o patrimÔnio artÍstico e as representaÇÕes discursivas e estÉticas do sagrado e do fantÁstico...

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Sandra C. A. Pelegrini

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  • Revista Brasileira de Histria das Religies Ano I, no. 1 Dossi Identidades Religiosas e Histria.

    O PATRIMNIO ARTSTICO E AS REPRESENTAES DISCURSIVAS E ESTTICAS DO SAGRADO E DO FANTSTICO EM OBRAS SACRAS1.

    Sandra C. A. Pelegrini2

    A reflexo ora apresentada integra uma pesquisa que se encontra em desenvolvimento e que est vinculada ao Ncleo de Estudos Estratgicos/UNICAMP e ao Centro de Estudos das Artes e do Patrimnio Cultural/ UEM, cujo principal objetivo volta-se para a apreenso dos sentidos do patrimnio e da arte sacra no Brasil e busca compreender os efeitos das construes discursivas apoiadas na negao das identidades culturais e religiosas, distintas das ocidentais. Para tanto, tomamos alguns exemplos de representaes do fantstico nas artes visuais na Europa e na Amrica espanhola e portuguesa.

    Essa abordagem, no entanto, exige uma breve incurso na trajetria das polticas de proteo do patrimnio cultural no Brasil, guiada por desde meados da dcada de 1930 por critrios que privilegiaram os bens histricos e aqueles vinculados s representaes artsticas. Esses quesitos, sem dvida, tenderam a abalizar o conjunto de bens que deveriam estar sob a assistncia do Estado. No entanto, antes mesmo da criao desse rgo Mrio de Andrade j conjeturava a possibilidade de ampliao de tais critrios. Do seu ponto de vista, eventos e manifestaes relacionadas cultura popular como as msicas, danas e objetos da cultura material no erudita tambm deveriam manter-se sob a guarda estatal3.

    Vale ressaltar que preservao dos bens culturais ainda uma preocupao muito recente no nosso pas. Na dcada de 1930, os primeiros rgos internacionais dedicados preservao do patrimnio circunscrevam a prpria acepo do termo cultura material considerada de excepcional valor histrico ou artstico representativa de uma poca ou de uma sociedade. Essa normativa esteve presente nas discusses sobre esse tema no Brasil e acabou influenciando as decises do Servio do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional (SPHAN) e a implementao do Decreto-lei no. 25/1937 que, por sua vez, se tornou um instrumento jurdico capital empregado pelo referido rgo, ento conduzido pelo ministro Gustavo Capanema, responsvel pela pasta da Educao e Sade Pblica (FUNARI e PELEGRINI, 2006, p. 45).

    Mas, a proteo do patrimnio histrico nacional foi alvo de debates que remontam redao da Constituio da Repblica Federativa do Brasil, de 1934. Nessa

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    Carta Magna ficava declarado o impedimento evaso de obras de arte do territrio nacional e a introduo do abrandamento do direito de propriedade nas cidades histricas mineiras, quando esta se revestisse de uma funo social. Ademais, essa

    [...] disposio, sancionada na Constituio de 1937, tornou-se decisiva para a proteo ao patrimnio brasileiro, na medida em que submeteu o instituto da propriedade privada ao interesse coletivo (sob a ingerncia do Estado) (FUNARI e PELEGRINI, 2006, p. 45).

    Desde ento, o rgo responsvel pela proteo do patrimnio cultural no Brasil tem se ocupado da fiscalizao e proteo dos bens culturais brasileiros inclusos na Lista do Patrimnio Mundial, bem como daqueles reconhecidos como bens representativos da cultura nacional. Desse modo, atualmente, o Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional (IPHAN) se dedica s aes de identificao, catalogao, restaurao, conservao, preservao, fiscalizao e difuso dos bens culturais em todo territrio brasileiro (FUNARI e PELEGRINI, 2006, p. 45).

    Apesar das incontveis reestruturaes administrativas que marcaram a atuao do SPHAN desde a sua criao no Governo Vargas, seus objetivos e mtodos de ao vm respeitando os compromissos internacionais subscritos pelos pases signatrios da Conveno do Patrimnio (1972), liderada pela Unesco. Mas, faz-se necessrio admitir que o reconhecimento do patrimnio cultural brasileiro oficial ficou circunscrito ao tombamento das obras de arte, de monumento e de conjuntos arquitetnicos considerados de alto valor histrico ou de antiguidade, na sua maioria de propriedade do Estado e da Igreja catlica.

    Esse direcionamento manifestou-se nas polticas pblicas preservacionistas mundiais e , em parte, explicada pelo rgo de proteo do patrimnio nacional e suas respectivas secretarias regionais como uma estratgia para evitar conflitos com entidades privadas e driblar os embates face ao tombamento de obras de arte ou conjuntos arquitetnicos. Do mesmo modo, argumentos dessa natureza serviram para justificar a proteo de alguns bens culturais em detrimento de outros (LEMOS, 2007, p. 2). Alm disso, no se pode esquecer que assim como Europa, as questes do patrimnio nacional ficaram a merc de disposies legais que se devotavam limitao dos direitos de propriedade privada, fundamentadas na tradio do Direito romano. Nos pases da Amrica Latina, ocorreu um processo semelhante. No por acaso, o

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    reconhecimento o patrimnio nacional foi delimitado por bens representativos da histria oficial e da memria das elites (FENELN, 1992).

    Com efeito, a definio do patrimnio histrico nacional, alm de privilegiar os bens associados aos segmentos dominantes da sociedade brasileira, ignorou a contribuio de outras etnias no processo de formao da identidade nacional, negligenciando no s as culturas consideradas inferiores, como as manifestaes arquitetnicas e artsticas dos imigrantes europeus que supostamente fariam parte do contingente branco e se instalaram em vrias partes do extenso territrio brasileiro. Alis, alm dos costumes e rituais prprias dessas etnias, os traos da sua arquitetura e suas formas de celebrar a vida tambm mereceriam a proteo do Estado.

    A despeito dessas celeumas, a visionria preocupao de Mario de Andrade com o patrimnio brasileiro o levou a adquirir, nas dcadas de 1940, casas bandeiristas encontradas volta de So Paulo para que fossem inscritas nos livros de tombo fugindo de comprometimentos com particulares, considerados problemticos do ponto de vista do ento Servio do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional (LEMOS, 2007, P. 2) 4.

    As polticas pblicas de preservao na atualidade tm se assentado na ampliao do prprio conceito de patrimnio cultural e, nesse sentido, tm paulatinamente criado novos instrumentos de proteo. No caso Brasileiro foram decisivos: a) o artigo 216, da Constituio Federal Brasileira ((1988) e b) a implementao do Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial, viabilizado pelo Decreto no. 3551/2000. Essa ampliao das frentes de tombamento do patrimnio nacional expressa no inventariamento e registro de bens imateriais notveis como celebraes e rituais religiosos e/ou populares, tornou imperativa a abertura de novos livros de tombo, a saber:

    [...] Livro de Registro dos Saberes e do Livro das Formas de Expresso, nos quais so inscritos os conhecimentos e modos de fazer enraizados no cotidiano das comunidades e armazenadas as manifestaes literrias, musicais, plsticas, cnicas e ldicas; e tambm, do Livro das Celebraes e do Livro dos Lugares, que se ocupam, respectivamente, dos rituais e festas que marcam a vivncia coletiva do trabalho, da religiosidade, do entretenimento e de outras prticas da vida social e dos espaos onde se concentram e reproduzem prticas culturais coletivas, como mercados, feiras, santurios, praas e entre outros (FUNARI e PELEGRINI, 2006, p. 54).

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    Claro que as recentes conquistas no mbito da preservao do patrimnio intangvel parecem irrevogveis, no entanto, as dificuldades enfrentadas para se alcanar o acautelamento dos bens ainda est longe de tornar-se uma questo resolvida.

    O prestgio adquirido pelo amplo leque de bens culturais materiais e imateriais relacionados aos saberes populares alargou a concepo de patrimnio, agora norteada pela acepo de diversidade cultural, tnica e religiosa do nosso pas. Nessa direo, foram fundamentais as contribuies de Alosio Magalhes a medida em que ele promoveu viagens e debates sobre a cultura e o patrimnio em distintas reas do pas, entre os anos setenta e oitenta do sculo XX.

    Em sntese, no decorrer da dcada de 1980, a proteo dos monumentos e edifcios arquitetnicos do Estado ou da Igreja catlica at ento priorizada, passou a reconhecer tambm outros espaos de convvio, modos de viver de distintas comunidades. A guisa de exemplo cabe lembrar o caso do Terreiro da Casa Branca do Engenho Velho ou Il Ax Iya Nass Ok, um dos mais antigos templos de culto religioso negro no Brasil.

    Trata-se de um exemplar caracterstico do modelo jeje-nag, reconhecido em 1982 como patrimnio da cidade de Salvador (Bahia), e depois, tombado como patrimnio nacional, registrado no Livro Arqueolgico, Etnogrfico e Paisagstico e no Livro Histrico, em agosto de 1986. [...] alm do patrimnio edificado, foram tombados os principais objetos e rvores sagradas, bem como a vegetao ritual do entorno, numa rea total de 6.800 m2 (FUNARI e PELEGRINI, 2006, p. 49-50).

    A relevncia dessa medida se justifica pelo fato de que representou um divisor de guas nas aes do IPHAN, haja vista que at 1982, os tombamentos efetuados por esse rgo voltaram-se apenas para os monumentos e edifcios de significativos sob a tica do culto e da religiosidade de tradio catlica romana.

    As bases histricas da colonizao e dos processos de evangelizao embasaram-se na inculcao de padres universalizantes e de modelos ocidentais de organizaes societrias. O etnocentrismo europeu estimulou uma ciso imaginria

    entre os povos desenvolvidos e os subdesenvolvidos, reforada pela noo de modernidade, considerada triunfo da razo e responsvel pelo aniquilamento de identidades e tradies distintas das prticas ocidentais, o colonialismo europeu, para legitimar suas formas de poder sob os povos colonizados, principalmente na Amrica, na sia e na frica, utilizou artifcios abalizados por construes discursivas que permitissem fabricar pea a pea a inferioridade de suas vtimas e de suas

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    respectivas culturas (PELEGRINI, 2007, 1-2). Tal feito foi possvel porque a evangelizao e a educao exerceram funes essenciais na negao das identidades culturais diferentes das europias (MARIN GONZLES, 2005, p. 85-86).

    A evangelizao no continente americano marca a primeira fase perodo da imposio do etnocentrismo europeu deflagrada entre os sculos XV e XVIII. Os indgenas, considerados pagos, durante a evangelizao, foram convertidos, nos termos da dominao ocidental, em selvagens que haviam de ser civilizados. Depois, a ritualizao do batismo seria sucedida a alfabetizao em castelhano ou em portugus, lnguas impostas pelos colonizadores.

    Signos da ira divina seriam impostos atravs das representaes artsticas religiosas de modo a convencer os novos fiis sobre as dimenses do poder de Deus. Aterrorizados, aparentemente, muitos se renderam ao Deus branco e continuaram secretamente cultuando seus mltiplos deuses, mais dceis e compreensivos do que os do catolicismo.

    Como destaca o historiador da arte Gombrich (1999), desde os primrdios da evangelizao, mas, especialmente, quando o Imperador Constantino, em 311 d.C., atribuiu Igreja Crist a envergadura do poder do Estado, a explorao do imaginrio atravs das artes visuais constituiu um instrumento didtico-pedaggico do clero. A utilizao de metforas visando a convencer os fiis a seguirem o caminho da retido esteve presente desde a arte romnica.

    Do sculo V ao XIII, o alto relevo dos frisos e as imagens religiosas foram, preferencialmente, incrustadas nas fachadas das baslicas ou no interior dos prticos reais. Nesse perodo, foram muito comuns entre as esculturas religiosas as representaes dos santos catlicos e das narrativas bblicas, principalmente, daquelas que versavam sobre o juzo final e o inferno.

    Chama especial ateno dos estudiosos a estaturia e os relevos que compem o conjunto arquitetnico do Monastrio de Leyre (sculo IX - X) localizado na Serra de Errando, ao leste do Reino de Navarra (50 km de Pamplona). Alm da imponncia monumental das edificaes e rigidez dos partidos arquitetnicos das igrejas e monastrios, as imagens que recebiam os fiis nos prticos de entrada (ou nos laterais) eram aterrorizadoras.

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    Foto: Monastrio de Leyre (IX-X) Reino de Navarra Pamplona Espanha Foto: Sandra Pelegrini.

    Foto: Prtico central do Monastrio de Leyre (IX-X) Reino de Navarra Pamplona Espanha. Foto: Sandra Pelegrini

    Entre os elementos compositivos mais comuns nos prticos observamos drages e guias, considerados inimigos de Deus e dos homens. Recebiam destaque tambm as serpentes como representao do mal, a lebre como expresso da luxuria por sua fertilidade, o javali e o cerdo como exemplos da devassido e da sujeira.

    Foto: Detalhe do Prtico central do Monastrio de Leyre (IX-X) Foto: Sandra Pelegrini

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    Alm dessas figuras, os capitis das colunas de sustentao dos edifcios no raro apresentavam figuras demonacas esquemas geomtricos, numa conjuno corprea de serpentes e guias.

    Mas essas imagens do sagrado e do profano, representado de maneira severa por meio da estaturia e dos auto-relevos, seriam assimiladas de modo mais intimidador e mais vigoroso do que as palavras do sermo dos pregadores cristos?

    Gombrich salienta que os poetas do final da Idade Mdia descreveram esse intenso efeito das esculturas em seus versos:

    Sou uma pobre e velha mulher, Muito ignorante, que nem sabe ler. Mostraram-me na igreja da minha terra Um Paraso com harpas pintado E o Inferno onde fervem almas danadas,

    Um enche-me de jbilo, o outro me aterra (...). (VILLON, apud GOMBRICH, 1999, p. 177).

    Franois Villon, autor desses versos, ao tomar para si a narrativa de sua me, expressou bem o alcance das alegorias imagticas adotadas pelo alto clero catlico para convencer os fiis a seguirem o caminho da integridade crist.

    A Catedral de Notre-Dame, construda por volta do ano 1.163, foi dedicada a Maria, me de Jesus. Inserida na lista do patrimnio mundial da humanidade, a construo conserva a maioria das suas caractersticas originais e localiza-se na praa Parvis, na pequena Ile de la Cite, em Paris - Frana, circundada pelas guas do Rio Sena.

    A monumentalidade da igreja j impressiona, contudo o aprimoramento das tcnicas construtivas do estilo gtico tornou possvel alcanar alturas inimaginveis e a insero de grandes vitrais 5. A verticalidade se transformou em mais um fator que fortalecia a pequenez humana diante da grandiosidade de Deus, expressa nas formas adquiridas pelo seu templo. O colorido dos vitrais criava uma aura mstica e pea a pea narram histrias da Bblia, do novo e do velho Testamento.

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    Fachada da Catedral de Notre-Dame (1.163) - Paris Frana Foto: Carto Posta s/ autoria

    trio principal da Catedral de Notre-Dame Paris Frana Foto: Carto Postal s/autoria

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    Ademais, curiosamente, nesse perodo, foram retomadas figuras enigmticas como as grgulas, ou seja, figuras quimricas e hbridas cujas origens remontam a mitologia grega.

    Grgulas no alto de uma das torres da Catedral de Notre-Dame (1.163) Paris Frana Foto: Carto Postal s/ autoria

    Somado a tudo isso, as Cenas do juzo final da Portada ocidental da referida Catedral, surgem repletas de smbolos que evidenciam o que se passaria no fim dos tempos.

    Foto: Cenas do Juzo final Prtico Ocidental da Catedral de Notre-Dame (1.163) - Paris Frana. Autor: Achim Bednorz

    O imaginrio fantstico incluso em outras inmeras igrejas ou santurios da Europa poderia ser tomado como exemplo desse tipo de representao da religiosidade, das relaes entre o sacro e o profano em outras partes do continente ou do planeta, em particular, aquelas que foram colonizados pelos europeus. Mas, interessa ao presente estudo observar atravs das imagens confeccionadas pelos prprios artesos indgenas

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    ou mestios como se deu o processo de negao das outras crenas e de apropriao de signos culturais regionais inseridos em meio aos portais, retbulos ou telas difundidas na Amrica Latina.

    Nessa linha argumentativa, caberia indagar a exuberncia da arte renascentista e da arte barroca europia poca da colonizao se harmonizou com as influncias das imagens fantsticas dos mestios e dos indgenas? A resposta a essa questo complexa, mas algumas pistas permitem afirmar que os mestres artesos apesar de obrigados a reproduzirem imagens de santos catlicos, acabavam sempre introduzindo nas fachadas das igrejas construdas por toda Amrica espanhola e portuguesa, mitos indgenas e africanos. Desse modo, observa-se uma troca ou intercmbio entre as imagens sacras da igreja catlica e a religiosidade de diversas origens, em santurios erguidos no Brasil e no Equador.

    Em comum esses dois estilos tinham a monumentalidade e interiores ricos em pinturas e talhas. Mas enquanto no Brasil, eram utilizadas a pedra sabo e a pedra lavrada nas igrejas barrocas de Minas Gerais e do litoral nordestino, em Quito, a pedra vulcnica era a mais abundante na regio. Por essa razo, ambas foram largamente utilizadas nas regies supracitadas.

    Centro Histrico de Quito - Equador Foto: Sandra Pelegrini

    Edificada entre XVI XVII, a Igreja de San Francisco apresenta um frontispcio maneirista com elementos do renascimento, influncias rabes e mestias. Essa igreja e o monastrio em homenagem ao mesmo santo constituem as construes mais antigas

    de Quito, cidade fundada em 1534.

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    Igreja San Francisco - XVI XVII Foto: Luiz Augusto Oliveira

    Destaca-se nesse conjunto arquitetnico a portada em pedra, o trio e sua escadaria renascentista. A igreja apresenta trs naves e seu interior possui altares com talhas barrocas.

    Detalhe do altar principal da Igreja San Francisco - XVI XVII Foto: Carto Postal s/autoria.

    A Igreja da Compaa de Jess (XVII XVIII) um dos templos barrocos mais significativos de Quito. Trata-se de um smbolo, por excelncia, do barroco americano. O frontispcio do edifcio observa-se uma mostra do talhado em pedra que tornou alguns artistas aborgines reconhecidos por seu cuidadoso trabalho. Nas imagens abaixo, evidenciam-se dezenas de anjos e querubins dispostos com maestria em pedra macia ou pedra vulcnica.

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    Fachada principal da Igreja da Compaa de Jess- XVII XVIII Foto: Luiz Augusto Oliveira

    Nota-se aqui uma mescla de estilos como o barroco de origem europia, o barroco americano e a influncia rabe na arte espanhola. Todavia, o interior da igreja surpreende pela talha dourada, expresso refinada da religiosidade espanhola, logo mestia da poca da Colnia.

    De qualquer forma, convm reconhecer que tanto as igrejas no Brasil, como nas de Quito, os templos construdos visaram a fortalecer o poder da Igreja catlica e representar a grandeza das coroas espanhola e portuguesa, em suas respectivas colnias.

    Mas, as imagens que os nativos veneravam evocam secretas relaes entre as entidades amerndias e africanas cultuadas por meio dos artifcios dos entalhadores. Certo que o barroco no Brasil adquiriu grande expressividade entre os sculos XVI e XVIII, persistindo at o incio do sculo XIX, quando a chegada da Misso Francesa (1816) passou a valorizar o estilo neoclssico. Nas igrejas de Pernambuco e, sobretudo, nas de Minas Gerais, o barroco brasileiro adquiriu caractersticas prprias, alternando na arquitetura distintos estilos, tais como o maneirista, o barroco e o rococ. Entretanto, pode-se notar que as edificaes do litoral nordestino mantiveram-se mais vinculadas aos modelos europeus, enquanto as edificadas em Minas Gerais tenderam a inovar na estrutura e/ou forma.

    A Igreja e o Convento de So Francisco constituem exemplos significativos dos empreendimentos dos padres franciscanos no Brasil, na primeira metade do sculo XVIII. Segundo Augusto C. S Telles (1980), a igreja foi erguida entre 1708 e 1723 e o convento foi concebido por volta de 1686 e foi concludo em 1752. Dado a riqueza dos entalhes da decorao interna da igreja e

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    da instalao de painis de azulejos portugueses nas paredes do ptio do convento, o conjuto foi finalizado apenas por volta de 1782.

    Nota-se na imagem abaixo que a fachada dessa Igreja apresenta duas torres laterais com traos simples e um fronto com caractersticas barrocas e influncias maneiristas (volume central rico em ornamentao e linhas curvilneas).

    Fachada da Igreja de So Francisco Salvador Bahia Foto: Carto Postal s/ autoria.

    A decorao interna dessa igreja rica em entalhes revestidos de finas camadas de ouro:

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    Detalhe de um dos altares laterais, do lado direito da Igreja de So Francisco Salvador Bahia. Foto: Luiz Augusto Oliveira.

    Alm do diferencial da planta que apresenta uma nave principal e duas laterais6, onde se distribuem pequenas capelas, a igreja apresenta colunas, tetos e paredes repletos de frisos, arcos e volutas adornadas com figuras de anjos, flores, folhas de videira e pssaros, como se pode observar no detalhe abaixo:

    Detalhe de uma das colunas de um dos altares laterais da Igreja de So Francisco Salvador Bahia. Foto: Sandra Pelegrini.

    Embora a decorao dessa igreja no se atenha as imagens do Juzo Final, as mensagens de cunho moral e as colunas esculpidas com as figuras de Jesus Cristo e/ou de So Francisco causam grande impacto, principalmente, dado ao realismo exacerbado que coloca em evidncia o sofrimento e a dor daqueles que parecem carregar o peso dos pecados do mundo sobre os prprios ombros.

    No teto do altar-mor da igreja destacam-se conjuntos pictricos circunscritos em hexgonos, octgonos e estrelas que justapostos remetem a passagens da vida de Nossa Senhora agrande homenageada na pintura executada pelo Frei Jernimo da Graa, entre 1733-1737.

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    Detalhe do teto sob o altar-mor da Igreja de So Francisco dedicado a Nossa Senhora Foto: Sandra Pelegrini.

    Chama a ateno, particularmente, o fato de que o semblante dos personagens que compe o conjunto apresenta certa mistura de traos tnicos, mas, sem dvida, predomina entre elas o perfil europeu.

    Nas igrejas barrocas de Minas Gerais so mais comuns representaes de Nossa Senhora como madonas mulatas cercadas de anjinhos igualmente pardos. Esse o caso do forro da nave central da Igreja de So Francisco de Assis - Ouro Preto:

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    Forro da nave central da Igreja de So Francisco de Assis - Ouro Preto Minas Gerais Foto: Carto postal s/ autoria

    Essa pintura a leo sobre madeira no teto da Igreja So Francisco de Assis, efetuada pelo pintor Manuel da Costa Atade - (1762 1837) exemplifica com clareza a assimilao de caractersticas tnicas na representao de Maria, bem como a utilizao do efeito de iluso criado por meio da projeo de elementos arquitetnicos (colunas, escadas, balces, degraus) que, por sua vez, corroboram para sugesto de movimento e impresso de ampliao de espao.

    Detalhe do forro da nave central da Igreja de So Francisco de Assis - Ouro Preto Minas Gerais - Foto: Luiz Augusto de Oliveira

    A despeito dos problemas e riscos que os estudos comparados sobre diferentes formas de produo artstica podem sugerir, no decorrer do desenvolvimento dessa pesquisa que ainda

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    envereda por caminhos incertos, constataram-se algumas evidncias. Entre as quais se destacam os efeitos da mistura das simbologias mestias impregnadas nas obras confeccionadas por seus artesos, bem como as tentativas de silenciar as imagens relacionadas s identidades culturais diversas das catlicas.

    H que se reconhecer, no entanto, que os cones e demais elementos supostamente unificadores parecem no ter conseguido aniquilar as crenas e os mitos fundadores das religiosidades de distintas etnias que permanecem inscritos das mais diversas maneiras nas formas de representao artstica. Alis, talvez, um dos maiores impasses a serem enfrentados e superados pela sociedade atual esteja cravado na necessidade de digerirmos as diferenas e fomentarmos a tolerncia pluralidade, cada vez mais, vida por explorar as fronteiras culturais, tnicas e religiosas.

    REFERNCIAS ALVES, Cleide. Convento de Igarassu folheado a ouro. Edio on line de Jornal do Comercio. Recife, 02 de outubro de 1997. Disponvel em site http://www2.uol.com.br/JC/0310/tu0210j.htm. Acesso em julho/2005. BAZIN, Germain. A arquitetura religiosa barroca no Brasil. Rio de Janeiro: Record, 1956, p. 122-123. CABANNE, Pierre. A Arte clssica e o barroco. Lisboa: Edies 70, 2001. CASTELO, Hernn Rodrguez .Panorama del Arte, Biblioteca Ecuatoriana de la Familia, No. 9, Ministerio de Educacin y Cultura del Ecuador, Editora Corporacin Editora Nacional, Casa de la Cultura Ecuatoriana, Editorial El Conejo. DANTAS, Ana Claudia de Miranda. As cidades coloniais americanas. Disponvel em http://www.vitruvius.com.br/arquitextos/arq000/esp241.asp Acesso em julho/2005. FENELON, D. Rua e outros. Muitas memrias outras histrias. So Paulo: Olho dgua, 2004. FUNARI, Pedro Paulo A. & FERREIRA, Lcio Menezes. Cultura material histrica e patrimnio. Primeira Verso. Campinas: IFCH/Unicamp, n. 120, abr. 2003, p. 13 20. FUNARI, Pedro Paulo e PELEGRINI, Sandra C. A. O Patrimnio Histrico e Cultural. Rio de Janeiro: Zahar, 2006. GOMBRICH, E. Histria da Arte. Lisboa: LTC, 1999. L'arte gotica. Milano: Konemann, 2000. LEMOS, Carlos. Originalidade, autenticidade, identidade, valor documental. Arquitextos, no. 82. Disponvel em site http://www.vitruvius.com.br/arquitextos/arq082/arq082_01.asp. Acesso em mar/2007. MARIN GONZLES, Jos. Globalizao, neoliberalismo, educao e diversidade cultural. In: PELEGRINI, Sandra C. A. e ZANIRATO, Silvia H. Narrativas da ps-modernidade na pesquisa histrica. Maring: EDUEM, 2005, PELEGRINI, Sandra. O patrimnio cultural e a materializao das memrias individuais e coletivas. Patrimnio e memria. FCLAs-UNESP, v. 3, n. 1, 2007. TIRAPELI, Percival (Org.) Arte sacra colonial. Barroco memria viva. So Paulo: Edunesp, 2001.

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    TELLES, Augusto C. S. Atlas dos monumentos histricos e artsticos do Brasil. MEC/SEAC/FENAME. 1980

    NOTAS

    1 Esse texto foi originalmente apresentado no Simpsio O patrimnio cultural brasileiro e as identidades

    religiosas: festas, rituais e tradies populares, realizado durante o I Encontro Nacional do GT Nacional de Histria da Anpuh Religies e Religiosidades (em maio de 2007, nas dependncias do CESUMAR, na cidade de Maring Pr).

    2 Docente da Universidade Estadual de Maring (UEM)- Paran Brasil, Doutora em Histria pela

    Universidade de So Paulo, Ps-Doutora em Patrimnio Cultural pelo NEE/ Universidade Estadual de Campinas, Coordenadora do Centro de Estudos das Artes e do Patrimnio Cultural (CEAPAC-UEM), Pesquisadora do Ncleo de Estudos Estratgicos (NEE/UNICAMP) e Consultora do CYTED (Madri-Espanha).

    3 Segundo alguns estudiosos da obra de Mrio de Andrade essa perspectiva teria vnculos com a admirao

    inspiradora que ele nutria em relao aos escritos do poeta suo Blaise Cendrars. Carlos Lemos tambm faz essa observao no artigo Originalidade, autenticidade, identidade, valor documental. Disponvel em site http://www.vitruvius.com.br/arquitextos/arq082/ Acesso em abril/2007

    4 Carlos Lemos chama a ateno para o fato de que a presena marcante do imigrante, do italiano em So

    Paulo, do alemo em Santa Catarina no foi considerada pelos rgos de preservao, nem tampouco que os seus descendentes fossem percebidos como brasileiros e sua produo (...) fosse digna de figurar no Patrimnio Histrico ou Artstico.

    5 Entre as caractersticas arquitetnicas marcantes da arquitetura gtica, destacamos: arco ogival (arco

    quebrado);arcos botantes (braos externos e perpendiculares superfcie do edifcio); abbada mais leves construdas com nervuras de pedra e enchimento de tijolo (GOMBRICH, 1999). 6 No Nordeste brasileiro, so raras as construes franciscanas com mais de uma nave e com decorao to

    esmerada. Alis, vale lembrar que at a sacristia foi decorada com dezoito painis a leo devotados a passagens da vida de So Francisco.