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A formação do trabalhador no jornal O Operário, de Montes Claros (1932 – 1945): a produção de novas sensibilidades “sem classes”. Caroline Maria Ferreira Drummond 1 Marcus Aurelio Taborda de Oliveira 2 Nos marcos do projeto de investigação que temos conduzido, duas dimensões se entrelaçam: a perspectiva de formação dos trabalhadores ao longo da história brasileira e a imprensa periódica como meio privilegiado de divulgação de estratégias para a sua consecução. 3 Certamente essas dimensões se imbricam com as retóricas de modernização difundidas pela intelectualidade brasileira se consideramos que uma parte significativa daquelas retóricas, no período aqui demarcado, ajudou a fundamentar “projetos de nação” que elidiriam o conflito como um fundamento básico nas sociedades modernas. No texto que segue exploramos algumas das ponderações sobre o que é ser trabalhador, localizadas no Jornal O Operário, de Montes Claros, Minas Gerais, focando um período de grande importância para o desenvolvimento de uma nova sensibilidade urbana, nacional e laboral. O entendimento aqui adotado de nova sensibilidade nos leva a sustentar que naquele período o trabalho industrial de caráter moderno acompanhava amplas retóricas de modernização e moralização dos costumes, sendo os trabalhadores um dos alvos privilegiados tanto dos capitalistas que se organizavam, quanto do Estado, sob a égide de Getulio Dorneles Vargas e sua 1 Graduada em História pela UFMG, foi bolsista de Iniciação Científica da Fundação de Amparo à Pesquisa de Minas Gerais – FAPEMIG. 2 Professor da Faculdade de Educação da UFMG; bolsista em produtividade de pesquisa do CNPq e beneficiário do Programa Pesquisar Mineiro da Fundação de Amparo à Pesquisa de Minas Gerais – FAPEMIG. 3 Este trabalho é parte dos resultados do projeto A educação dos sentidos na história: o tempo livre como possibilidade de formação (entre os anos finais do séc. XIX e os anos iniciais do séc. XXI), desenvolvido na Universidade Federal de Minas Gerais, com financiamento do CNPq sob n. 470687/2011-8 e da FAPEMIG, sob n. APQ 00635/11. O projeto, por sua vez, está articulado com as atividades do Projeto Moderno, modernidade, modernização: a educação nos projetos de Brasil – séc. XIX e XX, coordenado pelo Prof. Luciano Mendes de Faria Filho. Uma versão resumida foi apresentada no Congresso Mineiro de Ensino e Pesquisa em História da Educação, em Mariana, no ano de 2013.

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  • A formao do trabalhador no jornal O Operrio, de Montes Claros (1932 1945):

    a produo de novas sensibilidades sem classes.

    Caroline Maria Ferreira Drummond1

    Marcus Aurelio Taborda de Oliveira2

    Nos marcos do projeto de investigao que temos conduzido, duas dimenses se

    entrelaam: a perspectiva de formao dos trabalhadores ao longo da histria brasileira

    e a imprensa peridica como meio privilegiado de divulgao de estratgias para a sua

    consecuo.3 Certamente essas dimenses se imbricam com as retricas de

    modernizao difundidas pela intelectualidade brasileira se consideramos que uma parte

    significativa daquelas retricas, no perodo aqui demarcado, ajudou a fundamentar

    projetos de nao que elidiriam o conflito como um fundamento bsico nas

    sociedades modernas.

    No texto que segue exploramos algumas das ponderaes sobre o que ser

    trabalhador, localizadas no Jornal O Operrio, de Montes Claros, Minas Gerais,

    focando um perodo de grande importncia para o desenvolvimento de uma nova

    sensibilidade urbana, nacional e laboral. O entendimento aqui adotado de nova

    sensibilidade nos leva a sustentar que naquele perodo o trabalho industrial de carter

    moderno acompanhava amplas retricas de modernizao e moralizao dos costumes,

    sendo os trabalhadores um dos alvos privilegiados tanto dos capitalistas que se

    organizavam, quanto do Estado, sob a gide de Getulio Dorneles Vargas e sua

    1 Graduada em Histria pela UFMG, foi bolsista de Iniciao Cientfica da Fundao de Amparo

    Pesquisa de Minas Gerais FAPEMIG.

    2 Professor da Faculdade de Educao da UFMG; bolsista em produtividade de pesquisa do CNPq e

    beneficirio do Programa Pesquisar Mineiro da Fundao de Amparo Pesquisa de Minas Gerais

    FAPEMIG.

    3 Este trabalho parte dos resultados do projeto A educao dos sentidos na histria: o tempo livre como possibilidade de formao (entre os anos finais do sc. XIX e os anos iniciais do sc. XXI), desenvolvido

    na Universidade Federal de Minas Gerais, com financiamento do CNPq sob n. 470687/2011-8 e da

    FAPEMIG, sob n. APQ 00635/11. O projeto, por sua vez, est articulado com as atividades do Projeto

    Moderno, modernidade, modernizao: a educao nos projetos de Brasil sc. XIX e XX, coordenado

    pelo Prof. Luciano Mendes de Faria Filho. Uma verso resumida foi apresentada no Congresso Mineiro

    de Ensino e Pesquisa em Histria da Educao, em Mariana, no ano de 2013.

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  • perspectiva poltica paternalista. Logo, eram lanadas as bases do que se desejaria de

    um novo trabalhador, ordeiro, produtivo, dinmico e passivo, unido com os demais

    trabalhadores em torno de ideais comuns. Nesse trabalho pressupomos um conjunto de

    retricas que almejavam formar um novo trabalhador, de sensibilidade acorde aos

    ventos de modernizao autoritria que assolava o pas. Tratar-se-ia, pois, da busca de

    produo de um homem-novo coetneo com a afirmao do capitalismo brasileiro em

    consonncia com a reestruturao do Estado e da economia capitalistas no plano

    mundial.

    Primeiro aspecto que julgamos importante destacar que aquela dcada de 1930,

    no Brasil, foi marcada pela introduo de uma poltica de massas que resultou na

    constituio de uma nova cultura poltica (Capelato, 2009). A crise do liberalismo aps

    a Primeira Guerra provocou em muitos pases a reviso do papel do Estado e de sua

    relao com a sociedade. A resoluo da questo social comea a se apoiar na

    harmonizao da sociedade e na eliminao dos focos de tenso, alterando-se os

    mecanismos de dominao social a partir do controle dos anseios das massas

    trabalhadoras. Assim, a poltica de massas e o trabalhismo foram implantados no Brasil

    nas dcadas de 1930 e 1940 em oposio ao liberalismo decadente do perodo

    anterior, com a inteno de inserir o pas de forma harmnica e isenta de conflitos no

    sistema capitalista internacional. De maneira geral:

    A crtica ao sistema liberal-democrtico, tido como artificial e perigoso; a necessidade da substituio da ordem poltica liberal por outra de natureza corporativa e autoritria; a compreenso paternalista e autoritria do conflito social. A restaurao de valores afirmativos de autoridade, hierarquia, ordem e obedincia em detrimento da noo de igualdade e de liberdade; a hipertrofia do aparelho do Estado e sobretudo do Poder Executivo; a demanda por uma certa interveno do Estado na economia; a reivindicao da independncia econmica da nao. Todos esses elementos compunham o arcabouo do discurso antiliberal (CAPELATO, 2009, p. 145)

    As reformas realizadas no Estado, e que atingiram seu pice durante o Estado

    Novo, ainda que anunciadas desde os primeiros anos do Governo Provisrio, foram

    justificadas como necessrias para a resoluo dos problemas que impediam o alcance

    do progresso. O progresso que, por sua vez, era representado pela transformao de uma

    sociedade agrria e rural em uma industrializada e unificada, significava modernizao:

    remodelar o Brasil por meio da industrializao implicava a organizao de uma fora

    de trabalho disciplinada e de mecanismos de controle social para assegurar a ordem

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  • (CAPELATO, 2009). Uma das principais preocupaes do varguismo, portanto, foi a

    construo da imagem do trabalhador brasileiro e de uma identidade nacional, exaltando

    o trabalho, a disciplina, a ordem e a unio, aspectos que consideramos como a tentativa

    de constituio de uma nova sensibilidade, sustentculo de um discurso de forte apelo

    nacionalista.

    A legitimao desse governo e a propagao de sua ideologia foram realizadas

    principalmente atravs da propaganda, dos meios de comunicao (peridicos, rdio),

    da educao (cartilhas, livros didticos) e da produo cultural (cinema, teatro,

    literatura), que exerceram considervel influncia sobre as massas. Essa influncia se

    deu atravs da tentativa de inculcao de uma ideologia que constantemente produzia a

    repetio e exposio de imagens, smbolos e mitos que focavam um projeto nacional

    pela via da realizao de um sem nmero de rituais.

    Desse modo, a propaganda, sistemtica e agressiva, cujo principal rgo estatal

    de controle era o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), disseminada pelos

    mais diversos meios de comunicao, foi essencial para a reproduo do projeto

    ideolgico do governo. Assim, elementos que tocam os sentidos e as sensibilidades

    eram utilizados como modo de seduzir as massas e promover sentimentos de unidade e

    identidade, exaltando-se principalmente a coletividade e o esprito industrioso. Como

    aponta Alcir Lenharo, a propaganda tinha a inteno de espalhar [uma] carga emotiva e

    sensorial, atuando sobre corpos e mentes dos trabalhadores brasileiros (LENHARO,

    1986, p. 16).

    Vale ressaltar que, apesar dessas caractersticas terem culminado principalmente

    no Estado Novo, elas no surgiram exclusivamente aps 1937, ou seja, o imaginrio

    poltico dos anos 30 j estava permeado por ideias coletivistas e autoritrias. Percebe-se,

    ento, que esse contexto se mostra propcio para uma incurso pela educao das

    sensibilidades, consideradas necessria para a edificao de uma nova cultura poltica e

    econmica (Luca, 1999).

    A construo da figura de um tipo de trabalhador e a educao para o trabalho

    eram algumas das preocupaes centrais do perodo e implicavam uma alterao na

    maneira como os indivduos se comportariam, pensariam e se relacionariam com o

    ambiente de trabalho, indo muito alm do simples desenvolvimento de um ethos do

    trabalho. Note-se, apenas a ttulo de exemplificao, como no perodo so

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  • desenvolvidas iniciativas tais como as Leis Orgnicas do Ensino, que do outro sentido

    relao entre educao e trabalho, no Brasil; a criao do sistema S, fruto de uma

    associao entre o patronato e o Estado brasileiros, que muito atuou sobre a formao

    dos trabalhadores, a criao do Servio de Recreao Operria, que se responsabilizaria

    pelo desenvolvimento de prticas de recuperao da fora de trabalho, alm de outras

    iniciativas que atestam a fora das polticas de Estado na tentativa de conformar um

    novo trabalhador brasileiro.

    A poltica de massas, que estava intimamente ligada ao corporativismo e ao

    trabalhismo, introduz uma mudana no papel do trabalhador perante a poltica, a

    economia e a sociedade em geral, se manifestando at mesmo no cancioneiro popular

    brasileiro, como atesta O bonde de So Janurio. O samba de Wilson Batista e Ataulfo

    Alves, de 1940, chegaria a ganhar uma segunda verso, uma vez que os autores teriam

    sido interpelados pela censura:

    Quem trabalha que tem razo Quem trabalha que tem razo

    Eu digo e no tenho medo de errar Eu digo e no tenho medo de errar

    O bonde de So Janurio O bonde de So Janurio

    Leva mais um operrio Leva mais um scio otrio

    Sou eu que vou trabalhar... S eu no vou trabalhar...

    Antigamente eu no tinha juzo Antigamente eu no tinha juzo

    Mas resolvi garantir o meu futuro Mas resolvi garantir o meu futuro

    Vejam vocs: Vejam vocs:

    Sou feliz e vivo muito bem Sou feliz e vivo muito bem

    A boemia no d camisa a ningum A boemia no d camisa a ningum

    , digo bem! , digo bem!

    Sendo o samba um dos gneros no qual a apologia da preguia e da

    malandragem mais se fez presente no imaginrio brasileiro, no de estranhar que fosse

    to combatido pelo famigerado DIP e pelos censores em geral. Mesmo levando em

  • considerao a ambigidade das realizaes culturais no mbito do Estado basta

    observar como inmeros jornalistas e escritores fizeram suas carreiras nas letras

    brasileiras a partir das benesses do Estado autoritrio (Werneck, 2012) algumas

    formas culturais deveriam necessariamente se adaptar s premissas polticas do perodo,

    sem o que seriam contestadas, impedidas e at mesmo perseguidas (Carneiro, 1997).

    Alm disso, para o controle e a orientao das massas eram utilizados smbolos

    que indicavam a realizao da utopia de uma nao irmanada, procurando gerar

    sentimentos de adeso, unio e identidade, assim como reprimir sentimentos de

    rebeldia, contestao e paixes polticas descontroladas (Bittencourt, 1990). A questo

    das sensibilidades, ento, segundo nosso entendimento, esteve fortemente presente no

    perodo do primeiro governo de Getlio Vargas (1930-1945), se revestindo de um forte

    apelo de construo de uma nova moralidade na qual o indivduo cedia espao para a

    massa, e o trabalho pontificava como valor supremo, absoluto.

    Como estavam expressas, porm, entre as corporaes e organizaes

    trabalhistas, as questes da formao do trabalhador e da educao das sensibilidades?

    Na historiografia brasileira muito se tem produzido sobre a cultura e a organizao dos

    trabalhadores. No entanto, pouca ateno tem-se dado sua educao. Este captulo

    pretende tratar dessas questes tomando como foco a anlise do jornal O Operrio de

    Montes Claros, Minas Gerais, evidenciando convergncias e divergncias entre o

    modelo de trabalhador proposto pelo poder oficial, de carter nacional, e o proposto por

    um jornal local, longe dos grandes centros de afirmao do trabalhismo e da

    industrializao brasileiras. Nosso propsito foi averiguar como o tema da formao dos

    trabalhadores, com o foco na educao das sensibilidades, aparece naquela publicao.

    Entende-se, pois, o jornal como veiculo privilegiado para a tentativa de

    desenvolvimento de uma nova moralidade.

    O Operrio e a Unio Operria e Patritica de Montes Claros

    O Operrio foi uma publicao trimensal da Unio Operria e Patritica de

    Montes Claros que tinha Miguel Braga, como diretor-gerente, e Athos Braga, como

    redator, sua frente. Era definido como rgo de propaganda da associao operria

    mencionada, defensor da paz, da justia e do direito. Circulou de 1931 a 1945, sendo

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  • que sua publicao foi interrompida em 1941, quando foi fechado pelo DIP. Voltou a

    circular somente em 1945, nos estertores do Estado Novo, quando foi declarada

    abertamente sua oposio ao governo de Getlio Vargas.

    Nascida com o nome de Unio Operria e Patritica de Montes Claros, em 1933

    a entidade que o produzia se reorganizaria, adotando o nome de Unio Sindicalista de

    Montes Claros. Os responsveis pela redao do peridico permaneceram os mesmos.

    Apesar de declarar no ser rgo oficial da nova associao, possuindo independncia

    na sua orientao poltica e editorial, o jornal declararia tambm a sua identificao com

    os princpios da mesma e continuaria sendo financiado por ela, assim como continuaria

    publicando atas e notcias referentes associao. Entende-se aqui, portanto, que o

    peridico permanece vinculado associao, expressando, em alguma medida, os seus

    propsitos, ainda que no o fizesse oficialmente.

    No que se refere sua produo tcnica, O Operrio era composto normalmente

    por quatro pginas, algumas poucas edies se estendendo at oito ou doze. Uma mdia

    de duas pginas era sempre dedicada veiculao de propagandas de estabelecimentos

    comerciais, como alfaiatarias e papelarias, e de profissionais liberais, principalmente

    clnicos e advogados. Tambm comum aparecer no jornal informaes de utilidade

    pblica cidade, como convites para eventos culturais, palestras e leiles, alm de uma

    seo intitulada Movimento das Sesses da Unio Operria, constituda por uma ata

    das ltimas reunies da associao. Sua distribuio no era gratuita, sendo o preo da

    assinatura anual 10$000, a semestral 6$000 e a trimestral 4$000. As matrias publicadas

    no peridico, por sua vez, no eram todas de autoria do redator Athos Braga; o jornal

    publicava tambm matrias que haviam sido veiculadas em outros peridicos e contava

    com outros colaboradores. As maneiras de circulao da publicao, assim como sua

    tiragem4 e o seu alcance, porm, permanecem difceis de serem traados, mesmo com as

    buscas desenvolvidas ao longo de um ano em diferentes bases documentais.

    Inicialmente, portanto, o peridico estava vinculado aos interesses da Unio

    Operria e Patritica de Montes Claros, tornando-se essencial traar e examinar o perfil

    dos indivduos que constituam essa rede de sociabilidade e circulao de idias. A

    4 Sabe-se somente que o peridico possua agentes-correspondentes em outras cidades do norte de Minas

    Gerais, possibilitando sua circulao alm da cidade de Montes Claros, e que em abril de 1933 a tiragem

    do mesmo era de 300 exemplares, por conta dos esforos da Sociedade que o abrigava.

  • partir dos itinerrios biogrficos desses indivduos apesar desse ser um mapeamento

    incompleto e realizado a partir do registro de memorialistas , detecta-se que uma

    quantidade significativa dos membros que exerciam cargos na Unio e/ou no jornal

    ocuparam, em diferentes momentos das dcadas de 30, 40 e 50, cargos relativos

    administrao da cidade, e se envolveram na poltica local, ocupando cargos do poder

    municipal.

    Miguel Braga, fundador do jornal e diretor gerente do mesmo at 1941, exerceu

    os cargos de Escrivo de Paz e Tabelio de Notas em sua cidade natal, Corao de Jesus

    (MG) e elegeu-se Juiz de Paz pelo distrito da cidade em Montes Claros. Athos Braga,

    redator do jornal desde sua fundao at seu fechamento, exerceu as funes de Adjunto

    de Promotor de Justia da Comarca de Montes Claros, de 1931 a 1933; foi Vice-Prefeito

    Municipal de Montes Claros, de 1949 a 1951, tendo exercido o cargo de Prefeito, e

    Chefe de Gabinete do Prefeito Municipal de Montes Claros, de 1951 a 1953. lvaro

    Marclio, advogado que ocupou diversos dos cargos principais na Unio Operria,

    inclusive o de presidente, foi Secretrio da Agricultura do Estado de Minas no governo

    de Jos Francisco Bias Fortes e Presidente do Diretrio Estadual do Partido Trabalhista

    Brasileiro (PTB).

    Os exemplos de colaboradores so diversos, sendo necessrio ressaltar Joo Jos

    Alves, mdico que foi scio da Unio e que em 1932 foi convidado para ser membro da

    comisso encarregada da reorganizao partidria de Minas, juntamente a Antnio

    Carlos de Andrada, Otaclio Negro de Lima, Washington Pires, entre outros. Dessa

    comisso foi originado, em 1933, o Partido Progressista de Minas Gerais, sendo que

    Athos Braga chegou a declarar nO Operrio seu alinhamento com o Partido. Alm de

    ocuparem cargos administrativos, burocrticos e polticos da cidade e do Estado,

    quantidade significativa desses membros tambm ocupou cargos e colaborou em uma

    variedade de instituies de caridade, de educao, na maonaria, em centros musicais,

    etc. Miguel Braga, por exemplo, foi Provedor do Asilo de So Vicente de Paulo da

    cidade e fundador da Unio Beneficente e Patritica; Athos Braga foi Orador e

    Presidente da Loja Manica Deus e Liberdade de Montes Claros, e lvaro Marclio foi

    um dos fundadores da subseco em Montes Claros da Ordem dos Advogados do

    Brasil, Diretor da Companhia Th. Badin de Minrios, Diretor do Instituto Norte Mineiro

    de Educaao, Presidente da Confederao dos Trabalhadores Teatrais do Brasil,

    Presidente do Centro Musical do Rio Janeiro e Professor do Instituto Musical de

  • Campinas. Entre os indivduos que exerciam os tipos de cargos mencionados,

    encontram-se mdicos, advogados e engenheiros, assim como indivduos que no

    possuam educao superior. Nota-se que eram homens que estavam inseridos na

    ambincia do seu tempo, compartilhando idias, projetos e aes que circulavam

    praticamente por todo o territrio brasileiro. Logo, entendemos que O Operrio pode

    ser considerado um exemplo do que se proclamava, prescrevia e fazia em prol da

    formao do operariado, estando conectado com ideias correntes no Brasil, no perodo,

    mesmo sendo um veculo de carter regional.

    Uma parcela significativa dos membros da Unio desde o seu incio era

    composta por homens que possuam certa visibilidade e eram ativamente envolvidos na

    vida poltica e administrativa da cidade e mesmo do Estado de Minas Gerais, ou seja,

    figuras que poderiam ser consideradas como vozes autorizadas e funcionar como

    formadoras de opinio, potencializando o efeito do jornal sobre seus leitores e outros

    membros da associao. Assim, parte do corpo associado era composta por funcionrios

    pblicos e intelectuais, ajudando a conformar o ambiente favorvel constituio de

    uma cultura poltica que extrapolava os limites culturais e geogrficos do norte de

    Minas Gerais.

    As fontes registram, porm, que tambm participavam da Unio pequenos

    proprietrios, como donos de estabelecimentos comerciais. A delimitao mais precisa

    do perfil dos trabalhadores que participavam da associao, no entanto, s foi possvel

    aps a reorganizao da Unio Operria e Patritica de Montes Claros, que adotou o

    nome de Unio Sindicalista de Montes Claros e publicou seu novo estatuto na edio

    dO Operrio de 19 de agosto de 1933. Nesse estatuto, determina-se que a associao

    era composta por trs classes de associados: a dos operrios e empregados em geral, a

    dos lavradores, comerciantes e industriais, a do funcionalismo e intelectuais. A nova

    associao representativa de uma pluralidade de classes pretendia:

    a) reunir todos aqueles que exeram a sua atividade como operrios, empregados, comerciantes, lavradores, industriais, funcionrios diversos e intelectuais;

    b) promover, pelos meios a seu alcance, a melhoria das condies de trabalho, do comrcio, da agricultura e do funcionalismo, defendendo os interesses das classes que representa;

    c) amparar, individualmente, os associados nas questes em que forem interessados, relativas ao trabalho, comrcio, agricultura,

  • indstria e funcionalismo, auxiliando-os e prestando-lhes, quando necessrio, assistncia econmica, moral, judiciria e mdica;

    d) intervir, por todos os meios, sempre que for necessrio, junto aos poderes constitudos para pleitear e defender interesses das classes que representa;

    e) adotar medidas de utilidade e beneficincia para os seus associados, de acordo com as possibilidades financeiras da sociedade, elaborando os regulamentos que se tornarem necessrios;

    f) incentivar o esprito de classe, com rgida disciplina social de seus associados, desenvolvendo os princpios de solidariedade, interdependncia e coletivismo (O Operrio, n. 90, 19/8/33, p.1)

    Assim, importante ressaltar que o trabalhador amparado pela sociedade e ao

    qual se dirigia o jornal O Operrio no , necessariamente, o operrio fabril, mas sim o

    trabalhador em geral. Reunia-se, assim, na mesma associao: empregados,

    proprietrios, profissionais liberais e funcionrios pblicos. De acordo com o discurso

    da associao, a reunio das diferentes classes de trabalhadores se justificava pela

    necessidade de sentimentos de solidariedade e coletividade entre elas e pela necessidade

    de unio das foras trabalhistas para a conquista de direitos. Logo, classe aqui no

    assume a conotao marxista, no sendo considerada nas pginas do jornal qualquer

    perspectiva de luta de classes. Classes configuravam fraes de um mesmo grupo social,

    genericamente identificado como trabalhadores, fossem pblicos ou privados, que

    deveriam se organizar para, fraternalmente, fazer valer os seus direitos. O ideal em

    comum de todos esses trabalhadores seria a emancipao, e a Associao, de acordo

    com Athos Braga, iria ligar todas as classes n'um nico ideal, que ser o elo que h de

    uni-las, transformando-as como que n'uma famlia nica onde todos trabalhem e vivam

    tranquilos e satisfeitos. (O Operrio, n. 95, 23/9/33).

    Essa perspectiva possui aproximaes considerveis com o imaginrio da poca

    e com o projeto poltico-ideolgico do varguismo, que apontava para uma sociedade

    una e sem divises, remetendo ao que ngela Castro Gomes (apud Capelato, 2009)

    chamou de representao totalista do trabalho:

    O desafio do Estado Nacional, que deveria enfrentar a questo social no como uma questo operria, mas como um problema de todos os homens e de todas as classes, permite compreender melhor a questo: j que eram considerados trabalhadores todos os que produziam (sem distino de trabalho manual ou intelectual), optou-se pela

    TalitaDestacar

  • representao totalista do trabalho (GOMES, citado por CAPELATO, 2009, p. 198)

    Nesse caso, o operariado se encontrava dissolvido em meio aos outros

    trabalhadores, visto que no interessava ao governo a diviso da sociedade em classes,

    mas sim a unio de todos em prol da Ptria e de seu progresso econmico, idealizado na

    industrializao e na modernizao. No discurso oficial, a unio de todos por um Brasil

    melhor tambm se relacionava ao corporativismo e ideia de uma totalidade

    orgnica, na qual no h espao para conflitos entre as diferentes partes do corpo da

    nao. Apesar da unio dos trabalhadores no discurso da associao e do redator do

    jornal remeter ao ideal da emancipao, percebeu-se ao longo da publicao a forte

    presena tambm da ideia de Ptria como elo de unio dos trabalhadores, os quais eram

    vistos como fundamentais para o progresso da mesma, dando eco aos discursos oficiais

    do Estado sobre o engrandecimento do pas. Essa questo, porm, ser abordada

    posteriormente.

    Um segundo aspecto que deve ser considerado refere-se aos propsitos da

    Associao. Afirmando que ela iria intervir [...] junto aos poderes constitudos para

    pleitear e defender interesses das classes que representa, os representantes dos

    trabalhadores daquela Unio Operria necessariamente se imbuam da condio de

    intermediadores e porta-vozes de um grupo, apontando para a ideia da atuao desses

    indivduos como intelectuais, a partir da conceituao proposta por Edward Said. Said

    defende que o intelectual necessariamente um indivduo com um papel pblico na

    sociedade, que dotado da vocao de articular uma mensagem, um ponto de vista, uma

    filosofia ou opinio para e por um pblico especfico. Ele tem a funo de levantar

    questes publicamente e confrontar idias, representar pessoas e problemas que so

    esquecidos ou deixados em segundo plano. O intelectual pretenderia alterar

    mentalidades e agiria com base em princpios universais: que todos os seres humanos

    tm direito de contar com padres de comportamento decentes quanto liberdade e

    justia da parte dos poderes ou naes do mundo, e que as violaes deliberadas desses

    padres tm de ser denunciadas e combatidas. (SAID, 2005, P. 26) Relacionando as

    formulaes de Said com a noo de estrutura de sentimentos desenvolvida por

    Raymond Williams (2003), recusa-se aqui, portanto, o conceito de intelectual

    cunhado por outros estudiosos, como Julien Benda, no qual a figura intelectual

    encontra-se isolada em uma torre de marfim, distante de problemas prticos, e

    TalitaDestacar

  • pertencendo a um grupo minsculo de reis-filsofos superdotados e com grande

    sentido moral, que constituem a conscincia da sociedade (SAID, 2005, P. 20) como se

    faz perceber no desenvolvimento da histria das ideias e dos intelectuais pelo menos

    desde o sculo XIX (Jay, 2003; Rmond, 2003) . De fato, Athos Braga afirma na edio

    95 dO Operrio:

    A nvel corporao no se limitar, portanto, a instituir penses e tratamento mdico aos seus associados ou a defend-los em seus direitos individuais; indo mais longe, ela vai prescrutar o corao de cada um dos seus membros, e da classe que eles representam, para ausentar os seus anceios e para ser o porta-voz de suas aspiraes. (O Operrio, n. 95, p. 1)

    A corporao e os encarregados pelo jornal a ela vinculados pretendiam, como

    porta-vozes, obter conquistas para a classe trabalhadora e alterar mentalidades,

    assumindo uma posio ativa perante a sociedade, atuando, dessa maneira, claramente

    como intelectuais imbudos de uma causa, uma misso: valorizar o trabalho pela

    valorizao dos trabalhadores. As fontes tambm permitem especular que os lderes da

    Associao e os redatores do jornal se colocavam como defensores e articuladores de

    membros que, isolados, no conseguiriam se constituir como fora poltica e social

    organizada, o que representava uma clara hierarquia dentro da Associao. O que parece

    que, apesar da defesa da unio das classes de trabalhadores, a classe do

    funcionalismo assumiu um papel de liderana nessa corporao. importante ressaltar

    tambm que essa atuao intelectual est relacionada viso que os encarregados pelo

    peridico possuiam em relao imprensa: "[...] o jornal, tanto pode ser benfico como

    malfico. A sua funo principal informar, conduzir, orientar, educar o povo,

    desviando-o das diretrizes erradas" (O Operrio, n. 114, p. 5). Como no pensar em

    uma educao moral, ou em um processo de moralizao? Essa perspectiva relaciona-se

    ao terceiro ponto que queremos ressaltar nas nossas anlises: o lugar da educao nas

    pginas daquele peridico.

    Ao estabelecer-se que a corporao iria incentivar o esprito de classe, com

    rgida disciplina social de seus associados, desenvolvendo os princpios de

    solidariedade, interdependncia e coletivismo, demonstra-se uma inteno clara de

    educar o trabalhador, conformando-o a uma perspectiva coletivista e ordeira da

    sociedade. Essa inteno reafirmada por Athos Braga no nmero 94 dO Operrio:

    A sua fora primacial consiste em radicar os sentimentos da solidariedade entre os componentes das trs classes unidas, no

  • isolando esta daquela para crear uma psicologia unitria, o seio social, mas sim estabelecendo uma outra psicologia totalitria, em que a sociedade se apresente perfeitamente clara com seus liames de interdependncia. Nem comunista e nem fascista, a Unio Sindicalista de Montes Claros procurar o meio termo das aspiraes sociais, visando no trato contnuo e dioturno dos diversos interesses das classes unidas, discernir o verdadeiro ideal das classes. (O Operrio, n. 94, p. 1)

    Havia, portanto, um projeto de sociedade em jogo e a educao do trabalhador

    era essencial para sua concretizao. Logo, mesmo que se afirmasse como politicamente

    neutro, o jornal claramente se ope a algumas das principais doutrinas polticas em

    pugna naquele momento no pas, como o integralismo e o comunismo. A educao que

    propugnava passava necessariamente pela dimenso das sensibilidades, a partir do

    momento em que pretendia alterar as formas como os indivduos percebiam e se

    relacionavam com o trabalho e com a sociedade, concebida como amlgama de

    diferentes grupos classes sociais, que necessariamente deveriam viver em concrdia.

    Logo, para este fim deveriam ser disciplinados. interessante tambm observar que os

    prprios redatores do jornal vinculam frequentemente a educao questo da

    sensibilidade, destacando a necessidade de radicar sentimentos, criar uma

    psicologia, passando-se muitas vezes por questes vinculadas moral. O

    aperfeioamento da moral e da psiqu humana, por sua vez, estavam diretamente

    ligados obteno do progresso, pela via da educao geral, incluindo a escolar. Alm

    disso, o processo de formao, para esses indivduos, passava pela orientao de

    modelos: a personalidade se formaria maneira da imagem e dos exemplos dos [...]

    educadores, pela incorporao das qualidades atraentes dos seus modelos" (O Operrio,

    n. 120, p. 1). A formao a partir de modelos, no caso, refora ainda mais o papel de

    orientador e educador dos trabalhadores pretendido pelo peridico e pela associao.

    A educao do trabalhador brasileiro, como mencionado, tambm era um dos

    principais focos do governo de Vargas e da perspectiva autoritria impressa na

    sociedade daqueles anos. Desse modo, a interdependncia proposta pelo corporativismo

    entre governo e sociedade expresso do Estado na perspectiva ampliada de Antonio

    Gramsci , foi utilizada pelo poder oficial para difundir muito dos seus planos de

    reforma. Percebe-se, portanto, que a terceira via de interveno proposta pela Unio

    Sindicalista de Montes Claros utilizava-se de concepes e discursos similares aos

    utilizados pelo poder oficial, evidenciando um imaginrio comum acerca da poltica e

    da sociedade da poca. Este fundo comum ganha relevo quando recordamos, seguindo o

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  • registro de Athos Braga, confirmado ao longo da publicao, que a Associao no

    estava completamente alinhada ao governo de Getlio Vargas.

    Sendo assim, essencial compreender o imaginrio poltico brasileiro da dcada

    de 1930, o qual os membros da Unio Sindicalista Montes Claros e realizadores do

    jornal O Operrio, sujeitos de sua poca, compartilhavam. Eliana Dutra, em O Ardil

    Totalitrio, defende que o perodo, principalmente a partir de 1935, foi caracterizado

    por um movimento de fascistizao que implicava um projeto de sociedade com

    pressupostos totalitrios:

    Empresrios, integralistas, parlamentares, intelectuais, religiosos estruturam um discurso em torno de temas e imagens portadores de uma finalidade totalitria. Ordem, famlia, ptria, moral, trabalho, propriedade, autoridade e obedincia so temas que confluem para o objetivo da preservao da ordem social, para o saneamento da sociedade, para reforar os poderes da famlia, da Igreja, do Estado, da polcia, dos empresrios. A moral, os costumes, a disciplina sero o objetivo de normatizao e valorao, tendo em vista que fossem depurados o homem e a nao brasileira. (DUTRA, 2012, p. 24)

    A partir de incurses pela psicanlise de Lacan, Dutra identifica que o que

    estava em jogo na poca era a construo de uma identidade. No processo de construo

    dessa identidade de um Povo Uno e indivisvel, qualquer referncia a divises dentro do

    corpo social, como classes, era indesejvel. Criava-se, ento, objetos e imagens

    comuns a todos:

    Se a ptria o objeto comum do desejo, o trabalho ser o ideal comum, o valor dominante para o qual vo concorrer todas as condutas individuais. O acabamento final desses recalcalmentos [...] se d atravs da moral. Os valores impostos so para o bem, para a felicidade, para o bem-viver e isso justifica o fim da regulao espontnea, a interdio da paixo, a centralizao e uniformizao das atitudes sociais. [...] o monotesmo dos valores e dos desejos ameaado a todo momento pelo fantasma do despedaamento. (DUTRA, 2012, p. 31)

    Trata-se, portanto, de um perodo marcado pela tentativa de desenvolver uma

    identidade e uma sensibilidade nacionalista, coletivista e ordeira. No entanto, no

    compartilhamos com a autora que aquele se tratou de um perodo totalitrio da histria

    poltica brasileira. Entendemos, nos termos de Hanna Arendt (1989), que o totalitarismo

    a suspenso de toda a poltica, e mesmo o Estado Novo s foi possvel pela realizao

    da poltica em uma perspectiva claramente antidemocrtica, com a adeso de amplas

    parcelas de da sociedade, dos trabalhadores e, fundamentalmente, dos intelectuais. Se

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  • aquele foi um perodo profundamente autoritrio, ainda assim a prtica poltica no foi

    cancelada.

    De qualquer maneira, nessa perspectiva, a ptria deveria ser protegida de

    possveis ameaas, como o comunismo. O progresso e a insero no mundo civilizado,

    por sua vez, dependeriam da laboriosidade dos trabalhadores, do desenvolvimento

    econmico e industrial, da obedincia, da unio, da preservao da moral. Analisemos,

    ento, as relaes entre esse imaginrio e o posicionamento dO Operrio e da Unio

    Sindicalista de Montes Claros, a partir do lema da associao: Deus, Unio e

    Trabalho, frmula consagrada em diferentes retricas educativas, sobretudo naquelas

    advindas de intelectuais perfilados com o iderio catlico.

    Deus, Unio e Trabalho

    Como j se observou, grande parte do discurso do jornal voltado para a defesa

    da unio de todas as classes em prol do bem comum, da ordem, do progresso, da ptria

    e da civilizao. O discurso de unio tambm era utilizado como maneira de repudiar

    agitaes e tendncias revolucionrias. Na edio 51 do jornal, em 10 de outubro de

    1932, l-se: No ser com revolues que o Brasil se levantar do caos em que est. A

    sua restaurao depende apenas do patriotismo dos seus filhos que se esforarem para,

    com o trabalho e a cultura, elev-lo, dentro do regime da ordem, da harmonia e da Lei.

    (O Operrio, n.51, p.1, o destaque nosso). A tentativa do jornal de passar uma

    imagem de uma sociedade sem divises e exaltar o papel pacfico do trabalhador na

    construo da nao se aproxima muito da ideologia varguista, ainda em um perodo de

    fortes disputas polticas. Em vrios discursos, Vargas pedia que se evitasse os conflitos

    sociais e exaltava o esprito de coletividade e conciliao. Nesse sentido, afirmava:

    Todos ns marcharemos juntos visando um esforo comum: trabalharemos, sem

    limites, para a prosperidade e grandeza do Brasil. (CAPELATO, 2009, p 147).

    Em uma matria elogiosa cidade de Montes Claros, no nmero 255 do jornal,

    de abril de 1937, afirma-se que essa : uma terra de trabalho, acolhedora e boa, onde j

    no h logar para as competies polticas de antigamente. Toda a populao est

    irmanada no mesmo ideal de progresso. (O Operrio, n.255, p.1). Percebe-se que as

    boas qualidades de uma terra e de uma populao, para o jornal, so as mesmas que

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  • Vargas estabelece como positivas em seu discurso oficial, e que o progresso da Ptria

    justifica o dever do trabalho e da obedincia.5

    Esta unio, tanto na perspectiva oficial como na do jornal, aparece como a

    soluo para a questo das massas, ou seja, como maneira de conteno e organizao

    das novas foras polticas e sociais que surgiam com o processo de modernizao do

    pas. Os discursos tambm se baseiam em uma perspectiva corporativista da sociedade,

    na qual todas as partes do corpo social se encontram em estado de interdependncia, e

    apontam para os pressupostos totalitrios explorados por Dutra - segundo o nosso

    entendimento, autoritrios. No caso do discurso do jornal, a questo da unio ainda

    estava vinculada ao propsito de sindicalizao e de agregao dos trabalhadores da

    Unio Sindicalista de Montes Claros. De qualquer maneira, a questo da unio

    relaciona-se com a busca de uma identidade nacional coletiva e gerou uma nova forma

    de sensibilidade poltica: No Brasil [...] dos anos 20-30, as correntes nacionalistas

    anunciavam o confronto entre o eu individual e o eu coletivo. Com a introduo da

    poltica de massas, a propaganda poltica proclamou [...] a vitria do ns sobre o eu.

    (CAPELATO, 2009, p.263)

    Em relao ao trabalhismo, sabe-se que foi um dos traos principais da poltica

    varguista, e embasou tambm o conceito de cidado defendido pelo regime: O

    cidado era sinnimo de bom brasileiro e o bom brasileiro era o que trabalhava pela

    grandeza do Brasil, respeitando a ordem. (CAPELATO, 2009, p. 181). Logo, percebe-

    se que o trabalhismo no inclua os ociosos entre os cidados:

    Os que no trabalhavam, os ociosos, no tinham direitos; no eram cidados, mas inimigos do Brasil, eles provocavam dissdios no seio da grande famlia feliz dos brasileiros. Eram maus brasileiros e podiam ser punidos pelo pai. O povo trabalhador era entendido como pessoa coletiva, mas o discurso sobre o trabalhismo determinava quem era o povo: o povo era constitudo pelos trabalhadores. Os desempregados, os mendigos, os marginais em geral no se integravam nessa pessoa coletiva. O pai dos pobres era o pai dos trabalhadores. (CAPELATO, 2009, p. 185).

    A mendicncia quando abordada pelo O Operrio , assim como no discurso

    oficial do varguismo, tratada como perigo e ameaa harmonia da sociedade, ecos das

    5 Para o caso de Montes Claros, a tese de Silva (2012) oferece um quadro bastante preciso das disputas e

    das acomodaes polticas em Montes Claros no perodo imediatamente anterior ao contemplado neste

    captulo.

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  • primeiras dcadas do sculo (De Boni, 1998). Em matria de Joo da Rua, no nmero

    57, de dezembro de 1932, afirma-se:

    O que no podemos suportar com boa cara, essa cantilena diria de mendigos em nossas portas, de segunda feira a sbado, sem nos dar tempo de firmarmo-nos o esprito no trabalho. humano, cristo e confortador repartirmos o que temos para comer com os pobres, mas conquanto que para isso se estabelea um dia certo: ou no sbado ou na segunda feira, para evitar de (sic!) sermos encomodados momentaneamente em casa e abordados nas ruas por grupos e mais grupos de velhos, cegos, aleijados, doentes de toda a espcie, cobertos de chagas. (O Operrio, n. 57, p. 1)

    Anos depois, em maio de 1934, o peridico comemora a regulamentao da

    mendicncia em Montes Claros atravs do registro dos verdadeiros mendigos:

    Chegam-nos diariamente individuos que, pela molestia, ou pela idade, no mais podem prover sua subsistncia e vm pedir caridade pblica. Nada mais justo e humano do que auxiliarmos aqueles que a sorte atirou margem, praticando assim um dever de solidariedade humana. Acontece, porm, que, juntamente com os verdadeiros mendigos, e prejudicando-os, proliferam uma legio de vagabundos, cachaceiros, crianas cujos pais deixam-se ficar em casa, atirando-as a pedir de porta em porta, indivduos absolutamente teis, que vivem abusando da nossa boa f e do nosso espirito de caridade. (O Operrio, n. 123, p.1)

    Os verdadeiros pedintes, assim, deveriam portar um talo de matrcula,

    evitando-se que a populao laboriosa e solidria auxiliasse os indivduos errados.

    Nesses trechos do jornal notvel a perspectiva de que a presena dos ociosos poderia

    prejudicar o esprito de laboriosidade, base de uma sociedade prspera, alm de reforar

    a ideia da formao a partir de modelos: os ociosos, no caso, seriam maus exemplos.

    Nota-se tambm a presena de valores catlicos na mediao da sociedade, de modo

    que a moralidade, como mencionado, funcionava como acabamento final do ideal do

    trabalho. Apesar da obrigatoriedade de se seguir os preceitos catlicos da solidariedade

    e da partilha, no se deveria permitir que o avano dos ociosos corrompesse a

    sociedade. A distino entre os verdadeiros e os falsos mendigos, no caso, refora o

    dever do trabalho: esse, como dever, s poderia estar ausente em caso de

    impossibilidade fsica.

    A disseminao do trabalhismo e a educao para o trabalho, por sua vez, no se

    limitavam s pginas do peridico e ao espao da associao de trabalhadores, como se

    percebe nas matrias publicadas acerca das comemoraes anuais do Dia do Trabalho,

  • no 1 de maio, promovidas pela corporao em alguns anos juntamente com a

    prefeitura. Essas comemoraes envolviam a populao de Montes Claros, assim como

    a comunidade escolar da cidade. Na comemorao de 1935, por exemplo, a banda de

    msica Euterpe Montesclarense percorreu as ruas da cidade executando canes na

    noite do dia 30 de abril. No dia seguinte, houve uma missa com participao de

    moradores da cidade e de alunos do Gymnasio Municipal, da Escola Normal e do

    Colgio Imaculada Conceio. Os estudantes ainda fizeram uma passeata pela cidade e

    participaram da Sesso Solene organizada pela Associao em conjunto com a

    prefeitura. Na sesso, alguns alunos participaram do programa, apresentando discursos,

    cantos e poesias relacionados data comemorativa. Embora a presena de escolares

    nessas festividades denote a relao entre educao escolar e o iderio cvico do

    trabalho, observe-se que toda a cidade se reveste de uma potncia educativa atravs de

    aes que podem ser caracterizadas como um tipo de educao social, bastante

    enaltecida pelo jornal e pela Associao que o abrigava.

    O trabalho, ento, seria o princpio bsico da sociedade e os trabalhadores

    deveriam ser unidos, ordenados, patriotas e ter bons princpios morais. A defesa desse

    modelo, como mencionado, realizada no peridico basicamente com o auxlio da

    moral crist. Os valores catlicos funcionavam diversas vezes na publicao como

    maneiras de justificar e embasar posicionamentos do jornal. Assim, por exemplo, a

    defesa da liberdade poltica e da importncia do voto, que ser abordada posteriormente,

    revestida por valores religiosos em matria de dezembro de 1932 sobre as eleies

    para a Assembleia Constituinte, classificando-se a neutralidade poltica como uma

    atitude que iria contra os valores catlicos. O mundo teria se transformado em um

    imenso campo de batalha e

    um dos exrcitos adotou por dvida o desafio de Lcifer no servirei, e tem por vanguarda o bolchevismo russo. Na retaguarda marcham os sem Deus, os anticlericais, os laicistas de todo o mundo. O outro exrcito, que obedece voz do comando do Ancio do Vaticano, arvora o pendo do Arcanjo, em que se l Quem como Deus? No lcita a neutralidade nessa luta universal. (O Operrio, n.57, p.1)

    Embora, aparentemente, este exrdio fosse dirigido diretamente ao brasileiro

    catlico, exortando-o sua obrigao de se alistar eleitor e de votar somente em

    candidatos que se comprometessem a respeitar os direitos de Deus e as tradies

    catlicas do Brasil, ele d eco a uma ampla campanha iniciada ainda na dcada de 1920,

    na qual o comunismo fora definido como o grande inimigo da Nao. Assim, a oposio

  • ao comunismo, que se acentua no peridico e na sociedade brasileira de maneira geral a

    partir de 1935, devido Intentona Comunista, realizada no jornal tambm a partir

    principalmente do discurso religioso. Naquela cantinela o comunismo subverteria a

    moral, atravs da abolio da famlia e da negao de Deus e da espiritualidade humana

    e deveria, portanto, ser reprimido. A moral crist tambm refora a busca por harmonia

    social e convivncia pacfica, fortalecendo-se, assim, a questo da unio. Dessa

    maneira, o discurso catlico funcionava como um complemento final aos ideais cvicos

    da publicao. Apesar da Associao no seguir o padro do sindicalismo catlico da

    poca, seus membros e os envolvidos no jornal eram majoritariamente cristos e esse

    ser tambm um elemento constituinte do modelo perseguido de trabalhador.

    O modelo de trabalhador proposto no peridico, porm, no constitudo

    somente por elementos comuns quele proposto pelo poder oficial. Apesar do

    posicionamento do peridico acerca do governo de Getlio Vargas oscilar ao longo da

    publicao, indo desde crticas moderadas entre 1932 e 1934 at crticas duras a partir

    do Estado Novo em 1937, passando por elogios pontuais entre 1932 e 1937 e votos de

    confiana em 1935, destaca-se na publicao duas divergncias principais em relao

    questo do trabalhador e do trabalho.

    Primeiramente, o trabalhador proposto pelo O Operrio no atrelado ao

    governo, mas atuaria nos sindicatos de maneira independente e, a partir dessa

    organizao, reivindicaria direitos perante o governo. A colaborao do trabalhador no

    momento de reorganizao da Nao seria feita, ento, a partir do debate de ideias

    ocorrido nos sindicatos:

    Encontrareis a vossa base de experincia, no nas pessoas deste ou daqueles polticos, mas sim no terreno concreto do sindicato de ofcio, em que se constre um ambiente de idas e diretrizes proprias desse ambiente que se encerra rigorosamente no alvolo da classe. [...] Deveis caminhar da base econmica para a superestrutura poltica; deveis abandonar a obra dos partidos polticos e a dos chefes. Os sindicatos inteligentes concebem muito bem que a emancipao operria no pode consistir na vitria de um partido no poder, mas h de ser a libertao operaria efetuada pela classe dos interessados fora de toda a tutela poltica de partidos e intermedirios. (O Operrio, n.56, p.1)

    O trecho acima, de novembro de 1932, evidencia essa questo da independncia

    da ao e do pensamento dos sindicatos, alm de indicar que, na concepo do

    peridico, existiria um ambiente de ideias prprio do ser trabalhador. De fato, a

  • ascenso dos trabalhadores como fora poltica e social no contexto de modernizao e

    de reorganizao da poltica nacional reconhecida por esses indivduos, e grande parte

    do discurso do jornal se encarrega exatamente de tentar organizar tais foras a partir de

    um vis conservador, mas pautado por princpios da democracia liberal, denotando um

    claro esforo de sensibilizao.

    Essa perspectiva de independncia dos sindicatos claramente se contrape ao

    sistema de organizao dos sindicatos e dos trabalhadores sob a gide do Estado

    realizado durante a Era Vargas, que pretendia um trabalhador despolitizado,

    disciplinado e produtivo (LENHARO, 1986, p. 15). A insatisfao a esse respeito se

    faz presente, por exemplo, em uma crtica ao modo como foi realizada a representao

    de classes na Constituinte de 1934, publicada nO Operrio em abril daquele ano. A

    matria, de Mauricio de Medeiros, defende que os sindicatos eleitorais foram

    organizados sob o controle do governo e que, portanto, no possuam independncia

    para representar os interesses profissionais que lhes cabiam. Mauricio de Medeiros

    chegara seguinte concluso sobre a participao dos trabalhadores na vida poltica:

    Si o proletariado brasileiro quizer refletir, com esse exemplo prtico deante dos olhos, sobre o valor desses orgos corporativos, quando feitos sob tutela do Estado, concluir que ainda a melhor forma de atingirem os seus objetivos, dentro da organizao social existente, a confiana no sufrgio universal graas ao qual podero ser argumentados, de perodo para perodo, como tem sucedido em toda a parte do mundo, o quadro de seus representantes dentro das Camaras polticas. (O Operrio, n. 119, p.1)

    Afirmava-se, ento, a importncia do sufrgio universal e negava-se a validade

    das medidas de participao poltica dos trabalhadores utilizadas pelo Estado. Esses

    dois elementos principais na escrita de Mauricio Medeiros apontam para a outra

    divergncia principal entre os modelos de trabalhador aqui analisados: a questo da

    participao poltica e do trabalhador como sujeito ativo.

    Quanto participao poltica, observou-se que uma das principais bandeiras

    levantadas pelo jornal O Operrio foi a da liberdade poltica e eleitoral. A defesa do

    voto direto, da representatividade e a conexo da urna liberdade comeam a aparecer

    na publicao perante as eleies para a Assemblia Nacional Constituinte e tornam-se

    mais frequentes ao longo da dcada de 1930. A defesa da participao choca-se com a

    poltica explicitamente antiliberal do Estado Novo, no qual defendeu-se que, devido

    pobreza da sociedade brasileira, a prioridade a ser solucionada era a da necessidade, no

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  • a da liberdade. Nesse caso, a democracia brasileira deveria deixar de ser poltica para

    se tornar democracia social e econmica, ou seja, uma democracia antiliberal

    (CAPELATO, 2009, p.); a liberdade poltica, portanto, no estava includa no conceito

    de democracia veiculado a partir de 1937 pelo governo. O Operrio, por sua vez,

    defendia o dever de voto de todos os trabalhadores, que no deveriam de maneira

    alguma se manter na neutralidade. O comparecimento s urnas e o sufrgio universal

    eram compreendidos como meios primordiais de defesa e conquista de direitos. Deve-se

    ressaltar que os realizadores do jornal estavam inseridos em uma rede de figuras

    pblicas que haviam apoiado a chamada Revoluo de 306, defendendo, principalmente,

    a reorganizao da vida poltica do pas, anteriormente dominada pelos grandes chefes

    locais:

    Para aquelles que, desilludidos por 40 annos de fraudes e de malversaes, acostumados a ver nos prelios eleitores imperar no a vontade do povo, mas a do situacionismo official; para aquelles que viviam j desesperanados de melhores dias e de melhores regimens politicos, o pleito de 14 de outubro foi como o despertar da conscincia cvica nacional - no somente dos ncleos eleitoraes que socorreram s urnas com enthusiasmo, para suffragear aos candidatos de sua predileao, como tambm do elemento official que compreendeu em boa hora a necessidade de no intervir no pleito seno para garantir ao eleitorado a maior liberdade de aco, como tambm para cohibir os abusos que todos ns estvamos acostumados a ver cometidos nos pleitos anteriores e que foram, sem dvida uma das causas da grande revoluo de outubro de 1930. (O Operrio, n.145, p.1).

    O direito de escolha de seus prprios representantes era, ento, visto como o

    maior e mais amplo direito da populao, alm de ser um dever do trabalhador

    comprometido com sua ptria e com a classe dos trabalhadores. Esses, ento, seriam

    sujeitos ativos que, a partir da participao poltica, conquistam seus direitos. Assim,

    recusava-se o Estado como concedente de benefcios, valorizando-se o papel ativo da

    populao trabalhadora, caracterizando uma verdadeira educao cvica e poltica pelas

    pginas do jornal. O dever do Estado seria garantir os meios de participao e

    representatividade razo pela qual o governo de Vargas foi criticado vrias vezes na

    publicao. As crticas, claro, se tornaram mais duras durante o Estado Novo, mas

    estavam presentes tambm no perodo anterior. Afinal, Vargas governou sem uma

    6 Esse fato poltico chega a ser idealizado no peridico em mais de uma ocasio e interpretado como um

    dos acontecimentos mais nobres daquele momento na poltica brasileira.

  • constituio de 1930 a 1934 e no ocorreram eleies diretas para a nomeao do

    mesmo como presidente do Governo Constitucional.

    Deve-se considerar, tambm, que Montes Claros foi, desde o perodo imperial

    at a dcada de 20 do sculo XX, fortemente marcada por disputas polticas que

    chegavam a dividir a cidade entre o Largo de Cima (conservadores) e o Largo de Baixo

    (liberais) e por prticas coronelistas com a peculiaridade de que os coronis no

    eram necessariamente grandes proprietrios de terras, mas principalmente bachareis,

    como mdicos e advogado. O coronelismo foi vivido de perto pelos indivduos

    envolvidos no peridico e na Associao, assim como eventos violentos relacionados s

    disputas polticas (Silva, 2012). Sabe-se que mesmo havendo um imaginrio poltico

    comum a uma sociedade ou a um perodo especficos, a apropriao e a interpretao

    daquele imaginrio pode se relacionar, tambm, com as experincias de cada indivduo.

    Assim, possvel que a forte defesa da liberdade poltica do jornal O Operrio fosse

    influenciada pela realidade poltica vivenciada em Montes Claros anteriormente.

    Em contraponto ao posicionamento oficial, ento, a democracia era vista como a

    nica forma de governo aceitvel no caso brasileiro, e o trabalhador possua um papel

    participativo e poltico essencial, devendo escolher conscienciosamente o candidato da

    sua confiana. O modelo de trabalhador construdo no discurso do jornal, assim, possui

    uma dimenso poltica e uma sensibilidade de participao direta e ativa que,

    propositalmente, no privilegiada no modelo oficial.

    necessrio observar, porm, a presena de algumas incoerncias no discurso

    do jornal. Apesar da defesa da participao popular na poltica, no se apoia a

    manifestao de todas as orientaes polticas da populao. Defende-se a ordem e a

    unio das classes, de modo que discursos considerados extremistas, como aquele de

    orientao comunista ou integralista, so deslegitimados pela publicao. Alm disso,

    parte do discurso do jornal se refere a uma populao que, para exercer seus direitos

    adequadamente, precisaria ser educada moralmente e conformada aos princpios da

    civilizao e do progresso. Assim, chega-se a afirmar, por exemplo, que os brasileiros

    que aderem ideologia comunista o fazem pois pertencem a classes que infelizmente

    no dispem de cultura intelectual que lhes permitta defender-se dos falsos apstolos."

    (O Operrio, n.239, p.1). Trata-se, afinal de contas, de um discurso poltico

    conservador, eivado de injunes cvicas e religiosas, que reconhece o novo jogo de

  • foras na sociedade brasileira, mas no abre mo de um papel de liderana no processo

    de organizao das mesmas, definindo, para isso, uma ao educativa direta pela via da

    imprensa.

    Concluso

    A educao para uma nova sensibilidade cvica e poltica do trabalhador foi

    ponto central no Brasil da Era Vargas, a partir do momento em que a principal questo

    em jogo era a construo de uma identidade nacional visando o controle das massas. A

    ascenso de novas ideias e foras polticas propiciadas pelo processo de modernizao

    gerou contradies e tenses no seio social, de modo que a introduo da poltica de

    massas pretendia a sua atenuao. Apesar da poltica de massas ter se desenvolvido

    oficialmente no Estado Novo, as ideias e o imaginrio que a sustentaram j estavam em

    desenvolvimento desde as dcadas iniciais do sculo XX.

    A anlise do jornal O Operrio permite a compreenso de uma parcela dessas

    tenses no municpio de Montes Claros e indica a presena de um projeto poltico e

    social disseminado no interior de Minas Gerais. Se, por um lado,o discurso veiculado no

    jornal foi influenciado pelo imaginrio e pelo contexto da poca, ele no esteve

    completamente alinhado ao discurso governamental, provavelmente devido realidade

    poltica local. Mesmo assim, ele reverberava um conjunto de ideais difundidas no

    Brasil, as quais tentavam amalgamar educao poltica, atuao cvica, iderio

    anticomunista e religiosidade catlica, todos esses aspectos convergindo para a

    formao de um novo trabalhador.

    Percebeu-se, assim, que a construo de sentimentos de coletividade,

    nacionalidade, ordem e unio, assim como de um esprito do trabalho, eram comuns

    ao jornal O Operrio e ao Estado. O trabalhador proposto pelo peridico, porm, era

    politicamente mais ativo, consciente e independente, alm de catlico. Apesar disso, o

    discurso do peridico possui um vis conservador: no deixa de apoiar a democracia

    liberal, assim como liberdades poltica e de opinio, mas invalida discursos

    considerados radicais no plano poltico. Apesar de defender a liberdade poltica e

    exaltar o dever de cada trabalhador escolher bem os seus representantes, no

    reconhece todas as orientaes e discursos polticos possveis, imputando condio de

    paixes descontroladas aquelas expresses polticas que ameaassem a ordem e a

    democracia estivessem essas direita ou esquerda no espectro poltico. Como

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  • afirmava Athos Braga, " facil comprehender o mal que occasiona s classes

    conservadoras esse estado de agitao permanente em que vivemos." (O Operrio,

    n.219, p.1)

    O discurso do jornal, ento, apesar de partilhar de elementos tambm presentes

    no discurso oficial, transmite um modelo de trabalhador diferente do proposto pelo

    projeto poltico-ideolgico do Estado, evidenciando, assim, as diferentes apropriaes

    de um mesmo imaginrio, as disputas internas entre os projetos de sociedade

    pretendidos e a complexidade da relao trabalhador-governo no perodo, no podendo

    essa ser resumida simples cooptao dos mesmos pelo Estado. Existiam, afinal, outras

    foras de liderana que pretendiam a formao e a conscincia de um processo de

    reorganizao da sociedade da parte dos trabalhadores.

    A questo da construo de novas sensibilidades e da formao do trabalhador,

    por sua vez, mesmo no sendo aquele um peridico com pretenses educativas, estava

    diretamente atrelada ao iderio da Associao expresso no jornal e ao dos seus

    idealizadores como intelectuais. Estes, assumindo a condio de figuras pblicas que

    defendem determinados ideais e pretendem alterar mentalidades, exerceram uma funo

    necessariamente educativa e formativa, apesar estabelecerem relao direta ou

    necessria com o ambiente escolar.

    Por isso, a utilizao de perodicos produzidos por intelectuais, como aponta

    Carlos Altamirano, se faz frutfera para estudar as direes e as batalhas do

    pensamento nas sociedades modernas e traar o mapa das linhas de sensibilidade de

    uma cultura em um momento dado (ALTAMIRANO, 2010, p.19). As sensibilidades

    individuais e/ou coletivas, afinal de contas, esto intimamente relacionadas s

    impresses que elementos exteriores exercem sobre os indivduos. Circunstncias

    polticas, sociais e econmicas influenciam propositalmente ou no as maneiras

    como as pessoas percebem, se relacionam e so afetadas pelo mundo, podendo alterar

    comportamentos, opinies, desejos. O rastreamento de opinies e posicionamentos

    ideolgicos no jornal O Operrio, assim, permitiu, como prope Altamirano, o

    rastreamento das linhas de sensibilidade de certo grupo em um determinado momento e

    evidenciou tambm a influncia de um imaginrio poltico comum poca, mas

    tambm sua polissemia. claro, porm, que a produo e modificao de

    sensibilidades, polticas ou no, so processos complexos, carregados de subjetividade e

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  • difceis de serem totalmente rastreados. Portanto, podemos almejar compreender

    somente uma realidade referencial. De qualquer maneira, a pesquisa com O Operrio

    confirmou o entendimento que os impressos publicados por intelectuais so fontes

    frutferas para o estudo da relao entre imaginrios polticos, trajetrias formativas e

    educao das sensibilidades como um dos grandes motores do que se convencionou

    chamar de modernizao social, para o que foram mobilizadas maneiras de formar que

    em muito extrapolam os muros da escola.

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