o papel dos leigos no mundo - capítulo de livro

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  • 7/25/2019 o Papel Dos Leigos No Mundo - Captulo de Livro

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    O PAPEL DOS LEIGOS NO MUNDO

    CLIFFORD, Catherine E. e GAILLARDETZ, Richard R.,As Chaves do Conclio

    Prior Velho, Paulinas: 2012, captulo onze, 154-162

    O divrcio entre a f que professam e o comportamento quotidiano de muitos deve ser contado

    entre os mais graves erros do nosso tempo. J no Antigo Testamento, os profetas denunciam este

    escndalo; no Novo, Cristo ameaou-o ainda mais veementemente com graves castigos. No se

    oponham, pois, infundadamente, as atividades profissionais e sociais, por um lado, e a vida

    religiosa, por outro. O cristo que descuida os seus deveres temporais, falta aos seus deveres para

    com o prximo e at para com o prprio Deus, e pe em risco a sua salvao eterna. A exemplo de

    Cristo que exerceu um mister de operrio, alegrem-se antes os cristos por poderem exercer todas

    as atividades terrenas, unindo numa sntese vital todos os seus esforos humanos, domsticos,

    profissionais, cientficos ou tcnicos com os valores religiosos, sob cuja elevada ordenao tudo se

    coordena para glria de Deus.

    As tarefas e atividades seculares competem como prprias, embora no exclusivamente, aos leigos.

    Por esta razo, sempre que, ss ou associados, atuam como cidados do mundo, no s devem

    respeitar as leis prprias de cada domnio, mas procuraro alcanar neles uma real competncia. ...

    No hesitem, quando for oportuno, em tomar novas iniciativas no momento oportuno e em lev-las

    ao seu cumprimento. ... Dos sacerdotes, esperem os leigos a luz e fora espiritual. Mas no pensem

    que os seus pastores esto sempre de tal modo preparados que tenham uma soluo pronta para

    cada problema, mesmo grave, que surja. No esse o papel do clero: cabe antes aos leigos assumir

    as suas responsabilidades sob a orientao da sabedoria crist e atendendo-se sempre autoridade

    do magistrio da Igreja.

    Muitas vezes, a sua viso crist da vida sugerir-lhes- determinada soluo numa dada situao.

    Contudo, acontece com bastante frequncia e legitimidade que alguns dos fiis, com no menos

    sinceridade, vero o problema deforma bastante diferente. Embora as solues propostas por uma

    e outra parte... sejam por muitos facilmente vinculadas mensagem evanglica, devem, no

    entanto, lembrar-se de que, em tais casos, a ningum permitido identificar a autoridade da Igreja

    exclusivamente com a prpria opinio. Procurem, antes, tentar guiar-se mutuamente, num dilogo

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    sincero, num esprito de caridade recproca e, antes de mais, com uma genuna preocupao pelo

    bem comum.(GS 43)

    Antecedentes

    J abordmos, em captulos anteriores, a antiga prioridade do Batismo cristo sobre todas as outras

    distines subsequentes a nvel do Corpo de Cristo. As exigncias do Batismo impeliram os cristos a aplicar

    a sua f e os seus valores sua vida quotidiana. Com o aparecimento da cristandade medieval, tal

    imperativo ficou um pouco enfraquecido, pois a maioria assumia que o mundo em que vivia j tinha sido

    cristianizado. No sculo XIX, a conscincia social da Igreja voltou a despertar, refletindo-se nas encclicas

    papais que desenvolveram a doutrina social catlica da poca. Contudo, essa tradio refletia uma

    abordagem mais dedutiva da doutrina moral catlica, em que o magistrio passava de princpios morais

    universais a juzos concretos, com muito pouca considerao pelos contextos particulares de tais juzos. A

    nica misso dos leigos era simplesmente alinhar os seus atos e atitudes com esses juzos.

    No incio do sculo XX, surgiram vrios movimentos inter-relacionados, que procuraram promover umpapel mais construtivo para os leigos na misso da Igreja. J falmos da Ao Catlica, mas devemos

    analisar os contributos de um sacerdote belga, Joseph Cardijn, que ajudou a fundar o movimento dos

    Jovens Operrios Cristos (JOC). Este movimento punha em destaque o local de trabalho como o cenrio

    prprio para os cristos realizarem a sua vocao batismal, infundindo valores evanglicos no mundo. Uma

    caraterstica deste movimento era um processo de reflexo comunitria em trs passos: ver, julgar, agir. Os

    seus membros eram animados a estar atentos ao contexto social, econmico e poltico da sua vida (ver), a

    avaliar esses contextos luz da sua f crist (julgar) e a desenvolver um plano de ao com base nessa

    anlise (agir). Iniciado na Blgica, o movimento recebeu o apoio oficial do papa Pio XI, em 1925. Os

    contributos de Cardijn que viria a ser feito cardeal em 1965 acabaram por influenciar o Conclio. A sua

    metodologia seria utilizada por outros movimentos catlicos, como o movimento da Famlia Crist. Com a

    abertura do Conclio, a influncia destes movimentos laicais prticos, acompanhados pelas teologias do

    laicado que estavam a ser desenvolvidas por telogos de renome, como Yves Congar e Marie-Dominique

    Chenu, garantiu que a assembleia conciliar colocasse os leigos na linha da frente das suas deliberaes.

    O Vaticano II e a participao dos leigos na misso da Igreja

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    Procurando uma teologia mais positiva e construtiva do laicado, o Conclio centrou-se no carter secular do

    mesmo, ou seja, na sua imerso total no mundo mediante o trabalho, a famlia e a cidadania. Em Lumengentium, oConclio escreveu:

    prpria e peculiar dos leigos a caraterstica secular. Com efeito, os membros da sagrada Ordem,

    ainda que algumas vezes possam tratar de assuntos seculares, exercendo mesmo uma profisso

    profana, em virtude da sua vocao especfica, destinam-se sobretudo e expressamente ao sagrado

    ministrio; por outro lado, os religiosos, no seu estado, do magnfico e privilegiado testemunho de

    que no se pode transfigurar o mundo e oferec-lo a Deus sem o esprito das bem-aventuranas.

    Por vocao prpria, compete aos leigos procurar o Reino de Deus tratando das realidades

    temporaise ordenando-as segundo Deus. Vivem no mundo, isto , em toda e qualquer ocupao e

    atividade terrena, e nas condies ordinrias da vida familiar e social, com as quais como que

    tecida a sua existncia. (LG 31 ; o itlico dos autores)

    Essa vocao secular explorada de modo semelhante no Decreto sobre o Apostolado dos Leigos (ver AA

    2,7). A ideia, porm, no era apresentar determinada definio rigorosa de laicado que o distinguisse do

    clero ou dos religiosos professos, mas antes descrever a situao tpica do leigo e, depois, explorar o

    significado teolgico dessa situao. Tampouco representava uma tentativa de excluir os leigos da

    participao na atividade e no ministrio da Igreja. Noutro lugar, o Conclio afirmou o direito e a obrigao

    dos cristos de aplicar os seus dons, tanto na Igreja como no mundo (AA 3; LG 37). Contudo, emGaudium

    et spes43 que encontramos a reflexo mais madura do Conclio sobre as obrigaes crists dos leigos, em

    virtude da sua imerso no mundo da atividade humana comum.

    Os documentos do Conclio so surpreendentemente livres do tipo de condenaes implacveis que muitos

    lderes catlicos conservadores tinham desejado. ainda mais surpreendente descobrir em Gaudium et

    spes43 a seguinte condenao: O divrcio entre a f que professam e o comportamento quotidiano de

    muitos deve ser contado entre os mais graves erros do nosso tempo. Aqui encontramos um franco

    reconhecimento de que um dos grandes escndalos cristos do mundo moderno que tantos cristos

    possam professar a sua f, embora participando em injustias manifestas. O Conclio realizou-se, afinal,

    apenas algumas dcadas depois da Segunda Guerra Mundial, em que pretensas naes crists tinham

    perpetrado gravssimas injustias contra populaes inteiras.

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    O Conclio exortou todos os cristos a integrar a sua f na vida quotidiana. Ao servio desta causa, invocou

    um tema tradicional de espiritualidade catlica: a imitao de Cristo. Este tema, porm, foi objeto de umainterpretao muito diferente, aconselhando os cristos a imitar Cristo, o operrio. Era, portanto, re-

    cordado aos catlicos, que Jesus passou a grande maioria da sua vida adulta, no a ensinar nem a fazer

    milagres, mas apenas a exercer uma profisso. A deduo era que os discpulos de Jesus deviam esperar

    encontrar oportunidades para aplicar a sua f crist no respetivo local de trabalho. A exemplo de Cristo

    que exerceu um mister de operrio, alegrem-se antes os cristos por poderem exercer todas as atividades

    terrenas, unindo numa sntese vital todos os seus esforos humanos, domsticos, profissionais, cientficos

    ou tcnicos com os valores religiosos, sob cuja elevada ordenao tudo se coordena para glria de Deus

    (GS 43). Este texto antecipa, em vrias dcadas, as profundas reflexes teolgicas do papa Joo Paulo II

    sobre a dignidade intrnseca, e at a santidade, do trabalho humano, emLaborem exercens.No local de

    trabalho, em casa, nos bairros e na esfera poltica, deviam ser os leigos a tomar a iniciativa de aplicar os

    valores cristos vida concreta. Com esta nova orientao, os lderes da Igreja afastavam-se, pela primeira

    vez desde h vrios sculos, de um paternalismo segundo o qual os catlicos se deviam limitar a seguir

    docilmente as diretivas da hierarquia.

    Para apreciar esta nova viso, basta recordar o ensinamento do papa Pio X, que escreveu, em 1906.

    Da resulta que essa Igreja , por essncia, uma sociedade desigual, isto , uma sociedade que

    abrange duas categorias de pessoas, os Pastores e o rebanho, os que ocupam uma posio nos

    diferentes graus da hierarquia e a multido dos fiis. E essas categorias so to distintas entre si,

    que s no corpo pastoral residem o direito e a autoridade necessrios para promover e conduzir

    todos os membros ao fim da sociedade;quanto multido, essa no tem outro dever seno o de se

    deixar conduzir e, como rebanho dcil, seguir os seus Pastores. (Vehementer Nos8; o itlico dos

    autores).

    Em dramtica contraposio, os Padres conciliares apelavam a uma forma mais adulta de participao na

    vida da Igreja. Eram os leigos que deviam assumir a liderana na aplicao do Evangelho s preocupaes

    prementes da idade moderna.

    No nmero 33 daGaudium et spes, oConclio fez uma apresentao subtil dos contributos nicos que a

    Igreja poderia dar ao mundo: Guardi do depsito da palavra divina, onde se vo buscar os princpios da

    ordem religiosa e moral, a Igreja, embora nem sempre tenha uma resposta j pronta para cada uma destas

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    perguntas, deseja, no entanto, juntar a luz da revelao competncia de todos os homens, para que assim

    receba luz o caminho recentemente empreendido pela humanidade (GS 33). Eis uma viso da Igreja acolaborar com toda a humanidade, confrontando-se com os mais importantes desafios da sua poca. A res-

    ponsabilidade de tal colaborao cabia a todos os cristos, incumbidos de proclamar o Reino de Deus por

    palavras e por obras. Nesta passagem, vemos o realismo e a modstia surpreendentes do Conclio na sua

    avaliao do contributo dado pela divina revelao. Sem se desviar da f na verdade de Cristo, o Conclio

    reconheceu que a divina revelao precisava de ser integrada numa forma mais complexa de reflexo

    humana, e que esta no poderia seguir a metodologia dedutiva que tinha dominado a doutrina catlica no

    sculo anterior. O que era necessrio era uma abordagem mais indutiva, em que a doutrina da Igreja teria

    de ser aplicada por quem estivesse mais familiarizado com os padres e os contornos da vida moderna, ou

    seja, pelos leigos. A integrao dos valores cristos na esfera familiar, social, poltica, cultural e econmica

    no se daria por decreto eclesistico, mas pelos cristos comuns, recorrendo s suas prprias

    competncias.

    Mas qual deveria ser, ento, o papel dos mestres tradicionais da f, ou seja, o Papa e os bispos? Escreveu o

    Conclio: Dos sacerdotes, esperem os leigos a luz e a fora espiritual. Mas no pensem que os seus

    pastores esto sempre de tal modo preparados que tenham uma soluo pronta para cada problema,

    mesmo grave, que surja. No esse o papel do clero (GS 43). Para o Conclio, a misso do clero, desde o

    magistrio normativo do Papa e dos bispos s atividades catequticas e pregao dos sacerdotes e

    diconos, era proclamar a viso moral do Evangelho, tal como fora perpetuada na tradio viva da Igreja.

    Era particular dever de todos os batizados adotar essa viso moral, integr-la na sua vida quotidiana e

    aplic-la s complexas questes da sua poca. Este processo de integrao e aplicao ultrapassava o

    mbito do clero; era o domnio de um juzo prudencial concreto.

    Toms de Aquino sublinhou a importncia da virtude da prudncia na vida moral. Seguindo Aristteles,

    afirmava ele que a prudncia era um exerccio de razo prtica e estava orientada para a busca do bem,

    presente em qualquer circunstncia1. Por outras palavras, a prudncia aquela virtude que nos leva a

    passar do princpio moral ao concreta, mas tendo em conta todas as circunstncias relevantes. O

    exerccio da prudncia requeria que se tivesse um slido conhecimento dos princpios morais pertinentes,

    mas tambm requeria que se atendesse aos detalhes concretos de cada situao. Esses detalhes, ao

    1Summa TheologiaeII-II, q.47, a. 2. Para um estudo detalhado da virtude da prudncia na tica tomista, verDANIEL MARK NELSON,The

    Priority of Prudence(University Park: University of Pennsylvania Press, 1991).

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    contrrio dos princpios em si, so fluidos e mutantes, e apreend-los necessariamente mais experimental

    do que o conhecimento que se tem de determinado princpio. Isso significa que a certeza de algum acercada retido ou do erro dos prprios juzos diminui na medida em que os juzos dependem de dados

    empricos contingentes. Na medida em que essa contingncia limita a nossa certeza, deveria haver maior

    disponibilidade para tolerar o desacordo.

    Os bispos conciliares revelaram um realismo surpreendente acerca da complexidade do reino prudencial,

    reconhecendo que, muitas vezes, a sua viso crist da vida sugerir-lhes- determinada soluo numa dada

    situao. Contudo, acontece com bastante frequncia e legitimidade que alguns dos fiis, com no

    menos sinceridade, vero o problema de forma bastante diferente. Como deve este desacordo ser

    adjudicado? Procurem, antes, tentar guiar-se mutuamente, num dilogo sincero, num esprito de caridade

    recproca e, antes de mais, com uma genuna preocupao pelo bem comum (GS 43). Esta passagem

    reflete uma sofisticada apreenso tanto da necessidade como da complexidade da participao crist no

    domnio pblico.

    Nem todos apreciaram o significado prtico do reconhecimento do lugar do juzo prudencial por parte do

    Conclio. Implcito ao ensinamento do Conclio est o reconhecimento de que os catlicos que aceitam toda

    a doutrina moral da Igreja podem discordar legitimamente uns dos outros no que se refere imple-

    mentao concreta dessa doutrina na sociedade. Por exemplo, a doutrina social da Igreja chama os

    catlicos a fazerem uma opo preferencial pelos pobres, a preocuparem-se de modo especial pelos pobres

    e pelos fracos do mundo. Nenhum catlico consciencioso est livre de ignorar a misria dos pobres como

    problema dos outros. Contudo, mesmo que dois catlicos concordem que tm uma obrigao religiosa e

    moral para com os pobres, podem discordar legitimamente sobre as polticas particulares que melhor

    aliviaro a pobreza. De igual modo, dois catlicos poderiam discordar sobre se a aplicao da doutrina

    moral catlica requer um remdio legal.

    Finalmente, h que referir o apelo do Conclio ao dilogo em casos de desacordo. Vivemos numa poca em

    que o discurso civil est a ser rapidamente substitudo pela poltica da demonizao. A televiso por cabo e

    a rdio esto povoadas de cabeas falantes cuja primordial estratgia retrica atribuir m vontade

    queles de quem se discorda. A motivao simples. Se tu discordas de mim, e eu te posso transformar

    numa pessoa m ou ignorante, j no terei de tomar as tuas opinies a srio. Infelizmente, esta estratgia

    retrica, to pouco caridosa, muitas vezes reproduzida na Igreja. Por conseguinte, vale a pena recordar o

    sbio conselho do Conclio, segundo o qual, em caso de desacordo, os cristos se devem entregar a um

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    humilde dilogo, determinados a colocar o bem comum acima dos seus prprios interesses particulares.

    Mais adiante, na mesma Constituio pastoral, o Conclio escreve: Tal misso exige, em primeiro lugar,que, reconhecendo toda a legtima diversidade, promovamos na prpria Igreja a mtua estima, respeito e

    concrdia, em ordem a estabelecer entre todos os que formam o Povo de Deus, pastores ou fiis, um

    dilogo cada vez mais fecundo (GS 92).

    Embora o Conclio fosse incapaz de apresentar uma teologia do laicado completamente desenvolvida e

    consistente, os seus contributos colocaram os fundamentos de uma nova era para a Igreja. Os leigos j no

    tinham de ser relegados para uma obedincia servil s ordens do clero. Agora, os leigos deviam envolver o

    mundo com esprito de iniciativa, coragem e convico. Na poca ps-conciliar testemunhmos uma nfase

    renovada dada prioridade do Batismo cristo e s exigncias da misso crist, chamando cada discpulo

    batizado de Jesus a ser servo do Reino de Deus.