o padre que foi de leiria para roma salvar judeus
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Joaquim Carreira abrigou refugiados judeus e antifascistas nos longos meses de ocupação da capital italiana pelas tropas nazis, nos anos 40. Grande reportagem do PÚBLICO, por António Marujo [23_12_2012, in Revista Publica, pp. 13-18]TRANSCRIPT
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Joaquim Carreira abrigou refugiados judeus e antifascistas nos longos meses de ocupação da capital italiana pelas tropas nazis, nos anos 40. Grande reportagem do PÚBLICO, por António Marujo
Bruxelas admite dar mais um ano a Madrid para atingir a meta dos 3% do PIB. O adiamento de 2014 para 2015 será feito à custa dos pensionistas Economia, 18
Um ano inteiro de tensões familiares pode explodir no Natal p26/27DOM 23 DEZ 2012EDIÇÃO PORTO
Ano XXIII | n.º 8294 | 1,60€ | Directora: Bárbara Reis | Directores adjuntos: Nuno Pacheco, Manuel Carvalho, Miguel Gaspar | Directora executiva Online: Simone Duarte | Directora de Arte: Sónia Matos
O padre que foi de Leiria para Roma salvar judeus
A historiadora Irene Flunser Pimentel explica como a problemática social foi gerida na ditadura de Salazar p8 a 10
DIAP acusou esta semana ex-presidente do Benfi ca e mulher de burla qualifi cada. Vem aí nova acusação p14
A canícula testemunhou o primeiro recuo de Passos, que deixou cair a revisão da taxa social única p12/13
Estamos a regressar da segurança social à assistência pública?
Burla terá permitido a Vale e Azevedo pagar renda em Londres
O Verão quente de Passos e a primeira derrota de Gaspar
Espanha vai ter mais um ano do que Portugal para corrigir o défice público
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lista de refugiados, os nomes de Isacco, Elio
e Roberto Cittone, por esta ordem, identifi ca-
dos como “judeus”. Mas Elio diz que apenas
ele e o tio estiveram no colégio. “O meu pai
[Roberto] esteve noutro local.” Terão estado
em momentos diferentes? Ou o pai terá estado
apenas alguns dias? Joaquim Carreira não terá
colocado o nome na lista sem razão, mas Elio
não sabe explicar o facto.
Daniela Cittone, fi lha de Isacco, conta-nos
que nasceu em 1946 e que o pai morreu quan-
do ela tinha dez anos. A mãe relatava, mais tar-
de, que o pai e outros familiares tinham estado
em Roma refugiados em casas religiosas, mas
não sabe pormenores. “A mãe dizia que faltava
comida e que eles tinham medo que os alemães
aparecessem, não me recordo de mais.”
Mussolini estava no poder. Em
Junho de 1940, a Itália entra na
II Guerra Mundial e invade o
Sul de França. Em Setembro,
invade o Egipto sob manda-
to britânico e, no fi nal desse
mês, assina com a Alemanha
e o Japão o Pacto Tripartido.
Em Outubro, a Itália invade a
Grécia.
A ocupação de Roma pelos alemães, con-
cretizada entre 9 e 11 de Setembro de 1943,
como resposta à chegada dos Aliados a Itália,
sucedeu a um “ligeiro bombardeamento de
artilharia”. O episódio deixou Joaquim Car-
reira com “alguma apreensão pela segurança
das pessoas”. Nessa altura, as condições de
vida eram ainda “quase normais”, escreve ele
no relatório.
Nos primeiros dois meses não houve grandes
mudanças. Mas elas começaram a sentir-se
com a chegada dos refugiados a Roma. Estes
vão afl uindo ao colégio, depois de os Aliados
terem ocupado zonas da Itália. Na cidade, co-
meça a notar-se a rarefacção e posterior sus-
pensão completa de meios de transporte, com
a promulgação de várias ordens de polícia, o
início da requisição de pessoas para trabalhar
e a “caça aos hebreus”, como escreve o padre
Carreira.
Foi neste contexto que as casas religiosas
foram procuradas como abrigo, incluindo
de judeus. Mais tarde, já na década de 1960,
o papel do Papa Pio XII (1939-1958) durante
a II Guerra será objecto de polémica, com a
União Soviética e a Alemanha Democrática
(comunista) a criticá-lo pela suposta passivi-
dade perante o Holocausto. Hoje, no entanto,
há cada vez mais elementos a confi rmar que
o próprio Papa terá dado instruções para que
judeus e outros perseguidos fossem acolhidos
em casas religiosas e no próprio Vaticano (ver
entrevista na página 18).
Carlos Azevedo também considera que a
história deste padre português pode ajudar a
fazer mais luz sobre a acção do Vaticano du-
rante esta época. “Trata-se de mais uma his-
tória para completar o quadro da protecção
concreta dos judeus perseguidos por parte de
instituições da Igreja, O julgamento por vezes
precipitado precisa desta investigação e cons-
titui um serviço à verdade apresentar a um
vasto público um olhar mais pleno”, defende,
em declarações à revista 2.
Colocado perante as situações concretas que
lhe batem à porta, Joaquim Carreira assume
como suas as orientações do Vaticano: “A hos-
pitalidade que está na base dos princípios da
caridade cristã e a exemplo de todas as comu-
nidades religiosas de Roma, achei que a devia
oferecer a pessoas perseguidas, procuradas ou
em perigo”, escreve. “Concedi asilo e hospita-
lidade no colégio a pessoas que eram perse-
guidas na base de leis injustas e desumanas.”
Uma decisão que o levou a tomar um “maior
contacto com as misérias, as dores e as tragé-
dias consequência da guerra”.
O Colégio Pontifício Português es-
tava bem situado: no n.º 12 da via
Banco di Santo Spirito, no centro
histórico de Roma, no palacete
Alberini-Senni (que ainda existe),
como se lê na monografi a sobre
o CPP, da autoria do padre Arnal-
do Pinto Cardoso. Com um pá-
tio interior, as traseiras da casa
estavam voltadas para a via dei
Coronari, uma rua de antiquários que termina
junto da Piazza Navona.
O judeu Elio Cittone chegou à porta do colé-
gio, com o tio, Isacco Cittone, em Outubro de
1943. “Vivíamos em Milão, tínhamos ido para
Roma para fugir aos alemães.” O tio trabalha-
va com o pai de Elio, Roberto, na venda de
tapeçarias antigas. Um outro tio, o advogado
Alberto Luppolli, ajudou-os a procurar refú-
gio. Possivelmente, o tio Alberto conheceria já
Joaquim Carreira, admite Elio, que hoje vive
perto de Milão. Mas não sabe como é que o
padre português apareceu na sua vida e na
da sua família.
Do seu mês e meio no colégio, recorda-se
que havia umas 40 pessoas ali refugiadas. Os
dias preenchiam-se de poucos gestos: “De
manhã fazíamos as camas e arrumávamos os
quartos de modo a não parecer que ali esta-
va gente. Depois, passeávamos no corredor e
comíamos.” Também a comida não era muito
variada: pequeno-almoço, arroz e massas. “Era
o que tínhamos.”
Era também o que o padre Carreira conse-
guia arranjar, não sem difi culdade. No início,
valeu o facto de as provisões mais importantes
estarem já feitas previamente. “As necessida-
des de assegurar uma alimentação sã e, tanto
quanto possível, abundante aos alunos, para
lhes garantir a boa saúde, constituiu um pro-
blema grave”, escreve o padre português no
relatório. O problema tinha de ser resolvido
“quase dia a dia numa cidade que, pratica-
mente cercada durante sete meses, via cada
dia mais a serem consumidas as suas reservas
alimentares”.
Entre Setembro de 1943 e Junho de 44, mui-
tos preços aumentaram imenso. Em Abril, por
exemplo, o preço da farinha e outros produtos
básicos aumentou para o dobro. Logo nos dois
primeiros meses da ocupação, o custo de vida
subiu em média 20%, conta Joaquim Carreira.
Em Novembro, a fruta teve de ser abolida na
ementa do colégio, por já não se encontrar à
venda, sendo substituída por “um pouco de
marmelada”. Os bombardeamentos contínuos
das estradas de acesso a Roma e a completa
paralisia dos caminhos-de-ferro difi cultavam
o abastecimento da cidade.
Com o tempo, a alimentação tornou-se ainda
mais “monótona”. Mas Joaquim Carreira asse-
gura que foi sempre possível garantir uma “so-
pa abundante, de massa ou arroz”, bem como
um prato com “acompanhamento abundante
de legumes ou verdura”. Havia carne uma ou
duas vezes por semana (às vezes três) e cozi-
nhava-se duas massas iguais em cada dia. “Tal-
vez facto único entre os institutos religiosos
de Roma, pude sempre distribuir um copo de
vinho em cada uma das refeições principais”,
anota o padre Carreira no relatório.
O padre também ia pessoalmente à procura
de comida: “Se não conhecesse tantos molei-
ros nos arredores de Roma, os meus hóspedes
teriam passado muita fome!” E sugeria peque-
nos truques: “O milho, cozido em grão, valia
por bom bife”, conta ele, citado na página do
Santuário de Fátima na Internet a propósito do
centenário do seu nascimento, em 2008.
Francesco Santostefano, então fi nalista de
O Colégio Pontifício Português situava- -se no centro histórico de Roma, no palacete Alberini-Senni. Joaquim Carreira foi o primeiro padre a ter brevet. O seu primeiro voo aconteceu a 25 de Abril de 1940, pouco antes da partida para Roma, entre Alverca e Monte Real
que o tio não aceitou, de início, a ideia da par-
tida. João Mónico tinha 33 anos quando, em
1974, foi de Angola para Roma estudar e aí pas-
sou algum tempo com o tio. “Era inteligente,
afável, bem falante, delicado, compreensivo
mas exigente consigo e com os outros”, des-
creve à revista 2. Mesmo não satisfeito com a
decisão do bispo de Leiria, Joaquim Carreira
chegou à capital italiana a 4 de Maio de 1940,
com 31 anos, para ocupar o cargo de vice-reitor
do Colégio Pontifício Português. Em 1941, com
a morte do reitor, monsenhor Manuel Pereira
Vilar, passaria a reitor interino.
“A situação excepcional criada durante a
ocupação alemã de Roma não podia não fazer
sentir a sua infl uência também na vida” do
Colégio Pontifício Português, escreve Joaquim
Carreira num relatório sobre a vida do colégio
no ano lectivo de 1943-44, que permaneceu
inédito até agora e que aqui se revela nos seus
pontos principais. A revista 2 teve acesso aos
arquivos do Colégio Português, falou com pes-
soas que conheceram o padre Carreira, com in-
vestigadores e historiadores, com responsáveis
e documentalistas da Comunidade Hebraica
de Roma, com familiares e descendentes dos
refugiados — além de Elio Cittone, possivel-
mente o último refugiado do Colégio Portu-
guês ainda vivo. Tudo para procurar pistas que
permitissem conhecer com rigor os contornos
de uma história praticamente desconhecida,
incluindo na reconstituição das histórias de
vários dos refugiados.
Pelo colégio passaram pelo menos 40 pes-
soas, conforme o próprio padre escreve nesse
relatório — e no qual regista exactamente 39
nomes de foragidos. Mas há pelo menos um
depoimento de um dos refugiados que fala em
50 pessoas e outro em 42. Como nem todas
estiveram ao mesmo tempo na casa, será difícil
ter certezas sobre o número exacto.
“Pela graça do céu e certamente também
em parte pela grandíssima prudência manti-
da mesmo nos pormenores, o nosso colégio
fi cou isento de visitas inoportunas e de surpre-
sa da polícia, como se verifi cou no colégio Pio
Lombardo, no Instituto Pontifício Oriental e na
Basílica de São Paulo Extra-Muros”, edifícios
da Igreja onde também se albergavam padres.
Nessa altura, os edifícios da Santa Sé tinham
afi xados à porta dois avisos, em italiano e ale-
mão. Assinados pelo comandante alemão, o
general Reiner Stahel, os cartazes diziam: “Este
edifício tem fi ns religiosos e está na depen-
dência do Estado da Cidade do Vaticano. São
interditas quaisquer buscas ou apreensões.”
Apesar disso, como o próprio padre Carreira
nota no relatório, muitas eram as casas religio-
sas invadidas à procura de refugiados.
Elio Cittone tem ideia de que os ale-
mães bateram à porta do colégio
pelo menos uma vez. Quando ha-
via situações mais delicadas, os
refugiados já sabiam que deviam
esconder-se em lugares previamen-
te combinados. E assim o faziam
até os nazis irem embora. O reitor
alertava-os para eventuais riscos.
O tio de Elio decidiu sair. Foram
para casa de uma mulher que vivia com duas
fi lhas. Esconderam a verdadeira identidade,
mas a mulher suspeitou de que eram judeus.
Perante a ameaça de serem entregues, pela
recompensa de 200 mil liras, saíram de novo
e refugiaram-se em casa de um coronel anti-
fascista.
“Nunca mais vi ninguém, mas estou muito
grato” ao reitor, diz-nos agora Elio Cittone, re-
cordando a experiência no Colégio Português.
Mas há um pormenor em que o relatório do
padre Carreira e a memória de Elio não coin-
cidem. No documento, o reitor registou, na
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Medicina e depois médico cirurgião, recor-
dará, em depoimento de 2 de Agosto de 1946,
guardado nos arquivos do colégio, que, apesar
do espectro da fome, “nunca faltou nada na
mesa” dos hóspedes clandestinos, graças ao
“sacrifício” do padre Carreira. E acrescentava
que o reitor tudo fazia para que os refugiados
estivessem em segurança.
O advogado Antonio Priolo agradeceu tam-
bém ao padre Carreira o facto de ter escondido
o seu fi lho, Luigi, no Colégio Português. Socia-
lista, presidente de câmara de Reggio Calabria
entre Setembro e Dezembro de 1943 (nomeado
para o cargo pelas forças de libertação), Anto-
nio Priolo e a sua mulher Gina escreveram ao
reitor em diferentes ocasiões. Num dos cartões
enviados, Priolo recorda que o apoio foi pres-
tado “durante o mais crítico e difícil período
da vida em Roma”. Em outras duas cartas, em
Junho de 1947, mãe e fi lho agradecem a Joa-
quim Carreira o envio de um pequeno jornal
de Fátima.
Apesar das difi culdades quotidianas, Joa-
quim Carreira regista que os padres estudantes
tiveram, tanto quanto possível, uma vida nor-
mal: aulas, conferências, participação em algu-
mas solenidades na basílica de São Pedro, pas-
seio periódico... Só não foi possível ver “muitas
belezas artísticas ou arqueológicas” porque
muitos monumentos ou museus estavam fe-
chados. Dos 61 exames realizados pelos alunos
(cursos superiores e doutoramentos), apenas
9 foram aprovados com as duas classifi cações
mínimas; os restantes foram aprovados (13)
cum laude (com louvor), (28) magna cum laude
e (11) com a máxima summa cum laude.
Os contactos entre os hóspedes e os alunos
do colégio foram “efi cazes e instrutivos” do
ponto de vista da formação dos padres, escre-
via ainda o padre Carreira. E a circunstância ex-
traordinária não perturbou de nenhum modo
os “estudos e a tranquilidade” do CPP nem as
actividades estritamente religiosas da casa.
Mais ainda: o comportamento dos alunos
a estudar em Roma foi óptimo, sob o ponto
de vista disciplinar e moral, alegra-se o padre
Carreira. E “exemplar pela piedade” e pelo
“espírito de caridade e compreensão demons-
trado em relação aos hóspedes”.
No seu relatório, o padre Carreira elogia os
refugiados como pessoas “dignas de estima e
de respeito” sob todos os aspectos. Vincenzo
Agado, partigiano e ex-coronel de infantaria,
que fala do colégio como um “oásis”, descreve
os refugiados como “uma pequena multidão de
ambiciosos, de inquietos, de apaixonados, de
idealistas que viveram nove meses sob a pro-
tecção do Colégio Português”. Ali, acrescenta,
os refugiados (italianos e um padre polaco, que
também consta da lista) sentiram palpitar “o
grande coração português”.
Num depoimento enviado ao padre Carreira,
em Maio de 1946, dois anos depois dos aconte-
cimentos, o partisan escreve: “Éramos 42 (...)
estudantes universitários plenos de esperan-
ças e de ideais numa nova Itália democrática;
soldados que tinham cumprido o seu dever
e não podiam juntar-se à própria família; ho-
mens políticos de pequena e grande dimensão
que esperavam a sua vez de comando; judeus
atormentados pelas leis raciais...”
Também é de gratidão o testemunho de Ce-
sare Frugoni. Nascido em 1881, Frugoni era já
então um clínico reputadíssimo e director da
Clínica Médica Geral da Universidade de Roma.
Era também o médico pessoal de artistas e po-
líticos conhecidos (e adversários entre si, em
alguns casos). Entre os seus doentes, estavam
Guilherme Marconi (que morrera em 1937),
o maestro Arturo Toscanini, o líder fascista
Benito Mussolini e Palmiro Togliatti, dirigente
histórico dos comunistas italianos. Já quase no
fi nal da sua vida, aos 84 anos, Frugoni casou-se
com a meio-soprano Giuletta Simionato, que
morreu em 2010.
As suas relações com essas personalidades
e o seu pioneirismo em várias áreas médicas
são recordados pelo próprio no livro Ricordi
i incontri (ed. Mondadori, 1974). Com o padre
Carreira, Frugoni correspondeu-se durante
vários anos. Pelo menos pelo Natal, o médico
enviava uma carta ao padre português.
“Recordo sempre a grande cortesia [e] ama-
bilidade com que fui acolhido por si e o sentido
de tranquilidade que me veio da sua solidarie-
dade espiritual e da ajuda [de todos]”, escreveu
em Dezembro de 1949. Há cartas de Frugoni
que não estão datadas, mas o médico escreveu
pelo menos entre 1944 e 1952. Numa delas, usa
também a expressão “oásis” para se referir ao
colégio: um “oásis de serena espiritualidade,
de alta intelectualidade e de afectuosa hospita-
lidade”. Nele “toda a vida decorria num ritmo
ordenado e tranquilo como se a fúria que agita
o mundo e o eco das tragédias que atormentam
a humanidade se esvanecessem e parassem às
portas do Colégio Português”.
Médico também, e reitor da Uni-
versidade de Roma, Giuseppe
Caronìa (1884-1977) era um dos
dirigentes do Partido Popular
(PP) que, depois da guerra, da-
ria origem à Democracia Cristã
(DC) italiana. É dele uma des-
crição do quotidiano no colé-
gio, na autobiografi a póstuma,
intitulada Con Sturzo e con De
Gasperi – Uno scienziato nella politica (ed. 5 lu-
ne, 1979) — o título alude aos líderes históricos
do PP e da DC italiana, Luigi Sturzo e Alcide
de Gasperi.
“Os dias eram longos. Passava-se o tempo en-
tre a capela, a sala de almoço, algumas breves
escapadelas ao terraço e na leitura”, escreve
Caronìa. O médico tinha, ele próprio, ajudado
a esconder vários judeus e outros perseguidos.
Num depoimento guardado na documentação
do colégio, Caronìa conta que, por dirigir a
Clínica das Doenças Infecciosas da Universi-
dade, conseguiu ocultar no hospital “mais de
uma centena de refugiados — judeus, funcio-
nários recalcitrantes, jovens refractários ao
recrutamento forçado, militares insubmissos,
guerrilheiros, etc. — a título de contagiados por
doenças graves”.
Mais do que isso: o automóvel e o consultó-
rio permitiram-lhe “servir de agente de ligação
entre os membros do Comité de Libertação
Nacional” e hospedar dirigentes dos grupos
de resistência.
Foi na sequência de um relatório sobre essas
actividades subversivas que um polícia amigo
avisou Caronìa, aconselhando-o a esconder-se.
A 26 de Maio, um telefonema confi rmou que
a detenção podia estar muito próxima. “Tran-
quilamente fui à clínica”, conta na carta guar-
dada no arquivo do colégio. “Dei as instruções
para o caso de ausência eventual. Voltei a casa
e pus minha mulher ao corrente de tudo.”
O médico foi depois à residência do em-
baixador de Portugal junto da Santa Sé, An-
tónio Faria Carneiro Pacheco, de quem era
amigo. Em 1950, numa entrevista a’O Jornal
de São Paulo conta a mesma versão. Mas na
sua autobiografi a, publicada postumamente
em 1979, Caronìa conta o episódio referindo
que se encontrou com o embaixador Nunes
da Silva, que era o representante de Portugal
junto do Estado italiano e de quem também
seria próximo.
Da casa de Carneiro Pacheco (ou de Nunes
da Silva, versão que parece menos provável,
por ser mais tardia), Caronìa terá seguido pa-
ra o Colégio Português, onde o “acolheram
fraternalmente os braços amigos do óptimo
reitor” e encontrou “uns cinquenta” refugia-
dos, entre os quais o seu colega Frugoni. “Era
o dia 26 de Maio [de 1944]. Sentia-se soar os
canhões entre Velletri e Valmontone”, escreve
na autobiografi a, referindo-se a duas localida-
des a sul de Roma, a cerca de 20 quilómetros
de distância.
Angelo Venturelli, outro refugiado protegido
pelo padre português, movimentava-se tam-
bém na política italiana. Nascido em Gussago,
em Brescia (norte), em Agosto de 1889, numa
família tradicionalmente católica, o contabilis-
ta e empresário ligou-se ao Partido Socialista
Italiano (PSI) logo depois da I Guerra Mundial.
Já na qualidade de militante socialista, rece-
beu em sua casa o deputado Tito Zaniboni,
poucos dias antes do atentado (frustrado) que
este protagonizaria contra Mussolini, a 4 de
Novembro de 1925.
De acordo com uma nota biográfi ca que ele
próprio escreveu numa folha, cedida à revista
2 pelo bisneto, Giovanni Cherubini, Angelo
Venturelli “viajou muito por todo o mundo”.
De Sófi a (Bulgária), guardou “uma recordação
inesquecível de monsenhor [Angelo] Roncalli,
mais tarde Papa João XXIII”. A partir de Julho
de 1943, participou, em nome do PSI, em reu-
niões de dirigentes de partidos antifascistas.
E organizou, com a ajuda do advogado Emilio
Bonomelli, um encontro entre o líder histórico
do PSI, Pietro Nenni, e monsenhor Giovanni
Battista Montini, então substituto na Secretaria
de Estado do Vaticano e futuro Papa Paulo VI.
Na mesma nota, Venturelli refere também o
seu refúgio em instituições religiosas durante
os anos da guerra.
Sobre o quotidiano no abrigo português fa-
la ainda um outro testemunho, manuscrito,
guardado nos arquivos do colégio. Domeni-
co Vitiello esteve refugiado com o seu irmão,
Franco, entre 5 de Outubro e 23 de Dezembro
de 1943 — o pai, Fortunato, ofi cial da Marinha,
juntou-se a eles “mais tarde”.
“Foi colocado um pequeno quarto à dispo-
sição de cada refugiado”, onde havia móveis e
água corrente, conta Domenico. Uma semana
depois, uma nova sala para duche foi instalada.
O reitor estabelecera algumas normas de vida e
prudência: colocou à disposição dos refugiados
“toda a biblioteca”, o rádio e os “compridos
e largos corredores” para passear, desde que
não se chegassem às janelas. Um dos alunos
iria ensinar, a quem quisesse, a “sonante lín-
gua de Camões”. Também estava preparado
um esconderijo para usar in extremis, se apa-
recessem os fascistas ou os alemães.
Domenico Vitiello confi rma que o número
de refugiados foi crescendo com “professo-
res, estudiosos, comerciantes, militares, estu-
dantes, judeus”. Isso obrigou a improvisar um
segundo abrigo de emergência, mostrando o
reitor dotes de arquitecto, diz ainda o texto.
A segurança do esconderijo foi posta à prova
várias vezes, conta Vitiello, mas todos pude-
ram experimentar o espírito de “altruísmo”
do padre Carreira, que “desafi ou as ferozes
leis de guerra alemãs e fascistas” para ajudar
os que estavam em perigo.
“Os dias decorriam com uma regularidade
monótona”, descreve Domenico, repetindo o
que Caronìa diria mais tarde na sua autobiogra-
fi a. Ler e estudar nos quartos ou na biblioteca,
escutar rádio para depois informar os restan-
tes, conversar com os padres-alunos, eram os
passatempos possíveis.
Quando podiam ir ao terraço, os fugidos
assistiam a “terríveis duelos entre a aviação
aliada e a defesa antiaérea” nazi-fascista, que
muitas vezes acabava de forma “trágica” pa-
ra esta. De vez em quando, algum refugiado
recebia a visita de familiares, sempre sujeita
a medidas de precaução.
Domenico Vitiello confi rma que, antes da
sua saída, a 23 de Dezembro, os nazis tinham
aumentado as perseguições mesmo em casas
religiosas. Nesse dia, o próprio reitor reuniu
os refugiados colocando-lhes a possibilidade
de fi carem ou saírem. E a maior parte saiu,
nesse preciso dia, pelo terraço e, através do
telhado, para um prédio vizinho. Mas outros
permaneceram até Junho de 1944.
Vitiello diz que, no dia da sua chegada, já es-
tavam na casa dois funcionários do Ministério
dos Negócios Estrangeiros — os irmãos Fran-
cesco e Marcello Cavaletti. No Diário da Manhã
( jornal ofi cioso do Estado Novo português),
de 31 de Maio de 1946, Dutra Faria, enviado
especial a Roma, contava uma conversa com
o então assessor de imprensa do ministério
italiano, Francesco Cavaletti (o irmão era di-
plomata).
Sentindo-se ameaçados, o assessor diz que
se refugiou com o irmão no Colégio Português,
onde já havia outras pessoas, entre as quais
“um ofi cial de marinha, um advogado e alguns
judeus”. A roupa de cada um era distribuída
pelos quartos dos padres. Se os alemães entras-
sem, concluiriam “que os padres portugueses,
além das suas batinas de eclesiásticos, possu-
íam um guarda-roupa variado (...) Os padres
arriscavam-se a muito — e sabiam-no”.
Um dia, conta, os alemães fecharam as duas
extremidades da rua e entraram nas casas à
procura de judeus. Os refugiados, acompanha-
dos pelo padre Carreira, sobem ao terraço —
onde se deparam com desconhecidos, também
eles fugitivos que tinham entrado às escon-
didas, pelo telhado, à procura de um abrigo.
Entretanto, assistem à cena de uma mulher
que, desesperada, se atira de uma janela pa-
ra a rua, tendo morte imediata. “Os alemães
encolhem os ombros... Uma fi lha de Israel a
menos”, comenta ele na reportagem citada.
Francesco Cavaletti esteve 20 dias refugiado
no Colégio Português, saindo quando outros
— “militantes socialistas, judeus carabineiros
desertores” — batiam à porta.
Mario Maria Jacopetti, professor
de engenharia na Universidade
de Nápoles, gostava de brincar
apresentando-se como “ex-
aluno do Colégio Português”,
porque foi um dos que mais
tempo (sete meses) estiveram
na casa, da qual conservara
grandes “laços de amizade
com os padres”. Num depoi-
mento escrito ainda em 1944, Jacopetti falava
do “afectuoso sentimento, misto de reconhe-
cimento, interesse e orgulho que se nutre para
com a instituição a que se pertenceu”.
Nascido em 1908, o mesmo ano de Joaquim
Carreira, Jacopetti morreu num acidente au-
tomóvel, em 1963, com quase 51 anos. Antes,
perdera mulher e fi lhas num bombardeamento
durante a guerra. Hoje, Mario M. Jacopetti dá
nome a um prémio do Rotary Club de Nápoles,
que o homenageia e distingue jovens engenhei-
ros na área da engenharia industrial, química,
electroquímica e electrotécnica.
Gaetano La Gioia, do Rotary de Nápoles, diz
à revista 2 que Jacopetti foi presidente do clube
entre 1960 e 1962. Apesar de ter sido aluno na
Universidade de Nápoles e de ter pesquisa-
do a vida de Jacopetti, La Gioia desconhecia
a passagem do engenheiro por Roma. Mas o
depoimento de Jacopetti guardado nos arqui-
vos do Colégio Português confi rma que se trata
do professor.
Durante os meses em que permaneceu no
colégio, Jacopetti teve tempo de apreciar as
características dos padres e dos refugiados.
O que lhe permitiu compor, em Dezembro de
1943, um poema em 64 oitavas para contar
o quotidiano daqueles tempos difíceis: “Irei,
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pois, falar da bondade dos corações/ dos pa-
dres com quem vivemos lado a lado; e de todos
quantos no Colégio Português/ nos trataram
com paciência e cortesia.”
No longo poema, traduzido pelo padre João
Mónico na biografi a do tio, Jacopetti fala dos
que foram acolhidos “pelo humano reitor do
Colégio Lusitano”, da boa comida mas também
do “difícil levantar logo pela alba”. E conta
que o padre Carreira, “dotado de amor pela
física”, quis comprar uma máquina de barbe-
ar, mas “apareceu um dia com o rosto muito
vermelho”.
O poema dedica ainda estrofes aos padres
que ali estudavam, entre os quais Domingos
de Pinho Brandão, que chegaria a ser bispo
auxiliar do Porto. Era ele que ensinava por-
tuguês aos refugiados, aos quais são dedica-
das as últimas estrofes. Pelo meio, descreve
as formas de passar o tempo: arrumação de
quartos, missas e orações na capela, leituras,
rádio, conversas, discussões sobre os avanços
ou recuos dos Aliados, passeios nos corredo-
res, jogos de cartas — entre os quais a “sueca”,
referida como jogo popular em Portugal.
Nascido a 8 de Setembro de 1908 no
Souto de Cima, freguesia da Caran-
guejeira, perto de Leiria, Joaquim
era o fi lho do meio de Inácia e Jo-
aquim Carreira, que tinham mais
quatro fi lhas.
Em 1920, tinha Joaquim Carreira
12 anos, entrou para o seminário
de Leiria. A mãe terá sido a grande
responsável. Maria da Conceição
Primitivo, antiga costureira e cronista d’A Voz
do Domingo, jornal católico da diocese de Lei-
ria-Fátima, tem agora 80 anos e recorda que
Joaquim Carreira a procurou precisamente por
causa das crónicas que ela escrevia. Foi no últi-
mo Verão de vida do padre, ainda a tempo de
com ele se corresponder durante três meses,
antes da morte de Joaquim Carreira. Lembra
um episódio contado pelo próprio numa das
cartas: miúdo ainda, chegou um dia a casa e foi
ter com a mãe à eira. “Assentei-me a seu lado e
prosseguia o diálogo, quando o sino tocou as
ave-marias. Levantou-se e, cheia de paciência,
rezou comigo. (...) Foi nessa tarde quente, ao
fi ndar do dia, que na nossa eira a minha que-
rida mãe me disse assim: ‘Olha lá, fi lho, e se
Nossa Senhora quisesse que tu fosses padre?
Tu não querias?”
Na altura, Joaquim fi cou “quieto e calado”.
Um ano depois do episódio, a mãe assistiu em
Fátima ao chamado “milagre do sol”, a 13 de
Outubro de 1917. Em Outubro de 1918, Inácia
Carreira morreu. Dois anos depois, Joaquim
entra no seminário. A devoção do padre Carrei-
ra à Senhora de Fátima, que a mãe lhe incutira,
estaria presente em toda a sua vida.
Em 1925, Joaquim vai pela primeira vez para
Roma, para completar o curso de Teologia na
Universidade Gregoriana. Em 1931, é ordenado
padre, regressando no Verão desse ano a Por-
tugal. Colocado em várias funções na diocese
de Leiria, será como prefeito e professor no
seminário que a sua fi gura se começa a desta-
car: funda a emissora de rádio Esfola Gatos e
organiza um laboratório de Física e Química,
cuja excelência na cidade seria reconhecida.
“Fui aluno dele em Filosofi a, Matemática e
Físico-Química”, recorda à revista 2 o padre
Manuel da Silva Gaspar, que era dez anos mais
novo que Joaquim Carreira. “Teve grande infl u-
ência em mim, explicava muito bem e foi ele
que criou o laboratório, onde fi zemos várias
experiências.”
Manuel Gaspar, hoje com 94 anos, descre-
ve o seu professor e colega como alguém que
gostava de “estar a par das coisas da vida, sim-
pático, afável” e uma pessoa com “muitos ami-
gos”. O padre Gaspar tem outra memória rara:
viajou, com mais dois padres, numa pequena
avioneta pilotada por Joaquim Carreira. Sobre-
voaram Coimbra, Leiria, Monte Real, Fátima,
Porto de Mós e Nazaré.
É que, antes dos acontecimentos em Roma,
Joaquim Carreira tinha já esse facto inédito no
currículo: em Monte Real, a 23 de Fevereiro
de 1940, inscrevera-se no Aero Clube de Leiria
(ACL) para frequentar aulas de pilotagem de
aviões, tornando-se no primeiro padre portu-
guês a tirar a licença de aviação.
Na página do ACL na Internet, pode ler-se,
num resumo histórico, que o aeroclube foi cria-
do em 1938. Logo depois foi construído um
campo, um hangar e um posto meteorológico.
“No ano seguinte foi autorizada a Escola de
Pilotagem. Foi adquirido um avião Taylorcraft
com motor de 55 HP, de matricula CS-ABR,
onde foram ‘brevetados’ 11 pilotos no primeiro
curso, sendo instrutor o Sr. José da Cunha Car-
riço. Como curiosidade, deste curso fez parte
o 1.º padre português a ter o brevet.”
Joaquim Carreira viu a sua licença de piloto
aprovada a 24 de Abril de 1940, em Alverca. No
dia seguinte fez o seu primeiro voo — 55 minu-
tos entre Alverca e Monte Real, como se pode
ler na biografi a do sobrinho, João Mónico.
Nas viagens, o padre Carreira vestia sempre
o fato clerical — calças e casaco preto, cabeção,
por vezes a batina. Após o fi nal da II Guerra
Mundial, continuou a voar em Roma, como
recorda a irmã Maria Isilda, das Irmãs Fran-
ciscanas Hospitaleiras da Imaculada Concei-
ção. “Ele ia muitas vezes para o aeroporto de
Ciampino fazer treinos, voar”, diz-nos.
Uma das pessoas que voou com ele foi a ir-
mã Maria do Rosário Mão Cheia, também das
Franciscanas Hospitaleiras, que hoje reside em
Linda-a-Pastora (Oeiras). Sobrevoou Rieti, uma
cidade entre Roma e Assis. Joaquim Carreira
contou-lhe vários pormenores sobre os refu-
giados que acolheu no colégio. “Fez um grande
esforço para conseguir alimentos e dizia que
chegou a andar em Roma debaixo de tiros à
procura de comida”, conta ela à revista 2.
O padre Carreira tinha gosto em receber ami-
gos e levá-los a passear por Roma ou Itália.
Quando chegavam irmãs à casa Madonna di
Fatima, oferecia-lhes uma viagem a Assis e ou-
tros lugares franciscanos — daí nasceria o livro
Os Lugares Santos Franciscanos, a par de outros
sobre a história e a arte de Roma ou Fátima.
“Era muito bom em história, tinha um espírito
muito franciscano, era o melhor guia que podí-
amos ter”, conta a irmã Isilda. “Encantava-se
com o voo, falava disso com um prazer quase
espiritual”, continua Maria Isilda, que integrou
a congregação quando tinha 25 anos, em 1967,
e ainda vive na casa Madonna di Fatima, onde
monsenhor Carreira morreu, a 7 de Dezembro
de 1981 — fez há dias 31 anos.
O prazer do voo estava também à vista na
reportagem d’O Século Ilustrado, reproduzi-
da n’A República de 3 de Outubro de 1940. A
jornalista Fernanda Reis encontrara o padre
Carreira no dia do exame de piloto aviador: “O
dr. Joaquim Carreira é um sacerdote novo e cul-
tíssimo. Fala docemente de um desejo antigo
que a sua vontade tornou realidade: voar. (...)
Fiz-lhe, a certa altura, esta pergunta: — Como
se compreende que seja padre e aviador? Não
há uma certa contradição entre duas vidas tão
díspares? — Não, não há contradição alguma.
Nunca a Igreja foi contrária à ciência.” Ao to-
do, escreve João Mónico na biografi a do tio,
Joaquim Carreira fez, em Itália, pelo menos
200 horas de voo. A última vez que pilotou um
avião foi a 19 de Junho de 1973, sobrevoando
Pádua durante hora e meia.
Nomeado monsenhor em 1950, Joaquim Car-
reira desempenhou, a partir de 1952, o cargo
de conselheiro eclesiástico da embaixada por-
tuguesa junto da Santa Sé. Desde 1958 passou
a residir na casa Madonna di Fatima. “Morava
connosco e durante toda a semana animava
o centro de culto”, conta a irmã Maria Isilda.
“Esta era uma zona nova, havia muitas crian-
ças que nós preparávamos para a primeira co-
munhão.” Na casa das irmãs, além de celebrar
missa e acompanhar as pessoas, monsenhor
Carreira “dedicava-se muito ao confessioná-
rio”. Mas, “sobretudo, acolhia muito bem toda
a gente” e as pessoas “procuravam-no para
conversar e partilhar as suas difi culdades”.
A irmã Maria do Céu, também da congrega-
ção das Franciscanas Hospitaleiras, conheceu
igualmente Joaquim Carreira. “Era uma pessoa
de uma bondade extrema, sempre a sorrir,
sempre feliz, que encantava as pessoas com
a sua maneira de ser, diz-nos. A irmã Isilda
acrescenta que era “um “grande devoto de
Nossa Senhora de Fátima” (na capela da casa
onde ele viveu é possível ver ainda o mosaico
que representa a aparição de Fátima). “Ele con-
tava pouco” do que tinham sido os tempos no
colégio, diz a irmã Isilda, que se lembra, apesar
disso, de referências aos refugiados. “Falava
do sítio onde as pessoas estavam escondidas
e da alimentação. Dizia que enfrentou riscos
para acolher as pessoas, mas sentia uma gran-
de alegria por tê-lo feito.”
Roma seria libertada da ocupação
nazi entre 3 e 4 de Junho de 1944.
Mas o acontecimento não acabou
com os refugiados no Colégio Por-
tuguês. Em 1945-46, e durante al-
gumas semanas, mais seis pessoas
terão estado escondidas no Colégio
Português.
“Havia dois militares, um deles
coronel, que tinham estado na tro-
pa fascista”, recorda à revista 2 o padre Orlan-
do de Freitas Morna, do Funchal, que esteve
no Colégio Português logo depois do fi nal da
ocupação de Roma. “Não tinham feito crimes”,
esclarece o padre Morna, por isso o reitor Car-
reira os recebeu.
D. Eurico Dias Nogueira, ex-arcebispo de
Braga, chegou a Roma para estudar a 31 de De-
zembro de 1945. Recorda-se, conta-nos agora,
de ouvir as histórias dos refugiados de 1943-44,
mas conviveu igualmente com os dois milita-
res fascistas. Em textos publicados no Diário
do Minho, entre Agosto e Outubro de 2000, o
antigo arcebispo dizia que um dos dois estaria
condenado a pena de morte. Mas acrescenta
que também procuraram refúgio dois luso-
franceses, incorporados à força pelos nazis,
e dois padres lituanos, fugidos do seu país,
ocupado pela então União Soviética.
No seu depoimento de 1946, o partisan Vin-
cenzo Agado confi rma que, numa visita a Ro-
ma e ao colégio, notou que havia um pequeno
grupo de refugiados. Mas o ex-militar insistia
na ideia de uma Itália reconciliada: também os
novos foragidos eram “párias da sociedade”.
Apesar da mudança de situação política, as
condições materiais mantiveram-se difíceis por
algum tempo. No relatório de 1944-45, Joaquim
Carreira diz que apesar da rápida saída dos
refugiados depois da libertação de Roma, os
problemas alimentares mantiveram-se ainda,
pela “carência de alguns géneros fundamen-
tais” e pelo aumento brutal de preços.
D. Eurico Nogueira descrevia nos seus arti-
gos que o maior problema dos primeiros meses
“foi a defi ciente alimentação”. Conta mesmo
que, tendo ido a uma consulta médica queixar-
se de insónias, o médico lhe respondeu que o
que ele tinha era fome...
Logo no fi nal da guerra, Joaquim Carreira
começara entretanto a diligenciar no sentido
de comprar um terreno para construir um edi-
fício mais funcional para o Colégio Pontifício
Os edifícios religiosos tinham avisos à porta, em italiano e alemão, que os salvaguardavam de buscas das tropas nazis. Contudo, elas aconteciam e o Colégio Pontifício Português não terá sido excepção. O padre Joaquim Carreira arranjou sempre maneira de proteger os refugiados, e muitos lhe escreveram agradecendo ter--lhes salvo a vida
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Português. Não conseguindo, acabaria por dei-
xar a reitoria em 1954, passando a dedicar-se
a várias actividades pastorais.
Durante os três últimos meses antes de mor-
rer, monsenhor Carreira escreveu a Conceição
Primitivo 23 cartas a falar da Igreja, da diocese,
de memórias da mãe e da família. Numa delas,
dizia: “O cristão e muito especialmente o padre
que não goste de dar, falta-lhe alguma coisa de
muito importante na sua vida (...). Quem dá
parece-se com Deus.”
“Ele tinha uma necessidade extraordinária
de fazer o bem”, comenta Maria da Conceição.
Joaquim Carreira terá ainda, diz a antiga costu-
reira, salvo mais gente. Contou-lhe o próprio
que colocara várias pessoas em outros sítios,
além das que estiveram refugiadas no CPP.
Nas suas cartas a Maria da Conceição, mon-
senhor Carreira insurgia-se contra rumos da
Igreja Católica depois das reformas do Concílio
Vaticano II (1962-65). Dizia que o Concílio não
tinha dito para os padres andarem “à paisana”,
criticava o “espírito de desobediência” entre
os padres e não gostava que os clérigos se dei-
xassem tratar por tu. E escrevia: “À sombra
da grande árvore que foi o Concílio nasceram
muitos cogumelos venenosos que era preciso
arrancar. (...) não está bem tanta relaxação, a
que chamam actualidade, e tanto mundanis-
mo entre nós, ministros de Deus.” Em outra
carta, lamentava: “Como é belo ver as pessoas
comungarem, mas é tão triste para uma alma
de padre ver os confessionários vazios.”
A 19 de Setembro de 1981, Joaquim Carrei-
ra celebrara as bodas de ouro sacerdotais no
Souto de Cima. A 23 de Outubro, já em Lisboa
e na véspera do regresso a Roma, intui que es-
sa seria a última vez que visitava o país. Numa
das cartas a Maria da Conceição, conta que,
ao celebrar missa nessa manhã, “parece que
Nossa Senhora [lhe] tinha dito quase em sur-
dina ao [seu] ouvido: Esta vai seu a tua última
missa em Portugal.”
Sepultado inicialmente em Roma, o padre
Carreira seria trasladado para Portugal em
2001. Na altura, algumas pequenas notícias
na imprensa falavam de um padre que tinha
salvo “centenas” ou mesmo “milhares” de ju-
deus e outros refugiados. Apenas pequenas
pontas da história eram conhecidas.
No regresso a Roma, talvez Joaquim Carreira
se tenha recordado dos últimos momentos da
ocupação nazi: a 3 de Junho de 1944, à noite,
chegara a notícia de que os alemães estavam
em retirada. Na autobiografi a, o médico Giuse-
ppe Caronìa conta que os refugiados puderam
fazer o que até aí era proibido: passaram a noi-
te à janela e no terraço que dava para a ponte
e o castelo Sant’Angelo. Três dias antes, a 31
de Maio, chegara à casa um cesto de cerejas.
Enviado pela mulher de Caronìa, era o sinal de
que a pressão dos alemães já diminuíra. “Na-
quele dia, ao pequeno almoço, as boas cerejas
foram distribuídas a todos os comensais e foi
uma verdadeira festa.”
(Além das pessoas citadas no texto e de vários
apoios pontuais, agradece-se ainda a colabora-
ção de Silvia Haia Antonnucci, Renata Ergas,
Riccardo Pacifi ci, Piero Terracina, Giovanni Ca-
ronìa, José Travaços Santos, Jorge Lima Basto e
padres José Caldas Esteves, Paulo José Figueiró
e Luciano Cristino.)
“A PRUDÊNCIA ERA UMA NECESSIDADE”
Professora de História da
Igreja na Universidade
Pontifícia de Ciências da
Educação, Grazia Loparco
é religiosa da congregação
das Filhas de Maria Auxi-
liadora. Há uma década,
fundou com outros histo-
riadores uma associação
para o estudo da época da
II Guerra, tornando-se nu-
ma referência no assunto.
Várias pesquisas já feitas levaram mesmo à
declaração de mais de 20 freiras e padres
italianos “justos entre as nações” pelo Yad
Vashem, o Memorial do Holocausto — ainda
no fi nal de Novembro, o cardeal Elia Angelo
Dalla Costa, arcebispo de Florença que mor-
reu em 1961, foi reconhecido como tal. E um
livro de Gordon Thomas acabado de publicar
em Portugal, Os Judeus do Papa (ed. Casa das
Letras), fala do que defi ne como um plano do
Vaticano, com a envolvência de Pio XII, para
salvar milhares de judeus.
Sabemos já que um terço das casas religiosas (220, em 750) em Roma acolheram judeus. Quantos?Os dados seguros que temos falam de 4300
pessoas, numa comunidade hebraica que
oscilava entre 10 mil e 12 mil. Mas o número
peca provavelmente por defeito, porque nem
todas as casas religiosas puderam documentar
a presença de judeus.
Era um risco?Era arriscado escrever. Muitos institutos reli-
giosos, depois da libertação de Roma, a 4 de
Junho de 1944, escreveram o que acontece-
ra. Alguns tinham apontamentos, por vezes
com nomes falsos. Temos listas com nomes,
mas geralmente são posteriores à libertação:
o nome era um caminho para prender as
pessoas, tinha de se evitar escrever fosse o
que fosse, porque se temiam perseguições.
A prudência era uma necessidade.
Num artigo que escreveu no L’Osservatore Romano, em Janeiro, falava desses judeus. Quem eram eles?Eram de todas as classes sociais, homens,
mulheres e crianças, por vezes em família
(nuclear ou alargada), outras sozinhos. Em
alguns casos, eram os pais que confi avam
as crianças às casas religiosas. Havia uma
grande diversidade de estratos sociais: co-
merciantes, operários, menos favorecidos.
Mas precisávamos de conhecer mais a fundo,
para reconstruir melhor a sua vida. Os judeus
em Roma estavam muito integrados.
Havia outros refugiados? No Colégio Português, houve 40 ou 50 pessoas, mas só três ou poucos mais seriam judeus...Sim. A pesquisa centrou-se inicialmente na
vertente hebraica, porque era a que tinha
menos documentação. Preocupámo-nos em
recolher documentação e história oral, antes
que desaparecessem as testemunhas. Desta
urgência documental, surgiu a escolha dos
Grazia Loparco, da congregação das Filhas de Maria Auxiliadora, fundou há dez anos uma associação para o estudo da época da II Guerra. Em Roma, e de acordo com os dados disponíveis, as casas religiosas terão acolhido, e salvo, cerca de 4300 judeus
judeus. Mas, quando começámos a ler docu-
mentação, demo-nos conta de que os judeus
eram uma das componentes: a Igreja e os
religiosos praticaram a caridade em relação
a todos os que estavam em difi culdade.
Comunistas, socialistas, partigiani...Sim. Muita documentação dizia respeito a
esses, como também a renitentes à incor-
poração forçada. Em função do momento,
esconderam-se pessoas procuradas injus-
tamente.
Havia uma orientação do Vaticano?Os críticos não querem reconhecer que, da
parte da Santa Sé, tenha havido uma orienta-
ção. Na documentação que temos, sabemos
que ela existia. Mas são os testemunhos dos
diários e das crónicas que dizem que os su-
periores dos religiosos tinham temor de abrir
as portas, sobretudo aos judeus. E que, da
parte da Santa Sé, havia indicação de dar
ajuda a qualquer um. Isto era feito através do
passa-palavra: muitos padres que trabalhavam
no Vaticano estavam em paróquias ou eram
capelães de casas religiosas.
Em crónicas de casas religiosas femini-
nas, relatam-se as indicações que vinham
do Vaticano, muitas vezes directamente com
o nome de Pio XII. E havia o próprio exemplo:
Montini [então substituto da Secretaria de
Estado, futuro Papa] Paulo VI, que estava to-
dos os dias próximo de Pio XII, foi o primeiro
a pedir a institutos religiosos que escondes-
sem judeus. Há escritos a contar isso...
Há mais exemplos?Sim. Nas Oblatas Agostinianas, as irmãs di-
ziam que acolheriam bem uma senhora judia
e a sua empregada, mas tinham difi culdade
em receber o marido, até pela sua idade, era
idoso. Elas pediram a Montini a permissão
excepcional e ele respondeu que podiam
recebê-lo.
Há respostas concretas que nos dizem que
havia encorajamento [a que se recebessem
as pessoas]. E esse encorajamento era feito
pela Santa Sé, de onde muitas vezes saíam
camiões com víveres para distribuir por es-
ses conventos.
Mais perto da Santa Sé estava a Guarda
Palatina [GP]. Durante a ocupação de Roma,
foram inscritos na GP [nessa época, a mais
próxima do Papa, dissolvida em 1970] muitos
judeus. Uma vez veio ter comigo um judeu
que me mostrou uma foto do pai com a far-
da da Guarda e me disse: “Se o meu pai não
tivesse encontrado a possibilidade de ser
inscrito na GP, eu não teria nascido, porque
ele teria sido preso.”
A GP, que tinha normalmente 300 ou 400
membros, chegou naqueles meses a 2000
membros. Judeus, refugiados e dissidentes
políticos foram inscritos na GP. Por isso se
pode dizer que o Vaticano também ajudou
directamente.
Com a abertura dos arquivos pode confi rmar-se esta realidade?Certamente poderão ser esclarecidas coisas
que ainda hoje são dúvidas. Todavia, a partir
dos 12 volumes dos Actos e Documentos da
Santa Sé, já publicados por quatro jesuítas,
sob a indicação de Paulo VI...
Dirigidos por Pierre Blet...Sim... Em 1964, apareceu essa interpretação
diferente sobre a fi gura do Papa Pio XII e
Paulo VI quis esclarecer [o papel do anteces-
sor]. A partir de alguns indícios, percebe-se
que há muitas coisas mais e os historiadores
esperam poder conhecer tudo.
Não me parece que isso vá mudar muito a
opinião sobre a intervenção da Santa Sé e
mesmo de Pio XII. Penso que serão confi r-
mados estes indícios, mas, enquanto não
tivermos os documentos, não podemos ava-
liar melhor.
Seria importante abrir os arquivos o mais rápido possível?Claramente. Mas sabemos, da Secretaria de
Estado, que isso não será possível antes de
cinco ou seis anos, pelo motivo de que são
muitíssimos documentos e é necessário fa-
zer o tratamento arquivístico. Creio que isso
poderá lançar até um confronto mais aberto
mesmo com historiadores judeus que se in-
terrogam sobre a fi gura de Pio XII.
Da Santa Sé havia indicação de dar ajuda a qualquer um. E era feito através do passa--palavra: padres que trabalhavam no Vaticano estavam em paróquias ou eram capelães de casas religiosas
Esta reportagem foi financiada no âmbitodo projecto Público Mais publico.pt/publicomais
DR