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O Negro em O Estado da Bahia De 09 de maio de 1936 a 25 de janeiro de 1938 Universidade Federal da Bahia

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O Negro em O Estado da Bahia De 09 de maio de 1936 a 25 de janeiro de 1938

Universidade Federal da Bahia

Faculdade de Comunicação

Departamento de Jornalismo

Orientador / Docente: Professor Doutor Renato da Silveira

Autor / Discente: Vinícius Clay

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Sumário

Introdução ................................................................................. 3

A controversa personalidade de Jubiabá ................................... 6

A sabedoria ancestral de Martiniano do Bonfim ...................... 16

O Jubiabá do romance e o da vida real ..................................... 22

Jorge Amado e a depreciação do verdadeiro Jubiabá ............... 25

Resistência com samba e capoeira ............................................ 29

Um cortejo à mãe d’água .......................................................... 34

Na Goméia de um jovem pai de santo ...................................... 37

Uma visita ao Estrela de Jerusalém ........................................... 43

Sobre o culto da natureza entre os bantos ................................. 48

Gilberto Freyre – críticas e receio de coisas improvisadas ....... 50

Um pai de santo na Rádio Comercial ........................................ 53

O 2º Congresso Afro-Brasileiro da Bahia ................................. 55

Tentando unir os candomblés ................................................... 64

Morte de Aninha – e a “pureza” dos ritos nagôs ...................... 69

Conclusão ................................................................................. 75

Bibliografia .............................................................................. 78

Caderno de fotos ...................................................................... 80

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Estou ajudando o Estado da Bahia a fazer reportagens sobre os candomblés e, ao

mesmo tempo, conseguindo a adesão de toda a turma. A coisa vai de vento em popa.

Edison Carneiro (em carta enviada a Arthur Ramos, no dia 06 de junho de 1936).

Introdução

O período que compreende os anos de 1936 e 1938 foi de intensa produtividade

para o jornalista e etnógrafo Edison Carneiro. Durante este intervalo, o pesquisador baiano

produziu obras de grande relevância para os estudos africanistas, leitura essencial até os

dias atuais, como os ensaios organizados em Religiões Negras e Negros Bantos1, que

integram a Biblioteca Científica da Editora Civilização Brasileira. Foi também durante o

referido período que Edison Carneiro organizou o 2º Congresso Afro-Brasileiro, um marco

para a Bahia no caminho rumo à legitimação dos costumes de origem africana.

Ainda entre 1936 e 1938, o etnógrafo e jornalista Edison Carneiro se destacou como

o principal articulador durante a criação da União das Seitas Afro-Brasileiras da Bahia e

também é considerado o idealizador de uma entidade que acolhesse os estudos africanistas

no estado, hoje representada, embora com propostas diversas, pelo Centro de Estudos Afro-

Orientais da Universidade Federal da Bahia (CEAO - UFBA), criado em 1959. Ao mesmo

tempo em que desenvolvia tais atividades, Edison Carneiro atuava como jornalista,

colaborando em Salvador para o jornal O Estado da Bahia, antes de se mudar para o Rio de

Janeiro, em 1939, onde também atuou em alguns jornais, a exemplo do Última Hora e do

1 CARNEIRO, Edison, Religiões Negras e Negros Bantos: notas de etnografia religiosa e de folclores. 3ª ed., Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1991.

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Jornal do Brasil. Seu trabalho no periódico baiano entre os anos de 1936 e 1938 - como

autor e organizador de uma série de reportagens, artigos e entrevistas envolvendo os

costumes afro-brasileiros - se constitui em trabalho pioneiro na mídia impressa local.

Todo este período de intensa atividade foi registrado em suas cartas endereçadas ao

amigo Arthur Ramos, outro importante precursor dos estudos africanistas no Brasil, que

então residia no Rio de Janeiro e trabalhava como editor da Biblioteca Científica da

Civilização Brasileira. O material foi encontrado pela viúva de Edison Carneiro, Madalena

Carneiro (no Arquivo Público da Biblioteca Nacional) que o entregou aos estudiosos

Vivaldo da Costa Lima e Waldir Freitas Oliveira, que posteriormente o editaram,

publicando em seguida a obra Cartas de Edison Carneiro a Artur Ramos – de 4 de janeiro

de 1936 a 6 de dezembro de 19382. Em um artigo elaborado por Vivaldo Costa Lima,

intitulado “O Candomblé na Bahia na década de 30”, o autor cita a série de reportagens

organizadas por Edison Carneiro em O Estado da Bahia e a define como “o início de uma

mudança, em alguns jornais de Salvador, com respeito ao tratamento dado à religião dos

negros da Bahia”.3 Até então, os jornais baianos reproduziam um discurso repressivo e

orientado pelo catolicismo, que já havia sido denunciado anteriormente por Nina

Rodrigues.

Os anos de 1920 e 1930 foram marcados pela intensificação da perseguição

religiosa na Bahia. Não só por parte da polícia, que era responsável pelo controle dos

terreiros - através da Delegacia de Jogos e Costumes -, mas também pela imprensa local,

que desenvolvia acirrada campanha contra os candomblés e também não poupava críticas à

capoeira, ao samba e a qualquer outra manifestação da cultura africana, consideradas nos 2 OLIVEIRA, Waldir Freitas de, LIMA, Vivaldo da Costa, (Orgs.). Cartas de Edison Carneiro a Arthur Ramos: de 4 de janeiro de 1936 a 6 de dezembro de 1938. São Paulo, Corrupio, 1987.

3 Ibid, p.42.

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editoriais como “coisa de gente ignorante”. A pesquisadora Ângela Luhning analisou um

conjunto de reportagens publicadas nos principais jornais de circulação no estado neste

período à procura de informações sobre o assunto. Seu trabalho resultou no artigo “Mito e

realidade da perseguição policial aos candomblés da Bahia”4, onde é possível constatar a

intolerância da opinião pública em relação aos costumes trazidos da África.

E é nesse contexto histórico e social, que o jornal O Estado da Bahia publica a série

de reportagens, artigos e entrevistas redigidas, organizadas ou orientadas por Edison

Carneiro no período em que esteve a promover o 2º Congresso Afro-Brasileiro e a criar a

União das Seitas Afro-Brasileiras. Seu esforço para a concretização deste trabalho se deveu

a diversos fatores. A liberdade religiosa da população afrodescendente, a legitimação dos

seus costumes e até mesmo a necessidade de ganhar dinheiro para manter seus estudos

serviram como incentivo.

A seguir, observamos um resumo do conteúdo de todo esse material, em ordem

cronológica, com o objetivo de elaborar uma reflexão sobre o trabalho de Edison Carneiro

em O Estado da Bahia e, assim, contribuir para a realização de estudos sistemáticos que

traduzam a luta pela legitimação dos costumes de origem africana, desde o seu princípio até

a sua franca expansão, que se deu justamente a partir dos anos 30. Para facilitar a leitura do

material, a ortografia das palavras foi atualizada. Até a presente data (15 de abril de 2004),

as importantes edições de O Estado da Bahia se encontram no acervo de periódicos raros

da Biblioteca do Estado da Bahia, em franco processo de deterioração e ainda sem registros

em microfilmes.

A controversa personalidade de Jubiabá

4 LÜHNING, Ângela, Mito e realidade da perseguição policial ao candomblé baiano entre 1920 e 1942. In: Dossiê Povo Negro – 300 anos, Revista USP, nº 28, São Paulo.

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O primeiro texto da série de notas, artigos e reportagens sobre a cultura afro-baiana

foi publicado em O Estado da Bahia no dia 09 de maio de 1936 com o título “As

‘macumbas’ através de interessantes reportagens do Estado da Bahia” e o subtítulo

“Jubiabá, o célebre ‘pai de santo’, ouvido por nós, faz sensacionais revelações”. Trata-se

de uma nota criada para anunciar a série de reportagens que viria a ser publicada nos meses

seguintes. Para a primeira delas, foi escolhido o nome do pai de santo Jubiabá, um dos mais

famosos de seu tempo, líder religioso de um candomblé de caboclo no Morro da Cruz do

Cosme. Jubiabá, também, era o título do mais recente romance publicado por Jorge Amado,

o que despertava ainda mais a curiosidade em torno de sua imagem. Como veremos mais

tarde, numa seqüência de três reportagens, Jubiabá e Jorge Amado travam uma deselegante

discussão através das páginas do jornal por causa do romance.

Logo no primeiro parágrafo, o texto fala da realização e da participação de Edison

Carneiro no 1ºCongresso Afro-Brasileiro, ocorrido em Recife, em novembro de 1934. De

lá, o jornalista e etnógrafo saiu com um objetivo claro: promover, em Salvador, o 2º

Congresso Afro-Brasileiro. Mas o fato é que não existia na Bahia, àquele tempo, uma

figura de renome como o pernambucano Gilberto Freyre, já consagrado com o seu Casa-

Grande & Senzala. Ainda assim, com muito esforço e alguns adiamentos, o congresso

aconteceria em janeiro do ano seguinte. Com a série de reportagens, Edison pretendia

informar e preparar o terreno para a instalação do congresso, além de conquistar o apoio da

comunidade negra e de outros intelectuais.

Este primeiro texto ainda reflete um momento em que o interesse, ou ao menos a

curiosidade, de pesquisadores e da população em geral sobre a cultura afrodescendente

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aumentava, ainda que timidamente. O texto cita, como exemplo, além da realização do

Congresso Afro-Brasileiro do Recife, a transmissão de um ritual africano pela Rádio Tupy.

Dois dias depois, 11 de maio de 1936, O Estado da Bahia publica a entrevista com

Severiano Manoel de Abreu, com o título “No mundo cheio de mistérios dos espíritos e

‘pais de santos’”, acompanhado por dois subtítulos. O primeiro: “Iniciando uma larga

reportagem sobre espiritismo e candomblés o Estado da Bahia viu e ouviu o famoso

Jubiabá, herói do último romance de Jorge Amado”. E mais abaixo: “De incrédulo a

médium curador – Cruz do Cosme e seu reduto – Até entre os espíritos há melindres e

vaidades – Pai de 22 filhos vivos e influência política”.

Jubiabá novamente é apontado como o personagem do romance homônimo de Jorge

Amado, dito vaidoso e detentor de influência política. As ligações políticas do capitão

Severiano Manoel de Abreu com membros e assessores do governo, a exemplo de

Martinelli Braga, oficial de gabinete do governador Juracy Magalhães, são destacadas nas

entrevistas, inclusive por ele mesmo. Elas conferiam prestígio ao pai de santo,

possibilitavam a troca de favores, atraíam benfeitorias para a comunidade e contribuíam

para preservar sua casa de culto da violência policial.

O preconceito explícito nas páginas dos jornais da época praticamente se restringia às

religiões de origens africanas e indígenas, enquanto o espiritismo e o ocultismo, de raízes

européias, eram mais aceitos socialmente, consideradas doutrinas mais “civilizadas”, como

denota este trecho da entrevista:

Mesmer e Flamarion, Cagliostro e muitos outros fizeram admiradores e fervorosos prosélitos, com os

seus passes, livros ou trues [sic] hábeis e impressionantes.

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Ao lado destas e outras crenças em que a grande família humana se divide, o fetichismo tem também o

seu grande número de fiéis entre os africanos e indígenas de outras raças até mais ou menos

civilizadas.

Por sua vez a legião de espíritos é numerosíssima, congregando em torno dos centros e associações

mediúnicas milhares de crentes em curas e milagres, melhoria de condições financeiras ou de afeto que

se afasta.

Não raro registra a imprensa casos de envenenamentos ou de loucura devido aos meios empregados

para a “cura” do paciente

As sessões de “cura” de fato eram noticiadas com freqüência pelos jornais da época.

No caso dos candomblés, geralmente as denúncias eram realizadas por familiares de

pessoas que desejavam seguir a religião. Denúncias de envenenamento, loucura e cárcere

privado eram as mais comuns. Os ebós também eram denunciados com freqüência pela

imprensa, muitas vezes, ela mesma era alvo de “despachos”, por conta das abordagens

preconceituosas e das notícias de prisão de líderes religiosos que publicavam. O então

vespertino A Tarde se afirmava ele próprio como sendo um alvo recorrente e dava o troco

através de seus editoriais, que qualificavam as oferendas como algo “porco” e

“degradante”. Neste trecho da entrevista com Jubiabá, o jornalista se refere às oferendas de

maneira pejorativa, observando o crescimento da prática na capital baiana dos anos 30.

Os “despachos” com a infalível farofa de azeite e a “pipoca” de milho torrado, a boneca preta, crivada

de alfinetes e enovelada de linha “para atrasar a vida”5; um chinelo velho ou um corte de fazenda para

“atrapalhar a sorte” e tantos outros despachos ou “ebós” encontram-se pela cidade, diariamente, até

nos pontos mais centrais.

Mas entre todos os “motivos” apresentados pelos jornais e pela polícia para justificar

a violência contra os candomblés da cidade, o som dos tambores - considerados

5 Até o presente momento não foram encontrados relatos etnográficos de bonecas pretas crivadas com alfinetes em ebós.

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“perturbadores do silêncio público” - era o principal, como aponta o jornalista, mais

adiante:

Pulcheria, Nana e Nicácio tiveram as suas roças freqüentadas por destacadas figuras sociais da cidade,

políticos eminentes, secretários de governos passados, etc., durante os dias de festa, rodeando as

camarinhas onde as filhas de “Xangô”, “Oxalá” e “Oxóssi” faziam o seu noviciado com filhas de

santo, trajando de branco e de cabeça rapada6.

“Pagar a cabeça” é ainda uma gentileza praticada generosa e gostosamente por muitos senhores

brancos amigos do pêji, que pagam uma certa espórtula pela tonsura da sua preferida.

Com a mesma celebridade restam poucos, salientando-se o de Bernardino – no “Bate-Folha”, na

estrada de rodagem. Existem, porém, por toda a parte, nos subúrbios da cidade, batedores de atabaques

e tamborins, perturbadores do silêncio público, e aos quais a polícia faz às vezes visitas nada cordiais,

conduzindo-os à delegacia mais próxima7.

Este trecho demonstra uma certa aceitação social que alguns candomblés já

desfrutavam nesse período. No entanto, o jornal A Tarde de 02 de março de 1925 publicou

uma nota reclamando do barulho provocado pelos atabaques do Bate Folha, que então

“incomodava” a vizinhança da Mata Escura do Retiro8.

Jubiabá é descrito na reportagem como um “tipo forte de caboclo, estatura um pouco

acima da mediana, fala mansa e de boas maneiras, 50 anos de idade há dias feitos”, que tem

na Cruz do Cosme um verdadeiro feudo, onde os seus “trabalhos” e conselhos são seguidos

cegamente, onde vivem mais de uma centena de pessoas, que lhe são devotas e ligadas por

gratidão ou laços de parentesco. Já em Jorge Amado, Jubiabá é dito um negro velho, mas

de idade indefinida, e com as pernas tortas. Seu corpo é curvo e seco e, apoiado num

6 Pulquéria, “A Grande”, foi a segunda mãe de santo do Gantois; Nicácio um célebre pai de santo Angola. Nana, por sua vez, não teve sua origem identificada.7 Aqui o jornalista faz uma clara distinção entre os candomblés mais tradicionais e os terreiros mais novos e menos prestigiados por figuras influentes da sociedade baiana. Os primeiros dificilmente seriam invadidos pela polícia. Os demais figuravam nas páginas policiais como “perturbados do silêncio público”, além de serem taxados por outros adjetivos pejorativos.8 LUHNING, Ângela, Opus cit., p. 22.

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bastão, andando devagarinho, passava abençoando os negros da Bahia com seu ramo de

folhas, enquanto “resmungava” palavras em nagô.

Outra discussão levantada pelo jornalista coloca em questão se Jubiabá é

“macumbeiro ou espírita”, como destaca o intertítulo. Jubiabá não queria ser chamado de

candomblezeiro ou macumbeiro, termos utilizados pejorativamente pelos jornais9. Preferia

ser nomeado espírita e, nesse caso, seguidor de uma doutrina de origem européia, mais

aceita socialmente. Sua fama crescente como pai de santo já havia rendido algumas prisões,

seguidas da apreensão dos objetos utilizados nos seus rituais. Uma das razões apontadas por

Jubiabá para ter raiva de Jorge Amado resulta do fato de o escritor ter usado seu nome

como título do seu último livro. O romancista o descreveu como um negro candomblezeiro

pobre e de pernas tortas. Vaidoso, o verdadeiro Jubiabá detestou. Dias depois, em entrevista

a O Estado da Bahia, Jorge Amado negaria ter se inspirado no famoso pai de santo para o

personagem do seu livro.

Adiante, o jornalista chama a atenção para o fato de Jubiabá ser desconfiado, “como

todo caboclo”. Em outras reportagens da série publicada em O Estado da Bahia, também é

destacado o fato de negros e caboclos serem “desconfiados” ou arredios. Até então,

motivos lhe sobravam para desconfiar das boas intenções dos jornalistas. Nesta passagem, o

jornalista destaca a “desconfiança” de Jubiabá com o intertítulo “Só tiro o meu retrato com

ordem do Dr. Martinelli Braga!”:

- Minha casa, diz ele, é freqüentada por muitas pessoas de importância. Médicos, bacharéis,

negociantes e autoridades vêm aqui. Dentre os meus amigos eu conto o dr. Martinelli Braga. Eu sou

9 O termo macumba aparece também em outras entrevistas e notícias publicadas entre 1936 e 1938 em O Estado da Bahia e, assim como macumbeiro, é empregado com intuito depreciativo. A terminologia geralmente era, e ainda é, utilizada por brasileiros vindos do Sul do país.

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amigo do governo! Nas eleições municipais dei mil e tantos votos ao dr. Americano da Costa a pedido

do dr. Martinelli.

Aquele é um velhinho bom e amigo dos pobres. Para estas casinhas daí do fundo, ele dispensou as

plantas e vai mandar botar um chafariz.

O trecho acima reflete, além da desconfiança de Jubiabá, sua estreita relação com

políticos influentes. E depois de conseguir a autorização do oficial de gabinete do

governador Juracy Magalhães, Jubiabá permite que façam as fotografias e procura se

defender da acusação de feitiçaria, atitude, aliás, recorrente em suas entrevistas:

- Não sou feiticeiro! Exclamou aborrecido. Pedem-me às vezes consentimento para “bater”, a fim de

agradar aos caboclos. Minha casa é de sessão. Curo e faço caridade com o poder que Deus me deu,

com as minhas forças ocultas.

Depois desta afirmativa mostra-nos todas as dependências da casa para que constatássemos a

inexistência de santos e objetos de candomblé.

Nas passagens que se seguem, Capitão Severiano, célebre como Jubiabá, revela a

origem do seu próprio codinome, como passou a cultuar o espiritismo e ainda cita curas que

diz ter feito com o auxílio dos poderes mágicos dos espíritos, que teria recebido após ter

descoberto seu dom mediúnico:

A origem do nome de “Jubiabá”

- O nome de “Jubiabá” desperta sempre curiosidade. Seria interessante saber a sua origem.

- Eu lhe explico. É o nome do espírito meu obcessor. Vou contar ao sr. o começo da minha vida de

espírita. Há 36 anos, eu ainda rapaz, fui procurado por um parente de um rapaz chamado Sydronio para

fazer uma consulta numa sessão espírita na Cidade de Palha em benefício de sua saúde. Até então eu

não acreditava nestas coisas, mas fui. Manifestou-se então um espírito mau e atrasado.

Este espírito declarou que do corpo do homem só sairia daí a 15 dias no Cemitério.

Quinze dias depois o homem morria. Esse fato me decidiu a acreditar nos espíritos.

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“Reforçada a minha fé, tornei-me médium” – o 1º espírito obcessor

- Passei a freqüentar daí em diante aquela sessão, com bastante fé e me tornei médium sem saber.

Nesta sessão manifestou-se em mim um espírito que leva o nome de Cândido Ribeiro.

A uma pergunta nossa sobre o que teria sido em vida o espírito de Cândido Ribeiro, respondeu

“Jubiabá” que nunca o investigava.

Médium influente e curador

Sua capacidade psíquica porém, foi-se elevando gradativamente.

Na zona das Docas do Wilson, nos Coqueiros do Pilar, existia, naquele tempo uma sessão espírita de

nomeada, na residência do dr. Valério, presidida pelo prof. Firmo.

De uma feita surgiu no grupo um rapaz chamado João Miranda para tratar-se. Foi ele entregue aos

cuidados de Severiano.

Surge “Jubiabá”

O espírito de um caboclo baixou sobre um dos médiuns. Era o assistente Severiano.

Caído em transe, manifestou-se, então, o espírito que declarou se chamar “Jubiabá”.

Começou então, a cura do paciente João Miranda, que já apresentava consideráveis melhoras, quando

sobreveio um acidente.

A seguir, o jornalista narra, em tom de escárnio, o que teria levado Jubiabá a criar seu

próprio centro religioso – uma briga entre espíritos:

O incidente a que aludimos veio demonstrar que nem mesmo os espíritos estão isentos de melindres e

de vaidade.

No decorrer da cura de João Miranda, por intermédio de Severiano, manifestou-se num filho do dono

da casa de nome Nelson, um atrasado que deu o nome de “Rei de Minas”.

Este entrou logo a demolir a influência de “Jubiabá”, qualificando-o de impostor e perturbado. Houve,

por isso, desinteligência no ambiente astral e o espírito de “Jubiabá”, melindrado com o seu irmão

mediúnico, abandonou a cura do doente, que veio a falecer vítima da vaidade dos espíritos.

Firmado o seu conceito, Severiano ou “Jubiabá” passou a trabalhar por conta própria, em sua casa,

abrindo uma sessão na Rua Nova do Queimado, a seguir, na caixa D’água, n. 10 e depois na Cruz do

Cosme, 205, hoje Avenida Saldanha Marinho, cuja nova denominação ele fez questão de ser citada.

Floresceu, então, aí o “Centro Espírita Paz Esperança e Caridade”.

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Talvez para se esquivar da polícia e da imprensa, Jubiabá anuncia sua aposentadoria

como pai de santo e reforça sua imagem de médium, ao mesmo tempo em que nega a cura

com auxílio de medicamentos e a realização de festas ao som de atabaques. Ou seja, nega

tudo aquilo considerado contravenção naqueles anos de repressão aos terreiros. A

afirmação de Jubiabá em relação à cura com remédios tem o intuito de defendê-lo de uma

acusação comum da polícia e da imprensa contra pais e mães de santo - o da prática ilegal

da medicina:

- Atualmente, concluiu “Jubiabá”, eu não faço “trabalhos”. Dou apenas sessões doutrinárias e preces.

Posso garantir ao senhor, que nunca fiz curas com remédios. Troco idéias com os médicos e estes

aconselham o remédio de que o doente necessita. Há pouco tempo deixei de fazer estas curas,

atendendo a uma determinação do meu amigo tenente Hannequim, ordem esta que estou cumprindo.

Quanto a esta história de bater, uns estudantes vieram aqui e me pediram isso. Eu não tinha material e

mandei pedir uns courinhos emprestados (atabaques). Perguntei se eles queriam ver de caboclo ou de

africano. Fiz a festa, eles ficaram satisfeitos e no meio destes um achou que eu era feiticeiro.

Mesmo em um período de perseguição policial intensificada aos candomblés, era

comum o fato de policiais freqüentarem e às vezes até se confirmarem nos terreiros. Ou até

mesmo o movimento contrário: gente de candomblé entrar para a polícia com o intuito de

protegê-lo10. Em muitas notícias publicadas em jornais da época, integrantes da corporação

eram acusados de proteger os candomblés, uma das funções dos ogãs11. Em algumas

oportunidades, os policiais intervinham contra seus próprios colegas. Em outras, avisavam

pais e mães de santo sobre uma possível diligência policial, a tempo de seus governantes se

protegerem.

10 Informação pessoal concedida pelo antropólogo Renato da Silveira. O mesmo afirma que, em entrevista a ele concedida, pelo falecido Yelemaxó da Casa Branca, Antônio Agnelo, este revelou que ele próprio teria se tornado policial com o objetivo de proteger seu candomblé.11 Ver mais sobre o assunto em BRAGA, Júlio, A cadeira de Ogã e outros ensaios, Editora Pallas, Rio de Janeiro, 1999.

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A passagem final da reportagem, destacada abaixo, relata o rompimento da amizade

entre Jubiabá e o ex-subdelegado Antônio Coelho. A discussão é apontada pelo pai de santo

como o estopim para as batidas policiais que se sucederam em sua casa:

Dentre outras coisas interessantes que ouvimos durante a nossa palestra com “Jubiabá” veio a balha

sua inimizade com o ex-sub-delegado local, até então o seu amigo íntimo.

Antônio Coelho, conhecido na zona por “Tonico”, era seu amigo e comensal inseparável. Havia

reciprocidade de favores e gentilezas. Mas já um dia tudo mudou.

É que o ex-sub-delegado lhe pedira para fazer da sua conventilho12.

Repelindo o seu ex-amigo mandou-lhe uma “mensagem” escrita com a letra do escrivão de policia do

distrito, ameaçando-o e cobrindo-o de injúrias.

Na “mensagem” policial vinha uma coisa interessante: - uma cabeça de urubu.

Era o primeiro aviso para um cerco que se realizou depois na sua casa, de onde levaram uma cadeira

confortável, onde Severiano presidia as sessões.

“Jubiabá” prosseguiria a narrativa de fatos e episódios da sua vida, se o imperativo das horas não nos

chamasse à bancada do jornal.

Ainda assim quis mostrar-nos uma faceta importante da sua vida: - 22 filhos vivos dos quais o mais

velho cursa o 2º ano ginasial. E terminou ao despedir-se dizendo: - eu não faço as misérias de que me

acusam. Só se esta terra não tivesse governo e não tivesse jornais.

Descemos o morro por entre os olhares curiosos fixados nos apetrechos do fotógrafo, tropeçando na

ladeira com um pombo enfeitado e cheio de pipocas e azeite e mais adiante com uma galinha preta um

“ebó” perfeito, completíssimo, que, com certeza, não era destinado a trazer felicidade.

Foram encontrados três registros jornalísticos sobre as diligências policiais à casa de

Jubiabá no jornal A Tarde dos dias 4 e 7 de outubro de 1921 e 12 de maio de 1931. A

última, portanto, cinco anos antes da concessão da entrevista para O Estado da Bahia. A

cadeira do pai de santo a qual se refere o trecho acima foi uma das peças apreendidas

durante uma das batidas. Ela se encontra no acervo do Instituto Histórico e Geográfico da

Bahia e se constitui em uma das poucas entre as muitas peças apreendidas durante a

repressão policial aos candomblés da Bahia, junto a um par de máscaras da Sociedade das

12 Regionalismo antigo utilizado no Sul do país para se referir a prostíbulo.

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Gueledés e outros objetos mais comuns. Até hoje não foi identificado o paradeiro dessas

percas que teriam sido “descartadas” durante a reforma da instituição, em 1992. Para ver as

peças apreendidas e encaminhadas ao Instituto Histórico e Geográfico da Bahia ver o

catálogo produzido por Raul Lody, Um documento do candomblé na Cidade do Salvador13.

Embora o jornalista utilize, por vezes, uma linguagem em tom irônico ou jocoso, a

entrevista com Jubiabá representa um marco na imprensa local. Pela primeira vez, uma

reportagem sobre a cultura africana é publicada fora das páginas policiais, anunciada

previamente, com chamadas na capa da edição e diagramada com destaque gráfico em

página inteira. Acompanhando o texto, cinco fotos foram publicadas. Ao centro, a maior

delas, um retrato de Jubiabá sentado em sua famosa cadeira com a legenda: “Severiano

Manoel de Abreu (Jubiabá) capitão do Exército de 2ª linha e curador espírita, posando para

Estado da Bahia para mostrar-se como ele verdadeiramente é”. Acima e à esquerda, vê-se

uma imagem de santo, com a legenda: “S. Thomé, o guia da seção espírita de Jubiabá

fotografado na capela grande da casa da Cruz do Cosme e ante a qual anualmente se

prosternam centenas de crentes”. Acima e à direita, a foto mostra “A capela de Santo

Antonio, na sala principal do palacete de Jubiabá”. Abaixo, outras duas fotografias. À

esquerda, “A casa de ‘Jubiabá’ onde funciona o Centro Espírita Paz, Fé, Esperança e

Caridade”. À direita, “O altar de S. Thomé, objeto de especial devoção de Jubiabá”.

Sem a pretensão de defender a liberdade religiosa, depois de já ter sido preso, Jubiabá

prefere se valer da influência junto a políticos e pessoas da alta sociedade. Também por

conveniência, chamava sua casa de culto de centro espírita, assim como fizeram outros pais

de santo da sua época, já que os terreiros de candomblé eram noticiados como “templos de

bruxaria” ou “antros de feitiçaria”. Como se sabe, a casa de culto de Severiano Manoel de 13 LODY, Raul. Um documento do candomblé na Cidade do Salvador, Salvador, Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1985.

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Abreu expressava sua crença através de uma forma abrasileirada dos candomblés, que

reunia espiritismo kardecista, a elementos da espiritualidade indígena e outros de origem

africana, reproduzindo aquilo que hoje é reconhecido como candomblé de caboclo14.

Não obstante, ao revelar publicamente sua influência política e sua representatividade

como líder religioso, que reúne centenas de fiéis em torno de si, a entrevista com Jubiabá

anuncia a chegada de um novo momento para a legitimação das religiões afrodescendentes.

Um momento em que aquilo que era considerado como “coisa de gente ignorante e

primitiva”, passa a atrair a curiosidade intelectual, despertar o interesse de pessoas

influentes, além de reunir mais e mais devotos.

A sabedoria ancestral de Martiniano do Bonfim

A entrevista com Jubiabá provavelmente teve boa aceitação, pois, no dia 14 de maio

de 1936, uma semana após a sua publicação, O Estado da Bahia enviou o jornalista

Corypheu de Azevedo Marques para uma missão importante: entrevistar o babalaô

Martiniano do Bonfim, figura essencial para a afirmação e expansão do candomblé na

Bahia, como veremos na própria reportagem, assim anunciada um dia antes, na capa da

edição do dia 13 de maio:

Amanhã daremos aos nossos leitores as revelações do velho Professor Martiniano, o amigo e

colaborador de Nina Rodrigues. O clichê acima mostra-nos o velho ‘babalaô’ falando ao Estado da

Bahia estando presentes os acadêmicos Aydano Couto Ferraz e Reginaldo Guimarães, estudiosos dos

problemas afro-brasileiros.14 Ver mais sobre o assunto em: SANTOS, Jocélio dos. O dono da terra: a presença do caboclo nos candomblés baianos. São Paulo: 1992.

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Na primeira página da edição do dia 14, foi publicada uma chamada para a entrevista

com o título “Martiniano, o famoso ‘babalaô’ fez revelações interessantes”. Abaixo do

título, uma gravura com a seguinte legenda: “Martiniano, o velho babalaô, que tanto

cooperou com Nina Rodrigues nas suas pesquisas, fez ao Estado da Bahia interessantes

revelações que damos a público hoje, na 5ª pagina desta edição. Forneceu-nos também

Martiniano o desenho acima de sua autoria, no qual se vê reproduzido pela lembrança do

velho negro um quadro da época triste para os de sua raça e não menos triste para os de

raça branca que os exploravam: o da escravidão. É a Filarmônica dos Chapadistas,

tradicional banda composta de negros e africanos escravos”.

Já na entrevista, que ocupou toda uma página da edição, Martiniano foi exaltado

como um negro sábio, respeitado pela sua cultura, amigo de Nina Rodrigues e professor de

inglês, que morou em Lagos e não se misturava com o “baixo espiritismo” ou “feitiçaria”.

Respondendo às perguntas do repórter, Martiniano foi levado a falar sobre o Congresso

Afro-Brasileiro e talvez tenha sido o primeiro negro a defender publicamente a liberdade

religiosa na Bahia. A comparação com o pai de santo Jubiabá foi o primeiro passo dado

pelo jornalista:

Martiniano é muito diferente de Jubiabá. Não é e nunca foi “pai de santo”. Quando muito será um

“babalaô”, isto é, um adivinho, um “deitador” de cartas. Filho de pais africanos, muito criança foi para

Lagos, na Nigéria (Costa dos Escravos, África) onde além de estudar inglês, que fala perfeitamente,

conheceu todos os aspectos da vida africana, inclusive o seu ritual.

Fala também o idioma iorubá, ou nagô. Ao contrário de Jubiabá, Martiniano é pobre.

Viveu durante muito tempo da profissão de pintor. Refere-se com profundo desprezo à prática do

“candomblé”, que executa atualmente todo deturpado e onde “entra branco”. Por isso não os freqüenta.

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Em seguida, é citada, pela primeira vez, a participação de Edison Carneiro na

publicação da série de reportagens. Aqui, ele serve de interlocutor entre Corypheu de

Azevedo Marques e Martiniano do Bonfim, o que faz supor, como veremos mais tarde, que

este, sem a presença de Edison Carneiro, não falaria publicamente sobre sua vida e sobre

religião:

Fomos ouvi-lo. Como todo negro africano, é desconfiado. Vê no branco um inimigo tradicional, não

acreditando jamais em suas boas intenções. As experiências têm sido muitas. As traições incontáveis.

Conquistada, porém, a sua confiança, tudo se consegue. Sabedor disso, nos fizemos acompanhar de

Edison Carneiro, um antigo amigo do velho professor. Uma hora antes de chegarmos, Edison Carneiro

partiu para preparar o espírito do “nosso homem”.

E depois de descrever com detalhes o local e a casa onde morou Martiniano, no

Centro Histórico de Salvador, o jornalista tratou de defini-lo fisicamente:

Martiniano é um preto alto, de rosto largo e simpático, olhos cheios de esperteza. Fala pausada e

dolente, porém, doce. Tem 77 anos de idade, aparentando muito menos, mantendo ainda, sem

curvatura, a coluna vertebral. É aparentemente forte e de espírito sagaz. Vendo-nos penetrar em sua

casa, com um sorriso astuto, exclamou:

- Fui traído! Você, Edison, está me vendendo...

Após fazer alguns rodeios, o jornalista, enfim, entra no assunto para o qual foi

designado: abordar os mistérios da religiosidade trazida da África. E Martiniano aproveita a

oportunidade para defender a liberdade religiosa, com a sabedoria e a coragem de quem

estava próximo de completar 80 anos:

A conversa se desviava do assunto que desejávamos. Percebendo o nosso intuito real, Martiniano,

sagazmente procurava contornar o assunto. Numa das paredes vimos pregado um capacete de búzios.

Artístico, verdadeira obra de arte.

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- É seu? – perguntamos.

O velho negro, colhido de surpresa, se perturba e responde, querendo fugir do assunto:

- Não. Fiz por encomenda de um amigo. Velho e doente, preciso arranjar dessas coisas para ganhar um

dinheirinho...

- E seu amigo tem “terreiro”?

- Também não sei. Não freqüento essas coisas. Vocês, enfim, estão chegando aonde querem –

acrescentou sorrindo. Religião de negro é igual a de branco. Eu não pratico, porque respeito as leis, o

“rejumen” [regime]. Branco não faz santo, não pinta, não faz promessa para ser feliz e também para

fazer mal aos outro, não leva braço de cera, para não ficar bom de reumatismo? O negro também faz

isso: constrói seus santos e tem seu culto. Uns vão para as igrejas, outros para os “terreiros”. Uns têm

seus órgãos, outros batem os “atabaques”. Religião de negro é boa como a dos brancos. Branco tem as

festas da Penha, de Juazeiro e do Bonfim. Negro tem, também, seus dias: S. Cosme e S. Damião, Dia

da Hora, etc. Festa de branco tem suas comidas. Nas de negro se come “acarajé”, “abará”, “vatapá”,

“caruru”, comidas da África, de nossos pais.

E Martiniano acrescenta, em seguida, intencionalmente:

- Eu, porém, respeito as “constituições” e sendo proibido pelas autoridades não faço. Mesmo agora não

há “terreiro”. Existem uns candomblezeiros que não sabem nada, onde entra branco. Eu não sirvo

porque não visto saia de mulher.

Ao mesmo tempo em que desconversa, procurando disfarçar seu envolvimento com

os candomblés, Martiniano não admite sua participação que, no entanto, era intensa,

sobretudo na reconstituição de rituais e simbologias africanas nos candomblés mais

tradicionais da Bahia. Martiniano defendia um retorno às origens, trabalhava para manter

um candomblé o mais semelhante possível com os de tradição nagô, para ele uma forma de

resistência da cultura trazida pelos negros do seu continente. Contestava a incorporação de

elementos externos, bem como a presença de brancos nos terreiros, como se pode observar

na passagem acima. Até mesmo o trabalho desenvolvido por pesquisadores estudiosos do

assunto era visto com cautela por Martiniano, como veremos a seguir.

Depois de criticar o escritor Jorge Amado, por ter se referido a ele como pai de santo,

o entrevistado é levado a comentar o Congresso Afro-Brasileiro do Recife, do qual

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participara, ao lado de pai Adão, famoso governante de um terreiro de Xangô na capital

pernambucana. Martiniano contou ter desconfiado, de início, da boa intenção dos

pesquisadores, mas depois disse ter percebido a seriedade do evento. E justifica:

Já é tempo de se olhar a raça negra com simpatia e nos fazer justiça. Tenho lido alguns livros sobre os

negros que me trazem aqui, como os de Artur Ramos, Renato Mendonça, Gilberto Freyre e do meu

amigo Edison Carneiro. Sinto em todos uma grande vontade de acertar, uma grande honestidade

intelectual. Alguns erros de detalhe, o que é natural sabendo-se a dificuldade que há em se reunir

material para estudar assim.

Esta foi a deixa para que o jornalista questionasse Martiniano sobre a realização do 2º

Congresso Afro-Brasileiro, provavelmente a pedido de Edison Carneiro, que muito se

empenhou para que o evento viesse a se concretizar. Questionado sobre qual seria o tema

mais importante a ser discutido em Salvador, Martiniano defende novamente a liberdade de

culto no estado, num momento em que muitos candomblés ainda viviam o medo da

repressão policial:

- Talvez o tema nº 1 seja a liberdade religiosa, pois é no culto que se revela toda a expressão social de

um povo. Principalmente nos africanos. Prometi a Edison ajudar no Congresso.

E, de fato, Martiniano colaboraria muito para que o 2º Congresso Afro Brasileiro se

tornasse realidade. Com seu prestígio perante a comunidade negra, Martiniano conseguiu

reunir os principais nomes das religiões afro-brasileiras, concedendo o apoio popular e, por

conseqüência, a legitimidade necessária ao evento. Reconhecido como o principal

informante de Nina Rodrigues em seus estudos pioneiros, Martiniano do Bonfim, com sua

sabedoria ancestral, pode ser considerado personagem fundamental na luta pela liberdade

religiosa na Bahia. E sua atitude, ao defendê-la publicamente, merece ser destacada.

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A entrevista com Martiniano ocupou toda uma página de jornal e veio acompanhada

de três fotografias. Ao centro, um retrato: “O professor Martiniano numa magnífica pose

para o Estado da Bahia”. Abaixo e à esquerda vê-se um “Santo do culto de Oxum,

pertencente ao professor Martiniano e que serviu para ilustrar os estudos de Nina

Rodrigues. Como esta peça, o velho ‘babalaô’ possui outras, conservando-as como relíquias

dos seus pais”. Abaixo e à direita há “Um capacete feito de búzios para uma dança de

Omolu”.

O Jubiabá do romance e o da vida real

Tamanha havia sido a repercussão do último romance de Jorge Amado, que o

interesse pela personalidade de Jubiabá se estendeu para todo o Brasil. Além da entrevista

publicada em O Estado da Bahia, no dia 11 de maio de 1936, Jubiabá também concedeu

entrevista a outros jornais, sempre criticando o romance homônimo. No dia 21 de maio de

1936, o jornalista carioca João Duarte Filho, dos Diários Associados, publicava uma nova

entrevista com Jubiabá, com o título “Personagem de Romance e da vida”, desta vez

acentuando ainda mais a comparação entre o religioso e o herói amadiano. O Estado da

Bahia, como veículo integrante dos Diários Associados, também publicou a reportagem,

que trazia ainda o subtítulo: “Jubiabá não gostou do livro de Jorge Amado – Como vive, no

Morro da Cruz do Cosme, o famoso pai de santo – Capitão de 2ª linha e macumbeiro – A

vida é prosaica, a arte é bela”.

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João Duarte Filho estava em Salvador para acompanhar a comitiva do governador de

Pernambuco na Bahia. E, na despedida, teria conhecido Martinelli Braga, oficial de

Gabinete de Juracy Magalhães que, como já vimos anteriormente, era amigo pessoal de

Jubiabá:

E tão grande era nossa certeza de que Jubiabá existia mesmo que, enquanto compúnhamos a comitiva

do governador pernambucano em visitas e recepções, nós estávamos procurando intimidade com o

“pai de santo” formidável. Foi quando, já no embarque do chefe pernambucano, perguntamos a

Martinelli se conhecia a figura insinuante do preto baiano. E Martinelli, Martinelli Braga, oficial de

gabinete do governador Juracy, se ofereceu a levar-nos lá, no dia seguinte, que era domingo. Conhecia

tanto Jubiabá que até o tinha como um dos seus mais prestigiosos chefes políticos dominando uma leva

de mil e quinhentos eleitores.

A aliança de Jubiabá com políticos ligados ao governo baiano poderia contribuir para

mantê-lo longe de confusões com a polícia, mas, por outro lado, fazia com que intelectuais

da época ligados ao comunismo – como o caso do próprio Edison Carneiro e de Jorge

Amado – desdenhassem de sua imagem. O jornalista João Duarte Filho, que elogia os

discursos comunistas do personagem de Jorge Amado em seu romance, não esconde sua

decepção com o pai de santo baiano ao saber de suas relações político-partidárias:

Desencanto! Jubiabá começou logo aqui a perder um pouco do prestígio que tinha para mim. Queria eu

lá saber de “pai de santo” que fosse chefe político, comandando uma legião de votantes onde se

misturassem espíritos e homens para disputar, nas urnas, a supremacia de um deputado ou de um

vereador...

O jornalista também demonstra uma certa decepção ao perceber que Jubiabá era um

homem rico, proprietário de casas, terrenos e fazendas. No seu imaginário, um pai de santo

obrigatoriamente deveria ser pobre, sem apego a bens materiais, morar em um casebre com

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móveis rústicos, sem nenhum sinal de sofisticação. No trecho a seguir, João Duarte Filho

não esconde sua surpresa ao perceber que Jubiabá morava em uma bela casa, número 205,

no Morro da Cruz do Cosme.

O novo desencanto que o bruxo me reservava era a sua morada. Grande casa de pedra, bem pintada,

com um largo terraço preguiçoso ao lado, um enorme quintal atrás, substituía aquela toca de feiticeiro

que Jorge Amado pusera no seu livro.

Mais adiante, a dita personificação de São Tomé pelo próprio Jubiabá é ressaltada na

reportagem, assim como o seu altar, onde se misturam as imagens de santos e caboclos,

uma marca do “centro espírita” de Jubiabá, onde os homens mais influentes da Bahia iam

pedir conselhos e receitas para problemas do corpo ou do espírito:

As primeiras informações foram tomadas ali, diante do grande altar de São Thomé que tinha, como

figura de frente, a imagem deitada de um caboclo também invocado naquela casa de espírito e

profecias. Era o “Averequeto Marco de Marco”, um dos mais prestigiosos caboclos de toda aquela

corte de espíritos que Jubiabá domina. Outros caboclozinhos menos destacados povoavam, também, o

altar cuidado e alvo, como se aquilo fosse um céu familiar com uma corte de santos camaradas

vivendo e brincando inocentemente, familiarmente. Era a caverna onde o respeitado e querido “pai de

santo” fazia as suas invocações, as suas preces, o seu receituário de água fluídica e passes mágicos

para toda essa população baiana que ia se receitar e pedir conselho, desde os governadores antigos,

como Seabra, parando muitas vezes o automóvel de palácio na porta de Jubiabá, até qualquer crédula

negra velha dos candomblés da Bahia.

Em seguida, demonstrando certa má vontade, o jornalista pela primeira vez descreve

Jubiabá fisicamente:

Mulato forte, alto, grosso, de cara larga e chamboqueira. O bigode sem pontas, aparado rente, cobre-

lhe todo o beiço de descendente de africano. Quando ri a boca é uma fenda larga que deixa ver pedaços

cuidados de mármore branco.

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No trecho seguinte, João Duarte Filho resume em poucas linhas a conversa que

manteve com o religioso. E assim como fez na reportagem anterior concedida a O Estado

da Bahia, Jubiabá relembrou as perseguições que sofreu da polícia:

Depois conversamos e Jubiabá contou a sua vida desde a iniciação em um centro espírita qualquer até

a sua posição atual, de chefe temido e incontestado, que recebe e compreende o espírito de São Thomé,

transformado em Jubiabá. Suas lutas contra a polícia, as perseguições que sofreu, tudo ele nos contou,

então, com uma fala mansa e um gesto polido.

Em tom irônico, o jornalista encerra seu texto, concluindo que o Jubiabá da vida real

em pouco ou nada se parece com o Jubiabá que ganhou vida através do romance de Jorge

Amado. João Duarte Filho ainda critica, novamente, o fato de o Capitão de 2ª linha

Severiano Manoel de Abreu ser um homem “abastado” e levar uma vida confortável para

os padrões de um mulato ligado ao candomblé.

Só não disse, talvez porque eu não tinha perguntado também, como conseguiu comprar fazenda,

construir casas, dispor de terrenos que fazem dele, naqueles magníficos arrabaldes de São Salvador um

homem abastado, rico mesmo, dispondo de muitas dezenas de contos de réis, que administra com a

meticulosidade de um proprietário consciente.

A reportagem publicada por O Estado da Bahia destaca uma gravura de “Jubiabá, tal

como o concebeu Jorge Amado em seu romance; um negro velho africano, cheio de

berloques, de idade indefinida”. O fim de Severiano Manoel de Abreu, após sua vida como

líder espiritual em Salvador, onde ganhou fama, dinheiro e muitos devotos, se deu na

cidade de Ilhéus, no Sul da Bahia, onde viveu seus últimos dias, como agricultor.

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Jorge Amado e a depreciação do verdadeiro Jubiabá

Irritado com as declarações de Jubiabá, após a repercussão de suas entrevistas

publicadas em O Estado da Bahia, Jorge Amado, então no Rio de Janeiro, decidiu se

encontrar com um jornalista dos Diários Associados para responder às acusações do pai de

santo. A entrevista foi publicada em O Estado da Bahia no dia 28 de maio de 1936, com o

título “O Jubiabá do romance e o da vida real” e o subtítulo “Não pensei no mulato

Severiano, um só momento, enquanto escrevia o meu livro – declara o romancista Jorge

Amado – Macumbeiro e baixo espiritismo – Como o homem se meteu na pele de um

personagem de romance”. A entrevista mostra ainda uma gravura representando “Jorge

Amado, o autor de Jubiabá, num desenho de Alvarus”. Sua introdução foi elaborada assim:

No domingo passado os “Diários Associados” publicaram uma entrevista feita pelo nosso

colaborador, sr. João Duarte, filho, com o pai-de-santo Severiano Manuel de Abreu, conhecido e

célebre na Bahia, com o apelido de “Jubiabá”, sobre o romance com o mesmo nome, de Jorge

Amado, no qual este escritor retrata a vida dos negros baianos.

Dias antes os “Diários Associados” haviam publicado outra entrevista do mesmo “Jubiabá”.

Em ambas o pai-de-santo se declarava furioso com o romancista “que o fizera negro e de pernas

tortas” e dizia que era capaz de fazê-lo engolir o livro. Diante da repercussão que tiveram essas

entrevistas procuramos ouvir o romancista Jorge Amado sobre o caso. Fomos encontrá-lo na Livraria

José Olympio Editora15. À nossa primeira pergunta Jorge Amado declarou:

- Meu personagem está humilhadíssimo...

Seguindo a entrevista, o escritor procurou desmoralizar seu desafeto, afirmando que

pretendia criar um personagem que fosse um verdadeiro sacerdote da sua religião, um 15 Editora responsável pela publicação da primeira edição do romance Jubiabá. Isto faz supor que a escolha do local para a entrevista não se deu por acaso e que Jorge Amado, a bem da verdade, sabia que a polêmica com o pai de santo Severiano Manoel de Abreu atraía ainda mais o interesse ou curiosidade pela sua obra.

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homem bom, um tipo nobre e sereno, verdadeira figura de pai espiritual, de mentor de uma

multidão de homens. E acrescenta, intencionalmente:

Se você reconhecesse a história do mulato Severiano, haverá de compreender porque o meu

personagem está tão humilhado...

Jorge Amado, após atacar novamente Jubiabá, revelou que escreveu seu romance em

dois meses, nos quais não teria pensado, um só momento, em Severiano Manoel de Abreu.

O romancista alega ter se inspirado em vários outros pais de santo que, com suas

características mescladas, teriam originado o personagem Jubiabá. Mais tarde, Jorge

Amado admitiria ter pensado principalmente no babalaô Martiniano do Bonfim para

constituir seu herói física e psicologicamente. Na reportagem ele já dá a entender tal idéia:

É claro que estão mesclados no meu Jubiabá vários pais de santo que deram aquele tipo. O físico de

um, a moral do outro, assim por diante. Não lhe nego que pensei muito numa figura de pai de santo da

Bahia ao levantar o Jubiabá. Mas aquele em que pensei é uma grande figura, um homem que merece

todo o respeito e já mereceu de Gilberto Freyre palavras do maior elogio.

E esse pai-de-santo foi uma das primeiras pessoas a receber o meu romance. Foi ele quem me deu a

tradução daqueles cânticos nagôs de macumba, daquele conceito, etc.

Para convencer de que seu personagem nada tem a ver com o Jubiabá da vida real,

Jorge Amado cita dois depoimentos:

...um artigo do poeta Aydano do Couto Ferraz (“Jubiabá e a poesia do mar”, publicado no “Diário de

Notícias”, do Rio), onde o escritor baiano esclarece bem a diferença entre os “xarás” e uma nota no

livro de Edison Carneiro, o grande estudioso das questões do negro brasileiro, que se acha no prelo:

“Religiões Negras”. Edison também faz notar que muito diferem os dois sujeitos do mesmo nome, o

do romance e o da vida.

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O escritor baiano, em seguida, acusa Severiano de tentar se aproveitar da homonímia

para obter fama:

Como você vê, estão criando um romance em torno do meu romance. Boa publicidade, aliás. O pior é

esse negócio do mulato Severiano estar a fazer a publicidade dele às minhas custas...

É possível observar, nesta e em outras passagens da entrevista, que Jorge Amado

utiliza insistentemente um tom pejorativo no termo “mulato” que sempre acompanha o

nome Severiano. Assim, repercute na ideologia do escritor baiano a depreciação do mestiço

como degenerado, mentalidade herdada do racismo científico. A depreciação freqüente do

mestiço, por aqueles que pregavam a idéia de hierarquia racial, chegou a atribuir-lhe um

certo grau de esterilidade. Ver, por exemplo, a opinião de Gobineau sobre o Brasil16.

Jorge Amado ainda encontra argumentos para julgar Severiano moralmente por suas

ligações políticas e por seus rituais, que se afastam da tradição dos candomblés de “pureza

nagô”. De quebra, também critica o jornalista João Duarte Filho, por ter se referido ao

escritor como sergipano e ainda por ter qualificado Jubiabá como pai de santo prestigiado.

Nasci mesmo foi em Ilhéus, no sul da Bahia. Ele errou também ao classificar o mulato Severiano entre

os pais-de-santo prestigiosos da Bahia. Nesse ponto, o DIÁRIO DA NOITE acertou porque disse que

ele era muito mal visto.Severiano não é um pai-de-santo se tomarmos a palavra no sentido de um

sacerdote das religiões negras. Ele é um cultor do baixo espiritismo.Os pais-de-santo são, geralmente,

sujeitos sérios, honestíssimos, acreditando na sua religião. Severiano é um explorador da credulidade

dos pobres e dos ricos na Bahia.

16 Em um artigo intitulado “L’emigration au Brésil”, publicado em 1873, Gobineau decretou que, devido ao caráter mestiço da nossa população, estaríamos fadados a desaparecer, “até o último homem”, precisamente duzentos e setenta anos depois, porque “os mulatos de distintos matizes não se reproduzem além de um número limitado de gerações”. Reproduzido como anexo em George Raeders, O conde de Gobineau no Brasil, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1996, pp. 83-87. Ver mais sobre o assunto em “Os selvagens e a massa: papel do racismo científico na montagem da hegemonia ocidental”, de Renato da Silveira, artigo integrante da Revista Afro-Ásia, do Centro de Estudos Afro-Orientais da Ufba, nº23, 2000.

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E depois de desqualificar completamente a personalidade do Capitão Severiano

Manoel de Abreu, Jorge Amado finaliza sua entrevista anunciando seu próximo romance,

Mar Morto. Em uma única entrevista, aliás, o romancista faz publicidade de duas de suas

obras. Mas omite o fato de ter se apropriado do nome do caboclo Jubiabá, que Severiano

Manoel de Abreu dizia incorporar:

- Severiano parece que está gozando essa história toda. Meteu-se na pele do meu personagem e assim

vestido de sujeito decente e digno está se lastimando perante o país todo.

Entrevistas para os jornais do Rio, da Bahia, de Recife. Lamenta-se, ameaça, aparece, finalmente. Ora,

meu personagem é que não fica nada satisfeito ao se ver confundido com Severiano Manuel de Abreu.

Ao contrário, sente-se desmoralizadíssimo.

Agora eu quero ver quem é que vai se meter na pele do mestre de saveiro Guma que é o herói do meu

novo romance de prelo: “Mar Morto”. De antemão lhe afirmo que não pensei em ninguém

particularmente

E assim termina a polêmica entre Severiano Manoel de Abreu e Jorge Amado nas

páginas de O Estado da Bahia. E o fato é que toda essa divulgação serviu para aumentar

ainda mais a fama dos dois Jubiabás – o do romance e o da vida real.

Resistência com samba e capoeira

Nos dias 9 de junho e 2 de julho de 1936, Edison Carneiro publicava dois artigos em

O Estado da Bahia, acompanhados de excelentes fotografias e ilustrações, que ocuparam

páginas inteiras em cada edição. Os artigos sobre a “Capoeira de Angola” e o “Samba”,

respectivamente, foram concebidos originalmente para integrar o livro Negros Bantos17,

que o folclorista organizava no momento. E, de fato, tais artigos vieram, mais tarde, a

17 CARNEIRO, Edison, op. cit., 1991.

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compor a obra. Mas certas dificuldades financeiras levaram Edison Carneiro a se antecipar

à publicação do livro, como revela uma de suas cartas endereçadas ao amigo Arthur Ramos,

então no Rio de Janeiro: “Eu ia lhe mandar umas notas sobre a capoeira, mas a miséria...

ela me fez, para ganhar uns cobres, cometer um artigo sobre a Capoeira de Angola, que O

Estado da Bahia publicará brevemente. Mandarei o troço para você. Espero que a mesma

coisa não aconteça com o samba”. Como veremos, Edison também publicaria seu artigo

sobre o samba nas páginas de O Estado da Bahia. Arthur Ramos, na condição de editor da

Biblioteca Científica da Civilização Brasileira, cuidava da publicação dos livros de Edison

Carneiro.

Não cabe aqui fazer uma análise minuciosa do conteúdo desses artigos, que se

constituem em clássicos dos estudos africanistas e, portanto, já bastante conhecidos. Vale

apenas o registro de sua publicação no periódico local, considerada de grande valia para a

legitimação social dos costumes afro-brasileiros. Com o título “Capoeira de Angola”, o

primeiro dos artigos foi publicado no dia 9 de junho de 1936, trazendo no subtítulo um

resumo de sua abordagem: “Origem da Capoeira – A capoeira na Bahia e no Rio de

Janeiro, através de documentos históricos – Desenvolvimento da luta – Golpes e cânticos –

Pontos preferidos para a capoeiragem na Bahia – Futuro da Capoeira”.

Edison Carneiro inicia seu artigo ressaltando a antiguidade da prática da capoeira na

Bahia, embora esta ocorresse sempre de maneira semi-clandestina, ou seja, de modo em

que ao negro era permitido jogar, mas sempre com certo controle sobre sua expansão..

Certamente temida pela polícia, a capoeira era restringida a alguns largos e praças de

Salvador, por ocasião das festas populares:

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Os pontos preferidos pelos capoeiristas, na Bahia, para a vadiação, estão limitados aos bairros

proletários da Cidade. No dia do Ano-Bom, na Boa Viagem, na segunda-feira do Bonfim, na ribeira, durante

o Carnaval, no Terreiro, e durante as festas de Santa Bárbara, no Mercado do mesmo nome, na Baixa dos

Sapateiros, e da Senhora da Conceição da Praia, nas imediações do Mercado Modelo, - as “rodas” de capoeira

são infalíveis.

Mais adiante, Carneiro transcreve vários cânticos usados na capoeira, se arrisca em

alguns comentários sobre os mesmos e, antes de concluir, observa o aumento do interesse

da sociedade baiana pela capoeira naquele período. E também destaca a importância de

alguns dos mestres de seu tempo:

Há alguns anos já que o jogo da capoeira tem começado a interessar as classes médias da população da

Bahia. O capoeirista bimba abriu mesmo uma escola de capoeira. Este negro, de rara agilidade, me

afirmou que a sua capoeira já não é mais a de Angola, mas um prolongamento dela, já que ele se

aproveita de vários golpes de outras lutas, desde a luta romana até o boxe e o jiu-jitsu. Tanto que

Bimba apelida de luta regional baiana a sua capoeira especial.

O maior capoeiristas da Bahia afirmam-me os negros ser Samuel “Querido de Deus”, um pescador de

notável ligeireza de corpo. Muito falados são os capoeiristas Maré (estivadores), Siri do Mangue, de

Santo Amaro, e um tal Oséias, que abriu uma escola de capoeira no Rio.

Mesmo assim, o processo de decomposição da capoeira está se acelerando...

O processo de decomposição da capoeira ao qual se refere Carneiro está relacionado com o

fato de a mesma estar, já naquele período, recebendo elementos de outras artes marciais,

resultando em outras formas de expressão, assim como ocorreu com a capoeira regional de

Mestre Bimba, citada no trecho acima. Da mesma maneira em que prestigiava o purismo

nagô nas religiões dos negros, o fazia também em relação à capoeira de angola. Tudo isso

somado ao controle policial induziu Edison Carneiro a uma visão apocalíptica do futuro da

capoeira na Bahia - embora reconhecesse a força de sua tradição - como podemos observar

em sua conclusão:

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Apesar de tudo, - apesar da maior aclimação do negro ao meio social do Brasil, apesar da reação

policial, apesar do adiantado processo de decomposição e de simbiose da capoeira em face de outras

formas de luta, - a capoeira, em especial a capoeira de Angola, revela uma enorme vitalidade. O

progresso dar-lhe-á, porém, mais cedo ou mais tarde, o tiro de misericórdia. E a capoeira, junto aos

demais elementos do folclore negro, recuará para os pequenos lugarejos do litoral...

O artigo “Capoeira de Angola” foi elaborado por Edison Carneiro com a colaboração

de Manuel Querino, outro precursor dos estudos africanistas que se dedicou à pesquisa e ao

registro das contribuições dos negros africanos à formação da sociedade brasileira.

Também foi estudante autodidata e conseguiu se formar pela Escola de Belas Artes,

preservando um considerável montante de informações sobre as artes, artistas e artesões da

Velha Bahia. Mas foi na condição de mestre de capoeira que Manuel Querino contribuiria

para o artigo, ilustrado em O Estado da Bahia com cinco fotografias, quatro delas

demonstrando a roda de capoeira com seus tocadores de berimbau e lutadores exibindo

passos característicos. A outra fotografia reproduz escritos que, até a presente data, não

tiveram sua origem identificada.

No dia 2 de julho de 1936, O Estado da Bahia publicou o artigo sobre “Samba”

elaborado por Edison Carneiro, o mesmo que seria publicado posteriormente no livro

Negros Bantos18. Nesse artigo, o folclorista aborda os diversos ritmos percussivos trazidos

pelos negros africanos e incorporados às manifestações populares locais. Ilustrado com

duas belas gravuras, uma delas com a legenda “Samba” e a outra “O batuque no Quelimane

(África Oriental)” o artigo de Edison Carneiro apresenta suas observações acumuladas

desde a infância sobre as tradições musicais, descritas em detalhes. E ainda se arrisca a

18 Ibid., p.201.

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fazer algumas críticas sobre as canções, considerando a riqueza rítmica, mas ressaltando

sua pobreza melódica, para ele resultante de “um mundo cultural limitadíssimo” dos negros

bantos:

Estes sambas nos revelam aspectos interessantíssimos da vida do negro no Brasil.

Antes de tudo, o mundo cultural limitadíssimo, ainda com vestígios de adoração das árvores e dos

animais (fitolatria, totemismo), como o coqueiro, a borboleta, a formiga, etc., e mesmo da natureza

exterior, dos elementos (o mar), lado a lado com a adoração fetichista da Senhora das Candeias

(identificada com a Oxum dos cultos afro-brasileiros) e o respeito pelo padre, que vem realizar os

casamentos sem esquecer a parte da superstição (a “figa de Guiné”, contra o mau olhado...).

A visão do negro banto como detentor de um universo cultural limitado marca outras

observações do autor e é objeto de sua análise em outro artigo publicado por ele em O

Estado da Bahia, como veremos mais à frente. Dessa forma, aponta o antropólogo Renato

da Silveira, Edison Carneiro redireciona para os bantos a discriminação característica aos

negros em geral fundamentada pelo racismo científico herdado do século XIX19. Na

verdade, Carneiro foi um dos primeiros estudiosos a estabelecer uma espécie de aliança

com os candomblés de Ketu, também por considerar os negros bantos “muitíssimo mais

atrasados do que os negros de acima do equador”.20

E depois de apresentar uma série de canções coletadas por ele em suas pesquisas de

campo, Edison Carneiro finaliza seu texto condenando a repressão policial sobre as rodas

de samba e batuque, registrando novamente nas páginas do jornal uma importante

contribuição para a legitimação e legalização dos costumes afro-brasileiros:

19 Ver “Sobre o exclusivismo e outros ismos das irmandades negras na Bahia Colonial” de Renato da Silveira, artigo ainda inédito a ser publicado como capítulo de um livro sobre o processo histórico das irmandades negras na Bahia colonial, em vias de preparação, adaptado para esta publicação. Ele foi discutido na linha de pesquisa “Escravidão e Liberdade” do Programa de Pós-Graduação em História da Ufba, coordenada por João José Reis, e a mim apresentado.20 CARNEIRO, op. cit., p.176.

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O samba quase sempre se realiza ao ar livre. A não ser nas festas populares da Bahia, a polícia, a

pretexto de “moralizar” os costumes, opõe barreiras ao divertimento do negro. O fato está glosado

numa embolada do Mar Grande:

A gente qué sambá, mas a poliça contrareia...

Talvez esteja aqui a razão por que o samba se tem retraído tanto, atualmente. Os discos de vitrola e as

batucadas começam, ao lado da ação repressiva da polícia, a apressar o processo de decomposição do

samba, pelo menos na Cidade da Bahia. Afora o interior do estado, na Bahia há ‘rodas’ de samba na

segunda-feira do Bonfim, na Ribeira, durante o carnaval, no Terreiro, e na Conceição da Praia, durante

as festas da Senhora da Conceição, e esporadicamente, em vários pontos da cidade. A ação policial se

tem feito sentir de tal maneira que o samba já se limita a quatro paredes de uma casa de sopapo...

Um cortejo à mãe d’água

No dia 19 de junho de 1936, Edison Carneiro publicou uma reportagem intitulada “O

mito da mãe d’água”, ocupando toda uma página, com o subtítulo “Yemanjá, a Rainha do

Mar, o poderoso orixá do fundo do Calunga, recebe as homenagens dos seus devotos, em

Itapoan, no meio das mais vivas demonstrações de alegria”. Antes, uma chamada na capa

destacava a importância da publicação, trazendo uma bela fotografia acompanhada da

seguinte legenda: “Edison Carneiro escreveu para os ‘Diários Associados’ uma interessante

reportagem sobre o culto da ‘mãe d’água’, um dos mais curiosos aspectos da religião afro-

brasileira. Publicamo-la em nossa 5ª página, ilustrada com fotografias originais. No clichê

vemos a saída do presente que foi ofertado, nas águas de Itapoan, a Yemanjá”.

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Para fazer a reportagem, Edison Carneiro, acompanhado do professor Donald

Pierson21, participou de um cortejo dedicado à Iemanjá, com seus cânticos e sua festa no

terreiro governado pelo pai de santo Manuel Paim22:

O candomblé começou pouco depois, na sala de barro batido da casa onde devíamos ficar. O pai de

santo Manuel Paim e a feita Lindaura dirigiam e animavam a vadiação dos demais, dançando, puxando

cânticos. Feito o despacho de Exu, todos os demais orixás tiveram suas três cantigas regulamentares.

Principalmente os orixás das águas, Iemanjá, Oxum, Nanan (Anamborucu) e Oxumaré.

E após revelar alguns desses cânticos, Edison segue suas observações sobre a festa e

sobre o mito da mãe d’água, identificando suas diversas denominações e os principais

pontos da cidade que serviam e ainda servem de cenário para a realização dos rituais:

Não conheço orixá que possua maior número de denominações do que Yemanjá, a mãe d’água.

Arthur Ramos conseguiu registrar, na Bahia, os nomes de Janaína, Princesa do Mar, Sereia, Sereia do

Mar, dona Maria Olôxu’n, etc. E eu mesmo conheço ainda os seguintes. – Rainha do Mar, Inaê,

Dantes. E em quantos lugares ela é adorada!

Os filhos de Yemanjá, por exemplo, devem-lhe dar presentes em todas as águas, isto é, em todos os

lugares onde Yemanjá mora, ou seja, no Dique, no Rio Vermelho, em Amaralina, No Monte Serrat, no

Abaeté (Itapoan), em S. Bartolomeu e na Lagoa Vovó, perto de São Gonçalo. Só assim poderão

conseguir os favores de sua excelsa senhora.

Durante o cortejo, Edison Carneiro observa os passos de Dona Germina do Espírito

Santo, uma senhora devota de Iemanjá, responsável pelas oferendas ao orixá, que contariam

com a colaboração financeira do próprio jornalista23. Para entrarem na igreja e fazer suas

21 Pesquisador da Universidade de Chicago, Donald Pierson no momento realizava estudos de campo na Bahia. Seu trabalho resultou no livro Brancos e Pretos na Bahia: estudo de contato racial, São Paulo, Nacional, 1971.22 Foi pai de santo do candomblé Estrela de Jerusalém, no Alto do Abacaxi.23 Germina do Espírito Santo era mãe do candomblé Filho das Águas, na Calçada.

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preces, os devotos necessitaram de uma autorização prévia do subdelegado local. Mas,

ainda assim, não puderam levar seus instrumentos percussivos:

O presente era o presente comum para a mãe-d’água, pó-de-arroz, pentes, loção, espelho, etc., todo o

material indispensável a uma toilete bem cuidada. O presente de D. Germina trazia ainda um pato, uma

galinha branca e dois pombos. E mais dez tostões do pobre do repórter...

De manhã, talvez às sete horas, o presente saiu de casa, carregado pela d. Germina do Espírito Santo, e

acompanhado por toda a população humilde do lugar. A procissão dos fiéis parou alguns momentos na

igrejinha da Senhora da Conceição, pra esse fim mandada abrir pelo sub-delegado local, deixado na

porta os tabaques e o agogô. Depois de algumas cantigas de ritmo dolente (ingôrôssi), a marcha

continuou, rumo ao Abaeté, pelo areal. Na praia, uma enorme multidão esperava a chegada dos filhos

das águas.

E, depois de transcrever alguns cânticos, Edison Carneiro reporta o momento da

entrega das oferendas, antes de concluir o texto, com a transcrição de mais cânticos:

D. Germina do Espírito Santo entregou o presente ao seu filho, o qual, já em roupa de banho, junto

com um rapaz do lugar, entrou na água, nadando para fora. No momento de deixar o presente

submergir, todos se viraram de costas para o mar. O presente desceu. E, cá na praia, as mulheres

receberam os seus santos, orixás africanos e “caboclos”, Nanan, Cosme e Damião, Tupinambuá [sic],

Oxum...

Parece que Edison Carneiro não gostou muito do resultado desse trabalho, como

atesta uma de suas cartas, enviadas ao amigo Arthur Ramos, no dia 23 de junho de 1936,

em que diz: "Vai com esta uma reportagem vagabundérrima sobre a mãe d’água. Se lhe

mando é porque há aí coisas que talvez lhe interessem”. Ainda na mesma correspondência,

Edison revela que pôde acompanhar todo o cerimonial, indo e vindo com uma caravana,

representando o jornal. “O prof. Donald Pierson ia comigo. Mandarei breve as fotografias”,

acrescentou.

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Embora se referisse com certo desprezo à sua reportagem, Edison Carneiro

provavelmente sabia que “O mito da mãe d’água” contribuiria com algumas informações

preciosas para futuros estudos sobre o tema. Além disso, ao destacar em seu texto a

necessidade de liberação policial para que a cerimônia pudesse ser realizada e às restrições

ao uso de instrumentos do candomblé, imprescindíveis em seus rituais, Edison Carneiro

deixa mais uma importante contribuição para a discussão em torno da liberdade religiosa.

Na Goméia de um jovem pai de santo

Edison Carneiro esperava que o 2º Congresso Afro-Brasileiro estivesse pronto até

setembro de 1936 e continuava a colaborar com a série de reportagens sobre a cultura

africana para O Estado da Bahia. Assim, no dia 7 de agosto, publicava uma reportagem

com suas impressões extraídas após uma visita que fez ao terreiro de João da Pedra Preta,

que mais tarde ficaria conhecido como Joãozinho da Goméia. A matéria era apresentada

com o título “O mundo religioso do negro da Bahia” e o subtítulo “Estado da Bahia nos

domínios do pai-de-santo João da Pedra Preta – O candomblé da Goméia – Pai-de-santo aos

15 anos – o 2º Congresso Afro-brasileiro – “que diferença há entre a religião dos brancos e

a religião dos negros?” – o candomblé domina...”

O carro da reportagem levaria o jornalista até a estrada de rodagem Bahia-Feira, na

altura do Km 2, na Goméia. Era lá que vivia o pai de santo João Torres Filho, na época

conhecido por João da Pedra Preta, então com apenas 22 anos de idade. Ainda na

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introdução do texto, o jornalista observa o aspecto comum da residência do religioso, com

seu telhado decorado para saudar Iansã, Oxalá e Oxóssi. Ao lado da casa, repara o recém

construído barracão e seus assentos de orixás. E após descrever o ambiente, destaca a

simplicidade do pai de santo:

O “assento” do caboclo Pedra Preta, uma das modalidades sob que aparece nos candomblés o orixá

Ogum, deus da guerra, merece especial menção. Sobre uma talha, o busto em barro do caboclo. A

atitude séria, a fronte larga cortada por uma ruga de domínio, a estatueta do Ogum da Pedra Preta

honra a escultura popular do Brasil.

Entramos. Nada, na casa toda, revela a função que o seu dono ali exerce. Isto é, o “pêji”, o “Járá-

Ôluwá”, onde moram os orixás. Até mesmo o próprio pai-de-santo decepciona como tal. Ele não tem

nada de difícil, de complicado, de feito para impressionar. É um rapaz comum, que se veste como todo

mundo, fala a linguagem do povo da Bahia.

A seguir, Joãozinho da Goméia é constrangido a explicar como se tornara pai de

santo, ainda na adolescência. Na época, sua pouca idade era alvo de críticas de outros

adeptos do candomblé, religião baseada na tradição oral e que, portanto, valoriza a

sabedoria dos seus membros mais velhos:

Passeando através do “terreiro”, vamos conversando com João da Pedra Preta:

- Pode nos dizer como se tornou pai-de-santo?

Ele pára, sorri um pouco:

- Eu nunca pensei nessas coisas. Acredite. Sou filho de Inhambupe, lá não tem candomblé...Veja. Eu

estava empregado num armazém da Calçada. Tinha quinze anos. Aí eu tive uma dor de cabeça tão

forte que alguns dias depois me saiam bichos pelo nariz. Sabe onde eu fui me curar? Numa casa de

candomblé. Já tinha experimentado tudo quanto foi remédio. No candomblé foi que eu soube que

estava sendo perseguido pelo meu santo. A mãe-de-santo de lá era minha madrinha, feita de Yansã. Ela

me obrigou a “fazer” o santo. Aconteceu que, pouco depois, ela morreu e eu tive de substituí-la na

chefia do candomblé. Sabe por que? Fui forçado pelo meu santo.

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Com sua história fantástica, Joãozinho da Goméia tenta justificar o fato de ser pai de

santo, num período em que era difícil assumir tal condição publicamente. Revela adiante,

que sua nação é Angola, embora seu santo seja Oxóssi, rei de Ketu24. Mas também cultua

caboclos, elementos da cultura indígena. Repete que foi forçado a seguir o candomblé e fala

sobre a necessidade de cumprir à risca com suas obrigações religiosas:

A conversa se desviou um pouco, mas afinal voltamos ao mesmo ponto:

- quantos anos têm de pai-de-santo?

- Sete. Estou agora com 22 anos, logo, sou pai-de-santo desde os 15. Forçado. Se não fizesse isso,

talvez eu endoidecesse. O meu santo não me permite fazer o que ele não quer. Por exemplo, apesar da

vontade que tenho, ainda não pude ir ao Rio de janeiro...

Um dos da caravana se espantou:

- Ele não deixa? Puxa! Santo exigente!

- Isso mesmo – disse-nos João da Pedra Preta.

- O meu santo é Oxóssi, o deus da caça, o São Jorge do catolicismo. Agora a minha nação é Angola.

Em outro trecho da reportagem, o jornalista questiona João Torres Filho sobre suas

obrigações referentes aos rituais em seu terreiro:

- Por quanto tempo, durante o ano, o seu candomblé bate obrigatoriamente?

João da Pedra Preta não teve dúvidas em responder:

- As minhas obrigações ocupam apenas vinte e um dias. Pouco, não é? São festas forçadas, que não

posso deixar de fazer. Mas há outras obrigações da casa. No dia 31 de maio, por exemplo, iniciamos

dois Yawô, Abêkê e Denandá. Nesse mesmo dia festejamos Oxóssi, meu santo e padroeiro do

candomblé.

- Aquela charola do barracão é dele?

- É. Fizemos uma procissão por aqui mesmo, carregando Oxóssi. Eu espero ir brevemente a Jaguaripe,

visitar o São Jorge de lá, que dizem que é muito milagroso... Eu tenho muita coisa com São Jorge.

- E por agora?

24 Observe que, embora Joãozinho da Goméia seja de nação Angola, ele se refere ao orixá dos nagôs. Mas a explicação para este fato talvez esteja na informação concedida a mim pelo antropólogo Renato da Silveira. Segundo ele, o nagô pode ser considerada a “língua geral” litúrgica, ou seja, em situações não controladas é a língua utilizada por todo o povo de santo da Bahia.

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- No domingo teremos a festa da iniciação de várias Yawô. É o “dia de dar o nome”, quer dizer, o dia

em que o santo desce nelas definitivamente. Elas iam entrar para a camarinha desde maio, mas o tempo

não deixou. Calcule que elas tinham de tomar, de madrugada, dois banhos – e, com o frio...

- Seria um desastre – concordamos.

O pai de santo teceu alguns comentários sobre sua expectativa para o 2º Congresso

Afro-Brasileiro. Como veremos mais adiante, Joãozinho da Goméia seria um grande

colaborador do evento, contribuindo para as pesquisas e para a divulgação da cultura afro-

brasileira:

- Soubemos de sua adesão no 2º Congresso Afro-Brasileiro – dissemos nós. – Pode nos dizer alguma

coisa sobre ele?

João da Pedra Preta ficou um tanto embaraçado, passando a mão pela cabeça, descruzando as pernas:

- Acho que o Congresso dará bom resultado, e ainda mais se contar com o apoio dos outros pais-de-

santo da Bahia. Por mim, farei o que puder pelo Congresso. Já prometi a Edison Carneiro, encarregado

do Congresso, dar uma festa aqui aos intelectuais, mandar alguns orixás e alguns instrumentos para a

exposição, aparecer nas sessões e levar gente para assistir os trabalhos. Já é coisa, hein? Tenho, por

exemplo, uma imagem de Anamburucú muito velha. Essa vai para o Congresso.

Também merecem destaque seus argumentos em defesa da liberdade religiosa.

Durante a entrevista, ele reclama do controle policial sobre os terreiros e principalmente da

cobrança de taxas para a realização de rituais de candomblé, um procedimento que vigorou

até 197625, ano em que foi abolido, durante os festejos em louvor ao Senhor do Bonfim, no

governo de Roberto Santos:26

Então, batemos no ponto sensível dos pais-de-santo da Bahia:

25 Esta seria uma exigência de um grupo de antropólogos, entre eles Juane Elbein dos Santos, que se reuniram em um seminário sobre política cultural organizado, em 1975, por Jorge Hage, então prefeito de Salvador. A informação é do antropólogo Renato da Silveira, um dos participantes do evento.26 Uma semana antes de o Diário Oficial publicar o decreto do governador Roberto Santos, o Jornal da Bahia transcreveu uma carta de Antonio Monteiro, presidente da Federação dos Cultos Afro-Brasileiros, dirigida ao governador do estado, reivindicando a liberdade de culto.

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- Os pais-de-santo não têm nada a reivindicar?

- Acho que o Congresso deverá solucionar, de uma vez, a questão da liberdade de religião. Para dar a

festa no domingo, tive de pagar 100$000. Para outras, pago 60$000.A minha opinião pessoal é a de

que não deve haver pagamento nenhum. O candomblé deve ter a liberdade de funcionar quando quiser.

Reconheço que alguns pais-de-santo abusam da licença. Mas que se há de fazer? Agora, assim como

está é que não está certo. Penso que o Congresso deve estudar direito um meio de resolver esta

questão. Que diferença há entre a religião dos brancos e a religião dos negros?

E depois de questionar publicamente a supremacia do catolicismo, Joãozinho da Goméia

leva o repórter para conhecer seu terreiro. Já na saída, o pai de santo ressalta a expansão do

candomblé em Salvador, apontando o crescimento em número dos terreiros em sua região:

Já havíamos demorado muito. Fomos ainda ver o “pêji”, onde se alinhavam os altares dos orixás. Lá

estava Xangô, com seu martelo, Yemanjá com sua espada de metal, Oxóssi com sua carabina e a sua

agulhada, Yansã, Oxalá, Ogum, todos os detentores das forças sobrenaturais do mundo.

Estávamos satisfeitos na nossa curiosidade. E já no automóvel, despedindo-nos do pai-de-santo João

da Pedra Preta, ele nos disse, fazendo um gesto que abarcava as redondezas:

- Veja como o candomblé está sempre vivo. Só aqui, em torno do meu “terreiro”, há perto de sessenta

candomblés...27

A entrevista com Joãozinho da Goméia foi ilustrada com sete fotografias. Na parte

superior da página, vê-se duas delas com as legendas: “Altar de N. S. da Conceição, no peji

da Goméia. Nota-se, em cima do altar, Oxóssi (S. Jorge) e Iemanjá, a mãe-d’água, esta

última a pentear os cabelos maravilhosos. Bom-nome, filha de santo de Cosme e Damião,

mostra a um dos componentes da caravana do Estado da Bahia um galo preto para o

sacrifício”.

27 Para o entendimento da expansão do candomblé nessa área vale conferir a versão utilizada pelo antropólogo Waldeloir Rego sobre a origem da palavra Goméia: “Por outro lado, os africanos quando aqui chegaram e foram se libertando, acomodavam-se em determinados locais, unindo-se por etnias. Deste modo, no local hoje chamado Goméia, que é uma corruptela de Abomey, se reuniam os povos de língua fon, vindos do Dahomey, hoje República Popular do Benin e aí se alastrtaram em derredor, formando pequenos agrupamentos em função das cidades daomeanas de suas procedências”...Waldeloyr Rego, “Mitos e ritos africanos da Bahia”, In: Cartbé, Os deuses africanos no candomblé da Bahia. Salvador, Bigraf, 1993, p.185.

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Abaixo, no centro, outras duas com “A caravana do Estado da Bahia em frente ao

novo barracão do candomblé da Goméia. O assento de Exu cercado pela caravana. O

homem da rua fica preso a cadeado... para não fazer barulho”. À esquerda, vê-se mais duas

fotos: “Em cima: O pai de santo João da Pedra Preta possuído pelo seu orixá, que é Oxóssi,

dança no meio das feitas. Em Baixo: Quem disse que Jubiabá não freqüenta candomblés? O

senhor de branco que vem para nós não é ele não...”. Ao pé da página, a imagem mostra “O

pêji do candomblé da Goméia, em dia de festa. No primeiro plano, o altar de Oxalá”.

João da Pedra Preta ainda ficaria algum tempo em Salvador, antes de partir para o

Rio de Janeiro, onde criaria fama e seria reconhecido nacionalmente como Joãozinho da

Goméia. Faria ainda centenas de filhos e filhas de santo que fundariam outros candomblés

espalhados pelo Sudeste do Brasil. Existem, na tradição oral, relatos de que teria sido

iniciado no terreiro de Jubiabá, do qual faria parte sua mãe de santo e madrinha.

Joãozinho da Goméia foi muito criticado no período em que viveu em Salvador. Por

sua ascensão meteórica, por ser pai de santo ainda tão jovem, por não seguir os preceitos

dos candomblés mais tradicionais, assim como Jubiabá. Ruth Landes, em A cidade das

Mulheres, dá uma boa idéia de como Joãozinho da Goméia era concebido à época: "Há um

simpático e jovem pai Congo, chamado João, que quase nada sabe e que ninguém leva a

sério, nem mesmo as suas filhas-de-santo - como se chamam em geral as sacerdotisas; mas

é um excelente dançarino e tem um certo encanto”.28

Mas foi por sua irreverência, sua personalidade forte e presença marcante que

Joãozinho da Goméia se destacou como uma das principais atrações do 2º Congresso Afro-

Brasileiro. Desta forma, ganhou a mídia e, até a sua morte prematura, em 1971, virou

referência para o culto afro no país. Em Duque de Caxias, no Rio de janeiro, ganhou o

28 LANDES, Ruth, A Cidade das Mulheres, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira.

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apelido de "o rei do candomblé" e reuniu uma clientela que incluía artistas, autoridades,

pessoas da alta sociedade carioca. O verdadeiro candomblé da Goméia não existe mais.

Depois da morte de Joãozinho, em 1971, tanto o terreiro baiano, no bairro de São Caetano,

como o terreiro fluminense, de Duque de Caxias, foram extintos.

Uma visita ao Estrela de Jerusalém

No dia 29 de agosto, O Estado da Bahia publicou uma entrevista com Manuel Paim, -

pai do terreiro Estrela de Jerusalém - seguindo a mesma estrutura da anterior, com

Joãozinho da Goméia. Até o título da entrevista foi o mesmo, para preservar a idéia de que

se trata de uma série: “O mundo religioso do negro da Bahia”. Já o subtítulo apresenta os

principais assuntos abordados no corpo de texto: “Manuel Paim conversa com Estado da

Bahia – As atribulações de um pai-de-santo por causa de Omolu – La Iraxé D’ôrixá Abá

Toutou – Nações – O 2º Congresso Afro-Brasileiro – União dos pais-de-santo – A religião

dos negros é uma religião como as outras – uma procissão de penitência no Cabula”.

O texto é introduzido pelo jornalista com suas primeiras impressões do local e da casa

onde morava o entrevistado, no Alto do Abacaxi, número 50. A novidade é que, desta vez,

o pesquisador e professor Donald Pierson é citado como acompanhante da equipe de

reportagem em sua empreitada.

Alto do Abacaxi, 50. Aí morava o pai-de-santo Manoel Paim que vamos entrevistar.

A escalada foi difícil. A ladeira em pé, o barro escorregadio...

Somente o professor Donald Pierson, da Chicago University, de Nova York, que acompanhava o

repórter, não dava sinais de cansaço, antes sorria largo aspirando a plenos pulmões o ar

“desbandeirado” que se respira ali.

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A casa nº 50 no Alto do Abacaxi não tinha nada a ver com a profissão do seu dono. Uma porta e duas

janelas iguais a quaisquer outras. À sombra de uma mangueira pouco frondosa. Na frente, o barro

vermelho comum a toda a rua com altos e baixos do capim.

Aos lados, cercas de paus a pique, cobertas de folhas. O aspecto mais honesto deste mundo.

Manoel Paim, não difere muito dos demais homens, não fica em contraste com a casa nº 50. Negro de

pouco mais de trinta anos, delicado, serviçal, sempre pronto a atender aqueles que dele desejam

alguma coisa.

Não foi difícil, portanto, que Paim nos respondesse à série de perguntas que lhe fizemos.

Assim como Joãozinho da Goméia, Manuel Paim também é levado a falar sobre sua

condição de babalorixá, ainda tão jovem. E então revela publicamente a história de como e

porquê se tornara pai de santo, na cidade de Cachoeira, onde teria recebido o “carrêgo” de

Santa Bárbara, correspondente à Iansã no sincretismo com a religião católica:

- É uma história comprida...

- Respondeu Paim, como lhe perguntássemos como se tornara pai-de-santo.

- Não faz mal.

Ele então foi dizendo:

- Eu não fui criado nisso, nem gostava de candomblé. Até ia aos terreiros “anarquizar”... numa viagem

que fiz até Cachoeira, o santo me pegou. O “zelador dos santos” me garantiu que era Santa Bárbara.

Um outro camarada me convidou para fazer parte da casa dele. Foi aí que “senti” o santo. Minha avó

tinha deixado pra mim, sem eu saber, o “carrêgo” de Santa Bárbara... .

Em seguida, Paim continua sua história dizendo que foi forçado a permanecer no

candomblé, por exigência dos orixás. Como já foi visto anteriormente, Manuel Paim utiliza

uma estratégia semelhante a de Joãozinho da Goméia para justificar o fato de ser pai de

santo e suas obrigações religiosas:

- Mas eu me desleixei – continua Paim. – e paguei caro o atrevimento. Tropecei num “ebó” e tive de

passar três meses e onze dias de cama, totalmente inutilizado. Fui a uma sessão, mas não valeu nada. O

jeito foi voltar mesmo ao candomblé...

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O professor Pierson atalhou:

- Mas o seu santo não é Omolu?

- Pois é, mas só em Cachoeira “rodei” com Omolu. Omolu é o meu santo predileto. Estou agora com

trinta e dois anos e já sou pai-de-santo há quatro anos. De Omolu.

O terreiro de Manuel Paim pode ser considerado um bom exemplo do que acontecia

naquele momento, reconhecido como de grande expansão do candomblé na Bahia. Novos

pais de santos, feitos fora dos candomblés mais tradicionais, se sentiam à vontade para abrir

seu próprio terreiro, muitas vezes incorporando elementos de várias raízes diferentes, a

exemplo dos já citados Jubiabá e Joãozinho da Goméia. O mesmo, pois, acontecia com

Manuel Paim, como mostra este trecho da entrevista:

A “nação” de Paim era Ijexá.

- Eu gosto mais do Angola, - disse ele, - mas minha “nação” é Ijexá.

O professor Pierson meteu-se no meio:

- Entretanto, o sr. tem aqui várias estatuetas de caboclos... Pode nos explicar isso?

Ele sorriu:

- É fácil. Meu avô era gêge, mas a minha avó era índia, foi pegada no mato a-dente-de-cachorro... .

E, mostrando-nos umas estatuetas, disse;

- Vejam este Oxóssi “caboclo”. Se eu o botar no “pêji” lá da “roça”, daí a pouco vem uma cobra e se

enrola nele... E só sai quando entra no “pêji” uma filha-de-santo.

Assim como Joãozinho da Goméia e Martiniano do Bonfim, Paim também seria

colaborador do 2º Congresso Afro-Brasileiro, ainda que em menor escala, contribuindo

como informante para alguns pesquisadores e com suas posições em defesa da liberdade

religiosa. Durante a entrevista, se refere ao evento com entusiasmo:

Sobre o 2º Congresso Afro-Brasileiro Paim se “espalhou” nas seguintes considerações:

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- Acho que é a coisa melhor que se poderia imaginar. E ainda mais na Bahia, que é terra das mulatas,

dos africanos e do “ebó”, como se diz por aí. Nesse Congresso os mais ignorantes poderão aprender, os

mais instruídos poderão ensinar e, dessa maneira, todos os pais-de-santo aproveitarão.

É Manuel Paim o primeiro chefe de terreiro a defender publicamente a idéia de unir

os candomblés da Bahia, como forma de resistência à opressão. Em seguida, o pai de santo

também compara a religião trazida da África ao catolicismo praticado pelos baianos, a

mesma estratégia utilizada por outros personagens entrevistados por O Estado da Bahia:

UNIÃO

- E pode ser ainda – continua Paim – que o Congresso consiga unir os pais-de-santo. O que a gente

mais precisa é de união. “A união faz a força...”.

A RELIGIÃO DOS NEGROS É UMA RELIGIÃO COMO AS OUTRAS

- Na sua opinião, - perguntamos, - qual a medida que lhe parece mais urgente e que, mais do que outra

qualquer, deve merecer a atenção do Congresso?

Paim respondeu imediatamente:

- A liberdade religiosa.

E, depois, um pouco triste:

- Para isso, porém, precisamos de união. E isso é o que falta... reconheço que há quem abuse (um

tabaque faz uma barulheira infernal...), mas a religião dos negros não é uma religião como as outras?

Eu espero que o Congresso possa resolver essa questão, de maneira satisfatória para todos.

Antes de abrir seu terreiro, Manuel Paim era tipógrafo e trabalhou na Imprensa

Oficial. Em um trecho da entrevista fala com orgulho de sua colaboração para o livro de

Manoel Querino - A raça africana e os seus costumes na Bahia. Foi Paim quem brochou o

livro. Conta ainda que seu pai não gostou nem um pouco de vê-lo abandonar a profissão, de

repente, para se tornar babalorixá. Mas Paim disse ter conseguido, “por intermédio dos

nossos santos”, que seu pai não fosse demitido, o que teria pacificado a relação entre os

dois. Mais tarde, o pai de santo abandonaria suas obrigações e passaria a se dedicar ao

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comércio de ervas, na Travessa das Flores. E mais tarde ainda se tornaria investigador de

polícia.29

Após um tempo no Alto do Abacaxi, Manoel Paim mudou-se para a Rua da Lama,

no caminho do Rio Vermelho, à altura da Vila América. Mas também possuía uma “roça”

no Cabula, que era utilizada para as festas e alguns rituais, como procissões. Lá, foram

feitas as fotografias publicadas na edição de O Estado da Bahia. Foram cinco no total. Ao

centro, a maior delas, mostra o “Interior do assento de Exu, na roça de Paim, vendo-se as

sete espadas do orixá, a quartinha ritual e uma boneca preta...”. Acima, duas fotografias; à

esquerda, vê-se “O nosso companheiro e o professor Donald Pierson ladeiam o assento de

Omolu, o orixá-patrono de Paim”. À direita, “Outro assento de orixá na roça de Paim, o

clichê mostra o professor Donald Pierson e o nosso companheiro, à frente da pedra, tendo

ao meio o caboclo José, que serviu de guia até os domínios do pai de santo”. No pé da

página, a última fotografia mostra “Manuel Paim posa para a nossa objetiva, no quintal da

sua casa, no Alto do Abacaxi”.

Sobre o culto da natureza entre os bantos

Revelando extrema má vontade com os negros bantos, Edison Carneiro publicaria, em O

Estado da Bahia, em 26 de outubro de 1936, um artigo intitulado “Culto da natureza entre

os negros bantos”, que seria editado no ano seguinte no livro Negros Bantos30, com o título

29 CARNEIRO, Edison, Candomblés da Bahia, 9ª ed., Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2002, p.131. 30 CARNEIRO, Edison, 1991, Opus cit., p.174

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“O culto da natureza”. Logo no início do texto, Edison Carneiro demonstra sua opinião

sobre a formação cultural dos negros bantos:

Os negros bantos eram, e são ainda, atrasadíssimos em cultura. Daí a sua dificuldade de generalizar.

E afirma ainda, em seguida:

Difíceis de imaginar a natureza como um todo à parte, esses negros são, porém, inexcedíveis no

conhecimento das ”folhinhas” do mato, indispensáveis não só ao desenvolvimento dos cultos afro-

brasileiros de influência banta (banhos de folhas, ofertas fetichistas, etc), mas ainda à própria profissão

de curandeiros e de feiticeiros e, mesmo, em certos casos, à sua terapêutica pessoal.

Com o auxílio de informantes como os pais de santo Manuel Paim e Bernardino do

Bate-Folha, Edison Carneiro faz uma reflexão sobre o tema, identificando o orixá ligado à

natureza, na religiosidade de origem banto:

Ora, os negros bantos, principalmente os angolas, têm o seu culto da natureza dirigido a Katendê

(Angola) ou Tempo, orixá mais ou menos identificado com o São Sebastião do Catolicismo. Mais ou

menos, porque, a acreditar no pai-de-santo Paim, a nação ijexá o adora como São João, o Baptista.

Influenciado por uma ideologia que valorizava o culto jêje-nagô – considerado mais

“puro” - em detrimento aos de origem banto, considerado por ele mais “atrasado”, Edison

Carneiro faz uma comparação do culto a Tempo, pelos bantos, ao culto a Irôco, pelos jêjes-

nagôs, sugerindo que este último é cronologicamente anterior ao primeiro:

Ainda mais, se os negros sudaneses, e em especial os nagôs, só no tempo de Nina Rodrigues chegavam

à concepção de Irôco como orixá, por que teriam trazido da África os negros bantos esse orixá, ou

mesmo desenvolvido, na Bahia, o temor em culto, independentemente dos sudaneses, se esses negros

bantos eram muitíssimo mais atrasados do que os negros de acima do equador?

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Tudo indica, assim, que a origem do orixá Tempo é jêje-nagô e que, portanto, esses negros do sul o

que fizeram foi, apenas, seguir nas águas dos do norte...31

Mais adiante, o pesquisador destaca o que chama de “processo de decomposição” da

concepção do orixá Tempo, associado a outros elementos que não a natureza:

Há, aqui, uma verdadeira confusão entre um orixá, que deveria representar a natureza, e o tempo-hora,

o tempo-diferenças-atmosféricas. Identidade de nomes, talvez...

E depois usa de ironia ao analisar a observação anterior, sobre a “simbiose do orixá”:

Este processo de decomposição, - processo velocíssimo, se se considerar que Tempo não tem muitos

anos de vida, - do orixá... vamos dizer, banto, prova que os negros sul-africanos, na Bahia, não estão

identificados com ele, não o sentem seu, criação exclusivamente sua. Não são os bantos, portanto,

aqueles a quem devemos a presença de Tempo na paisagem espiritual do Brasil e, por isso mesmo, não

temos o direito de nos surpreendermos se, amanhã, os angolas e congos da Bahia o representarem com

um velho seminu, de longas barbas brancas esvoaçantes, com um cajado e uma ampulheta na mão...

Concluindo seu pensamento, Edison Carneiro usa exemplos de candomblés com

raízes banto, famosos em seu tempo, como o terreiro de Bernardino do Bate-Folha e o do

Ciriáco, no Cabula. Para o pesquisador, o culto da natureza entre os negros bantos estava

sendo influenciado pela cultura branca, da classe dominante, e que permanecia a

dificuldade de generalizar por parte dos negros bantos. Vê-se ainda, nesta última passagem,

que Edison Carneiro ainda faz uma grave acusação, de caráter político, ao afirmar que os

negros bantos participavam de “adesão às ideologias da classe dominante” e “aceitação

crescente da cultura branca”.

31 Na visão do antropólogo Renato da Silveira esta é uma visão errônea de Edison Carneiro, pois considera o culto de Tempo Kiamuilo mais antigo na Bahia, idéia apresentada no artigo “Iyá Nassô Oká, Babá Axipá e Bamboxê Obtikô: uma narrativa sobre a fundação do candomblé da Barroquinha, o mais antigo terreiro baiano de Ketu”, 2001, inédito.

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O terreiro de Bernardino, no Bate-Folha, candomblé congo, possui, além de Tempo, outras árvores

divinizadas, pelos negros chamados Zacahy, Umpanzu etc, coisa que também acontece no Candomblé

do Cyriaco, no Cabula.32 Pouco a pouco, o culto da natureza, entre os negros bantos, vai tomando

novas formas, ampliando as suas perspectivas, embora essas “novas formas” correspondam, na maioria

dos casos à aceitação crescente da cultura “branca” pelos negros angolas e congos e a sua adesão às

ideologias da classe dominante. A maioria dos negros bantos permanece, porém, firme – firme na sua

dificuldade de generalizar...

Gilberto Freyre – críticas e receio de coisas improvisadas

No dia 13 de novembro de 1936, O Estado da Bahia publicou, provavelmente à

revelia de Edison Carneiro, uma entrevista com Gilberto Freyre ao Diário de Pernambuco

com o título “Em torno do Segundo Congresso Afro-brasileiro” e o subtítulo “Falando ao

Diário de Pernambuco, o escritor Gilberto Freyre diz do seu receio que o certame se

marque dos defeitos de coisas improvisadas”. Ao introduzir o texto, o jornalista informa

que estava anunciada para novembro ou dezembro daquele ano a realização do 2º

Congresso Afro-Brasileiro, na Bahia. E que, como havia sido organizador do primeiro

congresso, que se realizou no Recife, Gilberto Freyre, foi procurado para falar a respeito do

evento. O escritor teria dito:

32 Manuel Bernardino da Paixão – o Bernardino do Bate-Folha – assim como Manuel Ciriáco de Jesus – pai do candomblé do Tumba Junçara – foram famosos em seu tempo, ambos de origem banto.

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- Pouco lhe posso adiantar sobre o assunto. Só há dois ou três dias soube, por uma carta do escritor

Edison Carneiro, que ia realizar-se um segundo Congresso Afro-Brasileiro na Bahia. Receio muito que

vá ter todos os defeitos das coisas improvisadas. Deveria ser muito maior o prazo para os estudos, para

as contribuições dos verdadeiros estudiosos. Os verdadeiros estudiosos trabalham devagar. A não ser

que os organizadores do atual Congresso só estejam preocupados com o lado mais pitoresco e mais

artístico do assunto: as “rodas” de capoeira e de samba, os toques de “candomblé” etc. Este lado é

interessantíssimo e na Bahia de certo terá um colorido único. Mas o programa traçado no primeiro

Congresso foi um programa mais extenso e incluindo a parte árida, porém igualmente proveitosa para

os estudos sociais, de pesquisas e trabalhos científicos.

Depois de reivindicar prazo maior para a elaboração dos estudos, dizendo temer

possíveis equívocos da improvisação, Gilberto Freyre faz críticas severas ao fato de o

congresso contar com apoio financeiro do Governo do Estado, o que, para ele, poderia

representar indícios de demagogia e partidarismo:

Discordo, ainda, da orientação do 2º Congresso Afro-Brasileiro, que vai se realizar na Bahia, no

tocante às relações com o Governo do Estado. Estou informado pelo escritor Edison Carneiro – que é,

seja dito de passagem, um dos nossos africanologistas mais inteligentes – que se pleiteará uma

subvenção do Governo do Estado da Bahia para o 2º Congresso Afro-Brasileiro. Discordo

radicalmente. Creio que esses Congressos de estudiosos deviam ser como foi o 1º Congresso Afro-

brasileiro reunido no Recife, inteiramente independente dos governos ou de qualquer organização

política, com interesses partidários ou fins imediatos. Essa independência foi um dos traços

característicos do 1º Congresso – o de Recife - e para afirmá-la, José Lins do Rego, Cícero Dias, Mário

Lacerda de Mello, eu e alguns outros tivemos de opor resistência enérgica aos que pretenderam

deformar aquela reunião de pesquisadores e de estudiosos, prestigiada pela colaboração de

africanologistas como o professor Hersokovits, num ajuntamento demagógico e de cor partidária.

Para finalizar, Gilberto Freyre aponta que o caminho para os estudos africanistas seria

indicar os efeitos sociais e políticos da opressão à população negra. Baseado nessa

afirmação, ainda critica Nina Rodrigues, observando que a condição do negro deve ser vista

como um problema de “desajustamento social” e não de “patologia biológica”, como previa

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o primeiro. Durante a conclusão, faz novas reservas ao fato de o congresso receber

subvenção do Governo do Estado:

Creio que os problemas do negro e do mulato no Brasil devem ser discutidos e apresentados com a

maior franqueza, com honestidade e com desassombro, indicando-se os efeitos sociais e mesmo os

políticos da opressão da gente de cor, que ainda se observam entre nós.

Creio que o fato do Congresso Afro-Brasileiro do Recife ter encarado o negro e o mestiço de negro

não como um problema de patologia biológica, a exemplo do que fez o próprio Nina Rodrigues – que

era um convencido da absoluta inferioridade do negro e do mulato – mas como um problema

principalmente de desajustamento social, representa uma conquista notável para os estudos sociais

brasileiros e de profunda repercussão política. Mas não me parece que os Congressos Afro-Brasileiros

devam resvalar para a apologia política ou demagógica da gente de cor. Seria sacrificar todo o seu

interesse de esforço de pesquisa e de colheita e interpretação honesta de material que ainda está sendo

reunido.

Estou certo, entretanto, que os organizadores do 2º Congresso – na Bahia – saberão lhe assegurar um

ambiente de independência e de probidade científica.

Em uma de suas cartas enviadas ao companheiro Arthur Ramos, no dia 30 de

novembro de 1936, 17 dias após a publicação da entrevista no jornal para o qual

colaborava, Edison Carneiro afirma que “O Gilberto Freyre deu uma entrevista no Recife,

escangalhando o Congresso, falando em coisa improvisada, não sei o quê mais”. Mais

tarde, Edison Carneiro daria um depoimento que pode ser considerado uma resposta às

críticas que sofreu do escritor pernambucano. Dentre os vários aspectos que abordou, vale

transcrever o trecho em que o autor se refere à subvenção que recebeu do Governo do

Estado para a realização do congresso, alvo da mais dura crítica de Gilberto Freyre. O texto

foi publicado por Edison Carneiro mais de quarenta anos depois, no livro Ursa Maior.

Outra acusação de Gilberto Freyre foi a de que o congresso, tendo aceito a subvenção de 1500$000 do

Governo do Estado, tinha, de uma maneira ou de outra, influências políticas. Acrescentamos que a

Comissão Executiva do Congresso conseguiu, além desse dinheiro, hospedagem oficial para

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congressistas vindos de outras partes do país: Camargo Guarnieri, Jorge Amado e Frutuoso Viana.

Reginaldo Guimarães assinou o memorial por nós enviado, não ao governador Juracy Magalhães, mas

à Assembléia Estadual. Nestor Duarte, líder da oposição, foi quem conseguiu que nos fosse facilitado o

auxílio pedido, sem que tivesse havido qualquer confabulação anterior. Nós não éramos, nem somos,

ainda hoje, políticos no sentido que Gilberto Freyre quis dar à palavra. Nem o Congresso tratou de tão

interessante assunto.

Um pai de santo na Rádio Comercial

Restando pouco menos de um mês para a realização do 2º Congresso Afro-Brasileiro,

Edison Carneiro promoveu uma importante apresentação cultural para a divulgação do

evento. No dia 15 de dezembro de 1936, Joãozinho da Goméia e seus filhos e filhas de

santo fariam uma apresentação com músicas de candomblé. A apresentação foi transmitida

ao vivo pela Rádio Comercial e divulgada três dias antes, 12 de dezembro, no jornal O

Estado da Bahia, em uma nota intitulada “Uma noite africana na Rádio Comercial”; e com

o subtítulo “O pai de santo João da Pedra Preta, com a sua orquestra de negros, executará

músicas religiosas dos candomblés”. A nota foi ilustrada com uma fotografia onde se vê “O

pai de santo João da Pedra Preta com uma fantasia de erê”. Aproveitando a oportunidade,

Edison Carneiro falaria sobre as propostas do congresso. Eis a íntegra do texto:

No próximo dia 15, terça-feira, a 'Radio Comercial' oferecerá aos seus fãs um número sensacional.

Em colaboração com a comissão do 2º Congresso Afro-Brasileiro e com o Estado da Bahia, a 'Radio

Comercial' vai organizar um programa tipicamente africano, regional.

O 'pai-de-santo' João da Pedra Preta levará ao 'estúdio' daquela rádio difusora uma legítima orquestra

negra constituída por tabaques, agogô e cabaças, a cargo dos mais exímios tocadores do candomblé da

Goméia.

As filhas de santo que o acompanharão, farão coro a belos cânticos religiosos nagôs, bantos e caboclos.

Antes da audição de canto e música dos aderentes do candomblé da Goméia, deverá falar, sobre as

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finalidades do 2º Congresso Afro-Brasileiro da Bahia, o escritor Edison Carneiro, da comissão

encarregada do mesmo.

Assim, a 'noite africana' da 'Radio Comercial' está fadada a um sucesso sem precedentes na história das

nossas 'broadcastings’.

Dois dias após a apresentação, em 17 de dezembro, O Estado da Bahia publicou

outra nota, destacando o sucesso obtido por Joãozinho da Goméia e seus filhos e filhas de

santo no programa da Rádio Comercial. A nota aparece com o título “A noite africana da

Rádio Comercial da Bahia” e com o subtítulo “O sucesso inigualável alcançado pelos

cânticos religiosos do pai de santo João da Pedra Preta”. Para ilustrar, foi publicada uma

fotografia tirada no estúdio da rádio, onde se vê “João da Pedra Preta e três filhas de santo”:

Transcorreu, anteontem, com o maior sucesso possível, a noite africana da Rádio Comercial PRF-8 da

Bahia.

Em colaboração com o Estado da Bahia e com a comissão do congresso Afro-Brasileiro da Bahia, a

Rádio Comercial proporcionou aos rádio-ouvintes da cidade a audição de músicas e cânticos dos

candomblés afro-baianos.

O pai de santo João da Pedra Preta, chefe do candomblé da Goméia, na Estrada de rodagem Bahia-

Feira, levou para o estúdio da emissora a sua orquestra de negros, dando início, às 21h, à audição de

cânticos religiosos africanos ou de origem africana da Bahia.

João da Pedra Preta cantou, anteontem, o despacho de Exu e várias canções de Ogum, Oxóssi, Xangô,

de Oxalá, Omolu, Oxunmaco [sic] e de Iansã, todas em Ketu, língua norte africana, e canções de

Oxóssi, de Nanã, de Oxum, de Tempo, de Katendê e de Iansã, em Kinbundu, língua de Angola. Os

negros do candomblé da Goméia, sob a direção de João da Pedra Preta, cantaram ainda algumas

canções na língua dos caboclos do Brasil.

Por motivo de força maior, deixou de falar sobre as finalidades do 2º Congresso Afro-Brasileiro, o

escritor Edison Carneiro, da comissão encarregada da realização do congresso na Bahia.

Cercado e apoiado pelas suas filhas de santo, o chefe do candomblé da Goméia executou números

interessantíssimos, ouvidos com entusiasmo, tanto pelos rádio-ouvintes nas suas casas particulares,

como pelos populares que se aglomeravam à porta dos bares e dos cafés da cidade para escutar o velho

lamento africano dos candomblés.

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O 2º Congresso Afro-Brasileiro da Bahia

A três dias da abertura do congresso, Edison Carneiro iniciou, em O Estado da Bahia,

uma série de notas e reportagens divulgando a programação e as principais atividades

realizadas durante o evento, sempre com o título 2º Congresso Afro-Brasileiro. No dia 08

de janeiro de 1937 foi publicada a primeira delas com o subtítulo “O programa dos

trabalhos desse importante certame científico”. Essa primeira nota foi ilustrada com uma

fotografia feita no terreiro de Joãozinho da Goméia, com a legenda “A comissão executiva

do 2º Congresso Afro-Brasileiro diante do barracão do candomblé da Goméia”. O texto

anuncia a instalação das sessões no Instituto Histórico da Bahia e seu encerramento na

antiga Faculdade de Medicina, com uma homenagem a Nina Rodrigues, que contaria com a

presença de Arthur Ramos, mas que por motivos pessoais, como veremos mais tarde, não

pôde comparecer ao evento.

Ao informar parte da programação, o texto também revela o apoio popular ao evento, que

contou com visitas aos candomblés mais famosos da cidade, apresentações de samba e

capoeira e alguma apresentações com músicas afro-brasileiras, uma delas transmitida ao

vivo pela Rádio Comercial da Bahia, protagonizada por tocadores do terreiro do Gantois:

À tarde dos dias 13 e 14 no campo de Basquete do Clube de Regatas Itapagipe, cavalheirosamente

cedido pelo presidente daquele clube, dr. Antonio Mattos, haverá respectivamente, demonstrações de

samba e de capoeira, estas últimas sob a imediata direção de Samuel Querido de Deus, considerado

pelos seus companheiros de “vadiação” como o melhor capoeirista da Bahia.

Durante a noite, nos dias 11-15 deste mês, os congressistas terão oportunidade de assistir a toques nos

mais significativos candomblés da Bahia – entre os quais os centenários Engenho Velho e Gantois, e

ainda os de Procópio no Matatú Grande, de João da Pedra Preta, na Goméia e de Aninha, em São

Gonçalo do Retiro.

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A comissão de festas do Congresso prepara, ainda, uma excursão a São Bartolomeu, centro fetichista

de grande interesse para os estudos africanos.33

Durante o Congresso, estará aberto á visita pública o museu afro-brasileiro do Instituto Histórico da

Bahia.

Anunciando o Congresso Afro-Brasileiro a orquestra negra do candomblé do Gantois, dará na noite de

10 do corrente, na Radio Comercial da Bahia, uma audição de musicas religiosas por todos os títulos

interessantíssima.

Tal, em linhas gerais, o programa do Congresso Afro-Brasileiro da Bahia.

No dia seguinte, 9 de janeiro, O Estado da Bahia publicaria outras duas notas, uma na

página 3 e outra na 7. A primeira delas anuncia resumidamente a abertura do congresso. A

segunda reporta “A sessão preparatória de ontem e a colaboração de elementos populares

ao Congresso da Bahia”:

Esteve concorridíssima a sessão preparatória, de ontem, do 2º Congresso Afro-Brasileiro.

Ficou unanimemente resolvido que os números de capoeira, no campo de basquete do Clube de

Regatas Itapagipe, seriam realizados no dia 14, às 2 1/2 da tarde. No dia 13, à mesma hora, o pai-de-

santo João da Pedra Preta levará o seu candomblé para São Bartolomeu, oferecendo, aí, um espetáculo

aos congressistas. No dia 14, pela manhã, no Clube de Regatas Itapagipe, haverá demonstração de

samba e de batuque, a começar desde às 9 horas da manhã.

A sessão preparatória de ontem teve, como resultado, a colaboração mais eficiente de elementos

populares. Silvino Manoel da Silva, tocador de tabaque do candomblé do Gantois, vai apresentar ao

Congresso um interessante trabalho sobre os toques nos terreiros. Aninha, chefe do Cruz Santa do Axé

do Opô Afonjá, de São Gonçalo, no Retiro, escreverá sobre velhos costumes africanos da Bahia. Maria

Badá, velha negra de mais de noventa anos, fará receitas de comidas afro-brasileiras. Menininha, mãe-

de-santo do candomblé do Gantois, escreverá a história do seu “terreiro”, baseada nos arquivos dos

seus avós.

A Rádio Comercial da Bahia, em colaboração com o Congresso Afro-Brasileiro, irradiará a festa que

encerrará o Congresso, no candomblé do Gantois.

33 O termo “fetichista” é utilizado pela ideologia do racismo científico, ao lado de “animismo”, para referir às religiões extra-européias, exceto ao islamismo.

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As informações mostram a importância do 2º Congresso Afro-Brasileiro como

elemento de mobilização de vários representantes da cultura afro-brasileira. Especialmente

para o congresso, Mãe Aninha, do Ilê Axé Opô Afonjá, escreveu um livro com as principais

receitas da culinária afro-baiana, enquanto Mãe Menininha do Gantois narrou a história e os

costumes do seu terreiro. Em se tratando de uma cultura baseada na tradição oral, estes

trabalhos se constituíram no registro de informações preciosas para a preservação da

tradição.34

No dia 11 de janeiro, enfim, seria inaugurado o 2º Congresso Afro-Brasileiro da

Bahia. E O Estado da Bahia publicou “O programa dos trabalhos desse importante

certame”, instalado sob a presidência do professor Martiniano do Bonfim. Na

impossibilidade de enviar Mário de Andrade a Bahia, a prefeitura de São Paulo encarregou

o famoso compositor Camargo Guarnieri, que aqui recolheu notações musicais africanas e

populares, contribuindo, dessa maneira, para o reconhecimento dessas manifestações

culturais, até então não estudadas por pesquisadores da música nacional.

Também no dia 11, O Estado da Bahia publicaria uma outra nota informando da

abertura do evento com o título “Instala-se hoje o 2º Congresso Afro-Brasileiro” e ainda o

subtítulo: “Nesta seção serão lidas as teses de Dante de Laytano, Alfredo Brandão e Edison

Carneiro”. Na fotografia, vê-se “O prof. Arthur Ramos”.

No texto, o redator afirma que, assim como ocorrera em 1934 no Congresso do

Recife, o evento na Bahia se propôs a estudar a “influência do negro sobre a população

baiana, sob o ponto de vista político, social e religioso, procurando uma explicação para

34 Ver mais sobre o assunto em O NEGRO no Brasil - trabalhos apresentados ao 2º Congresso Afro-Brasileiro, Bahia, 1937. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1940.

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certos fatos cujos efeitos são sentidos sem conhecimento das causas”. Em seguida, cita

alguns dos principais pesquisadores do evento, assim como seu propósito de restabelecer a

“verdade sobre os negros”:

A merecer crédito serão as conclusões d’este Congresso que conta com a colaboração de africanista

como Arthur Ramos, o seguidor dos estudos de Nina Rodrigues, Martiniano do Bonfim, o

companheiro dedicado do grande criador da escola médico-legal brasileira, Estácio de Lima, prof. da

faculdade de medicina, Nestor Duarte, prof. da Escola de Direito, Edison Carneiro, o cuidadoso

esmiuçador das religiões dos negros da Bahia, Conceição Menezes, prof. do Ginásio da Bahia, para

citar somente alguns dos muitos que contribuirão para este certamente não só de cultura e de estudo

como também de restabelecimento da verdade sobre os negros.

No dia seguinte, 12 de janeiro de 1937, O Estado da Bahia publica uma matéria sobre

o 2º Congresso Afro-Brasileiro, com o subtítulo “Como decorreu a sua sessão de

instalação”. O texto informa sobre os trabalhos apresentados na abertura do evento, anuncia

a chegada do “maestro Camargo Guarnieri, representante do Departamento de Cultura da

Prefeitura de S. Paulo, que veio recolher músicas africanas e populares da Bahia e adquirir

instrumentos musicais de candomblé, capoeira, samba e batuque; e o pianista e compositor

Frutuoso Vianna, especialista em música negreira, que ajudará as pesquisas do maestro

Guarnieri”.O texto ainda anuncia a programação para a tarde e à noite, que incluiu uma

visita dos congressistas aos “terreiros de Procópio, no Matatú Grande e o Candomblé do

Engenho Velho, um dos mais velhos do Brasil, na estrada do Rio Vermelho”.

No dia 13 de janeiro de 1937, O Estado da Bahia publicou outro texto, com o título

“O dia de ontem do Congresso Afro-Brasileiro” e o subtítulo “As teses discutidas nas

sessões – A visita aos terreiros de Procópio e de Engenho Velho – O programa para hoje”,

que resume seu conteúdo. Depois de reportar os principais acontecimentos do dia anterior,

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com suas sessões presididas por Donald Pierson e pelo compositor Camargo Guarnieri, o

texto informa a presença de outros intelectuais, como Jorge Amado e João Calazans, que

vieram para prestigiar o congresso. Em seguida, relata a visita dos congressistas aos

candomblés de Procópio do Ogunjá e do Engenho Velho da Federação. Ao descrever a

receptividade nos candomblés a boa impressão transmitida aos pesquisadores, fica mais

uma contribuição para a legitimação da cultura afro-baiana:

Dando cumprimento ao seu programa, o Congresso Afro-Brasileiro visitou, ontem, os “terreiros” de

Procópio e do Engenho Velho. Regiamente tratados em ambos os candomblés, os congressistas

trouxeram, d’ali, a melhor das impressões, erguendo, principalmente no Engenho Velho, vivas

entusiásticos à raça negra, ao Congresso Afro-Brasileiro, ao prof. Martiniano do Bonfim e aos

candomblés da Bahia.

No dia 14 de janeiro, a programação do evento reporta o sucesso da apresentação de

samba africano comandada pelo pai de santo Joãozinho da Goméia na sede do Clube de

Regatas Itapagipe. À noite, os congressistas ficaram encantados, segundo a nota, com o

Centro Cruz Santa do Axé de Opô Afonjá, de Aninha, no São Gonçalo do Retiro, onde

participaram de uma festa especial. Para os dias seguinte, foram anunciadas demonstrações

de capoeira de Angola e uma excursão até São Bartolomeu, onde o candomblé da Goméia,

novamente com João da Pedra Preta à frente, promoveu uma festa, na Cachoeira do Grande

Santo.

Inicialmente previsto para terminar no dia 15 de janeiro, o 2º Congresso Afro-

Brasileiro se estendeu até o dia 19 de janeiro de 1937. No dia 18, O Estado da Bahia

publicou uma matéria com o título “As últimas reuniões do Congresso Afro-Brasileiro” e o

subtítulo “As sessões de terça-feira, 19 – a homenagem dos congressistas a Nina Rodrigues

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– uma festa no candomblé do Bate-Folha”. O texto começa exaltando o sucesso alcançado

pelo evento, informando em seguida os principais pesquisadores locais e visitantes que

prestigiaram o encontro. Eles são citados neste trecho:

Por motivo da realização desse Congresso, e para nele tomarem parte, vieram à Bahia os intelectuais

brasileiros Camargo Guarnieri, compositor, representando o Departamento de Cultura da Prefeitura

Municipal de São Paulo, os romancistas Jorge Amado e Clóvis Amorim, o jornalista João Calazans, o

compositor Fructuoso Vianna e a sra. Curvello de Mendonça. Tomaram, ainda, parte nos debates, os

professores Nestor Duarte e Edgard Matta, os intelectuais Edison Carneiro, João Mendonça e Alves

Ribeiro, Reginaldo Guimarães e o prof. Martiniano do Bonfim, antigo colaborador de Nina Rodrigues

nos seus estudos sobre o negro brasileiro.

Depois de informar sobre os principais temas discutidos pelos pesquisadores e

representantes da cultura popular, o texto destaca as festas oferecidas aos congressistas nos

terreiros do Gantois, da Goméia, do Engenho Velho, de Procópio do Ogunjá e do Ilê Axé

Opô Afonjá. E ainda afirma que foram muito aplaudidas as rodas de samba e capoeira de

Angola, realizadas no Clube de Regatas Itapagipe. Logo adiante, é anunciada a festa de

encerramento no terreiro de Bernardino do Bate Folha. No final, divulga as últimas

atividades previstas para o evento:

Por várias razões, o Congresso não pôde, como estava anunciado, encerrar-se sexta-feira, 15, terça-

feira, 19, haverá uma sessão as 2 e meia da tarde, no Instituto Histórico, a fim de serem lidas as últimas

teses chegadas à secretaria do Congresso, uma de Reginaldo Guimarães sobre as “contribuições bantas

para a obra de sincretismo”, outra de Melville Herskovits, professor do College of Liberal Arts da

Northwestern University, dos Estados Unidos, sobre a presença de “deuses africanos a santos católicos

nas crenças do negro do novo mundo”, e de Salvador Garcia Aguero, de Cuba, sobre a “presença negra

na música”, da sua ilha.

Por fim, à noite, nessa mesma terça-feira, haverá a sessão de encerramento do Congresso, sessão essa

em homenagem a Nina Rodrigues, devendo falar o prof.dr. Arthur Ramos, o escritor Edison Carneiro e

o dr. Hosanah de Oliveira.

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O encerramento do 2º Congresso Afro-Brasileiro foi noticiado com destaque por O

Estado da Bahia. Como as festas e apresentações ocorreram na noite de 19 de janeiro,

portanto depois do horário de fechamento dos jornais, a reportagem seria publicada

somente no dia 21 de janeiro de 1937, com o titulo “2º Congresso Afro-Brasileiro” e o

subtítulo “O encerramento do brilhante certame – as resoluções votadas – a festa de ontem

no candomblé do Bate-Folha”. Nesta reportagem, são registradas as principais resoluções

dos congressistas, que reivindicaram a liberdade religiosa e a criação do Instituto Afro-

Brasileiro da Bahia. A idéia era passar para a entidade a responsabilidade de “fiscalizar” os

candomblés, atribuição que até então, como já se sabe, era exercida pela polícia. Eis o

trecho que trata do assunto:

O Congresso se decidiu pela liberdade religiosa dos negros da Bahia e do Brasil e resolveu a criação

do Instituto Afro-Brasileiro da Bahia, que tratará da fundação de escolas de samba e de capoeira de

Angola.

De fato, a plena liberdade religiosa demoraria ainda muito a chegar, mas

precisamente 39 anos, já que, somente no dia 15 de janeiro de 1976, no governo de Roberto

Santos, foi sancionada a Lei 25.095, que suprimia a necessidade de registro policial por

parte dos candomblés. Mas é certo que, a semente que ainda levaria quase quatro décadas

para germinar, foi plantada no fértil terreno do 2º Congresso Afro-Brasileiro, preparado por

Edison Carneiro. A criação de uma entidade para congregar os principais representantes da

cultura afro-brasileira também seria fundamental para a legitimação dos costumes trazidos

da África. Mas, como veremos mais adiante, esta não seria uma tarefa fácil, por diversos

fatores.

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Repercutindo o sucesso do 2º Congresso Afro-Brasileiro, cinco meses após sua

realização, O Estado da Bahia publicou, no dia 24 de maio de 1937, um pequeno texto com

o Título “Homenagem ao Congresso Afro-Brasileiro” e o subtítulo “A festa de ontem, no

terreiro do Alaketu, no Matatú Grande”. Durante a realização do evento, o terreiro do

Alaketu estava em reformas e não pôde receber os congressistas, que visitaram alguns dos

principais candomblés dos anos 30. Sobre o Alaketu e sua ialorixá, Dionísia, o jornalista

afirma:

Este candomblé dos mais velhos e dos mais sérios da Bahia, chefiado por D. Dionísia Francisca Regis,

na verdade se reanimou com a realização do Congresso, pois os “ogãs” e pessoas gradas do “terreiro”

resolveram continuar a prestigiá-lo, levantando-lhe novamente o barracão e trazendo novas “iaôs” para

o culto dos deuses africanos.

Não tendo podido homenagear no tempo o 2º Congresso Afro-Brasileiro, d. Dionísia Regis deu ontem,

à Comissão Executiva, uma festa simples, mas cordial, no velho ‘terreiro” do Alakêtu.

A essa festa compareceu um grupo de interessados nos estudos afro-brasileiros, entre os quais o

prof.dr. Nestor Duarte acompanhados pelo nosso companheiro de redação o escritor Edison Carneiro,

da Comissão Executiva do Congresso.

No final, o jornalista ressalta a impressão trazida pelos congressistas e ainda destaca a

presença do pai de santo Procópio Xavier de Souza na festa, se referindo a ele como “chefe

de um terreiro nagô muito importante do Matatú Grande”.

E dois dias depois, em 26 de maio, O Estado da Bahia, informa sobre duas festas em

dois dos terreiros mais tradicionais do candomblé de Ketu. A nota foi intitulada “As festas

amanhã, nos terreiros do Gantois e do Engenho Velho” e o subtítulo foi “Amanhã, dia de

Corpus-Christi, haverá duas grandes festas nos terreiros do Gantois e do Engenho Velho,

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dos mais puros candomblés da Bahia e dos mais antigos do Brasil”. Nesse mesmo dia, seria

inaugurado o novo terreiro do Gantois, enquanto o candomblé do Engenho Velho faria uma

das principais festas de seu calendário religioso, em louvor a Oxóssi:

Um novo “terreiro” no Gantois

Será lançada manhã, às cinco horas da tarde, a pedra fundamental do novo “terreiro” do Gantois,

ampliando a construção antiga.

Fará essa festa, os “Ogãs” e as pessoas gradas do candomblé estão convidando todos os seus amigos.

Depois dessa cerimônia, começará a festa no velho “terreiro” da Pulcheria, pela noite à dentro.

As festas do candomblé do Engenho Velho

O candomblé do Engenho Velho, na linha do Rio Vermelho (de baixo), comemorará o dia de Corpus-

Christi com uma grande festa em louvor de Oxóssi.

Para começar, haverá uma missa às 8 horas da manhã, na igreja do Paço.

À noite, a festa em louvor de Oxóssi trará alegria ao coração dos negros simples e bons das

redondezas.

Os “Ogãs” do candomblé estão convidando todos os amigos para a grande festa de amanhã.

Tentando unir os candomblés

A partir de agosto, são intensificadas as atividades para a criação de uma entidade que

represente a cultura afro-brasileira na Bahia, uma das decisões do congresso realizado em

janeiro. Na ocasião, deu-se o nome provisório de Instituto Afro-Brasileiro da Bahia, que

deveria, dentre outras atribuições, substituir a polícia na fiscalização dos candomblés. Em

uma de suas cartas dirigidas ao amigo Arthur Ramos, no dia 15 de julho de 1937, Edison

Carneiro fala de suas intenções:

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Estou organizando um Conselho Africano da Bahia, que ficará encarregado de dirigir a religião negra,

tirando à polícia essas atribuições. Vamos mandar um memorial ao governo, pedindo a liberdade de

religião, não só esse conselho, onde haverá representantes de todos os candomblés, mas também o

Instituto Afro-Brasileiro da Bahia, já em organização e a Comissão Executiva do Congresso.

Edison Carneiro seria, assim, um dos principais defensores da plena liberdade

religiosa na Bahia. Mas, de acordo com Vivaldo Costa Lima, seu trabalho nesse campo não

seria realizado sem conflitos ou ambigüidades: “por muito tempo, suas firmes atitudes em

defesa dos valores e direitos dos negros da Bahia lhe trouxeram problemas de vária ordem a

que não faltaram, paradoxalmente, a incompreensão e a desconfiança de alguns líderes do

candomblé”.35

No dia 19 de julho de 1937, Edison Carneiro escreve outra carta para Arthur Ramos,

informando que, no próximo dia 3, vários representantes de candomblé por ele convocados

iriam se reunir para criar o Conselho Africano da Bahia e pede que seu amigo use da sua

influência para reforçar, junto ao governador do estado, o pedido pela liberdade religiosa

dos negros baianos. No dia 4 de agosto de 1937, O Estado da Bahia noticia a criação do

Conselho Africano da Bahia no dia anterior, quando foi escolhida uma comissão para

elaborar os estatutos e eleita uma diretoria provisória. Eis a íntegra do texto:

Realizou-se ontem, na sede da a. u. b., gentilmente cedida, uma assembléia com o comparecimento de

vários elementos dos candomblés da Bahia e chefes de “terreiros”, para organização do Conselho

Africano da Bahia. Depois de várias discussões a assembléia resolveu, por unanimidade, criar o dito

conselho, escolhendo uma comissão para elaborar os estatutos da nova organização. A mesma

assembléia indicou ainda os srs. Martiniano do Bonfim, Silvino Manoel da Silva e Edison Carneiro

para constituírem a diretoria provisória até a próxima reunião que realizar-se-á no mesmo local, no dia

25 do corrente, para aprovação dos estatutos e eleição do Conselho diretor.

35 OLIVEIRA & LIMA, Op. cit., p.151

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A nota publicada no jornal não informa, porém, que os membros do conselho

redigiram um memorial solicitando ao governador a concessão da liberdade de culto,

reconhecendo o conselho como autoridade capaz de exercer a fiscalização praticada pela

polícia. No dia 28 de agosto de 1937, O Estado da Bahia publicaria outra nota intitulada

“Liga de Seitas Afro-Brasileiras” com o subtítulo “Resoluções tomadas na última sessão”.

Neste curto texto, o jornal informa as principais decisões da sessão realizada três dias antes.

Entre elas está a mudança do nome da entidade, de Instituto para Liga de Seitas Afro-

brasileiras. Novamente é destacada a presença de Martiniano do Bonfim, além de Edison

Carneiro, Donald Pierson e Álvaro Mac-Dowell, casado com mãe Menininha do Gantois. A

ata da reunião contaria ainda com um voto de pesar pelo falecimento de uma mãe de santo:

Realizou-se no salão da Beneficência Caixeiral a terceira reunião dos representantes dos candomblés baianos.

A sessão que decorreu dentro da maior harmonia foi precedida pelo lidimo representante da cultura africana

no Brasil, Martiniano do Bonfim, estando presentes os africanistas Edison Carneiro, Reginaldo Guimarães, o

prof. Donald Pierson da Universidade de Chicago, a poetisa Gilka Machado, a bailarina Evos Vobesia e

grande número de pessoas representando a maioria dos “terreiros” da Bahia.

Nessa sessão foi lançada a proposta por um dos representantes das religiões negras, para que se mudasse o

nome de “Conselho Africano” para o de Liga de seitas Afro-Brasileiras, sendo aprovada por unanimidade.

Em seguida entrou em discussão os estatutos da Liga, mas, como já estivesse muito adiantada a hora e

tivessem sido apresentadas várias emendas, ficou transferida a discussão dos estatutos para o dia 31, sendo

ainda incluído na Comissão de Organização dos mesmos o bel. Álvaro Mac-Dowell.

Para terminar, foi apresentado por um dos presentes, para que fizesse parte da ata um voto de pesar pelo

passamento da mãe de terreiro Canuta, do Tanque do Melo.

Pierson, como já foi dito, participou da reunião e, como pesquisador, registrou suas

impressões. Ele observou como um dos objetivos implícitos da Liga das Seitas Africanas a

eliminação das praticadas religiosas não ortodoxas. Como naquele tempo já eram muitos,

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senão maioria, os candomblés que se distanciavam cada vez mais de um modelo puramente

africano, isto se constituiu em um dos principais impasses para a criação e legitimidade da

associação. E é o próprio Donald Pierson quem afirma: “Na primeira sessão a animosidade

entre as seitas mais ortodoxas e as de caboclo era tão grande que qualquer acordo

substancial parecia bastante difícil”.36

Mas Edison Carneiro e seus principais companheiros não desistiriam e, no dia 4 de

setembro de 1937, O Estado da Bahia publicaria, provavelmente a pedido de Edison, uma

convocação dos membros da diretoria não mais da Liga, mas sim da “União das Seitas

Afro-Brasileiras da Bahia”. No subtítulo, o aviso: “Haverá, no dia 9, uma reunião de

diretoria”. No texto, o nome do babalaô Martiniano do Bonfim novamente aparece à frente

dos demais:

A Secretaria Geral da União das seitas Afro-Brasileiras da Bahia pede-nos publicar a seguinte

convocação:

Ficam convidados os membros eleitos da Comissão Executiva da Comissão de Sindicância e

fiscalização e da Comissão de Finanças, para uma reunião, no próximo dia 9, às 8 horas da noite, na

sede da A. U. B., ao Rosário 122, 2º andar, para tratar da instalação solene da União e da divisão dos

cargos da diretoria. – (a) – Edison carneiro, secretário geral.

Os membros da União que devem comparecer à reunião do dia 9 são os seguintes:

Comissão Executiva – Martiniano do Bonfim, Edison Carneiro, Marcelino Oliveira, João da Silva

Freire, Rodolfo Bonfim, Felipe Nery Conceição, Idalice Santos, Vicente Ferrer dos Santos, Álvaro

Mac-Dowell de Oliveira, João Capistrano Pires Dias, Waldemar Ferreira dos Santos.

Comissão de Sindicância e Fiscalização: Sylvino Manoel da Silva, José Crescencio Brandão,

Romualdo Bispo dos Santos, Arcanjo Manoel Bittencourt, Arsênio Cruz, Manuel Paim, (Barraqueiro

no Mercado Santa Bárbara) Saturnino Lopes dos Sntos, Amália Maria de São Pedro, João Torres

Filho, Fernando Alves de Souza.

Comissão de finanças:

36 Pierson, op. cit., p.306

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Octávio Ferreira Souza, Esmeraldo Jeremias dos Santos, Manoel Victorino Bastos, Germina do

Espírito Santo.

No dia 28 de setembro de 1937, O Estado da Bahia reporta com destaque a posse da

primeira diretoria da União das Seitas Afro-Brasileiras, em nota ilustrada com uma

fotografia onde se vê alguns dos participantes, com a seguinte legenda: “Um aspecto da

mesa, vendo-se o juiz Mathias Olympio e o representante do governador”. Ainda na mesa,

é possível constatar a presença do babalaô Martiniano do Bonfim, presidente de honra da

entidade e de Edison Carneiro. O texto também destaca a participação de outras entidades

em apoio ao movimento pela liberdade religiosa:

Empossou-se, ante ontem, solenemente, a primeira diretoria, eleita para o período de 1937-38 da União

das Seitas Afro-Brasileiras da Bahia. Presidiu a sessão, dando posse aos eleitos, o dr. Mathias

Olympio, Juiz federal. O ato teve a presença do representante do governador e das altas autoridades do

Estado e de organizações culturais e políticas, como a União Democrática Estudantil, Associação

Universitária da Bahia, Federação Nacional Democrática, Liga do Combate ao Racismo e ao Anti-

Semitismo, União dos Intelectuais da Bahia, Congresso Afro-Brasileiro, Sindicato dos Comerciários e

dos Empregados em Hotéis, etc. Foram lembradas com carinho as figuras de Castro Alves, Nina

Rodrigues, Manoel Querino e do famoso Pai Adão do Recife. Por proposta dos srs. Edison Carneiro,

Reginaldo Guimarães e Aydano Couto Ferraz, o prof. Arthur Ramos foi considerado sócio benemérito

da União. Encerrou a solenidade um discurso do sr. Álvaro Mac-Dowell de Oliveira, orador oficial.

Todos os presentes assinaram a ata da solenidade.

A presença de um juiz federal e de um representante do Governo do Estado, além de

várias associações, demonstrava certa aceitação à idéia. Já a concessão do título de sócio

benemérito a Arthur Ramos reflete, acima de tudo, resulta do carinho que Edison Carneiro

nutria pelo seu amigo. A última nota referente à União das Seitas Afro-Brasileiras foi

publicada por O Estado da Bahia no dia 30 de setembro de 1937. Na verdade se trata de

uma nota endereçada pela tesouraria aos responsáveis pelas casas filiadas à entidade. A

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publicação se deu a pedido do seu tesoureiro, Marcelino Oliveira, que convocaria os

representantes dos candomblés da Bahia para saldar seus compromissos:

Recebemos do sr. Marcelino Oliveira, tesoureiro da União das Seitas Afro-Brasileiras da Bahia uma

solicitação para publicarmos a seguinte nota:

“ A tesouraria da União das Seitas Afro-Brasileiras da Bahia pede aos chefes de seitas ou a quem possa

interessar, o favor de se dirigirem à Ervanária São Roque, na entrada do mercado de Santa Bárbara, à

rua Seabra, das 12 ás 12:40 horas e das 17 ás 19:30 nos dias úteis, sempre que desejem satisfazer os

seus compromissos com a União. Bahia, 29 de setembro de 1937. – Marcelino Oliveira, tesoureiro.”.

Tivemos notícia também que a Comissão Executiva deverá reunir-se terça-feira, 5 de outubro, em local

oportunamente anunciado.

Morte de Aninha – e a “pureza” dos ritos nagôs

Em uma das cartas enviadas a Arthur Ramos, no dia 8 de janeiro de 1938, Edison

Carneiro em poucas palavras resume a perda de uma grande amiga e colaboradora:

“Morreu, há dias, d. Aninha, do Opô Afonjá, braço do Congresso, sua admiradora”. E dois

dias após a morte de Aninha, que chegou a abrigá-lo em seu terreiro durante a

intensificação da perseguição política na Bahia, Edison Carneiro publicava em O Estado da

Bahia uma ampla matéria noticiando o fato, com o título “Era a mais popular mãe de santo

da Bahia” e o subtítulo “O falecimento de Aninha, chefe do maior terreiro do Brasil –

Sacerdotisa de Xangô – O centro Cruz Santa do Axé de Opô Afonjá – Um axé inaugurado

pelo prefeito Bezerra Lopes – Mais de duas mil pessoas no enterramento da bondosa

Aninha”.

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Ocupando uma página inteira, o texto vem acompanhado de três fotos, duas delas no

topo da página com uma legenda única: “Dois aspectos do sepultamento de Aninha, a mãe

de santo de São Gonçalo do Retiro. O ataúde carregado por irmãos de São Benedito é

conduzido até o Cemitério da Quinta dos Lázaros. À direita, parte da multidão que formava

o cortejo fúnebre”. No meio da página, vê-se “A última fotografia de Aninha, que faleceu

aos 68 anos de idade”.

A morte de Aninha, no dia 3 de janeiro de 1938, levaria uma multidão ao cemitério

Quinta dos Lázaros, onde a mãe de santo seria sepultada, em cova rasa. Ao introduzir o seu

texto, Edison Carneiro não economiza palavras elogiosas ao se referir a “grande perda”,

“com o falecimento anteontem da mais popular Mãe de Santo da Bahia – D. Eugênia Ana

dos Santos”. Em seguida, informa sobre o fato de ter sido Aninha filha de santo do

candomblé do Engenho Velho – o mais antigo do Brasil – na época dirigido pela ialorixá

Maximiana Maria da Conceição. E continua:

E apesar de ser o seu próprio “terreiro” mais rico, mais concorrido e mais belo do que o da linha do

Rio Vermelho, Aninha sempre reconheceu ao Engenho Velho a supremacia espiritual dos Candomblés

da Bahia e, portanto, do Brasil. Ali, na “roça” de São Gonçalo se observava, na sua maior pureza, o

culto nagô aos deuses africanos.

Seu objetivo com essas palavras, como é possível observar em momentos anteriores,

era valorizar aquilo que considerava mais tradicional, posicionando hierarquicamente acima

dos demais, com rituais e costumes mais próximos das raízes africanas. Assim, além de

transmitir sua emoção ao descrever as qualidades subjetivas da ialorixá - descrita como

uma pessoa sábia, amável e atenciosa, “um grande e luminoso espírito” - sempre que

possível Edison Carneiro também ressalta seus signos da tradição africana, a exemplo de

seus trajes, como neste trecho da reportagem:

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Uma estranha impressão de confiança se apoderava imediatamente dos que a viam na direção suprema

das festas do Axé. Vestida à moda da Costa dos Escravos, os braços cheios de pulseiras, os cabelos sob

a coifa branca, a sua autoridade era incontestável. De uma lucidez sem par, não perdia nada do que se

passava à sua volta. Sempre amável com todos, sempre atenciosa, já não surpreendiam, na sua boca, as

grandes e belas palavras que, nas oportunidades especiais que se apresentavam, saiam dos seus lábios

sempre prontos para abençoar e consolar. Era um grande e luminoso espírito.

A participação de Aninha no 2º Congresso Afro-Brasileiro é destacada na

reportagem, relembrando sua colaboração com um artigo sobre a culinária afro-baiana,

noticiada em matérias publicadas durante a realização do evento. Após o Congresso, Edison

Carneiro incluiu o trabalho como apêndice ao volume O Negro no Brasil.37 O trecho a

seguir, também recorda a festa realizada em seu terreiro, que causou excelente impressão

aos congressistas, recebendo elogios de grandes intelectuais da época, como pudemos

constatar na reportagem publicada no dia 14 de janeiro de 1937.

Foi Aninha uma das primeiras entre as Mães de Santo da Bahia a aderir ao Congresso Afro-Brasileiro

aqui reunido em janeiro de 1937, tendo mesmo colaborado com um pequeno trabalho sobre quitutes

afro-baianos, para o “Negro do Brasil”, coletânea de estudos a ser publicada brevemente pela

Biblioteca de divulgação científica, dirigida pelo professor Arthur Ramos para a “Civilização

Brasileira”. Também Aninha, durante a realização do Congresso, abriu sua casa para receber em bela

festa africana, os congressistas, por ela especialmente convidados. Da distinção com que foram

recebidos os estudiosos aqui congregados em janeiro de 1937 é prova cabal o documento, então

firmado, em que, ao lado da assinatura dos escritores Jorge Amado, Heitor Marçal e João Calasans, se

encontravam as dos músicos Camargo Guarnieri e Fructuoso Vianna.

Sua contribuição para a criação da União das Seitas Afro-Brasileiras também foi

lembrada na ocasião, por ter sido a primeira grande líder religiosa a participar da idéia de

criar uma entidade que pudesse congregar os candomblés da Bahia.

37 O Negro no Brasil, opus cit,1940.

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Também aderiu Aninha, imediatamente, à idéia de fundar a União das Seitas Afro-Brasileiras na

Bahia. Não poupou esforços no sentido de conseguir a realização dessa grande aspiração coletiva.

Prestigiou-a, com seu nome, com sua solidariedade, com seu trabalho. O triunfo da União se deve, em

grande parte, à sua ação inteligente.

Ao retratar a personalidade de Aninha, Edison Carneiro não poderia deixar de

mencionar sua devoção a Xangô, rei de Oió, antiga capital iorubana:

Nesse culto diário ao grande deus do raio e do trovão, ela não tinha rivais na Bahia nem no Brasil. No

ano passado, realizou ela no Axé; a cerimônia de posse dos “ministros de Xangô”, belo ato religioso

iorubá, de há muito esquecido e até mesmo ignorado na Bahia.

O ritual aos ministros de Xangô era motivo de orgulho para Aninha, que gabou-se de

tal fato para Donald Pierson: “Minha seita é puramente nagô, como o Engenho Velho. Mas

eu tenho ressuscitado grande parte da tradição africana que mesmo o Engenho Velho tinha

esquecido. Eles têm uma cerimônia para os doze ministros de Xangô? Não! Mas eu

tenho”38. O próprio Edison Carneiro teria revelado ao antropólogo Vivaldo da Costa Lima

que teria ele mesmo assistido à posse dos ministros de Xangô, em 1937. A valorização da

“pureza nagô” é um tema muito vasto e polêmico que não se enquadra no recorte executado

pelo presente trabalho39.

Mais adiante, a reportagem passa a descrever o sepultamento do corpo de Aninha,

que teria sido transportado de automóvel para a Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos

38 COSTA LIMA, V. da, Opus cit., p. 53.39 Esquematicamente, a “pureza nagô”, defendida pela “Escola de Nina Rodrigues”, foi duramente criticada por autores como Peter Fry e Beatriz Góes Dantas, que a viram como palavra-de-ordem da aliança entre alguns antropólogos e os produtores da cultura afro-baiana de origem ioruba, visando um melhor posicionamento destes últimos no mercado simbólico, ou seja, na competição entre as diversas religiões populares presentes na cena histórica baiana. Ver, sobre o assunto, Carlos Vogt e Peter Fry, Cafundó, a África no Brasil – Linguagem e Sociedade. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, particularmente o cap. 1, “A ‘descoberta’ do Cafundó”.

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Pretos, no Pelourinho, onde seria velado publicamente. De lá, seguiria em cortejo fúnebre

para a irmandade de São Benedito, no cemitério Quinta dos Lázaros:

O acompanhamento funerário da estimada mãe de santo foi um dos maiores vistos na Bahia lembrando

os do Pai Adão em Recife. Mais de 2 mil pessoas estavam presentes. Também acompanharam os

irmãos do Rosário, envergando o hábito. Sobre o caixão modesto, que foi o único que ela quis, via-se o

hábito da Irmandade que ela tanto prestigiava. Conduzido no ombro pelos irmãos de Nossa Senhora do

Rosário e de São Benedito, foi o corpo de Aninha levado a pé pela multidão, paralisando o tráfego por

mais de meia hora na rua Dr. Seabra. Filhas de santo choravam copiosamente. Outras comentavam as

virtudes da bondosa Aninha.

No cemitério, a cerimônia seguiu de acordo com os preceitos religiosos de Aninha:

Os atabaques roncavam quando o caixão, carregado por mãos piedosas, entrava na porta larga do

cemitério, enquanto se ouviam vozes plangentes cantando os cânticos africanos da seita a que pertencia

a ilustre mãe de santo.

Na ocasião falaram vários oradores, a exemplo de Álvaro Mac-Dowell de Oliveira em

nome da União das Seitas Afro-Brasileiras da Bahia, do próprio escritor Edison Carneiro,

além de outros representantes das religiões de origem africana, como o amigo Martiniano

do Bonfim. Após o enterro, grande parte dos presentes foi para o terreiro do São Gonçalo,

para tomar parte nas cerimônias fúnebres preparatórias do axexê. O encontro foi reportado

assim pelo jornalista, encerrando seu texto:

A cerimônia do Axêxê

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Sete dias após a morte do chefe do terreiro do Axé de Opô Afonjá haverá no seu terreiro de S. Gonçalo

do Retiro a cerimônia do “Axêxê”. Esta cerimônia consiste nos ritos funerários pelo descanso eterno

da falecida mãe de santo à semelhança das missas de sétimo dia da religião católica.

Nesta reunião tomam parte todos os “Ogãs”, “filhos” e “Paes” quando se reza então pela falecida

apagando seus passos no terreiro.

Finalmente no sétimo dia realiza-se o “cerrum” com cânticos fúnebres da seita a que pertencia,

encerrando-se deste modo as últimas homenagens.

Ainda em janeiro de 1938, no dia 25, O Estado da Bahia publicava um artigo

emocionado de Edison Carneiro com o título “Dona Aninha”, onde o escritor demonstrava

todo o seu afeto e admiração pela ialorixá. O mesmo artigo seria republicado em 1964, no

livro Ladinos e Crioulos, no capítulo “A Face dos Amigos”.40 Em seu texto, Edison

Carneiro assim a descreve:

Essa negra alta, diposta, falando claro e corretamente, o beiço inferior avançando em ponta, era bem o

expoente da raça negra do Brasil, síntese feliz da soma de conhecimentos da velha Maria Badá e da

agilidade intelectual de Martiniano do Bonfim.

O fato de ter Aninha sempre buscado preservar a “originalidade” dos cultos nagôs, é

de novo uma característica destacada por Edison Carneiro em seu artigo:

Muito fez pela preservação das tradições africanas no candomblé da Bahia. Darei apenas dois

exemplos. Em quarto guardado à vista dos curiosos e de estranhos, prestava culto a Yá, a deusa das

águas dos negros galinhas (grunces), uma tradição já, então, desaparecida. E foi Aninha quem, no ano

passado, trouxe para o Opô Afonjá a festa africana dos obas de Xangô, empossando os seus doze

ministros com o rito próprio, há muito esquecido pelos chefes e pelos aderentes das religiões

populares.

Embora se afirmasse governante de um terreiro “puramente nagô”, Aninha era, na

verdade, de nação grunce, conhecida na Bahia como negros galinhas, por terem sido 40 CARNEIRO, Edison, Ladinos e Crioulos, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1964, p.63.

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embarcados para o Brasil na feitoria existente na foz do Rio das Galinhas, no Golfo do

Benin. E, de acordo com a referência de Carneiro em seu artigo, mantinha no Opô Afonjá o

culto a Yá, a deusa da nação grunce, dos seus pais Aniió e Azambriió.

E depois de fazer referências semelhantes às transcritas na reportagem anterior,

Edison Carneiro relembra ainda o empenho e a colaboração de Aninha para a realização do

2º Congresso Afro-Brasileiro e da união das Seitas Afro-Brasileiras da Bahia, destacando

agora a inteligência da mãe de santo:

No dia seguinte, domingo, fomos, pessoalmente, vê-la. A recepção excedeu a expectativa, pois em vez

de uma simples mãe de santo que se mostrava favorável ao Congresso, encontramos uma mulher

inteligente que acompanhava e compreendia nossos propósitos, que lia os nossos estudos e amava a

nossa obra. Aninha se comprometeu a escrever um trabalho sobre os quitutes trazidos pelo negro para

a Bahia. E em apenas três dias de prazo, o opô Afonjá pôde oferecer aos congressistas uma das mais

belas noites que há memória nos fatos do candomblé da Bahia.

Posso dizer o mesmo do seu apoio à União das Seitas Afro-Brasileiras, fundada em 3 de agosto de

1937, com o fim especial de defender a liberdade religiosa sempre periclitante dos candomblés da

Bahia.

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Conclusão

O conteúdo do material organizado por Edison Carneiro em O Estado da Bahia

entre 1936 e 1938 não demonstra improvisações, embora algumas passagens sejam

marcadas por certas ingenuidades antropológicas, influenciadas por ideologias

predominantes em seu tempo. Mas é fato que suas pesquisas se baseiam em observações

consistentes - numa época em que havia poucos estudos sobre a cultura afro-baiana -, na

colheita de informações transmitidas através da tradição oral e do íntimo convívio que

manteve com a população negra da Bahia, inclusive com as mais importantes figuras do

povo de santo de sua época.

Também foi possível observar que a divulgação de um grande número de matérias

sobre o candomblé e a cultura negra em geral, publicadas com destaque gráfico nas páginas

de O Estado da Bahia, não impedia que o mesmo jornal apresentasse, às vezes na mesma

edição, notas extremamente preconceituosas e discriminatórias sobre as práticas religiosas

das comunidades negras. Em alguns de seus registros, o próprio Edison Carneiro deixa

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transparecer certo preconceito, herança do racismo científico, transmitindo a falsa idéia da

existência de culturas superiores, baseadas nos costumes europeus, em uma Bahia dos anos

30 que pretendia e se dizia ser “civilizada”, “moderna” e sem lugar para culturas

consideradas “primitivas” ou “atrasadas”, como expressavam os editoriais dos principais

periódicos do momento.

No entanto, a série de reportagens publicadas por Edison Carneiro serviria para

divulgar alguns de seus principais ensaios sobre o samba, a capoeira, o mito da mãe d’água,

o testamento do boi e sobre o culto da natureza entre os negros bantos – alguns deles

organizados posteriormente no livro Negros Bantos41. E ainda entrevistas com os pais de

santo Jubiabá, Joãozinho da Goméia, Manuel Paim e com o babalaô Martiniano do Bonfim,

além de uma série de notas e reportagens que serviriam para preparar o terreno para a

realização do 2º Congresso Afro-Brasileiro, realizado entre os dias 11 e 19 de janeiro de

1937. O evento é considerado o mais importante acontecimento relacionado aos estudos do

negro, na Bahia dos anos 30. Após sua realização, vimos que Edison Carneiro se engajou

na luta pela liberdade religiosa e passou a publicar notícias informando sobre a União das

Seitas Afro-Brasileiras da Bahia, que deveria substituir a polícia na fiscalização sobre os

terreiros.

A presença de Edison Carneiro também seria fundamental para o desenvolvimento

de estudos sobre a cultura africana realizados em Salvador por pesquisadores estrangeiros.

Dois deles foram especialmente acolhidos por Edison ao chegarem a Bahia: o professor

Donald Pierson, da Universidade de Chicago, e a antropóloga Ruth Landes, da

Universidade de Columbia. Pierson chegou a Bahia em 1935 e permaneceu por 22 meses,

até 1937. A partir de suas pesquisas, publicou o livro Negroes in Brazil – A Study in Race

41 CARNEIRO, Edison, Opus cit.,1991.

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Relations, traduzido para o português como Brancos e Pretos na Bahia42. Já Ruth Landes

chegou a Salvador em agosto de 1938 e permaneceu até fevereiro de 1939. Ela também foi

bem recebida e orientada por Edison Carneiro, a quem dedica espaço no livro The City of

Woman, traduzido e anotado pelo próprio Edison Carneiro com o título A Cidade das

Mulheres43.

A partir de 1938, Edison Carneiro passou a se dedicar aos seus projetos pessoais e

também a acompanhar a antropóloga Ruth Landes, recém-chegada a Salvador, em suas

pesquisas sobre a religiosidade afro-baiana. No ano seguinte, Edison Carneiro deixaria a

Bahia para viver no Rio de Janeiro. Após a realização do 2º Congresso Afro-Brasileiro, da

criação da União das Seitas Afro-Brasileiras, da morte da amiga Aninha, Edison decidiu

trilhar o mesmo caminho dos seus principais companheiros, entre eles os amigos Arthur

Ramos e Aydano do Couto Ferraz. Mas, antes, deixaria para sempre registrado nas páginas

de O Estado da Bahia - em suas entrevistas, notas, reportagens e artigos – um discurso

favorável à liberdade religiosa e à legitimação dos costumes de origem africana, rompendo,

assim, com o paradigma da imprensa baiana dos anos 30.

42 PIERSON, Opus cit.43 LANDES, Opus cit.

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