o padre que foi de leiria para roma salvar judeus

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e66ac250-5f9a-4de7-9432-7637a7e4dfc7 DR Joaquim Carreira abrigou refugiados judeus e antifascistas nos longos meses de ocupação da capital italiana pelas tropas nazis, nos anos 40. Grande reportagem do PÚBLICO, por António Marujo Bruxelas admite dar mais um ano a Madrid para atingir a meta dos 3% do PIB. O adiamento de 2014 para 2015 será feito à custa dos pensionistas Economia, 18 Um ano inteiro de tensões familiares pode explodir no Natal p26/27 DOM 23 DEZ 2012 EDIÇÃO PORTO Ano XXIII | n.º 8294 | 1,60€ | Directora: Bárbara Reis | Directores adjuntos: Nuno Pacheco, Manuel Carvalho, Miguel Gaspar | Directora executiva Online: Simone Duarte | Directora de Arte: Sónia Matos O padre que foi de Leiria para Roma salvar judeus A historiadora Irene Flunser Pimentel explica como a problemática social foi gerida na ditadura de Salazar p8 a 10 DIAP acusou esta semana ex-presidente do Benfica e mulher de burla qualificada. Vem aí nova acusação p14 A canícula testemunhou o primeiro recuo de Passos, que deixou cair a revisão da taxa social única p12/13 Estamos a regressar da segurança social à assistência pública? Burla terá permitido a Vale e Azevedo pagar renda em Londres O Verão quente de Passos e a primeira derrota de Gaspar Espanha vai ter mais um ano do que Portugal para corrigir o défice público PUBLICIDADE PUBLICIDADE

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Joaquim Carreira abrigou refugiados judeus e antifascistas nos longos meses de ocupação da capital italiana pelas tropas nazis, nos anos 40. Grande reportagem do PÚBLICO, por António Marujo [23_12_2012, in Revista Publica, pp. 13-18]

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Page 1: O padre que foi de Leiria para Roma salvar judeus

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DR

Joaquim Carreira abrigou refugiados judeus e antifascistas nos longos meses de ocupação da capital italiana pelas tropas nazis, nos anos 40. Grande reportagem do PÚBLICO, por António Marujo

Bruxelas admite dar mais um ano a Madrid para atingir a meta dos 3% do PIB. O adiamento de 2014 para 2015 será feito à custa dos pensionistas Economia, 18

Um ano inteiro de tensões familiares pode explodir no Natal p26/27DOM 23 DEZ 2012EDIÇÃO PORTO

Ano XXIII | n.º 8294 | 1,60€ | Directora: Bárbara Reis | Directores adjuntos: Nuno Pacheco, Manuel Carvalho, Miguel Gaspar | Directora executiva Online: Simone Duarte | Directora de Arte: Sónia Matos

O padre que foi de Leiria para Roma salvar judeus

A historiadora Irene Flunser Pimentel explica como a problemática social foi gerida na ditadura de Salazar p8 a 10

DIAP acusou esta semana ex-presidente do Benfi ca e mulher de burla qualifi cada. Vem aí nova acusação p14

A canícula testemunhou o primeiro recuo de Passos, que deixou cair a revisão da taxa social única p12/13

Estamos a regressar da segurança social à assistência pública?

Burla terá permitido a Vale e Azevedo pagar renda em Londres

O Verão quente de Passos e a primeira derrota de Gaspar

Espanha vai ter mais um ano do que Portugal para corrigir o défice público

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Page 2: O padre que foi de Leiria para Roma salvar judeus

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Page 3: O padre que foi de Leiria para Roma salvar judeus

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lista de refugiados, os nomes de Isacco, Elio

e Roberto Cittone, por esta ordem, identifi ca-

dos como “judeus”. Mas Elio diz que apenas

ele e o tio estiveram no colégio. “O meu pai

[Roberto] esteve noutro local.” Terão estado

em momentos diferentes? Ou o pai terá estado

apenas alguns dias? Joaquim Carreira não terá

colocado o nome na lista sem razão, mas Elio

não sabe explicar o facto.

Daniela Cittone, fi lha de Isacco, conta-nos

que nasceu em 1946 e que o pai morreu quan-

do ela tinha dez anos. A mãe relatava, mais tar-

de, que o pai e outros familiares tinham estado

em Roma refugiados em casas religiosas, mas

não sabe pormenores. “A mãe dizia que faltava

comida e que eles tinham medo que os alemães

aparecessem, não me recordo de mais.”

Mussolini estava no poder. Em

Junho de 1940, a Itália entra na

II Guerra Mundial e invade o

Sul de França. Em Setembro,

invade o Egipto sob manda-

to britânico e, no fi nal desse

mês, assina com a Alemanha

e o Japão o Pacto Tripartido.

Em Outubro, a Itália invade a

Grécia.

A ocupação de Roma pelos alemães, con-

cretizada entre 9 e 11 de Setembro de 1943,

como resposta à chegada dos Aliados a Itália,

sucedeu a um “ligeiro bombardeamento de

artilharia”. O episódio deixou Joaquim Car-

reira com “alguma apreensão pela segurança

das pessoas”. Nessa altura, as condições de

vida eram ainda “quase normais”, escreve ele

no relatório.

Nos primeiros dois meses não houve grandes

mudanças. Mas elas começaram a sentir-se

com a chegada dos refugiados a Roma. Estes

vão afl uindo ao colégio, depois de os Aliados

terem ocupado zonas da Itália. Na cidade, co-

meça a notar-se a rarefacção e posterior sus-

pensão completa de meios de transporte, com

a promulgação de várias ordens de polícia, o

início da requisição de pessoas para trabalhar

e a “caça aos hebreus”, como escreve o padre

Carreira.

Foi neste contexto que as casas religiosas

foram procuradas como abrigo, incluindo

de judeus. Mais tarde, já na década de 1960,

o papel do Papa Pio XII (1939-1958) durante

a II Guerra será objecto de polémica, com a

União Soviética e a Alemanha Democrática

(comunista) a criticá-lo pela suposta passivi-

dade perante o Holocausto. Hoje, no entanto,

há cada vez mais elementos a confi rmar que

o próprio Papa terá dado instruções para que

judeus e outros perseguidos fossem acolhidos

em casas religiosas e no próprio Vaticano (ver

entrevista na página 18).

Carlos Azevedo também considera que a

história deste padre português pode ajudar a

fazer mais luz sobre a acção do Vaticano du-

rante esta época. “Trata-se de mais uma his-

tória para completar o quadro da protecção

concreta dos judeus perseguidos por parte de

instituições da Igreja, O julgamento por vezes

precipitado precisa desta investigação e cons-

titui um serviço à verdade apresentar a um

vasto público um olhar mais pleno”, defende,

em declarações à revista 2.

Colocado perante as situações concretas que

lhe batem à porta, Joaquim Carreira assume

como suas as orientações do Vaticano: “A hos-

pitalidade que está na base dos princípios da

caridade cristã e a exemplo de todas as comu-

nidades religiosas de Roma, achei que a devia

oferecer a pessoas perseguidas, procuradas ou

em perigo”, escreve. “Concedi asilo e hospita-

lidade no colégio a pessoas que eram perse-

guidas na base de leis injustas e desumanas.”

Uma decisão que o levou a tomar um “maior

contacto com as misérias, as dores e as tragé-

dias consequência da guerra”.

O Colégio Pontifício Português es-

tava bem situado: no n.º 12 da via

Banco di Santo Spirito, no centro

histórico de Roma, no palacete

Alberini-Senni (que ainda existe),

como se lê na monografi a sobre

o CPP, da autoria do padre Arnal-

do Pinto Cardoso. Com um pá-

tio interior, as traseiras da casa

estavam voltadas para a via dei

Coronari, uma rua de antiquários que termina

junto da Piazza Navona.

O judeu Elio Cittone chegou à porta do colé-

gio, com o tio, Isacco Cittone, em Outubro de

1943. “Vivíamos em Milão, tínhamos ido para

Roma para fugir aos alemães.” O tio trabalha-

va com o pai de Elio, Roberto, na venda de

tapeçarias antigas. Um outro tio, o advogado

Alberto Luppolli, ajudou-os a procurar refú-

gio. Possivelmente, o tio Alberto conheceria já

Joaquim Carreira, admite Elio, que hoje vive

perto de Milão. Mas não sabe como é que o

padre português apareceu na sua vida e na

da sua família.

Do seu mês e meio no colégio, recorda-se

que havia umas 40 pessoas ali refugiadas. Os

dias preenchiam-se de poucos gestos: “De

manhã fazíamos as camas e arrumávamos os

quartos de modo a não parecer que ali esta-

va gente. Depois, passeávamos no corredor e

comíamos.” Também a comida não era muito

variada: pequeno-almoço, arroz e massas. “Era

o que tínhamos.”

Era também o que o padre Carreira conse-

guia arranjar, não sem difi culdade. No início,

valeu o facto de as provisões mais importantes

estarem já feitas previamente. “As necessida-

des de assegurar uma alimentação sã e, tanto

quanto possível, abundante aos alunos, para

lhes garantir a boa saúde, constituiu um pro-

blema grave”, escreve o padre português no

relatório. O problema tinha de ser resolvido

“quase dia a dia numa cidade que, pratica-

mente cercada durante sete meses, via cada

dia mais a serem consumidas as suas reservas

alimentares”.

Entre Setembro de 1943 e Junho de 44, mui-

tos preços aumentaram imenso. Em Abril, por

exemplo, o preço da farinha e outros produtos

básicos aumentou para o dobro. Logo nos dois

primeiros meses da ocupação, o custo de vida

subiu em média 20%, conta Joaquim Carreira.

Em Novembro, a fruta teve de ser abolida na

ementa do colégio, por já não se encontrar à

venda, sendo substituída por “um pouco de

marmelada”. Os bombardeamentos contínuos

das estradas de acesso a Roma e a completa

paralisia dos caminhos-de-ferro difi cultavam

o abastecimento da cidade.

Com o tempo, a alimentação tornou-se ainda

mais “monótona”. Mas Joaquim Carreira asse-

gura que foi sempre possível garantir uma “so-

pa abundante, de massa ou arroz”, bem como

um prato com “acompanhamento abundante

de legumes ou verdura”. Havia carne uma ou

duas vezes por semana (às vezes três) e cozi-

nhava-se duas massas iguais em cada dia. “Tal-

vez facto único entre os institutos religiosos

de Roma, pude sempre distribuir um copo de

vinho em cada uma das refeições principais”,

anota o padre Carreira no relatório.

O padre também ia pessoalmente à procura

de comida: “Se não conhecesse tantos molei-

ros nos arredores de Roma, os meus hóspedes

teriam passado muita fome!” E sugeria peque-

nos truques: “O milho, cozido em grão, valia

por bom bife”, conta ele, citado na página do

Santuário de Fátima na Internet a propósito do

centenário do seu nascimento, em 2008.

Francesco Santostefano, então fi nalista de

O Colégio Pontifício Português situava- -se no centro histórico de Roma, no palacete Alberini-Senni. Joaquim Carreira foi o primeiro padre a ter brevet. O seu primeiro voo aconteceu a 25 de Abril de 1940, pouco antes da partida para Roma, entre Alverca e Monte Real

que o tio não aceitou, de início, a ideia da par-

tida. João Mónico tinha 33 anos quando, em

1974, foi de Angola para Roma estudar e aí pas-

sou algum tempo com o tio. “Era inteligente,

afável, bem falante, delicado, compreensivo

mas exigente consigo e com os outros”, des-

creve à revista 2. Mesmo não satisfeito com a

decisão do bispo de Leiria, Joaquim Carreira

chegou à capital italiana a 4 de Maio de 1940,

com 31 anos, para ocupar o cargo de vice-reitor

do Colégio Pontifício Português. Em 1941, com

a morte do reitor, monsenhor Manuel Pereira

Vilar, passaria a reitor interino.

“A situação excepcional criada durante a

ocupação alemã de Roma não podia não fazer

sentir a sua infl uência também na vida” do

Colégio Pontifício Português, escreve Joaquim

Carreira num relatório sobre a vida do colégio

no ano lectivo de 1943-44, que permaneceu

inédito até agora e que aqui se revela nos seus

pontos principais. A revista 2 teve acesso aos

arquivos do Colégio Português, falou com pes-

soas que conheceram o padre Carreira, com in-

vestigadores e historiadores, com responsáveis

e documentalistas da Comunidade Hebraica

de Roma, com familiares e descendentes dos

refugiados — além de Elio Cittone, possivel-

mente o último refugiado do Colégio Portu-

guês ainda vivo. Tudo para procurar pistas que

permitissem conhecer com rigor os contornos

de uma história praticamente desconhecida,

incluindo na reconstituição das histórias de

vários dos refugiados.

Pelo colégio passaram pelo menos 40 pes-

soas, conforme o próprio padre escreve nesse

relatório — e no qual regista exactamente 39

nomes de foragidos. Mas há pelo menos um

depoimento de um dos refugiados que fala em

50 pessoas e outro em 42. Como nem todas

estiveram ao mesmo tempo na casa, será difícil

ter certezas sobre o número exacto.

“Pela graça do céu e certamente também

em parte pela grandíssima prudência manti-

da mesmo nos pormenores, o nosso colégio

fi cou isento de visitas inoportunas e de surpre-

sa da polícia, como se verifi cou no colégio Pio

Lombardo, no Instituto Pontifício Oriental e na

Basílica de São Paulo Extra-Muros”, edifícios

da Igreja onde também se albergavam padres.

Nessa altura, os edifícios da Santa Sé tinham

afi xados à porta dois avisos, em italiano e ale-

mão. Assinados pelo comandante alemão, o

general Reiner Stahel, os cartazes diziam: “Este

edifício tem fi ns religiosos e está na depen-

dência do Estado da Cidade do Vaticano. São

interditas quaisquer buscas ou apreensões.”

Apesar disso, como o próprio padre Carreira

nota no relatório, muitas eram as casas religio-

sas invadidas à procura de refugiados.

Elio Cittone tem ideia de que os ale-

mães bateram à porta do colégio

pelo menos uma vez. Quando ha-

via situações mais delicadas, os

refugiados já sabiam que deviam

esconder-se em lugares previamen-

te combinados. E assim o faziam

até os nazis irem embora. O reitor

alertava-os para eventuais riscos.

O tio de Elio decidiu sair. Foram

para casa de uma mulher que vivia com duas

fi lhas. Esconderam a verdadeira identidade,

mas a mulher suspeitou de que eram judeus.

Perante a ameaça de serem entregues, pela

recompensa de 200 mil liras, saíram de novo

e refugiaram-se em casa de um coronel anti-

fascista.

“Nunca mais vi ninguém, mas estou muito

grato” ao reitor, diz-nos agora Elio Cittone, re-

cordando a experiência no Colégio Português.

Mas há um pormenor em que o relatório do

padre Carreira e a memória de Elio não coin-

cidem. No documento, o reitor registou, na

Page 4: O padre que foi de Leiria para Roma salvar judeus

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Medicina e depois médico cirurgião, recor-

dará, em depoimento de 2 de Agosto de 1946,

guardado nos arquivos do colégio, que, apesar

do espectro da fome, “nunca faltou nada na

mesa” dos hóspedes clandestinos, graças ao

“sacrifício” do padre Carreira. E acrescentava

que o reitor tudo fazia para que os refugiados

estivessem em segurança.

O advogado Antonio Priolo agradeceu tam-

bém ao padre Carreira o facto de ter escondido

o seu fi lho, Luigi, no Colégio Português. Socia-

lista, presidente de câmara de Reggio Calabria

entre Setembro e Dezembro de 1943 (nomeado

para o cargo pelas forças de libertação), Anto-

nio Priolo e a sua mulher Gina escreveram ao

reitor em diferentes ocasiões. Num dos cartões

enviados, Priolo recorda que o apoio foi pres-

tado “durante o mais crítico e difícil período

da vida em Roma”. Em outras duas cartas, em

Junho de 1947, mãe e fi lho agradecem a Joa-

quim Carreira o envio de um pequeno jornal

de Fátima.

Apesar das difi culdades quotidianas, Joa-

quim Carreira regista que os padres estudantes

tiveram, tanto quanto possível, uma vida nor-

mal: aulas, conferências, participação em algu-

mas solenidades na basílica de São Pedro, pas-

seio periódico... Só não foi possível ver “muitas

belezas artísticas ou arqueológicas” porque

muitos monumentos ou museus estavam fe-

chados. Dos 61 exames realizados pelos alunos

(cursos superiores e doutoramentos), apenas

9 foram aprovados com as duas classifi cações

mínimas; os restantes foram aprovados (13)

cum laude (com louvor), (28) magna cum laude

e (11) com a máxima summa cum laude.

Os contactos entre os hóspedes e os alunos

do colégio foram “efi cazes e instrutivos” do

ponto de vista da formação dos padres, escre-

via ainda o padre Carreira. E a circunstância ex-

traordinária não perturbou de nenhum modo

os “estudos e a tranquilidade” do CPP nem as

actividades estritamente religiosas da casa.

Mais ainda: o comportamento dos alunos

a estudar em Roma foi óptimo, sob o ponto

de vista disciplinar e moral, alegra-se o padre

Carreira. E “exemplar pela piedade” e pelo

“espírito de caridade e compreensão demons-

trado em relação aos hóspedes”.

No seu relatório, o padre Carreira elogia os

refugiados como pessoas “dignas de estima e

de respeito” sob todos os aspectos. Vincenzo

Agado, partigiano e ex-coronel de infantaria,

que fala do colégio como um “oásis”, descreve

os refugiados como “uma pequena multidão de

ambiciosos, de inquietos, de apaixonados, de

idealistas que viveram nove meses sob a pro-

tecção do Colégio Português”. Ali, acrescenta,

os refugiados (italianos e um padre polaco, que

também consta da lista) sentiram palpitar “o

grande coração português”.

Num depoimento enviado ao padre Carreira,

em Maio de 1946, dois anos depois dos aconte-

cimentos, o partisan escreve: “Éramos 42 (...)

estudantes universitários plenos de esperan-

ças e de ideais numa nova Itália democrática;

soldados que tinham cumprido o seu dever

e não podiam juntar-se à própria família; ho-

mens políticos de pequena e grande dimensão

que esperavam a sua vez de comando; judeus

atormentados pelas leis raciais...”

Também é de gratidão o testemunho de Ce-

sare Frugoni. Nascido em 1881, Frugoni era já

então um clínico reputadíssimo e director da

Clínica Médica Geral da Universidade de Roma.

Era também o médico pessoal de artistas e po-

líticos conhecidos (e adversários entre si, em

alguns casos). Entre os seus doentes, estavam

Guilherme Marconi (que morrera em 1937),

o maestro Arturo Toscanini, o líder fascista

Benito Mussolini e Palmiro Togliatti, dirigente

histórico dos comunistas italianos. Já quase no

fi nal da sua vida, aos 84 anos, Frugoni casou-se

com a meio-soprano Giuletta Simionato, que

morreu em 2010.

As suas relações com essas personalidades

e o seu pioneirismo em várias áreas médicas

são recordados pelo próprio no livro Ricordi

i incontri (ed. Mondadori, 1974). Com o padre

Carreira, Frugoni correspondeu-se durante

vários anos. Pelo menos pelo Natal, o médico

enviava uma carta ao padre português.

“Recordo sempre a grande cortesia [e] ama-

bilidade com que fui acolhido por si e o sentido

de tranquilidade que me veio da sua solidarie-

dade espiritual e da ajuda [de todos]”, escreveu

em Dezembro de 1949. Há cartas de Frugoni

que não estão datadas, mas o médico escreveu

pelo menos entre 1944 e 1952. Numa delas, usa

também a expressão “oásis” para se referir ao

colégio: um “oásis de serena espiritualidade,

de alta intelectualidade e de afectuosa hospita-

lidade”. Nele “toda a vida decorria num ritmo

ordenado e tranquilo como se a fúria que agita

o mundo e o eco das tragédias que atormentam

a humanidade se esvanecessem e parassem às

portas do Colégio Português”.

Médico também, e reitor da Uni-

versidade de Roma, Giuseppe

Caronìa (1884-1977) era um dos

dirigentes do Partido Popular

(PP) que, depois da guerra, da-

ria origem à Democracia Cristã

(DC) italiana. É dele uma des-

crição do quotidiano no colé-

gio, na autobiografi a póstuma,

intitulada Con Sturzo e con De

Gasperi – Uno scienziato nella politica (ed. 5 lu-

ne, 1979) — o título alude aos líderes históricos

do PP e da DC italiana, Luigi Sturzo e Alcide

de Gasperi.

“Os dias eram longos. Passava-se o tempo en-

tre a capela, a sala de almoço, algumas breves

escapadelas ao terraço e na leitura”, escreve

Caronìa. O médico tinha, ele próprio, ajudado

a esconder vários judeus e outros perseguidos.

Num depoimento guardado na documentação

do colégio, Caronìa conta que, por dirigir a

Clínica das Doenças Infecciosas da Universi-

dade, conseguiu ocultar no hospital “mais de

uma centena de refugiados — judeus, funcio-

nários recalcitrantes, jovens refractários ao

recrutamento forçado, militares insubmissos,

guerrilheiros, etc. — a título de contagiados por

doenças graves”.

Mais do que isso: o automóvel e o consultó-

rio permitiram-lhe “servir de agente de ligação

entre os membros do Comité de Libertação

Nacional” e hospedar dirigentes dos grupos

de resistência.

Foi na sequência de um relatório sobre essas

actividades subversivas que um polícia amigo

avisou Caronìa, aconselhando-o a esconder-se.

A 26 de Maio, um telefonema confi rmou que

a detenção podia estar muito próxima. “Tran-

quilamente fui à clínica”, conta na carta guar-

dada no arquivo do colégio. “Dei as instruções

para o caso de ausência eventual. Voltei a casa

e pus minha mulher ao corrente de tudo.”

O médico foi depois à residência do em-

baixador de Portugal junto da Santa Sé, An-

tónio Faria Carneiro Pacheco, de quem era

amigo. Em 1950, numa entrevista a’O Jornal

de São Paulo conta a mesma versão. Mas na

sua autobiografi a, publicada postumamente

em 1979, Caronìa conta o episódio referindo

que se encontrou com o embaixador Nunes

da Silva, que era o representante de Portugal

junto do Estado italiano e de quem também

seria próximo.

Da casa de Carneiro Pacheco (ou de Nunes

da Silva, versão que parece menos provável,

por ser mais tardia), Caronìa terá seguido pa-

ra o Colégio Português, onde o “acolheram

fraternalmente os braços amigos do óptimo

reitor” e encontrou “uns cinquenta” refugia-

dos, entre os quais o seu colega Frugoni. “Era

o dia 26 de Maio [de 1944]. Sentia-se soar os

canhões entre Velletri e Valmontone”, escreve

na autobiografi a, referindo-se a duas localida-

des a sul de Roma, a cerca de 20 quilómetros

de distância.

Angelo Venturelli, outro refugiado protegido

pelo padre português, movimentava-se tam-

bém na política italiana. Nascido em Gussago,

em Brescia (norte), em Agosto de 1889, numa

família tradicionalmente católica, o contabilis-

ta e empresário ligou-se ao Partido Socialista

Italiano (PSI) logo depois da I Guerra Mundial.

Já na qualidade de militante socialista, rece-

beu em sua casa o deputado Tito Zaniboni,

poucos dias antes do atentado (frustrado) que

este protagonizaria contra Mussolini, a 4 de

Novembro de 1925.

De acordo com uma nota biográfi ca que ele

próprio escreveu numa folha, cedida à revista

2 pelo bisneto, Giovanni Cherubini, Angelo

Venturelli “viajou muito por todo o mundo”.

De Sófi a (Bulgária), guardou “uma recordação

inesquecível de monsenhor [Angelo] Roncalli,

mais tarde Papa João XXIII”. A partir de Julho

de 1943, participou, em nome do PSI, em reu-

niões de dirigentes de partidos antifascistas.

E organizou, com a ajuda do advogado Emilio

Bonomelli, um encontro entre o líder histórico

do PSI, Pietro Nenni, e monsenhor Giovanni

Battista Montini, então substituto na Secretaria

de Estado do Vaticano e futuro Papa Paulo VI.

Na mesma nota, Venturelli refere também o

seu refúgio em instituições religiosas durante

os anos da guerra.

Sobre o quotidiano no abrigo português fa-

la ainda um outro testemunho, manuscrito,

guardado nos arquivos do colégio. Domeni-

co Vitiello esteve refugiado com o seu irmão,

Franco, entre 5 de Outubro e 23 de Dezembro

de 1943 — o pai, Fortunato, ofi cial da Marinha,

juntou-se a eles “mais tarde”.

“Foi colocado um pequeno quarto à dispo-

sição de cada refugiado”, onde havia móveis e

água corrente, conta Domenico. Uma semana

depois, uma nova sala para duche foi instalada.

O reitor estabelecera algumas normas de vida e

prudência: colocou à disposição dos refugiados

“toda a biblioteca”, o rádio e os “compridos

e largos corredores” para passear, desde que

não se chegassem às janelas. Um dos alunos

iria ensinar, a quem quisesse, a “sonante lín-

gua de Camões”. Também estava preparado

um esconderijo para usar in extremis, se apa-

recessem os fascistas ou os alemães.

Domenico Vitiello confi rma que o número

de refugiados foi crescendo com “professo-

res, estudiosos, comerciantes, militares, estu-

dantes, judeus”. Isso obrigou a improvisar um

segundo abrigo de emergência, mostrando o

reitor dotes de arquitecto, diz ainda o texto.

A segurança do esconderijo foi posta à prova

várias vezes, conta Vitiello, mas todos pude-

ram experimentar o espírito de “altruísmo”

do padre Carreira, que “desafi ou as ferozes

leis de guerra alemãs e fascistas” para ajudar

os que estavam em perigo.

“Os dias decorriam com uma regularidade

monótona”, descreve Domenico, repetindo o

que Caronìa diria mais tarde na sua autobiogra-

fi a. Ler e estudar nos quartos ou na biblioteca,

escutar rádio para depois informar os restan-

tes, conversar com os padres-alunos, eram os

passatempos possíveis.

Quando podiam ir ao terraço, os fugidos

assistiam a “terríveis duelos entre a aviação

aliada e a defesa antiaérea” nazi-fascista, que

muitas vezes acabava de forma “trágica” pa-

ra esta. De vez em quando, algum refugiado

recebia a visita de familiares, sempre sujeita

a medidas de precaução.

Domenico Vitiello confi rma que, antes da

sua saída, a 23 de Dezembro, os nazis tinham

aumentado as perseguições mesmo em casas

religiosas. Nesse dia, o próprio reitor reuniu

os refugiados colocando-lhes a possibilidade

de fi carem ou saírem. E a maior parte saiu,

nesse preciso dia, pelo terraço e, através do

telhado, para um prédio vizinho. Mas outros

permaneceram até Junho de 1944.

Vitiello diz que, no dia da sua chegada, já es-

tavam na casa dois funcionários do Ministério

dos Negócios Estrangeiros — os irmãos Fran-

cesco e Marcello Cavaletti. No Diário da Manhã

( jornal ofi cioso do Estado Novo português),

de 31 de Maio de 1946, Dutra Faria, enviado

especial a Roma, contava uma conversa com

o então assessor de imprensa do ministério

italiano, Francesco Cavaletti (o irmão era di-

plomata).

Sentindo-se ameaçados, o assessor diz que

se refugiou com o irmão no Colégio Português,

onde já havia outras pessoas, entre as quais

“um ofi cial de marinha, um advogado e alguns

judeus”. A roupa de cada um era distribuída

pelos quartos dos padres. Se os alemães entras-

sem, concluiriam “que os padres portugueses,

além das suas batinas de eclesiásticos, possu-

íam um guarda-roupa variado (...) Os padres

arriscavam-se a muito — e sabiam-no”.

Um dia, conta, os alemães fecharam as duas

extremidades da rua e entraram nas casas à

procura de judeus. Os refugiados, acompanha-

dos pelo padre Carreira, sobem ao terraço —

onde se deparam com desconhecidos, também

eles fugitivos que tinham entrado às escon-

didas, pelo telhado, à procura de um abrigo.

Entretanto, assistem à cena de uma mulher

que, desesperada, se atira de uma janela pa-

ra a rua, tendo morte imediata. “Os alemães

encolhem os ombros... Uma fi lha de Israel a

menos”, comenta ele na reportagem citada.

Francesco Cavaletti esteve 20 dias refugiado

no Colégio Português, saindo quando outros

— “militantes socialistas, judeus carabineiros

desertores” — batiam à porta.

Mario Maria Jacopetti, professor

de engenharia na Universidade

de Nápoles, gostava de brincar

apresentando-se como “ex-

aluno do Colégio Português”,

porque foi um dos que mais

tempo (sete meses) estiveram

na casa, da qual conservara

grandes “laços de amizade

com os padres”. Num depoi-

mento escrito ainda em 1944, Jacopetti falava

do “afectuoso sentimento, misto de reconhe-

cimento, interesse e orgulho que se nutre para

com a instituição a que se pertenceu”.

Nascido em 1908, o mesmo ano de Joaquim

Carreira, Jacopetti morreu num acidente au-

tomóvel, em 1963, com quase 51 anos. Antes,

perdera mulher e fi lhas num bombardeamento

durante a guerra. Hoje, Mario M. Jacopetti dá

nome a um prémio do Rotary Club de Nápoles,

que o homenageia e distingue jovens engenhei-

ros na área da engenharia industrial, química,

electroquímica e electrotécnica.

Gaetano La Gioia, do Rotary de Nápoles, diz

à revista 2 que Jacopetti foi presidente do clube

entre 1960 e 1962. Apesar de ter sido aluno na

Universidade de Nápoles e de ter pesquisa-

do a vida de Jacopetti, La Gioia desconhecia

a passagem do engenheiro por Roma. Mas o

depoimento de Jacopetti guardado nos arqui-

vos do Colégio Português confi rma que se trata

do professor.

Durante os meses em que permaneceu no

colégio, Jacopetti teve tempo de apreciar as

características dos padres e dos refugiados.

O que lhe permitiu compor, em Dezembro de

1943, um poema em 64 oitavas para contar

o quotidiano daqueles tempos difíceis: “Irei,

Page 5: O padre que foi de Leiria para Roma salvar judeus

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pois, falar da bondade dos corações/ dos pa-

dres com quem vivemos lado a lado; e de todos

quantos no Colégio Português/ nos trataram

com paciência e cortesia.”

No longo poema, traduzido pelo padre João

Mónico na biografi a do tio, Jacopetti fala dos

que foram acolhidos “pelo humano reitor do

Colégio Lusitano”, da boa comida mas também

do “difícil levantar logo pela alba”. E conta

que o padre Carreira, “dotado de amor pela

física”, quis comprar uma máquina de barbe-

ar, mas “apareceu um dia com o rosto muito

vermelho”.

O poema dedica ainda estrofes aos padres

que ali estudavam, entre os quais Domingos

de Pinho Brandão, que chegaria a ser bispo

auxiliar do Porto. Era ele que ensinava por-

tuguês aos refugiados, aos quais são dedica-

das as últimas estrofes. Pelo meio, descreve

as formas de passar o tempo: arrumação de

quartos, missas e orações na capela, leituras,

rádio, conversas, discussões sobre os avanços

ou recuos dos Aliados, passeios nos corredo-

res, jogos de cartas — entre os quais a “sueca”,

referida como jogo popular em Portugal.

Nascido a 8 de Setembro de 1908 no

Souto de Cima, freguesia da Caran-

guejeira, perto de Leiria, Joaquim

era o fi lho do meio de Inácia e Jo-

aquim Carreira, que tinham mais

quatro fi lhas.

Em 1920, tinha Joaquim Carreira

12 anos, entrou para o seminário

de Leiria. A mãe terá sido a grande

responsável. Maria da Conceição

Primitivo, antiga costureira e cronista d’A Voz

do Domingo, jornal católico da diocese de Lei-

ria-Fátima, tem agora 80 anos e recorda que

Joaquim Carreira a procurou precisamente por

causa das crónicas que ela escrevia. Foi no últi-

mo Verão de vida do padre, ainda a tempo de

com ele se corresponder durante três meses,

antes da morte de Joaquim Carreira. Lembra

um episódio contado pelo próprio numa das

cartas: miúdo ainda, chegou um dia a casa e foi

ter com a mãe à eira. “Assentei-me a seu lado e

prosseguia o diálogo, quando o sino tocou as

ave-marias. Levantou-se e, cheia de paciência,

rezou comigo. (...) Foi nessa tarde quente, ao

fi ndar do dia, que na nossa eira a minha que-

rida mãe me disse assim: ‘Olha lá, fi lho, e se

Nossa Senhora quisesse que tu fosses padre?

Tu não querias?”

Na altura, Joaquim fi cou “quieto e calado”.

Um ano depois do episódio, a mãe assistiu em

Fátima ao chamado “milagre do sol”, a 13 de

Outubro de 1917. Em Outubro de 1918, Inácia

Carreira morreu. Dois anos depois, Joaquim

entra no seminário. A devoção do padre Carrei-

ra à Senhora de Fátima, que a mãe lhe incutira,

estaria presente em toda a sua vida.

Em 1925, Joaquim vai pela primeira vez para

Roma, para completar o curso de Teologia na

Universidade Gregoriana. Em 1931, é ordenado

padre, regressando no Verão desse ano a Por-

tugal. Colocado em várias funções na diocese

de Leiria, será como prefeito e professor no

seminário que a sua fi gura se começa a desta-

car: funda a emissora de rádio Esfola Gatos e

organiza um laboratório de Física e Química,

cuja excelência na cidade seria reconhecida.

“Fui aluno dele em Filosofi a, Matemática e

Físico-Química”, recorda à revista 2 o padre

Manuel da Silva Gaspar, que era dez anos mais

novo que Joaquim Carreira. “Teve grande infl u-

ência em mim, explicava muito bem e foi ele

que criou o laboratório, onde fi zemos várias

experiências.”

Manuel Gaspar, hoje com 94 anos, descre-

ve o seu professor e colega como alguém que

gostava de “estar a par das coisas da vida, sim-

pático, afável” e uma pessoa com “muitos ami-

gos”. O padre Gaspar tem outra memória rara:

viajou, com mais dois padres, numa pequena

avioneta pilotada por Joaquim Carreira. Sobre-

voaram Coimbra, Leiria, Monte Real, Fátima,

Porto de Mós e Nazaré.

É que, antes dos acontecimentos em Roma,

Joaquim Carreira tinha já esse facto inédito no

currículo: em Monte Real, a 23 de Fevereiro

de 1940, inscrevera-se no Aero Clube de Leiria

(ACL) para frequentar aulas de pilotagem de

aviões, tornando-se no primeiro padre portu-

guês a tirar a licença de aviação.

Na página do ACL na Internet, pode ler-se,

num resumo histórico, que o aeroclube foi cria-

do em 1938. Logo depois foi construído um

campo, um hangar e um posto meteorológico.

“No ano seguinte foi autorizada a Escola de

Pilotagem. Foi adquirido um avião Taylorcraft

com motor de 55 HP, de matricula CS-ABR,

onde foram ‘brevetados’ 11 pilotos no primeiro

curso, sendo instrutor o Sr. José da Cunha Car-

riço. Como curiosidade, deste curso fez parte

o 1.º padre português a ter o brevet.”

Joaquim Carreira viu a sua licença de piloto

aprovada a 24 de Abril de 1940, em Alverca. No

dia seguinte fez o seu primeiro voo — 55 minu-

tos entre Alverca e Monte Real, como se pode

ler na biografi a do sobrinho, João Mónico.

Nas viagens, o padre Carreira vestia sempre

o fato clerical — calças e casaco preto, cabeção,

por vezes a batina. Após o fi nal da II Guerra

Mundial, continuou a voar em Roma, como

recorda a irmã Maria Isilda, das Irmãs Fran-

ciscanas Hospitaleiras da Imaculada Concei-

ção. “Ele ia muitas vezes para o aeroporto de

Ciampino fazer treinos, voar”, diz-nos.

Uma das pessoas que voou com ele foi a ir-

mã Maria do Rosário Mão Cheia, também das

Franciscanas Hospitaleiras, que hoje reside em

Linda-a-Pastora (Oeiras). Sobrevoou Rieti, uma

cidade entre Roma e Assis. Joaquim Carreira

contou-lhe vários pormenores sobre os refu-

giados que acolheu no colégio. “Fez um grande

esforço para conseguir alimentos e dizia que

chegou a andar em Roma debaixo de tiros à

procura de comida”, conta ela à revista 2.

O padre Carreira tinha gosto em receber ami-

gos e levá-los a passear por Roma ou Itália.

Quando chegavam irmãs à casa Madonna di

Fatima, oferecia-lhes uma viagem a Assis e ou-

tros lugares franciscanos — daí nasceria o livro

Os Lugares Santos Franciscanos, a par de outros

sobre a história e a arte de Roma ou Fátima.

“Era muito bom em história, tinha um espírito

muito franciscano, era o melhor guia que podí-

amos ter”, conta a irmã Isilda. “Encantava-se

com o voo, falava disso com um prazer quase

espiritual”, continua Maria Isilda, que integrou

a congregação quando tinha 25 anos, em 1967,

e ainda vive na casa Madonna di Fatima, onde

monsenhor Carreira morreu, a 7 de Dezembro

de 1981 — fez há dias 31 anos.

O prazer do voo estava também à vista na

reportagem d’O Século Ilustrado, reproduzi-

da n’A República de 3 de Outubro de 1940. A

jornalista Fernanda Reis encontrara o padre

Carreira no dia do exame de piloto aviador: “O

dr. Joaquim Carreira é um sacerdote novo e cul-

tíssimo. Fala docemente de um desejo antigo

que a sua vontade tornou realidade: voar. (...)

Fiz-lhe, a certa altura, esta pergunta: — Como

se compreende que seja padre e aviador? Não

há uma certa contradição entre duas vidas tão

díspares? — Não, não há contradição alguma.

Nunca a Igreja foi contrária à ciência.” Ao to-

do, escreve João Mónico na biografi a do tio,

Joaquim Carreira fez, em Itália, pelo menos

200 horas de voo. A última vez que pilotou um

avião foi a 19 de Junho de 1973, sobrevoando

Pádua durante hora e meia.

Nomeado monsenhor em 1950, Joaquim Car-

reira desempenhou, a partir de 1952, o cargo

de conselheiro eclesiástico da embaixada por-

tuguesa junto da Santa Sé. Desde 1958 passou

a residir na casa Madonna di Fatima. “Morava

connosco e durante toda a semana animava

o centro de culto”, conta a irmã Maria Isilda.

“Esta era uma zona nova, havia muitas crian-

ças que nós preparávamos para a primeira co-

munhão.” Na casa das irmãs, além de celebrar

missa e acompanhar as pessoas, monsenhor

Carreira “dedicava-se muito ao confessioná-

rio”. Mas, “sobretudo, acolhia muito bem toda

a gente” e as pessoas “procuravam-no para

conversar e partilhar as suas difi culdades”.

A irmã Maria do Céu, também da congrega-

ção das Franciscanas Hospitaleiras, conheceu

igualmente Joaquim Carreira. “Era uma pessoa

de uma bondade extrema, sempre a sorrir,

sempre feliz, que encantava as pessoas com

a sua maneira de ser, diz-nos. A irmã Isilda

acrescenta que era “um “grande devoto de

Nossa Senhora de Fátima” (na capela da casa

onde ele viveu é possível ver ainda o mosaico

que representa a aparição de Fátima). “Ele con-

tava pouco” do que tinham sido os tempos no

colégio, diz a irmã Isilda, que se lembra, apesar

disso, de referências aos refugiados. “Falava

do sítio onde as pessoas estavam escondidas

e da alimentação. Dizia que enfrentou riscos

para acolher as pessoas, mas sentia uma gran-

de alegria por tê-lo feito.”

Roma seria libertada da ocupação

nazi entre 3 e 4 de Junho de 1944.

Mas o acontecimento não acabou

com os refugiados no Colégio Por-

tuguês. Em 1945-46, e durante al-

gumas semanas, mais seis pessoas

terão estado escondidas no Colégio

Português.

“Havia dois militares, um deles

coronel, que tinham estado na tro-

pa fascista”, recorda à revista 2 o padre Orlan-

do de Freitas Morna, do Funchal, que esteve

no Colégio Português logo depois do fi nal da

ocupação de Roma. “Não tinham feito crimes”,

esclarece o padre Morna, por isso o reitor Car-

reira os recebeu.

D. Eurico Dias Nogueira, ex-arcebispo de

Braga, chegou a Roma para estudar a 31 de De-

zembro de 1945. Recorda-se, conta-nos agora,

de ouvir as histórias dos refugiados de 1943-44,

mas conviveu igualmente com os dois milita-

res fascistas. Em textos publicados no Diário

do Minho, entre Agosto e Outubro de 2000, o

antigo arcebispo dizia que um dos dois estaria

condenado a pena de morte. Mas acrescenta

que também procuraram refúgio dois luso-

franceses, incorporados à força pelos nazis,

e dois padres lituanos, fugidos do seu país,

ocupado pela então União Soviética.

No seu depoimento de 1946, o partisan Vin-

cenzo Agado confi rma que, numa visita a Ro-

ma e ao colégio, notou que havia um pequeno

grupo de refugiados. Mas o ex-militar insistia

na ideia de uma Itália reconciliada: também os

novos foragidos eram “párias da sociedade”.

Apesar da mudança de situação política, as

condições materiais mantiveram-se difíceis por

algum tempo. No relatório de 1944-45, Joaquim

Carreira diz que apesar da rápida saída dos

refugiados depois da libertação de Roma, os

problemas alimentares mantiveram-se ainda,

pela “carência de alguns géneros fundamen-

tais” e pelo aumento brutal de preços.

D. Eurico Nogueira descrevia nos seus arti-

gos que o maior problema dos primeiros meses

“foi a defi ciente alimentação”. Conta mesmo

que, tendo ido a uma consulta médica queixar-

se de insónias, o médico lhe respondeu que o

que ele tinha era fome...

Logo no fi nal da guerra, Joaquim Carreira

começara entretanto a diligenciar no sentido

de comprar um terreno para construir um edi-

fício mais funcional para o Colégio Pontifício

Os edifícios religiosos tinham avisos à porta, em italiano e alemão, que os salvaguardavam de buscas das tropas nazis. Contudo, elas aconteciam e o Colégio Pontifício Português não terá sido excepção. O padre Joaquim Carreira arranjou sempre maneira de proteger os refugiados, e muitos lhe escreveram agradecendo ter--lhes salvo a vida

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Português. Não conseguindo, acabaria por dei-

xar a reitoria em 1954, passando a dedicar-se

a várias actividades pastorais.

Durante os três últimos meses antes de mor-

rer, monsenhor Carreira escreveu a Conceição

Primitivo 23 cartas a falar da Igreja, da diocese,

de memórias da mãe e da família. Numa delas,

dizia: “O cristão e muito especialmente o padre

que não goste de dar, falta-lhe alguma coisa de

muito importante na sua vida (...). Quem dá

parece-se com Deus.”

“Ele tinha uma necessidade extraordinária

de fazer o bem”, comenta Maria da Conceição.

Joaquim Carreira terá ainda, diz a antiga costu-

reira, salvo mais gente. Contou-lhe o próprio

que colocara várias pessoas em outros sítios,

além das que estiveram refugiadas no CPP.

Nas suas cartas a Maria da Conceição, mon-

senhor Carreira insurgia-se contra rumos da

Igreja Católica depois das reformas do Concílio

Vaticano II (1962-65). Dizia que o Concílio não

tinha dito para os padres andarem “à paisana”,

criticava o “espírito de desobediência” entre

os padres e não gostava que os clérigos se dei-

xassem tratar por tu. E escrevia: “À sombra

da grande árvore que foi o Concílio nasceram

muitos cogumelos venenosos que era preciso

arrancar. (...) não está bem tanta relaxação, a

que chamam actualidade, e tanto mundanis-

mo entre nós, ministros de Deus.” Em outra

carta, lamentava: “Como é belo ver as pessoas

comungarem, mas é tão triste para uma alma

de padre ver os confessionários vazios.”

A 19 de Setembro de 1981, Joaquim Carrei-

ra celebrara as bodas de ouro sacerdotais no

Souto de Cima. A 23 de Outubro, já em Lisboa

e na véspera do regresso a Roma, intui que es-

sa seria a última vez que visitava o país. Numa

das cartas a Maria da Conceição, conta que,

ao celebrar missa nessa manhã, “parece que

Nossa Senhora [lhe] tinha dito quase em sur-

dina ao [seu] ouvido: Esta vai seu a tua última

missa em Portugal.”

Sepultado inicialmente em Roma, o padre

Carreira seria trasladado para Portugal em

2001. Na altura, algumas pequenas notícias

na imprensa falavam de um padre que tinha

salvo “centenas” ou mesmo “milhares” de ju-

deus e outros refugiados. Apenas pequenas

pontas da história eram conhecidas.

No regresso a Roma, talvez Joaquim Carreira

se tenha recordado dos últimos momentos da

ocupação nazi: a 3 de Junho de 1944, à noite,

chegara a notícia de que os alemães estavam

em retirada. Na autobiografi a, o médico Giuse-

ppe Caronìa conta que os refugiados puderam

fazer o que até aí era proibido: passaram a noi-

te à janela e no terraço que dava para a ponte

e o castelo Sant’Angelo. Três dias antes, a 31

de Maio, chegara à casa um cesto de cerejas.

Enviado pela mulher de Caronìa, era o sinal de

que a pressão dos alemães já diminuíra. “Na-

quele dia, ao pequeno almoço, as boas cerejas

foram distribuídas a todos os comensais e foi

uma verdadeira festa.”

(Além das pessoas citadas no texto e de vários

apoios pontuais, agradece-se ainda a colabora-

ção de Silvia Haia Antonnucci, Renata Ergas,

Riccardo Pacifi ci, Piero Terracina, Giovanni Ca-

ronìa, José Travaços Santos, Jorge Lima Basto e

padres José Caldas Esteves, Paulo José Figueiró

e Luciano Cristino.)

“A PRUDÊNCIA ERA UMA NECESSIDADE”

Professora de História da

Igreja na Universidade

Pontifícia de Ciências da

Educação, Grazia Loparco

é religiosa da congregação

das Filhas de Maria Auxi-

liadora. Há uma década,

fundou com outros histo-

riadores uma associação

para o estudo da época da

II Guerra, tornando-se nu-

ma referência no assunto.

Várias pesquisas já feitas levaram mesmo à

declaração de mais de 20 freiras e padres

italianos “justos entre as nações” pelo Yad

Vashem, o Memorial do Holocausto — ainda

no fi nal de Novembro, o cardeal Elia Angelo

Dalla Costa, arcebispo de Florença que mor-

reu em 1961, foi reconhecido como tal. E um

livro de Gordon Thomas acabado de publicar

em Portugal, Os Judeus do Papa (ed. Casa das

Letras), fala do que defi ne como um plano do

Vaticano, com a envolvência de Pio XII, para

salvar milhares de judeus.

Sabemos já que um terço das casas religiosas (220, em 750) em Roma acolheram judeus. Quantos?Os dados seguros que temos falam de 4300

pessoas, numa comunidade hebraica que

oscilava entre 10 mil e 12 mil. Mas o número

peca provavelmente por defeito, porque nem

todas as casas religiosas puderam documentar

a presença de judeus.

Era um risco?Era arriscado escrever. Muitos institutos reli-

giosos, depois da libertação de Roma, a 4 de

Junho de 1944, escreveram o que acontece-

ra. Alguns tinham apontamentos, por vezes

com nomes falsos. Temos listas com nomes,

mas geralmente são posteriores à libertação:

o nome era um caminho para prender as

pessoas, tinha de se evitar escrever fosse o

que fosse, porque se temiam perseguições.

A prudência era uma necessidade.

Num artigo que escreveu no L’Osservatore Romano, em Janeiro, falava desses judeus. Quem eram eles?Eram de todas as classes sociais, homens,

mulheres e crianças, por vezes em família

(nuclear ou alargada), outras sozinhos. Em

alguns casos, eram os pais que confi avam

as crianças às casas religiosas. Havia uma

grande diversidade de estratos sociais: co-

merciantes, operários, menos favorecidos.

Mas precisávamos de conhecer mais a fundo,

para reconstruir melhor a sua vida. Os judeus

em Roma estavam muito integrados.

Havia outros refugiados? No Colégio Português, houve 40 ou 50 pessoas, mas só três ou poucos mais seriam judeus...Sim. A pesquisa centrou-se inicialmente na

vertente hebraica, porque era a que tinha

menos documentação. Preocupámo-nos em

recolher documentação e história oral, antes

que desaparecessem as testemunhas. Desta

urgência documental, surgiu a escolha dos

Grazia Loparco, da congregação das Filhas de Maria Auxiliadora, fundou há dez anos uma associação para o estudo da época da II Guerra. Em Roma, e de acordo com os dados disponíveis, as casas religiosas terão acolhido, e salvo, cerca de 4300 judeus

judeus. Mas, quando começámos a ler docu-

mentação, demo-nos conta de que os judeus

eram uma das componentes: a Igreja e os

religiosos praticaram a caridade em relação

a todos os que estavam em difi culdade.

Comunistas, socialistas, partigiani...Sim. Muita documentação dizia respeito a

esses, como também a renitentes à incor-

poração forçada. Em função do momento,

esconderam-se pessoas procuradas injus-

tamente.

Havia uma orientação do Vaticano?Os críticos não querem reconhecer que, da

parte da Santa Sé, tenha havido uma orienta-

ção. Na documentação que temos, sabemos

que ela existia. Mas são os testemunhos dos

diários e das crónicas que dizem que os su-

periores dos religiosos tinham temor de abrir

as portas, sobretudo aos judeus. E que, da

parte da Santa Sé, havia indicação de dar

ajuda a qualquer um. Isto era feito através do

passa-palavra: muitos padres que trabalhavam

no Vaticano estavam em paróquias ou eram

capelães de casas religiosas.

Em crónicas de casas religiosas femini-

nas, relatam-se as indicações que vinham

do Vaticano, muitas vezes directamente com

o nome de Pio XII. E havia o próprio exemplo:

Montini [então substituto da Secretaria de

Estado, futuro Papa] Paulo VI, que estava to-

dos os dias próximo de Pio XII, foi o primeiro

a pedir a institutos religiosos que escondes-

sem judeus. Há escritos a contar isso...

Há mais exemplos?Sim. Nas Oblatas Agostinianas, as irmãs di-

ziam que acolheriam bem uma senhora judia

e a sua empregada, mas tinham difi culdade

em receber o marido, até pela sua idade, era

idoso. Elas pediram a Montini a permissão

excepcional e ele respondeu que podiam

recebê-lo.

Há respostas concretas que nos dizem que

havia encorajamento [a que se recebessem

as pessoas]. E esse encorajamento era feito

pela Santa Sé, de onde muitas vezes saíam

camiões com víveres para distribuir por es-

ses conventos.

Mais perto da Santa Sé estava a Guarda

Palatina [GP]. Durante a ocupação de Roma,

foram inscritos na GP [nessa época, a mais

próxima do Papa, dissolvida em 1970] muitos

judeus. Uma vez veio ter comigo um judeu

que me mostrou uma foto do pai com a far-

da da Guarda e me disse: “Se o meu pai não

tivesse encontrado a possibilidade de ser

inscrito na GP, eu não teria nascido, porque

ele teria sido preso.”

A GP, que tinha normalmente 300 ou 400

membros, chegou naqueles meses a 2000

membros. Judeus, refugiados e dissidentes

políticos foram inscritos na GP. Por isso se

pode dizer que o Vaticano também ajudou

directamente.

Com a abertura dos arquivos pode confi rmar-se esta realidade?Certamente poderão ser esclarecidas coisas

que ainda hoje são dúvidas. Todavia, a partir

dos 12 volumes dos Actos e Documentos da

Santa Sé, já publicados por quatro jesuítas,

sob a indicação de Paulo VI...

Dirigidos por Pierre Blet...Sim... Em 1964, apareceu essa interpretação

diferente sobre a fi gura do Papa Pio XII e

Paulo VI quis esclarecer [o papel do anteces-

sor]. A partir de alguns indícios, percebe-se

que há muitas coisas mais e os historiadores

esperam poder conhecer tudo.

Não me parece que isso vá mudar muito a

opinião sobre a intervenção da Santa Sé e

mesmo de Pio XII. Penso que serão confi r-

mados estes indícios, mas, enquanto não

tivermos os documentos, não podemos ava-

liar melhor.

Seria importante abrir os arquivos o mais rápido possível?Claramente. Mas sabemos, da Secretaria de

Estado, que isso não será possível antes de

cinco ou seis anos, pelo motivo de que são

muitíssimos documentos e é necessário fa-

zer o tratamento arquivístico. Creio que isso

poderá lançar até um confronto mais aberto

mesmo com historiadores judeus que se in-

terrogam sobre a fi gura de Pio XII.

Da Santa Sé havia indicação de dar ajuda a qualquer um. E era feito através do passa--palavra: padres que trabalhavam no Vaticano estavam em paróquias ou eram capelães de casas religiosas

Esta reportagem foi financiada no âmbitodo projecto Público Mais publico.pt/publicomais

DR