o outono quente e as estações que seguem

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  • 7/27/2019 O outono quente e as estaes que seguem

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    O outono quente e as estaes que seguem1

    Fbio Wanderley Reis

    Os eventos relacionados com os protestos e manifestaesdeflagrados no Brasil em junho de 2013 tm faces variadas, e j mudaram

    bastante de feio com o transcurso das semanas. Como assinalou AndrSinger, o outono quente, que teve seu auge em 20 de junho, o dia em queo Itamaraty foi atacado, j fora substitudo pelas flores de inverno noincio de agosto, e desde ento o que temos visto sobretudo a mobilizaode categorias profissionais na defesa de seus interesses especficos: centrais

    sindicais, mdicos, funcionrios da Infraero, delegados da Polcia Civil,demitidos da TAM, greves de categorias diversas no nvel municipal, comdestaque para Natal...2 H tambm, alm da expectativa de retomadas maisamplas em setembro, certos protestos insistentes de motivao poltica, em

    particular os dirigidos contra o governador Srgio Cabral, e suasramificaes violentas de tipo Black Blocs. O que continuamos a ver,

    porm, pode claramente ser ligado ao ambiente criado pela exploso dejunho. E o desafio entender essa exploso e a natureza das manifestaes

    de junho, no ineditismo de suas dimenses e de vrios dos seus traos.A disposio predominante quanto s manifestaes de junho, vistas

    como espetacular expresso de ampla insatisfao popular, a de avali-lascomo novidade positiva para o processo poltico brasileiro. Algunsenxergam nelas um ponto de inflexo sem volta na histria poltica do pas,e muitos as romantizam numa perspectiva segundo a qual o povo amanifestar-se nas ruas, nas propores do ocorrido em junho, representaria

    por si s um singular avano democrtico. Singular o movimento

    certamente foi, e no o caso de negar sua importncia para a dinmicapoltica do pas e o aspecto potencialmente democratizante ligado ao fatode impor-se, por suas dimenses, ateno das autoridades e lideranas

    polticas e de sensibiliz-las para temas que vm a associar-se a ele.

    Mas h ponderaes que lanam questes intrigantes. Primeiro, aobservao de que o movimento, com seu ineditismo no Brasil, reproduzem alguns de seus traos bsicos (a ecloso sbita e o papel cumprido pelo

    1Publicado emInteresse Nacional, ano 6, nmero 23, outubro-dezembro de 2013.

    2Andr Singer, Flores de Inverno,Folha de S. Paulo, 3 de agosto de 2013, p. A2.

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    recurso tecnologia das redes sociais e dos telefones celulares namobilizao das pessoas) o que temos observado recentemente pelo mundoafora em movimentos como a chamada Primavera rabe, os indignadosna Espanha e o Occupy Wall Street nos Estados Unidos, a ocupao da

    praa Taksim em Istambulque ocorria, esta ltima, no justo momento emque os eventos brasileiros comearam a desenrolar-se. No obstante adiversidade de motivos nos casos de outros pases, impe-se a indagaosobre at que ponto, e de que modo, o significado do evento brasileiroestar condicionado pelo impacto do exemplo dos movimentos em outros

    pases em circunstncias em que est disponvel a tecnologia que os tornoupossveis.3 Em segundo lugar, h o fato de que a megamanifestaobrasileira de junho o desdobramento de uma ao iniciada pelo

    Movimento Passe Livre cujos objetivos explcitos, quaisquer que sejam asconexes e as inspiraes polticas do MPL, eram bem limitados eespecficos, referidos ao preo das passagens de nibus em So Paulo. Asdimenses que deram carter extraordinrio aos eventos resultam demobilizao que no tem qualquer relao ntida com esse ponto de partida(o prprio MPL andou reagindo negativamente a ela) e que simplesmente

    pega carona na ao inicial para esparramar-se pelo pasna verdade,procurando tontamente objetivos que lhe dessem sentido.

    Isso torna problemtico o empenho de ligar com clareza asmanifestaes com a insatisfao que supostamente a teria produzido. notvel a insistncia com que se falou, nas anlises, de insatisfaodifusa, sugerindo algo que se imagina ter impregnado de maneira extensao nimo da populao mas que, apesar da extenso, no se teria deixado

    perceber, donde o carter surpreendente da exploso.

    De fato, difcil encontrar indcios de insatisfao que sugerissem

    sequer de longe a iminncia ou a possibilidade de exploses populares.Dados de relevncia presumivelmente crucial, como os fornecidos peloIndice Nacional de Expectativa do Consumidor (INEC), mostram o opostode uma insatisfao difusa que tivesse subitamente emergido na

    3 Dados do IBGE (http://www.tecmundo.com.br/brasil/39797-ibge-uso-de-celular-e-internet-cresceu-mais-de-100-no-brasil-em-seis-anos.htm) mostram aumento de mais de 100% no uso dainternet e do celular entre 2005 e 2011 no Brasil. Quanto a outras pesquisas: Segundo o IbopeMedia, somos 94,2 milhes de internautas tupiniquins (dezembro de 2012), sendo o Brasil o 5

    pas mais conectado. De acordo com a Fecomrcio-RJ/Ipsos, o percentual de brasileirosconectados internet aumentou de 27% para 48%, entre 2007 e 2011. Verhttp://tobeguarany.com/internet_no_brasil.php , onde se remete s fontes dos dados.

    http://www.tecmundo.com.br/brasil/39797-ibge-uso-de-celular-e-internet-cresceu-mais-de-100-no-brasil-em-seis-anos.htmhttp://www.tecmundo.com.br/brasil/39797-ibge-uso-de-celular-e-internet-cresceu-mais-de-100-no-brasil-em-seis-anos.htmhttp://tobeguarany.com/internet_no_brasil.phphttp://tobeguarany.com/internet_no_brasil.phphttp://www.tecmundo.com.br/brasil/39797-ibge-uso-de-celular-e-internet-cresceu-mais-de-100-no-brasil-em-seis-anos.htmhttp://www.tecmundo.com.br/brasil/39797-ibge-uso-de-celular-e-internet-cresceu-mais-de-100-no-brasil-em-seis-anos.htm
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    populao em geral, e o mesmo ocorre nos resultados de pesquisa IBOPEdirigida especificamente s manifestaes.4 E h, naturalmente, o forteapoio a Lula e seu governo, bem como ao governo de Dilma e a suacandidatura em 2014, que todas as pesquisas relevantes mostravam at h

    bem pouco.

    Na imprensa, Miriam Leito, desqualificando sem pestanejar otrabalho de institutos independentes que, ao longo de anos, tm convergidoamplamente nos dados que produzem e visto seus nmeros corroboradosvez aps outra pelos resultados eleitorais, indaga-se sobre as pesquisas deopinio de forma que revela exemplarmente a pronta disposio a acolhercomo a realidade verdadeira do Brasil dos dias correntes a insatisfao

    que as manifestaes indicariam.5

    Outros analistas dedicam-sesimplesmente a tratar de explicar a insatisfao, e o que propem variabastante: temos vises estritamente poltico-partidrias, com nfase nainpcia ou corrupo dos governos petistas sob Lula e Dilma (descartandoo fato de que autoridades de diferentes nveis e partidos foram igualmentehostilizados,6 alm do carter antipoltico e antipartidrio, para o que valha,que o prprio movimento reivindica); e temos tambm tortuosaselaboraes sobre coisas como a restaurao do nacional-

    4Veja-se o Indice Nacional de Expectativa do Consumidor de julho de 2013, em que a srie

    histrica de dados mensais entre maio de 2012 e julho de 2013, exceto por pequena variaoquanto expectativa de inflao neste ltimo ms, no mostra alteraes significativas ao longodo perodo nas expectativas quanto aos diferentes itens estudados, ou seja, inflao,desemprego, renda prpria, situao financeira, endividamento, compra de bens de maior valor(http://www.portaldaindustria.com.br/cni/publicacoes-e-estatisticas/publicacoes/2012/09/1,4695/indice-nacional-de-expectativa-do-consumidor.html).J a Pesquisa de Opinio Pblica sobre as Manifestaes do CNI-IBOPE Inteligncia,executada em junho de 2013 e conduzida com amostra de alcance nacional e entrevistas em 79municpios do pas, revela que 71% do total de entrevistados se declaram satisfeitos oumuito satisfeitos quando indagados a respeito da vida que vm levando hoje e s asvariveis relacionadas com o porte ou outras caractersticas dos municpios (regiometropolitana versus outros, por exemplo) apresentam correlaes de alguma relevncia com asatisfao, ocorrendo menor satisfao (ainda assim, mnimo de 67% de satisfeitos) nosmunicos de maior porte e nas regies metropolitanas (vejam-se pp. 4, 5 e 6 do relatrio).

    5 Miriam Leito, O Globo, 23/06/2013, coluna Entender o Brasil: E as pesquisas de opinio?O que mesmo que perguntaram para captar tanta popularidade do governo? Como isso seencaixa com o que vimos agora?

    6 Veja-se a Pesquisa CNI-IBOPE-Edio especial-Junho de 2013

    (http://www.portaldaindustria.com.br/cni/publicacoes-e-estatisticas/publicacoes/2013/06/1,4053/pesquisa-cni-ibope-avaliacao-do-governo.html).

    http://www.portaldaindustria.com.br/cni/publicacoes-e-estatisticas/publicacoes/2012/09/1,4695/indice-nacional-de-expectativa-do-consumidor.htmlhttp://www.portaldaindustria.com.br/cni/publicacoes-e-estatisticas/publicacoes/2012/09/1,4695/indice-nacional-de-expectativa-do-consumidor.htmlhttp://www.portaldaindustria.com.br/cni/publicacoes-e-estatisticas/publicacoes/2013/06/1,4053/pesquisa-cni-ibope-avaliacao-do-governo.htmlhttp://www.portaldaindustria.com.br/cni/publicacoes-e-estatisticas/publicacoes/2013/06/1,4053/pesquisa-cni-ibope-avaliacao-do-governo.htmlhttp://www.portaldaindustria.com.br/cni/publicacoes-e-estatisticas/publicacoes/2013/06/1,4053/pesquisa-cni-ibope-avaliacao-do-governo.htmlhttp://www.portaldaindustria.com.br/cni/publicacoes-e-estatisticas/publicacoes/2013/06/1,4053/pesquisa-cni-ibope-avaliacao-do-governo.htmlhttp://www.portaldaindustria.com.br/cni/publicacoes-e-estatisticas/publicacoes/2013/06/1,4053/pesquisa-cni-ibope-avaliacao-do-governo.htmlhttp://www.portaldaindustria.com.br/cni/publicacoes-e-estatisticas/publicacoes/2012/09/1,4695/indice-nacional-de-expectativa-do-consumidor.htmlhttp://www.portaldaindustria.com.br/cni/publicacoes-e-estatisticas/publicacoes/2012/09/1,4695/indice-nacional-de-expectativa-do-consumidor.html
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    desenvolvimentismo, envolvendo a tentativa, executada de modo poucoconsistente, no s de dissociar a insatisfao difusa da ocorrncia deautoritarismo poltico ou de dificuldades econmicas, mas at de lig-la,sem maior ateno para a literatura internacional pertinente, suposta

    penetrao, em nvel mundial, de uma nova cultura (ps-material, dizemalguns) que afirmaria, contra o consumismo, a vigncia de valores denatureza no material...7

    De entremeio, h tambm a busca de explicao para o movimentoem suas bases sociais e em quais seriam seus participantes decisivos. Aqui,a observao inicial a de que no h informaes ou dados seguros sobrea questo.8 Isso no impede que alguns destaquem a atuao de jovens da

    classe mdia tradicional (que, a julgar pelos indcios precrios fornecidospelas imagens nos meios de comunicao, parecem de fato predominar) eque outros falem das novas classes mdias caso em que os ganhos e

    7 Veja-se Andr Lara Resende, O Mal-Estar Contemporneo, Valor Econmico, 05/07/2013.Cuidadosa avaliao dos dados e anlises relevantes, que desqualifica com fora as teses queafirmam a importncia dessa nova cultura ps-materialista, pode ser encontrada emHarold L.Wilenski, Postindustrialism and Postmaterialism? A Critical view of the New Economy, theInformation Age, the High Tech Society and All That, Wissenschaftszentrum frSozialforschung (WZB), Berlim, fevereiro de 2003; excerto de Harold L. Wilensky,Rich

    Democracies: PoliticalEconomy, Public Policy, and Performance (Berkeley: University ofCalifornia Press, 2002). Veja-se tambm Fbio W. Reis, A Propsito do Artigo de Andr LaraResende (http://www.schwartzman.org.br/sitesimon/?p=4551&lang=pt-br).

    8So em princpio relevantes, embora a direo de seus efeitos sobre as manifestaes no sejainequvoca, os dados relativos maneira pela qual a desigualdade social afeta a exposio internet: A desigualdade social, infelizmente, tambm tem vez no mundo digital: entre os 10%mais pobres, apenas 0,6% tem acesso Internet; entre os 10% mais ricos esse nmero de56,3%. Somente 13,3% dos negros usam a Internet, mais de duas vezes menos que os de raabranca (28,3%). Os ndices de acesso Internet das Regies Sul (25,6%) e Sudeste (26,6%)constrastam com os das Regies Norte (12%) e Nordeste (11,9%).(http://tobeguarany.com/internet_no_brasil.php) Mas mesmo nas pesquisas voltadasespecificamente para as manifestaes so muito escassas as informaes sobre sua relao comestratos socioeconmicos. Segundo aFolha de S. Paulo de 10/08/2013, p. A8, o Datafolha teriamostrado (no foi possvel encontrar os dados precisos correspondentes) que os ativistas, emsua grande maioria, so jovens [e] tm ensino superior. Pode-se consultar tambm, porexemplo, o relatrio da pesquisa CNI-IBOPE de julho de 2013, onde tudo o que se encontra arespeito so algumas informaes sobre as diferenas de apoio s manifestaes entre osdiversos estratos de renda e instruo e suas projees regionais: Apenas 9% da populao seposicionam contra as manifestaes. Quanto maior a idade do entrevistado, mais alto opercentual de marcaes contra as manifestaes. Entre os com 50 anos ou mais, 15% socontra. A posio contrria tambm maior entre os com menor grau de instruo (17% entreos com at a 4 srie do fundamental) e menor nvel de renda familiar (16% entre os com at um

    salrio mnimo). Na Regio Nordeste e no conjunto das Regies Norte e Centro-Oeste, ospercentuais dos que so contra as manifestaes so 12% e 11%, respectivamente. (P. 30)

    http://www.schwartzman.org.br/sitesimon/?p=4551&lang=pt-brhttp://www.schwartzman.org.br/sitesimon/?p=4551&lang=pt-brhttp://www.schwartzman.org.br/sitesimon/?p=4551&lang=pt-brhttp://tobeguarany.com/internet_no_brasil.phphttp://tobeguarany.com/internet_no_brasil.phphttp://www.schwartzman.org.br/sitesimon/?p=4551&lang=pt-br
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    avanos obtidos por seus integrantes so vistos como combinando-se comprecariedades que subsistiriam no acesso a bens e servios, especialmentepblicos, levando a novas demandas. De todo modo, a indagao sobre asbases sociais se desdobra, do ponto de vista da relao do movimento com

    a democracia, na questo de como confrontar as minorias que se lanam sruas, mesmo singularmente numerosas, com os 200 milhes de pessoas,aproximadamente, que compem a populao do pas. David Laitin, a

    propsito de dados desurveys canadenses sobre o funcionamento dademocracia, expressa a intuio realista, que outros compartilham, deque a operao da democracia envolveria minorias intensas (isto ,sofisticadas e politicamente competentes) a estabelecer as fronteiras dodebate poltico dentro das quais se movem maiorias apticas, e que o

    problema da estabilidade democrtica consistiria na agregao de minoriassensveis s questes polticas, independentemente do nvel geral deinformao e das disposies da coletividade mais ampla.9 Mesmo no casode se acolher esse realismo (que se pode pretender ver como corroborado,no evento que nos interessa, pelo amplo apoio prestado pela populao aomovimento), seria preciso lidar com a indagao sobre at que pontoteramos aqui sofisticao e competncia polticas nas minorias em aosem falar da equvoca relao das manifestaes com a ideia de

    estabilidade democrtica. Seja como for, resta, quanto ligao com ademocracia em geral, a questo doutrinria de como eventuais minoriasdivergentes em relao s manifestaes ou suas mensagens poderiam

    pretender fazer-se ouvir na dinmica unanimista (apesar da confuso deobjetivos) que caracteriza a tropelia da movimentao nas ruas e que repelecom veemncia, por exemplo, a participao de partidos, mesmo que estesentendam compartilhar certos objetivos e pretendam reforar as mensagenscorrespondentes.

    H ainda algo que merece meno nas tentativas de explicao daexploso de junho: que dizer de ideologias de um tipo ou de outro como

    possvel fator? Uma sugesto proposta por Bernardo Sorj, para quem setrata de um evento em que se prescinde de ideologias, ou onde as pessoasno possuem nem esto procura de discursos ideolgicos: a ao

    9David Laitin, The Civic Culture at 30,American Political Science Review, vol. 89, no. 1,maro de 1995, resumindo as principais contribuies encontradas em David J. Elkins,

    Manipulation and Consent: How Voters and Leaders Manage Complexity, Vancouver,University of British Columbia Press, 1993.

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    coletiva de agora diferente das de outros tempos onde as ideologiasocupavam um papel importante e os objetivos eram, ou nos pareciam,claros.10

    A questo pode ser apreciada rapidamente. Se a proposio de Sorjsobre a atuao das ideologias em outros tempos pretende aplicar-se populao em geral, e no apenas a intelectuais e estudantes (e algunstrabalhadores) politizados, ela simplesmente falsa: as ideologias a quealude nunca tiveram penetrao popular importante no Brasil, nem mesmono imediato pr-1964 (a aluso certamente no remete a ideologia emsentido que pudesse aplicar-se ao iderio conservador que se expressouento em iniciativas como as marchas da famlia com Deus pela

    liberdade), e sua escassa penetrao sem dvida ajuda a explicar afacilidade com que o regime populista foi derrubado, salientada num velhotexto por Fernando Henrique Cardoso, entre outros.11 Por outro lado, noque se refere s manifestaes recentes, no cabe descartar de todo o papelde ideologias de algum grau de articulao e elaborao no anarquismo aoestilo Black Blocs que nelas irrompe com frequncia, compartilhando comcerta velha esquerda intelectualizada de geraes anteriores a romantizaoda violncia dirigida a um sistema visto ele mesmo como violento e

    opressor.

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    Em vrios artigos, Wanderley Guilherme dos Santos tem faladode uma conjuntura fascistoide a propsito dos protestos e seusdesdobramentos,13 e , de fato, difcil pretender negar o ingredienteautoritrio e fascistizante da disposio violenta desse confuso anarquismo.

    Se voltamos insatisfao e seu papel, no se trata, naturalmente, denegar que a realidade socioeconmica e poltica do Brasil de hoje apresenterazes diversas de insatisfao. A comear pelos problemas de mobilidadeurbana que estiveram no foco inicial dos eventos recentes, com o protesto

    10Bernardo Sorj, A Poltica Alm da Internet(http://www.schwartzman.org.br/sitesimon/?p=4520&lang=pt-br).

    11Fernando Henrique Cardoso, Structural Bases of Authoritarianism in Latin America,reproduzido em F. H. Cardoso, Charting a New Course: The Politics of Globalization andSocial Transformation, Lanham, Md., Rowman & Littlefield, 2001, editado por Maurcio A.Font.

    12 Veja-se a entrevista de Roberto (nome fictcio), No h violncia no Black Bloc. Hperformance, Carta Capital, n. 760, 2 de agosto de 2013.

    13Veja-se, por exemplo,Wanderley Guilherme dos Santos, As razes da revolta

    (http://www.ocafezinho.com/2013/07/26/as-raizes-da-revolta/).

    http://www.schwartzman.org.br/sitesimon/?p=4520&lang=pt-brhttp://www.schwartzman.org.br/sitesimon/?p=4520&lang=pt-brhttp://www.schwartzman.org.br/sitesimon/?p=4520&lang=pt-brhttp://www.ocafezinho.com/2013/07/26/as-raizes-da-revolta/http://www.ocafezinho.com/2013/07/26/as-raizes-da-revolta/http://www.ocafezinho.com/2013/07/26/as-raizes-da-revolta/http://www.schwartzman.org.br/sitesimon/?p=4520&lang=pt-br
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    contra o aumento das tarifas de nibus, a lista dos problemas a mereceremdestaque inclui os das reas de sade, segurana e educao, com a

    precariedade dos servios pblicos oferecidos em cada uma delas, sem falarda conjuntura econmica marcada pelo crescimento claudicante, a ameaa

    inflacionria, os gastos do governo, o dficit nas contas externas... E h,por certo, o tema recorrente da corrupo poltica, vista com frequnciacomo a razo principal para as demandas relacionadas com a ideia dereforma poltica.

    Mas como ligar esse quadro com a novidade que as manifestaesrepresentaram? Vrios dos problemas mencionados esto longe de sernovos. Por outro lado, a avaliao dos aspectos conjunturais pode envolver

    maior ou menor pessimismo, e, alm da dificuldade de ver insatisfao nosdados sistemticos disponveis, possvel encontrar avaliaes, como a deBenjamin Steinbruch em artigo de jornal, em que se critica de modoconvincente, com referncia aos dados econmicos pertinentes e atrabalhos tcnicos de outros autores, a disposio pessimista com que temsido considerada a conjuntura que o pas vive.14 No processo detransformao socioeconmica que vimos experimentando h decnios eque produziu recentemente novas oportunidades de ascenso social, h

    certamente amplo espao para a expanso gradual da operao do que asociologia tem chamado h muito de mecanismos de privao relativa,em que o nimo conformista que tenderia a caracterizar as carncias e asubordinao social quando experimentadas de maneira estvel (como nasociedade de castas produzida pelo nosso longo escravismo) se vsubstitudo pela disposio reivindicante: quando a desigualdade diminuique surgem as comparaes e a percepo subjetiva da injustia dadesigualdadee o nimo de lutar contra ela. Mas isso se relaciona de

    maneira complexa com o empenho de entender as manifestaes de junho.Assim, a operao da privao relativa sugere certa ideia de

    quanto melhor, pior (melhores condies objetivas, maiores a frustraoe o desconforto subjetivos), envolvendo mecanismos que, por sua natureza,estariam em atuao no processo de desenvolvimento econmico e

    14Benjamin Steinbruch, X, Pessimismo,Folha de S. Paulo, 30/07/2013, p. B8.Note-se que

    mesmo no artigo intelectualmente mais ambicioso de Andr Lara Resende, mencionado acima,

    a necessidade de reconhecer os vrios aspectos socioeconmicos positivos da conjunturabrasileira , apesar das confuses do texto, a razo de que seja preciso buscar explicaes ps-materialistas para as manifestaes.

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    transformao estrutural quaisquer que fossem seus parmetros polticos oupoltico-partidrios.15 Tais mecanismos proveriam no mximo umenquadramento remoto para aes de protesto e reivindicao, para o qualno h como reclamar relao evidente com a exploso de junho. Alm

    disso, um movimento que acaba contando com a oposio de no mais de9% da populao, segundo os dados CNI-IBOPE (apesar de outros dadosindicarem, em propores importantes, reservas quanto ao recurso violncia), dificilmente poderia ser visto como a luta dos deserdados: nascondies de desinteresse e desinformao quanto a temas sociopolticosem geral que, apesar dos avanos sociais recentes, as pesquisas acadmicasapontam na ampla maioria da populao brasileira, certamente maisrazovel supor que o apoio derive antes do mero impacto direto da intensa

    e extensa exposio dos protestos na TV, parte qualquer consideraominimamente atenta de razes de insatisfao (note-se que, em seguida aalguma vacilao inicial, as manifestaes foram sempre apresentadas, pelaTV e pela imprensa em geral, sob a luz positiva de afirmao dademocracia, com a violncia frequente debitada s minorias de

    baderneiros). Reservas anlogas se aplicam igualmente a informaescomo as trazidas pela pesquisa OAB-IBOPE divulgada em 6 de agosto de2013, com avassalador apoio reforma poltica em circunstncias em

    que sem dvida cabe presumir que a vasta maioria dos entrevistados notem ideia clara do que o tema envolve (aspecto que as informaesdisponveis sugerem no ter sido explorado na pesquisa). E essa

    perspectiva geral, ressaltando desinformao e inconsistncia, no senoreforada pela prpria precipitao sbita das taxas de apoio presidenteDilma, e a vrios outros lderes polticos, a qual claramente consequnciadireta das manifestaese a respeito da qual cabe obviamente indagar seno se intensificar a reverso moderada que novas pesquisas j indicaram.

    Da brota uma conexo importante, e talvez mesmo crucial para acompreenso mais adequada da natureza dos eventos de junho, entrecondies intelectuais e psicolgicas presentes em maior escala e traos

    15Abrindo mo de referncias clssicas sobre privao relativa, mencionemos o trabalhorecentssimo de Mason Moseley e Matthew Layton, Prosperidady protestasen Brasil: latendencia para el futuro en Amrica Latina?,Perspectivas desde el Barmetro de lasAmricas: 2013, no. 93, 2013, Vanderbilt University(http://www.vanderbilt.edu/lapop/insights/IO893es.pdf). A partir das manifestaes ocorridas

    agora no Brasil, os autores salientam, ao lado do maior acesso s redes sociais, o fortecrescimento econmico na ltima dcada e os avanos na educao para prever uma nova erade protestos para outros pases do continente, como Chile, Uruguai e Peru.

    http://www.vanderbilt.edu/lapop/insights/IO893es.pdfhttp://www.vanderbilt.edu/lapop/insights/IO893es.pdf
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    que distinguem as prprias manifestaes. Um aspecto especial o dainfluncia dos meios de comunicao de massa tradicionaise, assim, daopinio pblica que eles ajudam decisivamente a moldar16na buscadesorientada de temas e objetivos que vimos nas manifestaes,

    terminando por incluir todo e qualquer tema que, de algum modo, tenhasurgido na agenda socioeconmica e poltica do pas em tempos mais oumenos recentes. Apesar da novidade da forma explosiva e da aparnciarevolucionria das manifestaes, h indcios, realados por pesquisasdivulgadas pelaFolha de S. Paulo, de que a vasta maioria dos linkscompartilhados pelos manifestantes so tomados da imprensa (no obstanteo surgimento paralelo da chamada mdia ninja). Mas o mais importante certamente o fato de que essa impregnao pela opinio pblica resulta

    na ingnua disposio antipoltica do movimento, a adeso sem mais viso intensamente negativa da poltica e dos polticos, decorrente da forteassociao entre poltica e mera corrupo h muito presente nos meios demassa tradicionais e, como consequncia, na opinio pblica disposio que se desdobra no repdio aos partidos e a qualquer associaodas manifestaes com eles. Por certo, a ingenuidade tem matizes, que svezes se opem de forma peculiar opinio pblica, como o caso dosgrupos anarquistas que pretendem estar agindo politicamente ao recorrer a

    atos violentos que eles presumem revestidos de um simbolismoanticapitalista. Mais interessante, porm, contrapor a essa violnciaanarquista (ou, em dados casos, simplesmente ao oportunismo decriminosos) certa propenso geral ao embate violento presente mesmo nasmanifestaes supostamente pacficas, que acabam sempre por tomar orumo do enfrentamento aberto com as instituies (prefeituras, cmarasmunicipais e assemblias legislativas, governadores, Congresso...). claroque, se se tratasse simplesmente de trazer certas mensagens a pblico em

    termos republicanos, a vastido das manifestaes e a coberturasingularmente intensa dos meios de massa seriam mais que suficientes.17

    16 Isso envolve, como parece claro, reservas importantes quanto usual santificao da opiniopblica, tratada no singular como a expresso unnime das ideias e da vontade da nao. Naverdade, a expresso encobre uma entidade fluida e plural, de relaes complicadas com oprincpio majoritrio que a democracia tende a valorizar, razo pela qual aquilo que se presumeser a opinio pblica com frequncia se aparta do que revelam pesquisas de opiniosistemticas, com regras precisas de amostragem, e das inclinaes do eleitorado em geral.

    17 Um breve comentrio adicional quanto ao papel dos meios de comunicao de massa. Ainfluncia a que me refiro tem a ver com algo que ocorre h muito, como parte e fator

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    Isso permite ressaltar que o movimento no somente contrrio poltica e aos partidos, mas marcado, mais amplamente, por umadisposio geral de carter anti-institucional. Essa disposio surge svezes de maneira confusa na reivindicao de democracia direta,

    desatenta no s para a relao da democracia direta com a inexistncia, jno caso da Atenas clssica, dos direitos civis que a estrutura institucionaldo constitucionalismo assegura, mas tambm para as muitas distores quea experimentao com mecanismos de democracia direta ensejou, porexemplo, na Califrnia da atualidade. Em princpio, possvel relacionar onimo anti-institucional com a falha em buscar o necessrio equilbrio entredois ideais: de um lado, um ideal republicano de participao eenvolvimento com a poltica e ateno para os deveres do cidado, que

    impele ao espao pblico e eventualmente s ruas; de outro lado, um idealliberal em que o cidado busca resguardar-se contra a tropelia e a violncia,com as quais a necessidade de presena nas ruas tende a estar associada, eanseia pela construo institucional efetiva capaz de garantir, a um tempo,o interesse pblico e os direitos de cada umincludo o crucial direito de ir

    para casa em paz, tomado em sentido bem mais amplo do que o que remeteaos obstculos criados pelas manifestaes para o deslocamento nascidades ou estradas. Embora o ideal liberal possa parecer o mais

    diretamente ameaado pelos eventos de junho e seus desdobramentos, difcil pretender ver mesmo a afirmao de um ideal republicano noantipoliticismo e anti-institucionalismo viscerais do movimento e no jogoviolento de que acaba dispondo-se a participar.

    importante de uma cultura geral negativa a respeito da poltica. Essa cultura resulta dafrustrao inevitvel de uma viso idealizada da atividade poltica, que a trata em termos dabusca de valores cvicos e do bem pblico e deslegitima os interesses pessoais que,naturalmente, compem tambm a motivao de quem quer que se dedique a ela, como aqualquer outra atividade (curiosamente, a cultura negativa alcana mesmo categorias dedicadasprofissionalmente a estudar assuntos correlatos, como os economistas, que, sendo os campeesdo realismo quanto prevalncia dos interesses na sua seara prpria, com alguma frequnciase mostram, entre ns, prontos a denunciar a vilania dos interesses quando se trata do estado ouda poltica, apesar de correntes tericas que procuram estender os supostos realistas a todos oscampos da vida social). Outra perspectiva quanto aos meios de massa em relao aos eventos dejunho, especialmente no caso da chamada grande imprensa, a que indaga sobre a possvelmotivao poltico-partidria de sua atuao, tendendo a ver a intensa cobertura e a insistenteavaliao democrtica das manifestaes como parte de uma estratgia antigovernista atentaaos desdobramentos para as eleies de 2014. Talvez haja algo de verdade nessa leitura. Adificuldade, contudo, reside no carter difundido dessa avaliao democrtica, amplamente

    compartilhada (com certeza, em muitos casos, por motivos esprios de correo poltica) porlideranas poltico-partidrias de todos os naipes e variados setores menos grandes daimprensa, no obstante eventuais reservas de alguns blogs de afinidades governistas.

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    Em suma, a anlise me parece desaguar na avaliao de que, em vezda nfase nos ingredientes de afirmao democrtica e na motivao nobreque teria movido os manifestantes, a melhor explicao para os eventos de

    junho provavelmente depende da ateno para uma possibilidade banal.

    necessrio distinguir, sem dvida, entre a tecnologia de celulares e redessociais como instrumento facilitador das mobilizaes populares e osmotivos em torno dos quais as pessoas se mobilizam. Pode acontecer,contudo, que a simples disponibilidade da tecnologia venha ela mesma afornecer os motivos. Em outras palavras, possvele proponho que istodescreve os fatos ocorridosque as manifestaes em suas dimensesespeciais tenham sido em boa medida fteis, a mera imitao das irrupesanteriores (e simultneas) em outros pases aps deflagrada com xito, pelo

    MPL, sua primeira etapa referida ao preo das passagens de nibus (ecertamente contando com estmulos adicionais na excitao produzida pelocomeo coincidente da Copa das Confederaes e na dureza da represso

    policial inicial, depois amplamente substituda, diante da leiturademocrtica dos eventos, por lenincia e omisso). O que no significaque ingenuidade, desorientao e futilidade tornem o movimentoinconsequente: uma vez alcanada a dimenso que adquiriu, fatal que eleafete a cena poltico-institucional e que atores polticos variados se movam

    em resposta, embora essa resposta possa, naturalmente, ser mais ou menoslcida e adequada. E agora que se viu que possvel e mesmo fcil semearfuraces, cabe aguardar novos furaces, em particular, talvez, para 2014,com o chamariz atraente que a combinao de Copa do Mundo e eleies

    presidenciais dever representar. Esperemos que, diferentemente do quetemos visto, a cultura dos heris mascarados da era de Anonymous nocontinue a ter xito em definir o politicamente correto em termos capazesde inibir as instituies do estado democrtico no exerccio de suas

    responsabilidades. E que a perplexidade e as vacilaes exibidas at aquipelas autoridades e lideranas polticas no tenham ainda garantido oambiente que nos leve duradouramente a primaveras, veres, outonos einvernos quentes.