o papel da indústria de base no capitalismo e no socialismo

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O Papel da Indústria de Base no Capitalismo e no Socialismo. Nilson Araújo de Souza 1 Procuramos desvendar neste ensaio, com base nas formulações de Marx, o significado estratégico da indústria de base na construção da economia capitalista, da economia independente e da economia socialista. O papel da indústria básica na economia capitalista Se entendermos por indústria básica ou indústria pesada o ramo da produção industrial que produz meios de produção, isto é, máquinas, equipamentos, bens intermediários e insumos básicos, é possível afirmar que ela tem tido um papel fundamental na economia desde o nascimento da economia capitalista. Karl Marx, em sua monumental obra sobre as leis econômicas do capitalismo (O capital), constatou que essa formação histórica só se consolidou quando criou suas próprias forças produtivas. Na sua fase inicial, no período manufatureiro, apropriou-se das forças produtivas desenvolvidas no período anterior; nessa fase, a geração de excedente econômico predominante se dava sob a forma de mais-valor absoluto, que implicava no aumento da jornada de trabalho. No entanto, com a I Revolução Industrial, o capitalismo, ao desenvolver a maquinaria e a grande indústria, criou suas próprias forças produtivas; a partir daí, passou a preponderar a forma relativa de extração de mais-valor, baseada no aumento da produtividade do trabalho nos setores que, direta ou indiretamente, produzem as mercadorias consumidas pelo trabalhador 2 . Foi o fato de colocar à disposição do trabalhador dentro da fábrica, não mais uma mera ferramenta de trabalho, mas uma máquina – composta de um motor, um mecanismo de transmissão e uma máquina-ferramenta – que permitiu uma verdadeira revolução nas forças produtivas e garantiu a vigência histórica do capitalismo. Segundo Marx, a adoção das máquinas-ferramentas, tornada possível graças ao advento da máquina a vapor, propiciou o 1 Doutor em Economia pela Universidad Nacional Autónoma de México – UNAM, com pós-doutoramento em Economia pela USP, professor-pesquisador do Programa de Mestrado da Universidade Ibirapuera e do Centro Universitário Belas Artes, autor de vários livros sobre economia política, economia internacional e economia brasileira. Seus mais recentes livros são: Ascensão e queda do império americano e A longa agonia da dependência – economia brasileira contemporânea (JK/FH) 2 Marx, Karl. El capital; crítica de la economia política. Tomo I, vol. 2. México, Siglo XXI, 1977, cap. X- XIII.

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Nilson Araújo de Souza

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  • O Papel da Indstria de Base no Capitalismo e no Socialismo.

    Nilson Arajo de Souza1 Procuramos desvendar neste ensaio, com base nas formulaes de Marx, o significado estratgico da indstria de base na construo da economia capitalista, da economia independente e da economia socialista.

    O papel da indstria bsica na economia capitalista Se entendermos por indstria bsica ou indstria pesada o ramo da produo industrial que produz meios de produo, isto , mquinas, equipamentos, bens intermedirios e insumos bsicos, possvel afirmar que ela tem tido um papel fundamental na economia desde o nascimento da economia capitalista. Karl Marx, em sua monumental obra sobre as leis econmicas do capitalismo (O capital), constatou que essa formao histrica s se consolidou quando criou suas prprias foras produtivas. Na sua fase inicial, no perodo manufatureiro, apropriou-se das foras produtivas desenvolvidas no perodo anterior; nessa fase, a gerao de excedente econmico predominante se dava sob a forma de mais-valor absoluto, que implicava no aumento da jornada de trabalho. No entanto, com a I Revoluo Industrial, o capitalismo, ao desenvolver a maquinaria e a grande indstria, criou suas prprias foras produtivas; a partir da, passou a preponderar a forma relativa de extrao de mais-valor, baseada no aumento da produtividade do trabalho nos setores que, direta ou indiretamente, produzem as mercadorias consumidas pelo trabalhador2. Foi o fato de colocar disposio do trabalhador dentro da fbrica, no mais uma mera ferramenta de trabalho, mas uma mquina composta de um motor, um mecanismo de transmisso e uma mquina-ferramenta que permitiu uma verdadeira revoluo nas foras produtivas e garantiu a vigncia histrica do capitalismo. Segundo Marx, a adoo das mquinas-ferramentas, tornada possvel graas ao advento da mquina a vapor, propiciou o

    1 Doutor em Economia pela Universidad Nacional Autnoma de Mxico UNAM, com ps-doutoramento em Economia pela USP, professor-pesquisador do Programa de Mestrado da Universidade Ibirapuera e do Centro Universitrio Belas Artes, autor de vrios livros sobre economia poltica, economia internacional e economia brasileira. Seus mais recentes livros so: Ascenso e queda do imprio americano e A longa agonia da dependncia economia brasileira contempornea (JK/FH) 2 Marx, Karl. El capital; crtica de la economia poltica. Tomo I, vol. 2. Mxico, Siglo XXI, 1977, cap. X-XIII.

  • aumento de 40 vezes na produtividade do trabalho na Inglaterra durante a Revoluo Industrial. Mas esse fato auspicioso, isto , a revoluo das foras produtivas, que, numa economia planejada e voltada ao bem-estar do ser humano, poderia promover um desenvolvimento ininterrupto e auto-sustentado da economia e uma vida cada vez melhor para a populao, transforma-se no capitalismo em motivo de crise, pobreza, desemprego, fome e misria. Por vrios motivos: Em primeiro lugar, o processo de mecanizao, ao aumentar a produtividade do trabalho nos setores que produzem bens consumidos pelo trabalhador, diminui o valor desses bens; em conseqncia, desvaloriza a fora de trabalho, aumentando o mais-valor relativo e acumulando cada vez mais riqueza nas mos do capitalista. Segundo, esse mesmo processo, ao aumentar o gasto em meios de produo proporcionalmente mais rpido do que o gasto com fora de trabalho, fazendo aumentar o que Marx chamava de composio orgnica do capital, realiza a substituio crescente do homem pela mquina; em conseqncia, engendra desemprego e pobreza entre os trabalhadores. Como dizia Marx, o processo de acumulao capitalista gera riqueza num plo o dos capitalistas e pobreza no outro o dos trabalhadores. O aumento da riqueza nas mos dos capitalistas enseja o aumento da capacidade produtiva e, portanto, da produo; o aumento da pobreza entre os trabalhadores limita as possibilidades de crescimento do consumo. Dessa contradio entre produo e consumo, nascem as crises peridicas da economia capitalista. O desenvolvimento desproporcionado do setor de meios de produo em relao ao de meios de consumo tambm fator de crise. O economista russo de fins do sculo XIX e comeo do XX, Tugan-Baranovski, percebeu que o processo se substituio do homem pela mquina no processo produtivo se faz acompanhar de um crescimento mais rpido do setor de meios de produo do que do de meios de consumo. Seu problema foi acreditar que isso poderia se dar de forma indefinida sem acarretar crises. Disse ele:

    a ampliao da produo, ou seja, do consumo produtivo de meios de produo, ocupa o lugar do consumo humano, e tudo transcorre to sem frices como se no fosse a economia que serve o homem, seno o homem quem serve economia3.

    E segue:

    Em conseqncia, a acumulao de capital pode estar acompanhada de um retrocesso absoluto do consumo social. Um descenso relativo do consumo social em relao com a soma total do produto social , em todo caso, inevitvel4.

    3 Tugan-Baranovski, Michael Von. Fundamentos tericos del marxismo. In Colletti, Lucio. El marxismo y el derrube del capitalismo. Mxico, Siglo XXI, 1978, p. 255-6. 4 Ibid., p. 271.

  • Tugan apreendeu bem a idia de Marx de que h uma tendncia no capitalismo a que a produo de meios de produo cresa mais rapidamente do que a de meios de consumo. No entanto, por desconsiderar que quem produz valor e, por conseguinte, o lucro para o capitalista o trabalhador e que a produo, em ltima instncia, se destina ao consumo final, isto , ao consumo humano, acreditava que esse processo de substituio da produo final pela produo intermediria (meios de produo) poderia ocorrer sem crises. Quem chamou a ateno para esse fato foi um contemporneo de Tugan, Vladimir I. Lenin. Demonstrou ele:

    Porm seria falso conceber esta independncia no sentido de uma separao completa entre o consumo produtivo e o consumo individual: o primeiro pode e deve aumentar mais rapidamente que o segundo (a isto se limita, em realidade, a tal independncia), porm evidente que em ltima instncia o consumo produtivo no pode desligar-se nunca do consumo individual5.

    Portanto, segundo Lenin, esse crescimento acelerado do setor de meios de produo, numa economia capitalista, pode conduzir desproporo intersetorial, que um importante fator de crise. E, para agravar, na medida que o gasto com meios de produo cresce na frente do gasto com fora de trabalho e, como quem produz mais-valor o trabalho, a massa de mais-valor por unidade de capital tende a diminuir; isto , o processo de acumulao de capital fundado no aumento crescente da mecanizao, ao mesmo tempo que provoca o aumento do mais-valor por unidade de trabalho, engendra a reduo do mais-valor por unidade de capital. E assim cai a taxa mdia de lucro, fazendo explodir as demais contradies da economia capitalista, detonando a crise e engendrando mais desemprego e misria6.

    O papel da indstria bsica no desenvolvimento endgeno Vimos que a constituio do setor que produz meios de produo foi o fator decisivo para a consolidao do sistema capitalista. Mas seu crescimento desproporcional um importante fator de crise. Examinando a problemtica das economias de industrializao retardatria, como as da Amrica Latina, o economista Joo Manuel Cardoso de Mello chegou a concluses semelhantes. Diz ele:

    Com o nascimento das economias capitalistas exportadoras, j o dissemos, o modo de produo capitalista se torna dominante na Amrica Latina. Porm, o fato decisivo que no se constituem, simultaneamente, foras produtivas capitalistas, o que somente foi possvel porque a produo capitalista era exportada. Ou seja, a reproduo ampliada do capital no est assegurada endogenamente, isto , de dentro das economias latino-americanas, face ausncia das bases materiais de produo de bens de capital e outros meios de produo. Abre-se, portanto, um perodo de transio para o capitalismo7.

    5 Lenin, V. I. El desarrollo del capitalismo en Rusia. Cap. 1. In Marx, K. El capital. Bogot, Fondo de Cultura Econmica, 1976, Tomo II. P. 513. 6 Souza, Nilson Arajo. Teoria marxista das crises. So Paulo, Global, 1992. 7 Mello, Joo Manuel Cardoso de. O capitalismo tardio. 8 ed. So Paulo, Brasiliense, 1991, p. 96.

  • E segue:

    Pensamos em constituio de foras produtivas capitalistas em termos de processo de criao das bases materiais do capitalismo. Quer dizer, em termos da constituio de um departamento de bens de produo capaz de permitir a autodeterminao do capital, vale dizer, de libertar a acumulao de quaisquer barreiras decorrentes da fragilidade da estrutura tcnica do capital8.

    Assim, seguindo as pegadas de Marx, Cardoso de Mello afirma que, antes da constituio interna do departamento de bens de produo, as economias de industrializao retardatria ainda no haviam criado as foras produtivas e, por conseguinte, as bases materiais do capitalismo. Da ele retira a concluso de que no eram ainda economias especificamente capitalistas, mas apenas economias de transio para o capitalismo. A constituio desse setor da economia , na sua viso, o fator decisivo para o desenvolvimento do capitalismo. Aqui cabe um ligeiro reparo. O que define a natureza do modo de produo so as relaes de produo. Assim, a partir de quando as relaes predominantes so capitalistas, o modo de produo capitalista. Portanto, em nossas economias de industrializao retardatria, mesmo antes da instalao interna do setor de meios de produo, poderia predominar o capitalismo. No entanto, para seguir a indicao de Marx, esse sistema s se consolidaria quando criasse suas prprias foras produtivas, isto , quando constitusse internamente o setor de meios de produo. No entanto, e nisso tem razo Cardoso de Mello, na medida que a internalizao do setor I permite a autodeterminao do capital, ou seja, que, no fundamental, o ciclo do capital se complete internamente, estar garantindo o desenvolvimento endgeno da economia. Ao examinar a industrializao retardatria das economias latino-americanas sob o prisma da teoria da dependncia, o prof. Theotnio dos Santos considerou que uma das principais manifestaes da dependncia externa que caracteriza essas economias a ausncia de um setor interno de meios de produo, o qual monopolizado pelas transnacionais dos pases centrais. Diz ele:

    Los pases subdesarrollados aparecen para estas empresas como un mercado importante de capitales a travs de la instalacin de nuevas industrias que consumen, en general, maquinaria e materia prima elaborada importadas de los pases desarrollados. El progresivo control de estas oportunidades de inversin en los pases subdesarrollados permite a los monopolios ganar una gran expansin y constituirse como empresas multinacionales y conglomerados en la bsqueda de constantes fuentes de nuevas inversiones9.

    Pouco antes, em meados dos anos 60, em sua clebre apologia da dependncia, o ento socilogo Fernando Henrique Cardoso havia pontificado que, entre as vantagens da dependncia, inclua-se a sada de excedentes relativamente reduzida (para garantir os

    8 Ibid., p. 97-8. 9 Santos, Theotnio dos. Socialismo o fascismo: dilema latinoamericano. Santiago, Prensa Latinoamericana, 1969, p. 20.

  • reinvestimentos, especialmente no setor de bens de capital)10. Ou seja, procurava nos convencer que as transnacionais instaladas nos pases dependentes remetiam pouco lucro para suas matrizes a fim de garantir o reinvestimento na produo de bens de capital desses pases. J na poca, Fernando Henrique no passava de um vendedor de iluses. Em resposta a ele, escrevemos em nosso livro A longa agonia da dependncia:

    E sobre o reinvestimento no setor de bens de capital dos pases dependentes, no passa de mais uma fantasia fernandista. Um dos principais instrumentos de dominao do centro imperialista consiste precisamente em manter na matriz a produo desses bens, nem s porque isso permite manter o controle tecnolgico, mas tambm porque sua exportao enseja elevados ganhos, verdadeiros super lucros, no comrcio internacional. O Brasil s conseguiu desenvolver a produo desses bens internamente quando, atravs do II PND, o governo financiou e subsidiou a empresa nacional voltada para esse setor. E, durante o governo de Fernando Henrique, que abriu as portas para a importao, esse setor foi, em grande parte, sucateado11.

    Se a ausncia de um setor de meios de produo interno uma das principais caractersticas de uma economia dependente, pode-se afirmar, ao inverso, como o fizemos em nosso livro citado, que o seu desenvolvimento interno , pois, um dos principais indicadores de ruptura com a dependncia externa12. Ou melhor, a constituio de um setor produtor de meios de produo no interior de um pas um elemento decisivo para o desenvolvimento de uma economia independente. Essa uma condio necessria para a conquista da independncia econmica de um Pas, mas no suficiente. Ou seja, impossvel uma economia independente que dependa, no fundamental, da importao de meios de produo. Mas no basta internalizar essa produo para que a economia se torne independente. Se esse setor for implantado por empresas estrangeiras ou financiado com recursos externos, a dependncia reaparece sob novas formas: controle externo sobre o processo produtivo interno ou dependncia financeira.

    O desenvolvimento da indstria bsica no Brasil O caso brasileiro bastante ilustrativo a esse respeito. O processo de industrializao brasileiro, deflagrado pela Revoluo de 30, liderada por Getlio Vargas, comeou pela indstria leve, formada basicamente pela produo de bens de consumo assalariado, o chamado setor IIa da economia. Entretanto, conforme analisamos no livro citado, 10 Cardoso, Fernando Henrique & Faletto, Enzo. Dependncia e desenvolvimento na Amrica Latina. 3.ed. Rio de Janeiro, Zahar, 1975, p. 127. 11 Souza, Nilson Arajo de. A longa agonia da dependncia economia brasileira contempornea (JK./FH). So Paulo, Alfa-Omega, 2004, p. 25-6. 12 Ibid., p. 255,

  • Getlio Vargas, consciente da necessidade do desenvolvimento interno do setor de meios de produo dentro de uma estratgia de independncia nacional, adotou, em seu segundo governo (1951-54), uma srie de medidas visando sua produo13.

    Sobre isso, disseram Francisco de Oliveira e Frederico Mazzuchelli:

    deste ponto de vista que se entende o bloco de atividades produtivas, que se materializaram sob a forma de empreendimentos estatais, consubstanciados na criao da Petrobrs, na entrada em operao da Companhia Siderrgica Nacional, na tentativa de pr em funcionamento a Companhia Nacional de lcalis, na j modesta performance da Companhia Vale do Rio Doce e no projeto da Eletrobrs, enviado ao Congresso Nacional e apenas aprovado dez anos aps14.

    Ao que acrescentamos ns:

    Vale citar tambm a Fbrica Nacional de Motores (FNM). Trata-se, como se v, de iniciativas destinadas basicamente produo de insumos bsicos e bens intermedirios, mas, atravs da Instruo 70 da Superintendncia da Moeda e do Crdito (SUMOC) e da reforma cambial de 1953, buscou encarecer os bens de capital importados a fim de estimular sua produo interna. Para fomentar o desenvolvimento do setor I, Getlio criou o Fundo de Reaparelhamento Econmico e o Banco Nacional de Desenvolvimento Econmico (BNDE)15.

    Dez anos depois, o herdeiro poltico de Vargas, Joo Goulart, decidiu retomar seu programa econmico. Atravs da Instruo 242, da SUMOC, acabou com os privilgios da Instruo 113, que permitia ao capital estrangeiro internar no Pas mquinas obsoletas sem cobertura cambial, e proibiu o registro de financiamento estrangeiro para a importao de mquinas e equipamentos que a indstria nacional pudesse fabricar. O objetivo era fomentar a indstria nacional de bens de capital. Alm disso, instalou a Eletrobrs para incorporar todo o setor eltrico. Joo Goulart, no entanto, no teve tempo de implementar seu programa econmico, corporificado nas Reformas de Base. Depois de sua queda, a ditadura que se instaurou no Pas deu asas a um processo que se iniciara na segunda metade dos anos 50, com Juscelino Kubitschek, e que estimulava o desenvolvimento da indstria de bens de consumo capitalista (os chamados durveis, setor IIb) sob controle estrangeiro. Esse setor passou a ser o carro-chefe da indstria brasileira, crescendo de forma desproporcionada em relao aos setores I e IIa e, dessa forma, estrangulando o crescimento destes. Esse novo padro de reproduo do capital gerou, nas palavras de Oliveira e Mazzuchelli, uma contradio bsica:

    O padro de acumulao baseado na predominncia do Departamento III [isto , o setor IIb] entrou em agonia (...); entrou em agonia bloqueado pela intensidade dos requerimentos do Departamento I que a prpria expanso estimulou. E esse esgotamento se d principalmente pela industrializao orientada para o mercado interno e o controle externo da propriedade do capital do Departamento

    13 Ibid., loc. Cit. 14 Oliveira, Francisco de & Mazzuchelli, Frederico. Padres de acumulao, oligoplios e Estado no Brasil (1950-1976). In: Oliveira, Francisco de. A economia da dependncia imperfeita. Rio de Janeiro, Graal, 1977, p. 76. 15 Souza, op. cit., p. 54-5.

  • III, que requeria o contnuo, e em elevao, retorno da frao dos lucros circulao internacional do capital16.

    Quando o General Geisel assumiu o governo em 1974, o Pas estava mergulhado em profunda crise de suas contas externas e em processo de desacelerao econmica. A economia mundial entrara em crise, originada nos EUA, e as grandes potncias, sobretudo a estadunidense, descarregaram seus prejuzos nos ombros dos pases que, como o Brasil, vinham desenvolvendo uma economia dependente. Elevaram suas taxas de juros, as remessas de lucros das sucursais para as matrizes das transnacionais e os preos dos bens de capital que exportavam, alm de rebaixarem os preos dos produtos primrios que importavam dos pases subdesenvolvidos. Com base no diagnstico de que a origem da crise era a dependncia externa gerada pela necessidade de importao de meios de produo, o governo mandou elaborar o II Plano Nacional de Desenvolvimento (II PND), que estabelecia como forma central de combater a crise, nas palavras do ento ministro de Planejamento e responsvel pelo Plano, Joo Paulo dos Reis Velloso, a substituio de importaes nos subsetores de bens de capital (incluindo avies, navios e computadores), insumos bsicos e combustveis17. Essa retomada do desenvolvimento do setor I na economia brasileira foi, como na poca de Getlio Vargas, alavancada pelo Estado: de um lado, as empresas estatais implantaram e desenvolveram os ramos de bens intermedirios e insumos bsicos, como siderurgia, petroqumica, energia; de outro, o Estado, atravs do BNDE, financiou as empresas nacionais para desenvolverem os ramos de mquinas e equipamentos. Duas dcadas depois, Fernando Henrique converteria o BNDE em financiador do capital estrangeiro no processo de apropriao das empresas estatais. Apesar da desacelerao do II PND ao final dos anos 70, em face da presso realizada por uma campanha movida pela mdia contra o papel do Estado na economia, pode-se afirmar que, no fundamental, esse programa foi bem sucedido. Possibilitou que a economia brasileira seguisse crescendo a um ritmo elevado quando todo o mundo capitalista estava mergulhado em crise, melhorou a balana comercial (ao substituir importao e aumentar a capacidade exportadora) e completou, no essencial, o processo brasileiro de industrializao. Passamos a contar, ento, com os trs setores fundamentais da economia: I, IIa e IIb. Completavam-se 50 anos de intenso processo de crescimento da economia. Naquele perodo, a economia brasileira foi a que experimentou um maior ritmo de crescimento no mundo capitalista. A continuidade desse crescimento exigia, no entanto, modificaes importantes ao nvel das relaes de produo, que possibilitassem a incorporao das amplas massas da populao aos resultados do crescimento da economia, e ao nvel das foras produtivas, que ensejassem a incorporao das tecnologias de ponta, tais como informtica, qumica fina, novos materiais, biotecnologia.

    16 Oliveira & Mazzuchelli, op. cit., p. 107. 17 Velloso, J. P. R. Brasil: a soluo positiva. Abril-TEC, 1977, p. 124.

  • Mas, em lugar de seguir essa trajetria, o desenvolvimento brasileiro foi interrompido. J so duas dcadas e meia de estagnao econmica. A origem do problema est na subordinao ao capital financeiro internacional, atravs sobretudo da dvida externa. Boa parte do financiamento do perodo em que o setor de bens durveis de consumo, sob controle estrangeiro, alavancou a economia foi bancada por recursos externos. Era a maneira de enfrentar a contradio diagnosticada por Oliveira e Mazzuchelli: produo voltada para dentro e necessidade de divisas para remeter os lucros para o exterior e adquirir os meios de produo necessrios aos investimentos. Para atender a essa necessidade, a dvida externa crescia de maneira exponencial. No prprio perodo em que, atravs do II PND, o setor I passou a ser prioritrio, tambm recorreu-se a emprstimos internacionais. A substituio de importaes e a capacidade exportadora geradas pelo desenvolvimento do setor I poderiam criar as condies para administrar essa dvida. Isso no foi possvel porque, diante da emergncia de nova crise mundial entre fins dos anos 70 e comeo dos 80, o Imprio estadunidense reagiu tentando descarregar o nus da crise sobre os pases subdesenvolvidos, sobretudo os pases endividados da Amrica Latina. Os mecanismos utilizados foram a elevao das taxas de juros para patamares inditos e a violenta rebaixa dos nossos termos de intercmbio. Estudo feito pelo Ministrio do Planejamento do Brasil, em meados dos anos 80, constatou que, se as taxas de juros internacionais e os nossos termos de intercmbio houvessem permanecido iguais aos de 1978, nossa dvida externa de 1982 seria a metade do montante alcanado. A exploso da dvida, somada suspenso de novos emprstimos depois da moratria mexicana de 1982, levou o Brasil a um estado de insolvncia externa. Diante desse quadro, o Brasil teria duas alternativas: ou realizar a moratria da dvida externa e prosseguir a trajetria de desenvolvimento mediante a incorporao de novas tecnologias e das amplas massas da populao, ou promover o chamado ajuste externo patrocinado pelo FMI. Este consistia em cortar investimento pblico, crdito e salrio como forma de conter a demanda e contrair a economia e assim reduzir importao e aumentar a capacidade exportadora. O objetivo seria gerar saldos comerciais para bancar o pagamento dos juros da dvida. O novo governo, do general Figueiredo, tendo Delfim Netto frente do Ministrio Planejamento, optou pelo segundo caminho, e ainda hoje estamos pagando o preo. Deflagrava-se ali a era das dcadas perdidas. A lgica da subordinao ao capital financeiro internacional, particularmente atravs da dvida externa, revelou claramente no caso brasileiro que no bastou a interrnalizao do setor I da economia para conquistar um desenvolvimento independente. Diante dessa crise, at os economistas que, em face da implantao do setor I, advogavam que o Brasil passara etapa do desenvolvimento endgeno, lembraram-se de que o imperialismo no era um mero tigre de papel. A implantao da indstria bsica imprescindvel para o desenvolvimento endgeno e independente. Mas, para que esse desenvolvimento se consolide, necessria a ruptura com o domnio do capital financeiro atravs da dvida e com o domnio das transnacionais atravs do controle interno de setores-chave da economia.

  • O Papel da Indstria Bsica no Socialismo

    O capitalismo no tem como fim o atendimento das necessidades da populao. Seu objetivo supremo a busca do lucro mximo. S atende s necessidades da populao e ainda assim de maneira precria porque a venda do produto, isto , a realizao do valor produzido pelo trabalho, a nica condio de se apropriar do lucro e assim realizar aquele seu objetivo supremo. A lei econmica fundamental do socialismo o oposto disso. Sua formulao foi sintetizada nos Problemas econmicos do socialismo na URSS, de Stalin, da seguinte forma:

    Assegurar a satisfao mxima das necessidades materiais e culturais, sempre crescentes, de toda a sociedade, mediante o desenvolvimento e o aperfeioamento ininterruptos da produo socialista base da tcnica mais elevada18.

    Para alcanar esse duplo objetivo desenvolvimento ininterrupto das foras produtivas e atendimento das crescentes necessidades da sociedade -, duas condies so necessrias: 1) o desenvolvimento harmnico da economia nacional, o que garantido atravs do

    crescente peso do Estado na economia e da planificao19; ou seja, em lugar da anarquia da produo, a ao consciente dos seres humanos; em lugar dos seres humanos serem dominados pela economia, os seres humanos dominarem a economia;

    2) a primazia da produo dos meios de produo em relao produo dos meios de consumo20, como forma de ampliar ininterruptamente as foras produtivas da sociedade e preparar as condies para uma crescente abundncia de meios de consumo.

    Em sntese, aqui esto as diferenas fundamentais entre o capitalismo e o socialismo:

    em vez de assegurar os lucros mximos, assegurar a satisfao mxima das necessidades materiais e culturais da sociedade; em vez de desenvolver a produo com intermitncias do ascenso crise e da crise ao ascenso, desenvolver ininterruptamente a produo; em vez de intermitncias peridicas no desenvolvimento da tcnica, acompanhadas da destruio das foras produtivas da sociedade, o aperfeioamento ininterrupto da produo base da tcnica mais elevada21.

    E a pode surgir a questo: se o crescimento acelerado do setor I no capitalismo provoca a desproporo intersetorial e a crise, por que o mesmo no ocorreria no socialismo? Por uma razo simples: enquanto no capitalismo a anarquia da produo engendra o crescimento desordenado da produo, no socialismo a planificao promove o desenvolvimento harmnico da economia. a diferena entre o ser humano ser dominado pela economia e o ser humano dominar a economia, atravs da sua ao consciente, da planificao.

    18 Stalin, J. Problemas econmicos do socialismo na URSS. So Paulo, Anita Garibaldi, 1985, p. 36. 19 Ibid., p. 37. 20 Ibid., p. 20. 21 Stalin, op. cit., p. 36-7.

  • Se isso verdade, por que ento o socialismo desabou na Unio Sovitica e no Leste Europeu? Um importante lder poltico brasileiro, recentemente falecido, o ex-governador Leonel Brizola, matou a charada: os dirigentes soviticos aderiram ideologia do inimigo. E como isso se manifestou na esfera da economia? As reformas de 1958 (Kruschev), de 1965 (Breznev), de 1985 e de 1987 (Gorbatchev) mudaram a estrutura e a forma de gesto da economia sovitica, mediante a recriao de mecanismos de mercado e a conseqente reduo do papel do plano, ou seja, da ao consciente dos seres humanos sobre as foras econmicas. Com isso, cresceu o papel do mercado e dos burocratas na regulao da economia22. O ex-secretrio-geral do MR8, Cludio Campos, recm falecido, dedicou os ltimos 20 anos de sua vida a desvendar as causas da crise e da queda da Unio Sovitica. Parte de sua pesquisa foi publicada no livro A histria continua23 e o restante, que ainda est sob a forma de apontamentos, ser publicado brevemente. O mago de suas descobertas se encontra nos seguintes pargrafos:

    Desde el punto de vista econmico, el error fundamental de la perestroika, tal como ella es formulada, es la creencia en que la produccin socialista pueda ser regulada basicamente por el mercado, relegando a un segundo plan y, en verdade, practicamente descartando la regulacin consciente, a travs de una planificacin democrtica, de la cual participe crescientemente toda la poblacin.

    Cuarenta aos de persistentes errores econmicos e de fuga de la lucha poltica e ideolgica burocratizaron la planificacin, la apartaron de las masas, la tornaron ineficiente. Entonces, los defensores del socialismo de mercado piensan que la solucin es acabar com la planificacin, o casi eso, es volver a una economia de mercado. La solucin verdadera, entretanto, solo puede consistir en trabar la lucha poltica e ideolgica e realizar una planificacin efectivamente democrtica y socialista. Fuero de eso, no hay socialismo24.

    Ou seja, a fuga da luta ideolgica e a abdicao da ao consciente, isto , do plano, sobre a economia esto na base da derrubada da primeira experincia socialista da Humanidade. Sobre as leis econmicas do socialismo, acreditarmos ser da maior importncia o estudo dos Textos Econmicos do companheiro Che Guevara. frente do Ministrio da Indstria em Cuba, travou um intenso debate sobre o processo de construo do socialismo. Duas questes importante, alm de outras, ressaltaram de suas contribuies. Primeiro, a relao entre conscincia e incentivo material; segundo, a relao entre mercado e plano. Quanto primeira questo, estabeleceu ele: ns afirmamos que, em um tempo relativamente curto, o desenvolvimento da conscincia faz mais pelo desenvolvimento da produo que o estmulo material25. E sobre a segunda, afirmou: 22 Souza, Nilson Arajo de. O colapso do neoliberalismo. So Paulo, Global, 1995, p.23-50. 23 Campos, Cludio. La histria contina. So Paulo, Grficas Brasileiras, 1992. 24 Campos, op. cit., p. 13. 25 Che Guevara, Ernesto. Textos Econmicos. In: Obras Completas, volume 8. So Paulo, Edies Populares, 1982, p. 190.

  • Entendemos que durante certo tempo se mantenham as categorias do capitalismo e que este prazo no pode ser determinado de antemo, mas as caractersticas do perodo de transio so as de uma sociedade que liquida suas velhas amarras para ingressar rapidamente na nova etapa. A tendncia dever ser, em nossa opinio, a de liquidar, o mais vigorosamente possvel, as categorias antigas, entre as quais se incluem o mercado, o dinheiro, e portanto, a alavanca do interesse material, ou, melhor dizendo, as condies que provocam a existncia das mesmas26.

    Diz o Che que, por mais que no perodo de transio tenha-se que recorrer s categorias do capitalismo, como a lei do valor e o mercado, a construo do socialismo exige a superao crescente dessas categorias, devendo prevalecer cada vez mais a ao consciente, o plano.

    O capitalismo de Estado a transio da dependncia ao socialismo Vimos que, no caso brasileiro, ainda que tenha se completado nos anos 70, no fundamental, a instalao dos setores bsicos da economia, com o desenvolvimento da indstria de base, a dependncia externa se manteve sob a forma de dependncia financeira e subordinao produtiva s transnacionais. E a conseqncia tm sido as agruras de duas dcadas e meia de estagnao econmica, pobreza, desemprego, fome, misria. Assim, como dissemos em nosso livro A longa agonia da dependncia,

    A retomada sustentada do desenvolvimento, isto , a liberao das foras produtivas nacionais, requer, portanto, o rompimento com a dependncia externa, o deslocamento para dentro do pas das decises fundamentais que envolvem a economia nacional, a conquista efetiva da capacidade nacional de controlar a prpria economia, o uso dos prprios recursos para a construo de uma moderna e prspera economia, voltada para o bem-estar do nosso povo; enfim, requer que tracemos nosso prprio destino e se suspenda a drenagem do fruto do trabalho nacional para o exterior e para a especulao financeira. Passa, tambm, pelo rompimento com as caducas estruturas internas que nasceram da dependncia externa ou foram reforadas por ela e que por isso mesmo lhe servem de base de sustentao, tais como a desproporo intersetorial, a superexplorao do trabalho, a elevada concentrao de renda, as disparidades regionais, a violenta concentrao da estrutura fundiria, o esmagamento da produo pela especulao financeira, a excluso da maioria da populao dos frutos de seu prprio trabalho e o estrangulamento do mercado interno27.

    E prosseguimos:

    O que predomina, no entanto, o domnio dos monoplios estrangeiros sobre a economia nacional, o que, ademais, se constitui no principal obstculo construo de uma economia independente, democrtica, prspera e justa no pas. Evidentemente, impossvel compatibilizar uma economia independente com o domnio estrangeiro sobre a economia nacional. S h, portanto, uma forma de construir essa economia independente: retomar o controle nacional sobre a economia nacional. E no d sequer para pensar em transferir a propriedade desses monoplios estrangeiros para o capital privado nacional, no apenas por sua incapacidade de absorv-lo, mas tambm porque tenderiam a usar esse poder monoplico para exercer seu domnio sobre o conjunto da economia e da sociedade brasileira. Isso sem contar com os nimos expansionistas que seriam despertados em relao aos povos vizinhos.

    26 Ibid., p. 194. 27 Ibid., p. 727-8.

  • Nesse caso, na atual etapa do desenvolvimento das relaes de dependncia, torna-se necessrio passar para o domnio pblico os monoplios estrangeiros. Assim, a forma econmica da independncia nacional, no atual estgio do domnio imperialista e do desenvolvimento das foras produtivas internas, o capitalismo de Estado. Essa a forma econmica da revoluo nacional democrtica em pases dependentes de desenvolvimento intermedirio, como o Brasil, em que os monoplios estrangeiros dominam a economia. Alm de garantir a independncia nacional, seria o caminho da democratizao real da economia nacional. Isso significa, na prtica, a nao reapropriar-se de seu patrimnio e de seu mercado interno, que, sendo considerados patrimnio nacional pela Constituio de 88, foram majoritariamente alienados ao capital estrangeiro28.

    Esse um capitalismo em que o Estado, isto , o domnio pblico, substitui os monoplios privados, basicamente estrangeiros. Essa passagem de comando deve comear justamente pelo setor que deve alavancar a nova economia independente, ou seja, o produtor de meios de produo, a indstria bsica. No caso brasileiro, basta recuperar as empresas estatais que foram alienadas. No caso dos pases que ainda no contam com uma indstria bsica desenvolvida, a sua instalao sob comando do Estado nacional o caminho para afastar o domnio dos monoplios estrangeiros sobre a economia. O capitalismo de Estado , ao mesmo tempo, o caminho mais curto entre a economia capitalista dependente e o socialismo. Cada vez mais se torna atual a tese que a revolucionria alem Rosa Luxemburgo defendeu no comeo do sculo passado: socialismo ou barbrie. Quanto mais o Imprio tenta dominar, recolonizar, escravizar os povos do mundo para melhor espoli-los, recorrendo a agresses militares, bloqueios econmicos, tentativas de golpe, imposio do receiturio neoliberal, que acarreta pobreza, fome e misria para nossos povos, mais fica evidente que a sada est num projeto generoso que coloque o ser humano no centro, fazendo-o senhor da prpria histria e beneficirio dos frutos de seu prprio trabalho. 29 de Junho de 2005.

    28 Ibid., p. 729.

    O papel da indstria bsica na economia capitalista O papel da indstria bsica no desenvolvimento endgeno