez poroutra pagava tributo à explicação racista, como ao sugerir que a imigração denegros norte-americanos para o Brasil – projeto que chegou a ser debatido noCongresso em 1921 – iria pôr em risco o processo de branqueamento do país5.

2. A Ambigüidade das Correntes Nacionalistas.

Artur Neiva pertencia, na verdade, àquela corrente que via no interior dopaís a força maior da nacionalidade. Por outro lado, nem sempre os intelectuaisfascinados pela civilização européia eram adeptos das teorias do

indicar é que a queda no fluxo de entrada de imigrantes não estevediretamente ligada ao quadro de mortalidade, mas prendeu-se à imagem quese construiu na Europa, ao longo dos anos, do Rio de Janeiro como umverdadeiro foco de epidemias. Quando a mortalidade por febre amarelacomeça a declinar – mesmo antes da campanha saneadora de Cruz -, já secristalizara na Europa o terror inspirado pela alta mortalidade de anosanteriores. O governo italiano, lembra um historiador, “em diversas ocasiõesdesaconselhou oficialmente” a viagem de seus cidadãos ao Brasil, devido àreputação de insalubridade (Donald B. Cooper, “Brazil’s Long Fight AgainstEpidemic Disease, 1849-1917”, Bulletin of New York Academy of Medicine, vol.51, n. 5, maio de 1975, pp. 680-684; ver também Afonso Arinos de MeloFranco, Rodrigues Alves, Apogeu e Declínio do Presidencialismo. Rio deJaneiro, José Olympio, 1973, p. 245). Os dados sobre mortalidade por febreamarela estão em Plácido Barbosa e Cássio Barbosa de Rezende, Os Serviçosde saúde Pública no Brasil, Especialmente na Cidade do Rio de Janeiro, de1808 a 1907: Esboço Histórico e Legislação, Rio de Janeiro, ImprensaNacional, 1909, volume 1, Quadro XVI. Os dados sobre imigração foramcalculados com base em Thomas W. Merrick e Douglas H. Graham, Populaçãoe Desenvolvimento Econômico no Brasil: De 1800 até a Atualidade, Rio deJaneiro, Zahar, 1981, Quadro 5.2; ver também José Maria Bello, História daRepública, 1889-1954, 6a. ed., São Paulo, Ed. Nacional, 1969, caps. 14 e 15.5 Skidmore, Black into White ..., op. cit., pp. 64-67, 193, 241, 270, 276.

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branqueamento. Era o caso de Rui Barbosa. Finalmente, havia aqueles queserviam de ponte às duas tradições de pensamento. Era o caso de OliveiraViana. Com um grupo partilhava o ideal da arianização da população brasileira;com o outro, partilhava o interesse pela integração dos sertões à vida danação6.

Assim, vê-se que os contornos de cada grupo eram imprecisos. Notava-se certa ambigüidade, seja na carreira intelectual de muitos nomes dopensamento nacionalista, seja em seu comportamento político.

Passo agora à discussão da segunda corrente nacionalista, que é otema central deste trabalho.

3. O Passado nos Redime

Foi no início do período republicano que o sertão fez “sua apariçãodramática no cenário da vida brasileira”7. Cruz Costa assinala o choqueproduzido por Os Sertões, de Euclides da Cunha, junto aos círculos intelectuaiseuropeizados das cidades brasileiras. Com Euclides da Cunha iniciava-se areação contra o “sibaritismo intelectual” daqueles círculos8. No dizer deEuclides, à medida que as elites brasileiras procuravam tomar uma civilizaçãode empréstimo, fugiam às “exigências da nossa própria nacionalidade”. Maisfundo se tornava “o contraste entre o nosso modo de viver e o daqueles rudespatrícios mais estrangeiros nesta terra do que os imigrantes da Europa”9. Era oresgate dos sertões e do sertanejo que se impunha como tarefa de construçãoda nação. É nesse sentido – da busca, no sertão, das raízes da nacionalidade– que o passado não nos condenava, mas antes nos redimia.

O isolamento e o atraso do sertanejo revelaram-se também através daobra de escritores como Monteiro Lobato, Vicente Licínio Cardoso e AlbertoTorres. Licínio Cardoso e Alberto Torres foram dois dos mais importantescriadores da tradição do pensamento “ruralista” no Brasil. Para eles, averdadeira vocação do país estava na valorização da agricultura e do homemdo campo. Ainda que a proposta de construção nacional de Monteiro Lobatonão permita situá-lo entre os ruralistas – ele empenhou-se, de fato, em váriasfrentes da luta pela industrialização do país -, desde 1910/1915 sua obrarevelava a preocupação com as condições de vida das populações rurais.

Monteiro Lobato é em geral conhecido como autor voltado para o interiorpaulista, o que é em certa medida um julgamento equivocado. É verdade queseus primeiros escritos focalizavam o caboclo paulista do Vale do Paraíba. Équando Lobato, como tantos outros, apontava as deficiências da “raça” comoresponsáveis por supostas características das populações rurais, como aapatia, indolência, incapacidade para o trabalho, etc. A miscigenaçãoexplicava tudo. Éramos um povo fraco.

6 Cruz Costa, Contribuição à História ..., op. cit., p. 408.7 Idem, p. 354.8 Idem, p. 355.9 Citação extraída de Idem, p. 354. Ver Euclides da Cunha, Os Sertões, 5a. ed.,Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1914, p. 205.

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Foi o crítico Agripino Grieco quem apontou para outra faceta da obra doescritor paulista10. Esta faceta é a de um Monteiro Lobato que revê suasantigas posições, por volta de 1918. Já não culpa o trabalhador do campo porsua pobreza, nem o rotula de indolente e inapto para o trabalho, ao contrário,assinala que é dele, mesmo doente, que se extrai grande parcela da riquezanacional. Lobato não fala mais a linguagem da “incapacidade racial”. Oproblema brasileiro não estava na raça, mas nas doenças endêmicas. Lobatose entregou à divulgação de suas idéias sobre o saneamento em inúmerosartigos publicados durante 1918, no jornal O Estado de S. Paulo11. Estestrabalhos revelam ainda outra faceta do escritor: sua preocupação com aquestão nacional do saneamento, mais forte, então, do que a preocupação comas condições de saúde do caipira paulista. “sanear é a grande questão. Não háproblema nacional que se não entrose nesse”12. É a melhor fase de Lobato,que a um tempo combate o “determinismo étnico”, assume um lugar na linhade frente da crítica social de seu tempo, e elege o saneamento rural como aquestão nacional por excelência.

Vicente Licínio Cardoso foi outro intelectual alinhado na luta pela“redenção dos sertões”. Licínio pensava antes em termos de região do que nascondições de vida da população. Sua preocupação central eram as regiões quehoje conhecemos como o nordeste e o sudeste, particularmente as áreasbanhadas pelo São Francisco. Aí estava o elo perdido da civilização brasileira:para Licínio, o rio S. Francisco tinha uma importância geopolítica e cultural.Extensas áreas do Vale do S. Francisco, ocupadas por paulistas e baianosdurante a segunda metade do século XVIII, haviam contribuído para aocupação territorial e a unidade política do país13. Mas, assinala o autor, apopulação dessas áreas havia experimentado um crescente isolamento doresto do país. Pedro II promovera algumas poucas missões científicas à região.Licínio assinala que o primeiro esforço das administrações republicanas para areintegração da região ao resto do país fora a missão médica enviada peloInstituto Oswaldo Cruz ao interior do nordeste, em 191214. Mas o escritorinsiste na necessidade de uma atenção governamental contínua àquelas áreasà margem da história do Brasil Republicano.

10 Deve-se a Skidmore, Black into White ..., op. cit., p. 271, esta observaçãosobre Grieco. Lúcia Lippi Oliveira lembra que “Urupês”, artigo escrito porMonteiro Lobato em 1915, pode ser visto como um marco de uma diferentepercepção do Brasil. Ver Lúcia Lippi Oliveira, “As Raízes da Ordem: OsIntelectuais, a Cultura e o Estado”, Seminário sobre a Revolução de 1930, Riode Janeiro, 22-25 de setembro de 1980, mimeo, p. 7.11 Estes artigos, sob o título “Problema Vital”, estão reunidos em suas obrascompletas. Ver Monteiro Lobato, Mr. Slang e o Brasil e Problema Vital, 2a. ed.,São Paulo, Brasiliense, 1948, pp. 221-340.12 Idem, p. 272.13 Vicente Licínio Cardoso, À Margem da História do Brasil, São Paulo,Nacional, 1933, pp. 26-27.14 Idem, pp. 33-40. Tratarei da missão do Instituto Oswaldo Cruz mais adiante.

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Quanto a Alberto Torres, empenhou-se pela criação de uma “repúblicaagrícola” em que os males sociais fossem sanados. Combateu a grandepropriedade rural, o uso predatório da terra, a conseqüente “saarização” dopaís. Propôs que a ação governamental junto às populações rurais setraduzisse em obras de saneamento e na difusão do ensino profissional. Nãoera um entusiasta da imigração; para Torres, o trabalhador nacional deveriareceber a assistência dos poderes públicos, preocupados até então apenascom o colono estrangeiro15.

De todos, apenas Lobato sofreu a influência da “idéia-forçaavassaladora” do saneamento16. À influência de Monteiro Lobato somou-se adisposição da corrente ruralista e nacionalista de resgatar os sertões doabandono, criando condições favoráveis junto às elites para a difusão dosanitarismo. Durante os últimos quinze anos da Primeira República, a idéia dereforma sanitária pouco a pouco transformou-se em “aspiração nacional”17.

O movimento sanitário nacional

15 Alberto Torres, A Organização Nacional, 3a. ed., São Paulo, Ed. Nacional,1978, pp. 132-133 (Primeira edição, 1914). Ver ainda Francisco Iglésias,“Prefácio”, idem, pp. 11-31, esp. P. 24. Assinale-se, entretanto, que a obraprincipal de Alberto Torres só encontra repercussão depois de 1930. De seunacionalismo agrário, o período pós-trinta endossou as teses nacionalistas,mas não o agrarismo. Entre os tenentes vitoriosos em 1930, só Juarez Távorasustentava a defesa da pequena propriedade rural, uma tese cara a Torres.Octávio Ianni expressa com clareza esse ponto: “O getulismo representa, aomesmo tempo, a ruptura (...) com a ideologia que representa o Brasil comonação de destino exclusivamente agrícola, e a conquista dos benefíciospossíveis no ambiente urbano”. A base para a conquista de tais benefícios erao desenvolvimento nacionalista. Ver O. Ianni, Estado e Capitalismo: EstruturaSocial e Industrialização no Brasil, Rio, Civilização Brasileira, 1965, p. 159; vertambém p. 167. Veja-se ainda Nícia Vilela Luz, A Luta pela industrialização doBrasil, 1808 a 1930, São Paulo, Difusão Européia do Livro, 1961, pp. 90-95;Aspásia Camargo, “A Revolução das Elites: Clivagens Regionais eCentralização Política”, Seminário sobre a Revolução de 1930, Rio, 22 a 25 desetembro de 1980, mimeo, pp. 33-34.16 Monteiro Lobato, Mr. Slang ..., op. cit., p. 297.17 Ver o ótimo trabalho de José Honório Rodrigues, Aspirações Nacionais:Interpretação Histórico-Política, 4a. ed., revista, Rio, Civilização Brasileira,1970. A discussão sobre saúde pública, no entanto, deixa a desejar. O autorerra ao afirmar que a aspiração nacional pela reforma sanitária é “de formaçãorecente” (idem, p. 176). O argumento fundamenta-se no fato de que apenas asConstituições posteriores à Primeira república tratam da saúde pública. Noentanto, cabe uma outra interpretação, menos atenta ao aspecto formal-legal:foi justamente a “aspiração nacional” pela reforma sanitária durante o primeiroperíodo republicano que explica sua incorporação aos textos constitucionaisapós 1930.

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O ano de 1916 marca talvez o ponto de inflexão na evolução domovimento de saúde pública brasileira. É o ano de publicação, pelo InstitutoOswaldo Cruz, dos cadernos de viagem dos médicos Artur Neiva e BelisárioPena através de vários estados do nordeste e Goiás18. A missão do Instituto,realizada em 1912, denunciou as péssimas condições de vida no interior dopaís.

A partir da publicação do Relatório Neiva-Pena, o movimento sanitaristasuperou sua fase urbana, com a nova bandeira do “saneamento dos sertões”.Ressalte-se que o Relatório era o resultado de expedição solicitada por umorganismo federal a outra instituição também federal, para atuar em municípiosem que o coronelismo alcançava sua expressão máxima no país. A missão doInstituto Oswaldo Cruz plantou a semente da ação do poder central nosestados do nordeste19.

1. O Relatório Neiva-Pena

O trabalho de Belisário Pena e Artur Neiva permitiu às elites urbanasuma visão contundente das condições médico-sanitárias e sociais no grandesertão.

O relatório apresenta um quadro social dos sertões à maneira deEuclides: os autores confrontam os problemas sociais como se estivessem àprocura de doenças em um organismo social, estabelecendo causas eobservando sintomas. Ao apontar as causas, criticam a visão, difundida pelasoligarquias, de que a pobreza e a doença se explicariam pelo clima adverso donordeste. Contra a explicação climática, argumentam que as populações dosvilarejos situados às margens do rio São Francisco apresentavam condições desaúde tão precárias quanto as populações das regiões semi-áridas20. Discutemvários aspectos da organização social dos sertões: a família não existia“legalmente”, por falta de registro civil; os filhos “quase nunca são registrados”;

18 Ver Memórias do Instituto Oswaldo Cruz, vol. 8, 1916, pp. 74-224. Foi esta aexpedição científica a que se refere Vicente Licínio Cardoso, citado acima, queentretanto omite o nome de Neiva como um dos chefes da missão. Os doishigienistas percorreram durante vários meses o norte e noroeste da Bahia, osudoeste de Pernambuco, o sul do Piauí e o norte e sul de Goiás.19 Não houve oposição declarada à missão nas áreas de pesquisa. É provávelque os governos estaduais tenham colaborado na seleção das áreas depesquisa de modo a minimizar os “riscos” para os dois higienistas e equipe.Entretanto, houve etapas em que a missão enfrentou obstáculos, como sugerea seguinte passagem: “(...) vamos atravessar uma região perigosa debarracões de maniçobeiros, gente sem escrúpulo, arrebanhada nos sertões daBahia, Pernambuco e Alagoas, cangaceiros habituados aos assaltos emorticínios” (Artur Neiva e Belisário Pena, “Viagem Científica pelo Norte daBahia, Sudoeste de Pernambuco, Sul do Piauí e de Norte a Sul de Goiás”,Memórias do Instituto O. Cruz, 8, 1916, p. 195).20 Idem, pp. 179-180.

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“os enterramentos realizam-se na ausência de qualquer formalidade legal”; apopulação rural vive atrelada ao poder do latifundiário; a pequena propriedadeé praticamente inexistente21.

Em vários pontos os autores confundem causas e sintomas, masprevalece ao longo do trabalho a denúncia das relações sociais injustas nocampo. Aponta-se a existência de trabalho forçado em vastas áreas demaniçobais no Piauí e Bahia; devido à escassez de braços, os latifundiáriosaliciavam mão-de-obra – inclusive crianças – nos vilarejos ao longo do SãoFrancisco, com a promessa de altos salários. A história já é conhecida: cedo, opeão se endividava no armazém da fazenda, pagando preços exorbitantes.Guardas armados impediam a fuga dos peões, proibidos de sair enquanto nãosaldassem a dívida sempre crescente22.

Neiva e Belisário Pena posicionam-se de modo ambígüo quanto àsmedidas necessárias para superar a pobreza e a doença na região. De umlado, o texto fala por si, e sugere a inviabilidade de paliativos, de outro, quandoos autores fazem recomendações de políticas estatais, as medidas propostasnão colocam em xeque as estruturas de poder vigentes. Uma dasrecomendações – a colonização por meio da imigração européia – lembra asproposições dos teóricos do “embranquecimento”. Parece-me, entretanto, queNeiva e Pena vêem o imigrantes antes como disseminador de novas técnicasdo que como agente de um suposto fortalecimento da raça23. Dentre asmedidas de emergência para a melhoria das condições de saúde, propõem acriação de um serviço médico itinerante para toda a região24.

A missão científica de Neiva e Pena não provocou mudanças imediatasnas políticas de saúde, até então restritas às mais importantes áreas urbanasdo país. Entretanto, a publicação do Relatório atraiu a atenção de setores daselites, e reacendeu no Congresso e no Palácio do Catete o interesse pelossertões – já esquecidos desde o episódio de Canudos.

2. O Panfleto Político de Belisário Pena

Belisário Pena empenhou-se na luta política pelo saneamento dossertões. Neiva deixou a linha de frente do movimento sanitarista por algunsanos e retornou ao laboratório. Em 1918, Belisário publica Saneamento doBrasil, onde a questão sanitária aparece como um tema mais político do que notrabalho anterior com Neiva.

O Saneamento do Brasil aponta as falhas mais graves das políticas desaúde da época. Pena conclui que, à exceção de São Paulo, e em certamedida Minas Gerais e Rio Grande do Sul, os estados brasileiros só cuidavam

21 Idem, ibidem.22 Idem, p. 180.23 Cf. idem, p. 181.

24 Idem, p. 182.

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das condições sanitárias das capitais e de algumas poucas cidades25. Aspopulações rurais permaneciam no mais completo abandono. As estatísticassobre as endemias rurais refletiam tal situação: o amarelão atacava 70% dapopulação; 40% eram vítimas da malária; a doença de Chagas atingia 15% dapopulação rural. Estas eram as endemias mais sérias em todo o país, às quaiso governo central deveria dar combate através de uma política integrada desaneamento. Para Belisário, pouco poderia ser feito em favor das populaçõesdesassistidas sem que se unificassem e centralizassem os serviços de saúdepública26. Só o poder central possuía os instrumentos necessários parasobrepor-se à inação ou à resistência oligárquica, e promover campanhas pelosaneamento em todo o território nacional. Entretanto, a mudança nas regras dojogo político era considerada por Belisário Pena uma condição necessária paraque o governo central pudesse assumir o controle do sistema de saúde públicaem todo o país. Em outra passagem do texto ele se contradiz e apresenta umprograma para ser implementado imediatamente. O programa previa: a)intervenção crescente do Estado no setor da saúde pública; b) elaboração denovo código sanitário para todo o país; c) divisão do Brasil em oito zonassanitárias; d) criação de tribunal federal especial para tratar de questõesdecorrentes da aplicação da nova legislação; e) seleção de uma endemia emdois municípios de cada estado durante a fase inicial de saneamento do país27.Para lutar pela implementação do programa proposto, Belisário Pena e outrossanitaristas fundam a Liga Pró-Saneamento do Brasil28.

3. Primeiros Passos: Da Ideologia à Política Pública

As ambigüidades do ideário de Belisário Pena e Artur Neiva refletiam aatmosfera política da República Velha, sacudida pelo embate das forçascontraditórias do cesarismo e caudilhismo29. O comentário de Alceu AmorosoLima permite compreender o movimento até certo ponto pendular dacentralização/descentralização no Brasil, que pende progressivamente para olado da centralização durante a Primeira República.

Nos anos vinte, a intervenção do Estado nacional na política e naeconomia ganhou impulso considerável30. Por sua vez, a ideologia sanitaristano Brasil era marcadamente intervencionista, “estatista”, à diferença do caso

25 Belisário Pena, “O saneamento do Brasil”, Rio de Janeiro, Revista dosTribunais, 1918, pp. 11, 93.26 Idem, pp. 55, 64.27 Idem, pp. 165-171.28 Skidmore, Black into White ... op. cit., p. 183.29 Esta observação de Alceu Amoroso Lima está em Cruz Costa, Contribuiçãoà História ..., op. cit., p. 348.30 Veja-se Elisa M. Pereira Reis, “The Agrarian Roots of AuthoritarianModernization in Brazil”, Tese de Doutoramento, Cambridge, MassachusettsInstitute of Technology, 1979, mimeo, pp. 185, 189-190; Simon Schwartzman,Bases de Autoritarismo Brasileiro, Rio de Janeiro, Editora Campus, 1982, esp.cap. 5.

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inglês e norte-americano, países em que a ampla participação dascomunidades locais e a descentralização administrativa eram encorajadas31. Adécada de 20 – mais precisamente os anos 1918/28 – preside aoaprofundamento do movimento sanitarista no Brasil. Examino a seguir adisseminação da idéia do saneamento e as políticas de saúde do período.

A Ideologia do Saneamento. A rápida disseminação do pensamentosanitarista foi discutida por Monteiro Lobato:

“Idéias há que ferem fundo e se propagam com talrapidez, coligem tal número de adeptos, empolgam de talforma o espírito, explicam com tal lucidez tantosfenômenos desnorteadores que, ainda em meios deopinião rarefeita como o nosso, passam rapidamente dafase estática para a dinâmica. Fazem-se força, e levam deroldão todos os obstáculos. A idéia do saneamento éuma”32.

Que função desempenhou a ideologia sanitarista durante os anos vinte?À primeira vista foi uma ideologia de mobilização política, se se tem em conta aatuação de um Belisário Pena. Confronte-se a descrição de Pedro Nava:

“Não se sabia onde acabava o apóstolo e começava ocharlatão; onde terminava o higienista e principiava o caixeiro-viajante do vermífugo, naquela bolinha humana (...) quepercorreu o Brasil como uma espécie de pregador, de mestre,de camelô, de messias, de orador popular, de empresário eredentor (...) – falando a crianças, a adultos, a velhos;discursando nos grupos escolares, nos ginásios, nasfaculdades, nas ruas, nos cinemas (como assisti em BeloHorizonte, aí pelos vinte, no Odeon, onde ele urrava: ‘Dizemque sou caixeiro-viajante! Sou! Sou o caixeiro-viajante dahigiene! Caixeiro-viajante da saúde! Sou e sou!’); orando aanalfabetos e a homens cultos; ao povo e aos políticos; agovernados e governantes; nas fazendas, nas cidades; noNorte e no sul – ensinando seu Evangelho (...)”33.

Entretanto, o movimento sanitarista não dispunha de muitos Belisários.Era fundamentalmente um movimento de elite. É verdade que dava “uma vistade olhos para a população”34, mas pouco fez além da distribuição deexemplares da história do Jecatatuzinho35, num país que contava, em 1920,

31 Sobre o movimento sanitário na Inglaterra e nos Estados Unidos, ver GeorgeRosen, A History of Public Health, Nova York, MD Publications, 1958, pp. 192-250, esp. pp. 218, 222, 239-240, 249-250.32 Monteiro Lobato, Mr. Slang ..., op. cit., p. 297.33 Pedro Nava, Baú de Ossos, 6a. ed., Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1983, p.302.34 Cf. expressão de Nicolau Sevcenko em entrevista à Veja, 25 de janeiro de1984, p. 6.35 Ver o artigo de Monteiro Lobato, “Problema Vital”, op. cit., pp. 329-340.

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70% de analfabetos. Belisário foi um caso isolado de sanitarista e reformadorsocial decidido a empolgar a opinião pública. Os limites de sua atuação eramdados pelo regime oligárquico, desinteressado da mobilização popular36.

Se a proposta de saneamento dos sertões era elitista, persiste a questãodo formidável impulso que tomou o movimento, atraindo setores das classesmédias, formando correntes favoráveis às teses sanitaristas dentro doCongresso, agitando a imprensa. De onde vinha a força política do movimento?

Parece-me que o movimento sanitário representou um canal dos maisimportantes na República Velha para o projeto ideológico de construção danacionalidade37. A ligação saúde pública & nacionalidade é talvez o traço maisdistintivo do movimento sanitário brasileiro em relação ao europeu e norte-americano. Como se estabelece a relação mencionada? Cabe aqui retomaralguns pontos sugeridos anteriormente. Viu-se que até por volta de 1915, asuposta incapacidade racial do brasileiro era considerada uma pedra nocaminho da modernização. A vinda de sangue novo com o imigrante europeurepresentava o mais importante trunfo das elites para a desejada salvaçãonacional. Ora, a queda da imigração européia durante a primeira guerramundial abriu caminho para propostas alternativas. Ademais, mesmo nos anosde forte imigração, só os estados meridionais se beneficiavam da entrada deeuropeus. Os sanitaristas acenavam com uma proposta que atraia não só aselites do sul como as do norte. Nosso atraso, diziam, se devia à doença, nãoao determinismo biológico. A construção da nacionalidade exigia que as elitesdesviassem os olhos sempre postos na Europa para o interior do Brasil, paraas grandes endemias dos sertões. A (re)integração dos sertões à civilização dolitoral representava o grande desafio para o fortalecimento da nacionalidade,pois população doente = raça fraca = nação sem futuro38.

Importa ressaltar que a relevância política do movimento sanitário estevejustamente em seus aspectos ideológicos – na idéia-força avassaladora a quese refere Lobato -, não em suas realizações práticas, que não lograram aerradicação das endemias rurais. Mas, ainda que de pouco alcance e reduzidaeficácia, a legislação e as políticas de saúde do período lançaram as basespara campanhas subseqüentes e romperam, aqui e ali, a inércia ou aresistência das oligarquias rurais39.

36 Assinale-se ainda que a campanha pelo saneamento rural não atraía todosos principais grupos de higienistas da época. Por exemplo: a SociedadeBrasileira de Higiene, que atuou de 1923 a 1930, voltava-se para os problemasdo saneamento urbano no país. Ver, a respeito, Madel Therezinha Luz et alii,“O Modelo Médico de Saúde Pública no Brasil: Papel dos Institutos dePesquisa e das Escolas Médicas de Saúde Pública nas Políticas de SaúdeBrasileiras”, Relatório de Pesquisa, mimeo, 1980, pp. 195-205.37 Skidmore (Black into White ... op. cit., 167-170) tece algumas consideraçõesna mesma linha, em capítulo dedicado ao “novo nacionalismo”.38 Para Monteiro Lobato (Mr. Slang ..., op. cit., p. 303), a campanha dosaneamento “era o derradeiro cartucho na defesa da nacionalidade vacilante”.39 Para o exame do relativo sucesso das políticas de saúde no meio ruralpaulista, ver Luiz A. de Castro Santos, “Estado e Saúde Pública no Brasil,

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As Políticas de Saúde Pública. Já em 1918, as políticas de saúdeindicavam a maré crescente da intervenção estatal no país. Durante seu últimoano de governo, Venceslau Brás criou o Serviço de Profilaxia Rural40, querepresentaria em pouco tempo, na área de saúde pública, o instrumento deatuação federal nos estados do nordeste. O decreto presidencial de maio de1918 foi saudado pela imprensa por ter criado um programa oficial dedistribuição de quinina para as populações rurais afligidas pela malária. Aprodução e a distribuição da quinina transformavam-se em monopólio federal41.O Serviço criado em 1918 visava também à erradicação do amarelão e dadoença de Chagas.

A intervenção estatal intensificou-se durante o governo Epitácio Pessoa.A coordenação do Departamento Nacional de Saúde Pública, que desde 1909não encontrara um líder com o prestígio e a combatividade de Oswaldo Cruz,foi dada ao diretor de Manguinhos, Carlos Chagas42. Belisário Pena recebeu adireção dos serviços de saneamento rural. Os recursos de impostos federaissobre bebidas alcoólicas e álcool, produtos farmacêuticos e casas de jogo,eram canalizados para os programas de saneamento dirigidos por Belisário43.

O novo código sanitário (1920) deu maiores poderes ao governo federalpara intervir nos estados. Em poucos meses, onze estados haviam firmadoacordos com o governo central para a criação de postos de profilaxia nointerior. Sete estados eram da região norte e nordeste. Em 1922, perto de 100postos de saúde estavam operando, além dos postos abertos pela InternationalHealth Commission da Fundação Rockefeller.

Durante a presidência de Artur Bernardes, os serviços de saúdetornaram-se ainda mais centralizados, sob a tutela federal. Veja-se o caso daBahia: as atividades de saneamento se intensificaram durante 1923/25, com asnovas campanhas de higiene infantil e anti-tuberculosa movidas pelo governofederal. Além disso, o diretor federal de saúde na Bahia passou a acumular a

1889-1930”, Dados, vol. 23, n. 2, 1980, pp. 237-250. Consulte-se também JohnA. Blount III, “The Public Health Movement in São Paulo, Brazil: A History of theSanitary Service, 1892-1918”, Tese de Doutoramento, Tulane University, 1971,mimeo.40 Ver os Anais da Câmara dos deputados, 8, agosto de 1918, pp. 329-330;Skidmore, Black into White ..., op. cit., p. 183.41 O Correio da Manhã (28 de maio de 1918, p. 2) via no decreto de VenceslauBrás a possibilidade da “redenção sanitária” das áreas rurais.42 Nancy Stepan, Beginnings of Brazilian Science: Oswaldo Cruz, MedicalResearch, and Policy. 1890-1920, Nova York, Neale Watson AcademyPublications, 1976, pp. 100, 126-127.43 Cf. Roy F. Nash, “Selling Public Health in Brazil: Five Years’ Work of theInternational Health Board”, Brazilian-American, vol. 5, n. 123, março de 1922,p. 43.

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chefia do serviço sanitário estadual em 1924, medida que refletia a intervençãofederal crescente nos estados44.

O saneamento rural recebeu menor atenção durante a presidênciaWashington Luis. Alguns postos de profilaxia rural no nordeste chegaram a serfechados, em decorrência de cortes nos gastos públicos. Entretanto, asatividades que visavam o despertar da consciência sanitária do povo – parausar expressão corrente na época – prosseguiram durante os últimos anos daRepública Velha. Belisário Pena, então inspetor federal de educação sanitária,deu prosseguimento à sua cruzada de muitos anos, percorrendo, de 1927 a1930, o interior de Minas Gerais, Rio Grande do Sul e vários estados donordeste45. Essas atividades revelavam que o movimento sanitário não perderaainda seu vigor enquanto ideologia, enquanto “idéia-força”.

As forças políticas e institucionais pró-saneamento. Os médicos eintelectuais que se batiam pela causa do saneamento contaram comimportantes forças de sustentação política e institucional. De um lado, omovimento sanitarista contava com o apoio de alguns setores de ponta doaparelho de Estado. Um aliado importante foi a Inspetoria de Obras contra aSeca, criada em 1909 por Francisco Sá, ministro da Viação e Obras Públicasde Nilo Peçanha46. A direção do organismo federal foi entregue a MiguelArrojado Lisboa, ex-aluno da Escola de Minas de Ouro Preto e geólogo derenome47. Os ventos do positivismo ilustrado48 mantinham alta a cotação dasciências naturais e do conhecimento técnico. Arrojado Lisboa imediatamente

44 Ver Góes Calmon, Mensagens do Governador à Assembléia Legislativa daBahia, 1926, p. 180; 1927, p. 212. Ver ainda O Imparcial, 29 de março de 1928,pp. 5-6.45 Cf. o jornal baiano O Imparcial, 17 de fevereiro de 1928, p.3. Sobre a políticafinanceira de Washington Luís, ver Bello, História ..., op. cit., pp. 258-261.Sobre as atividades de educação sanitária no governo W. Luís, consultarFernando de Azevedo, A Cultura Brasileira, Brasília, Ed. Universidade deBrasília, 1963, pp. 301-302. Os estados do Nordeste percorridos por BelisárioPena foram Alagoas, Pernambuco, Paraíba e Rio Grande do Norte.46 Para uma análise das políticas públicas no Nordeste durante o início doséculo, ver Albert O. Hirschman, Journeys Toward Progress: Studies ofeconomic Policy-Making in Latin America, Nova York, W. W. Norton, 1973, pp.11-50.47 Ver Simon Schwartzman (com a colaboração de Antônio Paim et alii),Formação da Comunidade Científica Brasileira, São Paulo, Finep/Cia. EditoraNacional, 1979, pp. 98-99; Carlos Seidl, discurso em louvor de Artur Neiva, emArtur Neiva, O Saneamento do Sertão ..., op. cit., p. 16.48 Sobre o positivismo ilustrado no primeiro período republicano e ascaracterísticas distintas do movimento chefiado no Rio por Miguel Lemos eoutros, ver Antônio Paim, org., Plataforma Política do Positivismo Ilustrado,Brasília, Editora Universidade de Brasília, 1981. Para uma análise dapreocupação “cartesiana” com as ciências na Escola de Minas de Ouro Preto,ver José Murilo de Carvalho, A Escola de Minas de Ouro Preto: O Peso daGlória, São Paulo, Finep/Ed. Nacional, 1978, esp. p. 76.

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lança a Inspetoria em um programa de estudos sobre a região nordestina. Noque dizia respeito às condições de vida, saúde e saneamento, Lisboa solicitoua Oswaldo Cruz a organização de uma missão científica na região. Daí resultoua missão Neiva-Pena.

Em segundo lugar, o movimento sanitário conseguiu adesõesimportantes no Congresso Nacional. O deputado Azevedo Sodré, da bancadado Rio de Janeiro e nilista, foi o mais destacado propagandista do movimentode saúde pública na Câmara Federal. As correntes políticas pró-saneamentorepresentavam os ideais reformistas das classes médias das grandes cidades,ou aliavam à defesa de tais ideais o espírito regionalista49 dos estados maisduramente atingidos pelas endemias rurais, e sem recursos para combatê-las.

Duas outras forças políticas e institucionais concorreram para ocrescimento do movimento sanitarista.

A primeira delas foi o tenentismo. Mais precisamente, os revolucionáriosda Coluna Prestes. Entre 1924 e 1927, a marcha da Coluna pelo interior dopaís contribuiu para a difusão da idéia de reforma social e política defendidapelos propagandistas do saneamento. Paradoxalmente, o movimentomanifestamente contrário ao governo federal favoreceu uma causa queencontrava amplo respaldo do aparelho de Estado. Isto se explica em partepelo fato dos rebeldes e dos sanitaristas terem compartilhado ideaisreformistas. De outra parte, assinale-se que os rebeldes deram ao podercentral uma justificativa para abafar as vozes dissidentes dentro de suaspróprias fileiras, e acelerar o processo de intervenção no campo da saúdepública50.

Um segundo fator, este de natureza institucional, foi a vinda da missãoRockefeller ao Brasil. A missão teve um papel importante na evolução domovimento sanitarista. Em 1917 iniciavam-se as atividades da Fundação noBrasil, com a criação de alguns postos de saúde. Carlos Chagas e Vital Brasilparticipam de uma comissão consultiva escolhida pela Rockefeller51. Asatividades ganharam impulso no Distrito Federal e no interior dos estados doRio de Janeiro e São Paulo, onde a Fundação juntou-se ao poder federal egovernos estaduais no combate à ancilostomíase e à malária. Em pouco tempo

49 Cf. observação de Francisco Iglésias, em Schwartzman, Bases doAutoritarismo ..., op. cit., p. 92.50 Em 1926, último ano do governo Bernardes, a Coluna penetrou em territórionordestino. O movimento das tropas federais e de seus aliados, bem como dosrevolucionários, prejudicou a operação dos serviços de saúde no interior.Vários postos de profilaxia foram requisitados pelas tropas federais e estaduaispara o tratamento exclusivo dos soldados. Ver A Tarde, 28 de junho de 1926,p. 1; 13 de julho de 1926, p. 1; 20 de agosto de 1926, p. 1; Góes Calmon,Mensagem do Governador à Assembléia Legislativa da Bahia, 1927, pp. 113-127, 178-208, passim. Um testemunho recente sobre a Coluna Prestes está emAspásia Camargo e Walder de Góes, Meio Século de Combate: Diálogo comCordeiro de Farias, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1981, pp. 71-153.51 Fundação Rockefeller, Annual Reports, 1916, pp. 71-72; 1918, pp. 92, 97-98,150-151.

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a organização norte-americana firmou acordos de cooperação com outrosestados do sul do Brasil, sob a supervisão do Departamento Nacional deSaúde Pública. Nas regiões mais pobres do país sucedia algo diverso. Oestado da Bahia, por exemplo, não pôde fazer uso imediato dos serviços daInternational Health Commission, por não dispor dos recursos financeiros que aentidade exigia à guisa de complementação. Apenas em 1920 abriu-se umprimeiro posto de profilaxia na periferia de Salvador. No ano seguinte, ogoverno Epitácio Pessoa assumiu a maior parte dos encargos financeiros emcomplementação aos recursos da Rockefeller. Os convênios na maioria dosestados do nordeste passaram a ser firmados diretamente pelo governofederal52.

Algumas observações devem ser feitas em relação aos dois fatoresapontados acima. Primeiramente, o tenentismo contribui para a intensificaçãodo movimento sanitário, não para seu início. Bem antes do fenômeno dotenentismo, a pregação de Belisário Pena, Artur Neiva, Carlos Chagas e outrosjá transformara o problema sanitário em questão política. Uma segundaobservação diz respeito às atividades da missão Rockefeller no Brasil. Dada aretórica nacionalista da época, como explicar a inexistência de uma correntepolítica de oposição à missão estrangeira? Uma explicação seria o papel de“sócia-menor” desempenhado pela Fundação junto ao Estado brasileiro, nacondução do movimento sanitário. Assim é que, contrariamente à suaexperiência em países como a Tailândia e as Filipinas, a missão Rockefellerchegou ao Brasil quando o aparelho estatal já se destacava em termos decomplexidade e capacidade de intervenção na sociedade, na economia e napolítica53. Os serviços de saúde, por sua vez, já revelavam avanço considerável– ainda que limitado aos grandes centros – sob o impulso governamental. Emuma palavra, as atividades da Fundação Rockefeller no Brasil não partiam dozero: a Fundação encontra no Brasil uma tradição de pesquisa bacteriológica euma tradição “higienista” – verdadeiras escolas formadas por Oswaldo Cruz, noRio, e por Emílio Ribas e Adolfo Lutz, em São Paulo54. A missão estrangeira

52 Ver “Relatório Apresentado (...) pelo Dr. Gonçalo Moniz, Diretor Geral deSaúde Pública”, em José Joaquim Seabra, Mensagem do GovernadorApresentada à Assembléia Legislativa, 1921, pp. 452-458, e Mensagem, 1922,pp. 39-48; Góes Calmon, Mensagem do Governador da Bahia Apresentada àAssembléia Legislativa, 1926, pp. 59-158, passim; A Tarde, 21 de março de1921.53 Sobre a experiência internacional da Missão Rockefeller, ver PeterDonaldson, “Foreign Intervention in Medical Education: A Case Study of theRockefeller Foundation’s Involvement in a Thai Medical School”, InternationalJournal of Health Services, vol. 6, n. 2, 1976, pp. 251-270; E. Richard Brown,“Public Health in Imperialism: Early Rockefeller Programs at Home andAbroad”, American Journal of Public Health, vol. 66, n. 9, 1976, pp. 897-903;Mary Brown Bullock, An American Transplant: The Rockefeller Foundation andthe Peking Union Medical College, Berkeley, University of Califórnia Press,1980.54 Veja-se a propósito a carta dirigida pelo Diretor Geral da International HealthCommission da Fundação Rockefeller ao Departamento de Estado norte-americano em 1915: “(...) devido à posição de liderança do Brasil no continente

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teve que se ajustar, a meu ver, àquelas tradições que precedem sua vinda aoBrasil.

Um movimento interrompido

Os anos vinte constituíram a fase de maior politização do movimentosanitário no Brasil. As políticas de saúde – que refletem esta fase de agitaçãopolítica em torno da questão do saneamento -, se em nenhum momentoconcretizaram os objetivos de um Belisário Pena ou de um Monteiro Lobato,representaram, não obstante, os primeiros passos naquela direção.Aparentemente, a ideologia da “redenção dos sertões” pegara. Entretanto, noperíodo pós-30 o movimento perdeu progressivamente o vigor dos últimos deza quinze anos da República Velha. As campanhas sanitárias de caráterlocalizado, como a realizada no Ceará, entre 1930 e 1945, para combater umaepidemia devastadora de malária, reforçam meu argumento55. Assinale-se quese tratavam de surtos epidêmicos; não se combatiam as doenças, como amalária, que grassavam em caráter endêmico em extensas áreas do interior dopaís.

O período varguista adotou um critério econômico de combate àsendemias. Por exemplo: o desenvolvimento da mineração no vale do Rio doceexigia o saneamento da área a ser explorada. Vargas determina então que umServiço Especial de Saúde Pública realize o saneamento da região, em 1942.No mesmo ano, o SESP desenvolve atividades de saneamento em áreas deimportância estratégica na Amazônia, dado “o interesse momentâneo que aguerra criara pela borracha”56.

Entretanto, ao observador de hoje pareceria que a Revolução de 30 e oEstado Novo traziam em seu bojo as melhores condições para o avanço domovimento sanitarista e para a concretização da meta de redenção dossertões. As antigas bases de sustentação do movimento sanitário durante aPrimeira República haviam permanecido depois da Revolução de Outubro. Éverdade que ocorrera uma perda para o movimento com a supressão dodebate político nacional a partir de 1937. Mas se os sanitaristas perdem por

e suas realizações importantes no campo da medicina preventiva, gostaríamosde iniciar esses estudos naquele país” (6 de outubro de 1915. Arquivos daFundação Rockefeller, grifo meu).55 O perigoso transmissor Anopheles gambiae penetrou no Brasil em 1930 e doRio Grande do Norte chegou ao vale do Jaguaribe, no Ceará, onde em 1938provocou 100 mil casos de malária e 14 mil mortes. A eliminação do gambiae,em 1945, envolveu a ação conjunta do governo federal, da missão Rockefellere do Serviço Especial de Grandes Endemias, uma entidade privada. Ver SimonSchwartzman, Formação da Comunidade ..., op. cit., pp. 239, 246, 249;Raymond B. Fostick, The Story of the Rockefeller Foundation, Nova York,Harper, 1952, pp. 72-79; Fundação Rockefeller, Relatório Anual, 1931 (ediçãoem francês), p. 65.56 Mario Wagner Vieira da Cunha. O Sistema Administrativo Brasileiro, 1930-1950, Rio de Janeiro, CBPE/INEP, MEC, 1963, pp. 96-98.

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este lado, poderiam ter ganho por outro; o aparelho estatal, já desde aRepública Velha um forte aliado, experimenta ainda maior concentração depoder político durante o período varguista57.

Por que, então, o esfacelamento do movimento sanitarista?

Já sugeri anteriormente que a relevância política do movimento estevenão nas políticas de saúde da década de 20, mas na força ideológica de suasbandeiras. Este aspecto, como se verá, fornece a chave para a compreensãodo esvaziamento do movimento sanitário a partir de 30.

Primeiramente, a burocratização teve um efeito paralisante sobre omovimento. A criação do Ministério da Educação e Saúde Pública, em 1930,retira da bandeira da reforma sanitária sua força ideológica e transforma-a –para usar expressão corrente nos dias de hoje – em projeto governamental. Aidéia-força de que falava Monteiro Lobato se rotiniza, os propagandistas dosaneamento do interior do país abandonam a atividade quase “missionária” dosprimeiros passos do movimento, para amoldarem-se ao role model deburocratas no Ministério recém-criado. Reduzida a força simbólica deconstrução da nacionalidade que empolgará o movimento sanitário durante aPrimeira República, ele se despolitiza, e seu potencial de transformação socialno campo permanecerá, desde então, inaproveitado.

Atente-se para um aparente paradoxo. A criação de um Ministério daSaúde Pública era antiga aspiração dos higienistas – o deputado AzevedoSodré bateu-se por sua criação durante longos anos. O ministério criado porVargas era de saúde e educação, mas não era esse o obstáculo para oprogresso do movimento sanitário. Na verdade, os sanitaristas não atentavampara o que hoje parece trivial: o movimento não precisava de ministério.Demandava a mobilização política da população do interior em torno dabandeira do saneamento. Esta mobilização exigia que Vargas estivessedeterminado a enfrentar as oligarquias agrárias e promover a elevação dospadrões de saúde e saneamento dentro das fazendas e nas sedes dosmunicípios. Estas eram as condições – que não se verificaram durante a era deVargas – para a erradicação das “grandes endemias dos campos”.

O período varguista desloca o projeto de construção da nacionalidadedos sertões para a fronteira, em manobra que poupa o novo regime doenfrentamento com as oligarquias do grande sertão. A “invenção da fronteiradurante a época de Vargas foi o segundo fator responsável pelo fim domovimento sanitarista.

Este ponto deve ser visto com cuidado. A literatura sobre o primeiroperíodo varguista (1930/45) salienta a adoção, pelo regime, de um projeto deinteriorização através da Marcha para o Oeste58. Com este título, o ensaio de

57 Ver a respeito da “nova centralização” ou da “ordem estatal centralizada”,Schwartzman, Bases do Autoritarismo ..., op. cit., pp. 109-113; RaimundoFaoro, Os Donos do Poder: Formação do Patronato Político Brasileiro, 4a. ed.,Porto Alegre, Globo, 1977, pp. 708-725.58 Veja-se Manoel Maurício de Albuquerque, Pequena História da FormaçãoSocial Brasileira, Rio Graal, 1981, p. 588; E. Belford Burns, A History of Brazil,Nova York, Columbia University Press, 1970, p. 353. Para uma análise

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Cassiano Ricardo, lançado em 1939, alimentou a interpretação, a meu verequivocada, de que Vargas teria encampado a ideologia de salvação dossertões.

A Marcha para Oeste de Cassiano Ricardo, como se sabe, idealizava obandeirante, a conquista da brasilidade através da ocupação da fronteira.Enquanto a marcha de Cassiano Ricardo glorificava a penetração e ocupaçãode novas terras a “oeste” de território já ocupado, a marcha dos revolucionáriosda Coluna e a “marcha” da missão Neiva-Pena denunciavam ao país aopressão política e as doenças endêmicas nos territórios já conquistados dointerior brasileiro.

O oeste da ideologia varguista simbolizava a fronteira política emexpansão, as áreas de defesa do território nacional59. Nas áreas de antigadominação coronelista, Vargas praticou uma política de acomodação, deconcessões e barganhas60. Essa política, em última análise, impediu o avançodo movimento sanitarista nas terras sob domínio oligárquico.

Paralelamente, o Estado varguista deslocou o centro de atuação daspolíticas públicas para as grandes cidades, onde a “militância sindical”, emexpansão desde os anos 1915-20, desafiava os interesses das classesempresariais. A produção de uma ideologia de controle e integração dostrabalhadores urbanos tornou-se prioritária no projeto político de Vargas. Deum lado, fizeram-se concessões ao trabalhador urbano através de políticaspúblicas que por vezes se chocavam com as pretensões do patronato. De outrolado, a legislação sindical pôs fim às possibilidades de organização autônomados trabalhadores que se manifestara durante a Primeira República61. Nocampo, os coronéis garantiam a Pax oligárquica e prescindiam dosmecanismos de cooptação do getulismo. O quadro que se delineara ao findar penetrante do ensaio de Cassiano Ricardo, ver Otávio G. Velho, CapitalismoAutoritário e Campesinato: Um Estudo Comparativo a partir da Fronteira emMovimento, São Paulo, Difel, 1976, esp, pp. 141-153. Otávio Velho está, a meuver, equivocado, entretanto, quando identifica a) fronteira e sertão em C.Ricardo, e b) conquista do oeste e confronto político com o coronelismo noEstado Novo (ver pp. 142, 145, 146). Mais adiante, o próprio autor põe ascoisas em seu lugar: o mito da fronteira, para Vargas, “representaria ao mesmotempo canalizar tensões para longe da ‘estrutura agrária’ estabelecida e dar-lheuma oportunidade de se transformar sem ser destruída”(p. 150, grifo meu).59 Daí resultou, por exemplo, a expedição de reconhecimento enviada porVargas à região da serra do Roncador, a chamada expedição Roncador-Xingu.60 Veja-se o caso baiano: desde 1931 o tenente e interventor Juraci Magalhães“barganhou sem falsos escrúpulos” com os coronéis e os carcomidos, ossegmentos alijados inicialmente do poder pela Revolução de 30 (ConsueloNovais Sampaio, “Crisis in the Brazilian Oligarchial System: A Case study onBahia, 1889-1937”, tese de doutoramento, The Johns Hopkins University, 1979,mimeo, p. 215).61 Ver o trabalho de Angela Maria de Castro Gomes, Burguesia e Trabalho:Política e Legislação social no Brasil, 1917-1937, Rio de Janeiro, Ed. Campus,1979, esp. pp. 307-312; Raymundo Faoro, Os Donos do Poder: formação doPatronato Político Brasileiro, op. cit.

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da Primeira República – a contestação política do operariado urbano, ainexistência de movimentos reivindicatórios no campo – contribuiu para oesvaziamento definitivo da ideologia de redenção dos sertões.

Em resumo: da ideologia à política pública, o centro nervoso daconstrução nacional durante o pós-trinta deslocou-se dos sertões para afronteira, a oeste, e para as grandes cidades, a leste e sul do país. Os novosrumos do processo de nation-building prenunciaram o esvaziamento político domovimento sanitarista. Finalmente, o movimento sanitarista inviabilizou-se sobo peso crescente da burocratização das atividades de saúde durante a vigênciado “Estado Administrativo” de Vargas.

( Recebido para publicação em outubro de 1984)

ABSTRACT

Sanitarian Thought in the First Republic:

An Ideology for the Construction of Nationality

The author discusses the articulation of sanitarian ideas (1910-1930) withBrazilian social thought from the same period. Propagandists for the publichealth movement labored to wage campaigns of almost missionary fervoragainst endemic disease in the backlands. As the same time, a stream well-known to the national social imagination encountered the very ballast ofnationality in the hinterlands and backwoods regions of Brazil. These twosystems of ideas contributed to the formation of a reformist current in theNational Congress and also to the formulation of a public health policy on thepart of the State machinery during the First Republic.

The author examines the social, political and institutional bases forsanitarian thinking and suggests hypotheses to account for the political deflationof the sanitarian movement in the period after the revolution of 1930.

RÉSUMÉ

La Pensée Sanitariste sous la Première

République: Une Idéologie de construction de

La Nationalité

Ce travail a trait à l’articulation entre la pensée sanitariste et la penséesociale brésilienne de l’époque entre 1910 et 1930. Ceux qui vantaient lesmérites du mouvement de santé publique luttaient en faveur de la réalisation decampagnes quasiment missionaires de combat contre les endémies dans lessertões. Par ailleurs, un courant assez connu de l’imagination socialebrésilienne voyait dans la campagne et les campagnards la base même de lanationalité. Ces deux systèmes d’idées contribuèrent à la formation d’uncourant reformiste au sein du Congrès National et à la formulation par l’appareil

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d’Etat d’une politique de santé publique au cours de la Première Republique.Cet article aborde aussi les bases sociales, politiques et institucionnelles de lapensée sanitariste et présente des hypothèses visant à expliquer la perte decontenu politique du mouvement sanitariste lors de la période qui suivit laRévolution de 1930.