o negro e a cultura afro-brasileira: uma bricolagem multicultural do

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE DE EDUCAÇÃO PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO O NEGRO E A CULTURA AFRO-BRASILEIRA: UMA BRICOLAGEM MULTICULTURAL DO ENSINO DE GEOGRAFIA DOUTORANDO: EDIMILSON ANTÔNIO MOTA ORIENTADORA: PROF.ª DRª ANA CANEN Rio de Janeiro, 2013

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Page 1: O negro e a cultura afro-brasileira: uma bricolagem multicultural do

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

FACULDADE DE EDUCAÇÃO

PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO

O NEGRO E A CULTURA AFRO-BRASILEIRA: UMA BRICOLAGEM

MULTICULTURAL DO ENSINO DE GEOGRAFIA

DOUTORANDO: EDIMILSON ANTÔNIO MOTA

ORIENTADORA: PROF.ª DRª ANA CANEN

Rio de Janeiro, 2013

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Edimilson Antônio Mota

O NEGRO E A CULTURA AFRO-BRASILEIRA: UMA BRICOLAGEM

MULTICULTURAL DO ENSINO DE GEOGRAFIA

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de

Pós-Graduação em Educação, Faculdade de

Educação, Universidade Federal do Rio de

Janeiro, como parte dos requisitos necessários à

obtenção do título de Doutor em Educação.

Orientadora: Profª Drª Ana Canen

Rio de Janeiro, 2013

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Àqueles que reinventam a cultura como

reconhecimento e emancipação social.

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5

AGRADECIMENTOS

À minha esposa Cidinha, meu grande amor, que está ao meu lado desde o início

da minha carreira, que me compreendeu e me motivou a lutar por esse sonho de

chegar ao doutorado.

À minha linda filha, Sofia, o meu maior presente, que, no meu silêncio e reclusão,

levou-me abraços e beijinhos.

À minha orientadora, Profª. Drª Ana Canen, pela competência, rigor, exigência, e,

sobretudo, pela amizade, generosidade, delicadeza, e parceria, por ter acreditado

no meu potencial e me apoiado sempre.

À Profª Drª Libânia Nacif Xavier, pelas observações e contribuições teóricas

indispensáveis para a realização desse estudo, pelo carinho que pude sentir no

Exame Especial e na Qualificação e, por ter, ao mesmo tempo, acreditado na

superação dos meus limites.

À Secretária do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFRJ, Solange

Rosa de Araújo, pela sua dedicação cotidiana com todos nós - uma amiga sempre.

Às professoras da banca examinadora, pelas contribuições importantes para o

aperfeiçoamento do meu trabalho.

Page 6: O negro e a cultura afro-brasileira: uma bricolagem multicultural do

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“O discurso não é simplesmente aquilo que traduz as

lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo por que,

pelo que se luta, o poder do qual nos queremos apoderar.

A produção do discurso é ao mesmo tempo controlada,

selecionada, organizada e redistribuída por certo número

de procedimentos que têm por função conjurar seus

poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório”.

FOUCAULT

Page 7: O negro e a cultura afro-brasileira: uma bricolagem multicultural do

7

RESUMO

MOTA, Edimilson Antônio. O negro e a cultura afro-brasileira: uma

bricolagem multicultural do ensino de geografia. Rio de Janeiro, 2013. Tese

(Doutorado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade Federal do Rio

de Janeiro, 2013.

Com a homologação da lei 10.639 em janeiro de 2003, tornou-se obrigatório o

ensino da história da África e da cultura afro-brasileira em toda a educação básica.

Com isso, o campo do currículo foi levado a repensar o seu sentido, em termos de

como têm sido abordadas as disciplinas, e em que perspectiva pedagogicamente

estas temáticas têm sido apresentadas nos livros didáticos. No caso do ensino da

Geografia, o presente estudo teve como objetivo resgatar a importância do negro e

da cultura afro-brasileira, a partir de recortes discursivos extraídos dos livros

didáticos dessa disciplina no sétimo ano, com base nas categorias de lugar,

espaço, paisagem, região e população. O objetivo foi saber a partir de quais

paradigmas são construídas estas abordagens, e em que medida elas coadunam

com o multiculturalismo emancipatório. Para responder a essa questão,

entendemos que o ensino de Geografia está dividido em dois paradigmas

principais: o da geografia tradicional e o da geografia crítica. No primeiro, o

negro seria reconhecido a partir do paradigma do determinismo biológico, visto

como o selvagem, o não civilizado e de raça inferior, o que justificou a sua

escravização e a construção política e moral do reconhecimento negativo e

estereotipado a seu respeito pelo colonialismo. No segundo, baseia-se no

paradigma crítico marxista, em que, a crença está no motor da história gerada pelo

modo de produção capitalista, e na organização, e na transformação do espaço

social; o que levaria à desigualdade social e à luta de classes, em detrimento da

discussão da desigualdade por “raça”. Nesse sentido, os resultados apontaram que,

nos discursos a respeito da importância do negro e do resgate da cultura afro-

brasileira nos livros didáticos, tais conceitos deveriam ser descolonizados e

desconstruídos. Para tal, um fio condutor poderia ser o do reconhecimento “das

diferenças nas diferenças”, na construção da práxis do ensino de Geografia de

forma dialógica e dialética. Nesse sentido, far-se-ia necessário trazer as

contribuições do multiculturalismo emancipatório não com um fim, como uma

categoria fechada e estanque, mas, ao contrário, como um campo contestado,

aberto às práticas educativas dos sujeitos sociais.

Palavras-chave: negro; cultura afro-brasileira; livro didático; multiculturalismo

emancipatório; reconhecimento; ensino de geografia.

Page 8: O negro e a cultura afro-brasileira: uma bricolagem multicultural do

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ABSTRACT

MOTA, Edimilson Antonio. The black and african-Brazilian: culture in

multicultural patchwork geography education. Rio de Janeiro, 2013. Thesis

(Doctorate in Education) - College of Education, University Federal of Rio de

Janeiro, 2013.

With the homologation of the law 10.639 in January of 2003, it has become

obligatory the teaching of the history of Africa and of African-Brazilian culture in

all basic education, which has led the camp of curriculum to rethink its sense of

how the disciplines have been addressed, and in which pedagogical perspective

these subjects have been presented in the contents of textbooks. In the case of the

Geography subject, the present study had the objective to rescue the importance of

black and Afro-Brazilian culture, through clippings taken from the school books

of the sixth grade, based on the categories of place, space, landscape, region and

population to know from what paradigms these approaches are built, and as they

coadunate with the multiculturalism emancipatory. To answer this question, we

understand that the teaching of geography is divided in 2 main paradigms: the

traditional geography and the critical geography. In the former, the black people

would be accepted from the paradigm of the biological determinism, seen as the

wild, the uncivilized and the inferior race which justified their slavery and the

political and moral construction of the negative acknowledgment and stereotype

generated by colonialism. The latter is based on the Marxist critical paradigm, in

which the belief is in the motor of the history generated by the capitalist mode of

production, and in the organization, and in the transformation of the social

space, which would lead to social inequality and class struggle, instead of

inequality by race. In this sense, the results pointed out that the speeches about the

importance of black culture and the ransom of African-Brazilian culture in the

school books, the concepts should be decolonized and deconstructed, which

would require, as a guiding mostly the recognition of the difference in the

difference in the construction of the praxis of teaching geography dialogically and

dialectically and, accordingly, far would be necessary to evoke the

multiculturalism emancipatory not as an end, as a category closed watertight, but

on the contrary as a contested field, open for educational practices of social

subjects.

Kaywords: black; Afro-Brazilian culture; school books; multiculturalism

emancipatory; recognition; geography teach

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RÉSUMÉ

MOTA, Edimilson Antonio. Le noir et la culture afro-brésilienne : un

bricolage multiculturel de l’enseignement de Géographie. Rio de

Janeiro,2013. Thèse ( Doctorat en Éducation) - Faculdade de Educação,

Universidade Federal do Rio de Janeiro.2013.

À partir de l’homologation de la loi 10639, en janvier 2003, l’enseignement

de l’histoire de l’Afrique et de la culture afro-brésilienne est devenu

obligatoire en toute l’éducation fondamentale ce qui a conduit le camp du

curriculum à repenser son sens de l’approche des disciplines et savoir en

quelle perspective ces thèmatiques sont présentées pédagogiquement par les

contenus dans les livres didactiques. Par rapport à l’enseignement de la

discipline Géographie,cette étude a le but de racheter l’importance du noir

et de la culture afro-brésilienne, à partir des morceaux de discours extraits

des livres didactiques de Géographie de la septième année, fondés sur des

catégories de lieu, espace, paysage, région et population, pour savoir à partir

de quels paradigmes ces approches sont construites et en quelle mesure

elles se conforment au multiculturalisme émancipateur. Pour répondre à

cette question, nous comprenons que l’enseignement de la Géographie est

divisé en deux paradigmes principaux : celui-ci de la Géographie

traditionnelle et celui-là de la Géographie critique. Dans le premier le noir

serait reconnu à partir du paradigme du déterminisme biologique, vu comme

le sauvage, le non civilisé et de race inférieure, ce qui a justifié son

esclavage et la construction politique et morale de la reconnaissance

négative et stéréotipée à son sujet par le colonialisme. Dans le deuxième

on est basé sur le paradigme critique marxiste , où la croyance est dans le

moteur de l’histoire engendrée par le mode de production capitaliste et

dans l’organisation et la transformation de l’espace social, ce qui conduirait

à la lutte de classes, en dommage de l’inégalité par la race. En ce sens les

résultats ont indiqué que dans les discours au sujet de l’importance du noir

et du rachat de la culture afro-brésilienne, en livres didactiques, ses concepts

devraient être décolonisés et déconstruits, ce qui exigerait pour cela, comme

fil conducteur, la reconnaissance de la différence dans la différence, dans la

construction de la praxis de l’enseignement de la Géographie, de forme

dialogique et dialectique. et dans ce sens, il faudrait évoquer le

multiculturalisme émancipateur, non comme une fin, comme une catégorie

fermée et figée, mais au contraire, comme un camp contesté, ouvert aux

pratiques éducatives des sujets sociaux.

Mots-clés : noir; culture afro-brésilienne; livre didactique; multiculturalisme

émancipateur; reconnaissance; enseignement de la géographie.

Page 10: O negro e a cultura afro-brasileira: uma bricolagem multicultural do

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SIGLÁRIO

CAPES - Coordenação de Aperfeiçoamento Pessoal de Nível Superior.

CNE/CP - Conselho Nacional de Educação/Conselho Pleno.

DCN - Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-

Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana.

DEM - Democratas.

DIT - Divisão Internacional do Trabalho.

ENEM – Exame Nacional do Ensino Médio.

FF- Fundação Ford

FFCL/USP - Faculdade de Filosofia Ciências e Letras da Universidade de São

Paulo.

FNB - Frente Negra Brasileira.

IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.

IDEB - Índice de Desenvolvimento da Educação Básica.

IHGB - Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.

INL- Instituto Nacional do Livro.

LDB - Lei de Diretrizes e Bases

MEC - Ministério da Educação e Cultura.

MES - Ministério da Educação e Saúde.

MN - Movimento Negro.

MNB - Movimento Negro Brasileiro

MNU - Movimento Negro Unificado.

PCN - Parâmetros Curriculares Nacionais

PNE - Plano Nacional de Educação.

PNLD - Programa Nacional do Livro Didático.

STF - Supremo Tribunal Federal.

TEM- Teatro Experimental Negro.

UERJ - Universidade Estadual do Rio de Janeiro.

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11

IMAGENS

IMAGEM 1. Moinho de açúcar..........................................................................118

IMAGEM 2. Engenho de açúcar em Itamaracá .................................................120

IMAGEM 3. Manifestações Populares .............................................................131

IMAGEM 4. Oferendas à Iemanjá .....................................................................134

IMAGEM 5. Capoeira: luta e dança ..................................................................135

IMAGEM 6. Jovens no Ibirapuera .....................................................................138

MAPAS

MAPA 1. Analfabetismo no Brasil segundo a cor ou raça .................................149

Page 12: O negro e a cultura afro-brasileira: uma bricolagem multicultural do

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SUMÁRIO

CAPÍTULO 1: RECONHECIMENTO E ENSINO DE GEOGRAFIA ........13

1.1 Justificativa ..................................................................................................16

1.2 Objetivos ......................................................................................................18

1.3 Referencial metodológico ............................................................................25

1.4 Estrutura do trabalho ....................................................................................29

CAPÍTULO 2: GEOGRAFIA E MULTICULTURALISMO ........................30

2.1 A Geografia Tradicional: conceitos e tendências.........................................31

2.1.1 O negro e a raça: Delgado de Carvalho e Aroldo de Azevedo ......... 42

2.2 A Geografia Crítica e a transformação social pelo ensino.......................... 48

2.2.1 O livro didático e os paradigmas dominantes ....................................59

2.3 O vir-a-ser diferença e igualdade ................................................................70

2.3.1 Pensando o multiculturalismo no currículo .......................................80

CAPÍTULO 3: O NEGRO, DA CASA-GRANDE À CIDADE GRANDE

...............................................................................................................................90

3.1 A cultura afro-brasileira e Gilberto Freyre ...................................................91

3.2 O negro na sociedade de classes por Florestan Fernandes .........................101

3.3 A cultura e a luta por reconhecimento........................................................ 107

CAPÍTULO 4: OS DISCURSOS DOS LIVROS DIDÁTICOS DE

GEOGRAFIA ...................................................................................................111

4.1 O reconhecimento do escravo: da África à casa-grande................................112

4.2 A cultura afro-brasileira: da cozinha ao hip hop............................................126

4.3 Raça e renda, negros e brancos em espaços desiguais ..................................141

4.4 A Descolonialidade do ensino de Geografia.................................................156

5 CONCLUSÃO ..............................................................................................165

6 REFERÊNCIAS ............................................................................................174

7 APÊNDICE.............................................................................................187-222

Page 13: O negro e a cultura afro-brasileira: uma bricolagem multicultural do

13

1. RECONHECIMENTO E ENSINO DE GEOGRAFIA

Todo homem quer uma boa vida, e isto é desejo, porque, como gente,

desejar faz parte da condição humana. O que sabemos é que o desejo a uma boa

vida é a busca exterior do Eu no Outro; é no Outro que somos reconhecidos. Por

isso, há muitos tipos de reconhecimentos. O homem em sociedade luta por

reconhecimento afetivo, político, cultural, social, porque, na verdade, a luta por

reconhecimento é histórica, é dialética e dialógica, e, em cada época, os motivos

pelos quais se luta são diferentes e mutáveis como o desejo daqueles que lutam.

Não foi diferente, por exemplo, com o homem europeu. Desejoso em romper com

a força das águas e os domínios dos mares e oceanos, aprendeu a alcançar terras e

a fazer continentes. Tudo pela conquista. Daí o seu encontro com outros povos e

raças e a luta travada pelo conquistador sobre o conquistado, o que passou a ser o

sentido da colonização. Desde então, no caso do africano, este passou a ser

reconhecido pelo europeu como povos de raça inferior, sem cultura, cujo modo de

vida social seria selvagem e num grau de desenvolvimento bem próximo ao da

natureza, ou seja, quase igual a um animal das selvas e savanas daquele

continente.

No mesmo sentido, o processo de colonização americano, a partir do

século XVI, teve como base o tipo de reconhecimento feito pelo europeu sobre o

continente conquistado, e, ao mesmo tempo, para o seu desenvolvimento

econômico, reconheceu a escravidão de africanos e indígenas legal e moral. As

instituições da época defendiam a sua desconstrução com base na “maldição de

Cam”, já que este não tinha alma, ou então pelo direito natural de que, como

selvagem, já havia nascido desigual e, portanto, não reconhecido como gente.

Como tal, o trabalho compulsório seria o meio da sua redenção e da sua

socialização para então se tornar parte do mundo dos justos: branco, cristão e

europeu. Neste sentido, podemos afirmar que, entre o europeu e o africano,

durante a escravidão, a diferença foi a base da luta por reconhecimento. Isto

porque o europeu, a partir da sua suposta superioridade de raça e de cultura,

subjugou, classificou e hierarquizou o africano e o colocou na escala mais baixa

Page 14: O negro e a cultura afro-brasileira: uma bricolagem multicultural do

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da estratificação social, quando o fez escravo nas colônias conquistadas. Desde

então, a luta entre europeu e africano ganhou o sentido da luta por

reconhecimento, de vida ou morte, entre o senhor e o escravo, já que, para o

senhor existir, o africano seria o escravo. Foi com base na narrativa da escravidão,

especificamente no caso do Brasil, que este presente trabalho buscou

problematizar a luta por reconhecimento do negro e da cultura afro-brasileira no

ensino de Geografia, considerando que, desde a colonização, havia no imaginário

social a vontade e a potência do multiculturalismo com base na diferença, o que

fez com que a escravidão permanecesse por muitos séculos. Se, atualmente, há o

desejo de resgatar o negro e a cultura afro-brasileira numa dimensão positiva do

reconhecimento, é necessário conhecer o passado colonial construído com base no

reconhecimento negativo e de estereótipo que o europeu construiu sobre o

africano. Para isso, entendemos ser necessário problematizar a diferença e a

igualdade como marcadores filosóficos, porque foi com base nisso que se

justificaram séculos de dominação de relação social e de reconhecimento entre

senhor e escravo, como será abordado a seguir.

Abordar a luta por reconhecimento do negro e da cultura afro-brasileira no

ensino de Geografia, requer primeiramente olhar para trás e fazer uma incursão

histórica a respeito da luta entre africanos e europeus a partir do século XVI,

quando todo o processo de reconhecimento entre eles teve o seu início. O ensino

de Geografia, como uma disciplina do currículo escolar, foi uma invenção social

do final do século XIX, mas a escravidão de africanos não. Hoje, enquanto ensino

o currículo do programa do sétimo ano, o conteúdo sobre a formação territorial

brasileira tem como abordagem a presença e a contribuição dos povos africanos

que para aqui foram trazidos na condição de escravos, para a realização de

trabalho compulsório na economia agrária.

O que temos, desde então, é um passado, uma narrativa construída do

ponto de vista do europeu e reproduzida pela história oficial. O que buscamos

agora é revisitar tais narrativas e desconstruir pontos de vistas e estereótipos

principalmente no conteúdo dos livros didáticos de Geografia do sétimo ano. Para

isso, foram elaboradas as seguintes questões que têm como fim desencadear a

discussão geral desse presente estudo, em que se buscou dissertar a luta por

reconhecimento do negro e da cultura afro-brasileira, no ensino de Geografia:

Page 15: O negro e a cultura afro-brasileira: uma bricolagem multicultural do

15

1. Considerando o currículo de Geografia um campo contestado, em que

medida os discursos sobre o negro e a cultura afro-brasileira têm sidos

tensionados pelo multiculturalismo emancipatório como reconhecimento social?

2. Com base nos paradigmas da geografia tradicional e da geografia

crítica, em que perspectiva o negro foi reconhecido no que se refere ao conceito

de raça?

3. Qual a importância e a contribuição de Gilberto Freyre em “Casa-grande

e senzala”, e de Florestan Fernandes em “A integração do negro na sociedade de

classes”, no reconhecimento do negro e da cultura afro-brasileira para o ensino de

Geografia do sétimo ano?

4. Em que perspectiva do reconhecimento social os marcadores raça e

renda são apresentados nos discursos dos livros didáticos do sétimo ano,

considerando a importância do resgate do negro e da cultura afro-brasileira, com

vistas para o multiculturalismo emancipatório como uma nova abordagem no

ensino de Geografia?

5. Em que medida a evocação do multiculturalismo emancipatório pode

tensionar a descolonialidade do ensino de Geografia?

Para resgatar a importância do negro e da cultura afro-brasileira no ensino

de Geografia, especificamente no conteúdo do sétimo ano, a ideia é voltar, a partir

do século XVI ao marco inicial da formação do povo brasileiro e problematizar a

luta por reconhecimento do negro antes e após a Abolição, em que a diferença foi

o marcador entre o senhor e o escravo durante o regime escravagista. Antes: a

luta por reconhecimento entre o senhor e o escravo - o primeiro, para existir,

usava de todo o mecanismo de controle moral para construir a falta de consciência

social no segundo, de modo que refletisse sobre ele somente a subserviência do

escravismo. Depois: pós-abolição - diante da lei, o negro tornava-se livre e, agora,

o seu desafio seria fazer a sua integração na sociedade de classes. Como resgatar a

sua cultura, a sua autoestima, o seu reconhecimento social como um cidadão?

Enfim, a luta por reconhecimento na sociedade livre continuou intensa.

No século XX, o país já não era mais o mesmo do século anterior. A

industrialização e a urbanização das capitais, como São Paulo e Rio de Janeiro,

impunham um novo ritmo; ao mesmo tempo, tornava-se desafio diário para o

imigrante disputar um lugar na ordem competitiva da emergente sociedade

capitalista. Para o negro, nada foi fácil, visto que, agora, ele disputava tal lugar

Page 16: O negro e a cultura afro-brasileira: uma bricolagem multicultural do

16

com esse branco imigrante que trazia consigo, na sua maioria, um grau de

instrução diferente do dele, que havia saído do campo, sem reparação social e

despreparado. Grande parte passou então a subsistir das atividades do mercado

informal. Diante desse quadro, para além do ranço do tratamento desigual que o

negro trazia da escravidão, agora a desigualdade estaria também na busca da renda

per capita, visto que, quando comparado com o branco, ele se encontrava numa

posição social inferior.

Para refletir sobre o contexto social antes e após a Abolição, com base nos

discursos constituídos nos livros didáticos do sétimo ano, escolhemos fazer uma

bricolagem multicultural, ou seja, uma montagem técnica de cunho qualitativo

que visa à emancipação dos sujeitos sociais, e, para isso, como diz Kincheloe

(2007) “improvisamos”, recortamos, ajuntamos narrativas, crenças e lutas acerca

do negro e da cultura afro-brasileira dos discursos dos livros didáticos de

Geografia do sétimo ano. O desafio é pensar um ensino de Geografia e a sua

relevância conforme os argumentos a seguir.

1.1 Justificativa

Este trabalho é fruto das minhas inquietações e reflexões, quando eu, ainda

no exercício de Professor de Geografia da educação básica, uma década atrás, vi

tornar-se obrigatório o ensino da história da África e da cultura afro-brasileira,

com a homologação da Lei 10.639/03 para todo o currículo e disciplinas. Na

ocasião, passei a observar que, especificamente para o ensino de Geografia, não

havia uma orientação curricular oficial e, muito menos, metodologias que

atendessem as demandas evocadas pela legislação para o professor de Geografia

abordar a questão étnica racial como preconiza a lei. Movido por essa

inquietação, Mota (2010), no mestrado, com base num estudo de caso de uma

escola estadual do Rio de Janeiro, foi investigado o cotidiano de professores da

disciplina de História para saber em que medida estaria sendo implementado, na

prática docente, um ensino que fosse de acordo com as exigências das Diretrizes

Curriculares da Educação das Relações Etnicorraciais do Ensino da História da

África e da Cultura Afro-Brasileira. Os resultados apontaram que são muitos os

Page 17: O negro e a cultura afro-brasileira: uma bricolagem multicultural do

17

desafios dos professores, e que ainda faltam-lhes estudos especializados e a

formação continuada com a abordagem voltada para as exigências da lei.

No doutorado, a inquietação persistiu, porém, agora, a ideia era saber

como os discursos de raça e de cultura afro-brasileira são refletidos nos livros

didáticos de Geografia e, ao mesmo tempo, saber como a questão racial está sendo

refletida e investigada no campo da pesquisa em educação no Brasil. Para isso, em

2010 fizemos uma busca no banco de dados da Coordenação de Aperfeiçoamento

Pessoal de Nível Superior – CAPES, dos últimos dez anos, com as seguintes

palavras: multiculturalismo e geografia; racismo e livro didático; lei 10639 e

ensino de geografia; geografia e racismo, e foram selecionados 20 resumos

pertinentes à questão racial no ensino de Geografia. Desse total, apenas um

resumo de Simão (2005) tinha como abordagem o preconceito e o racismo no

ensino de Geografia; nos demais, não se mencionava a questão racial com base

nas questões propostas pela lei 10.639/03 e tampouco os textos interfaciavam com

o multiculturalismo. Vimos, então, que, no ensino das relações etnicorraciais com

vistas para a educação básica, havia uma lacuna a respeito de orientações

metodológicas para o campo das práticas pedagógicas, como também faltavam

estudos que tratassem da cultura afro-brasileira no ensino de Geografia.

Neste sentido, o presente estudo justifica-se ao ter como fim avançar sobre

a questão etnicorracial no campo do currículo de Geografia, a respeito do negro e

da cultura afro-brasileira, com base nos discursos constituídos nos livros didáticos

de Geografia e, ao mesmo tempo, evocar a discussão entre ensino de Geografia e

multiculturalismo emancipatório, buscando, assim, como abordagem, a luta por

reconhecimento de “raça” e de cultura, com base na diferença da diferença dos

sujeitos sociais e com base no conceito de descolonialidade do ensino de

Geografia. Acredita-se que pensar o resgate do negro e da cultura afro-brasileira

não seria negar os paradigmas das ciências sociais, políticas e econômicas

eurocêntricas, contudo, é preciso desconstruir, rever e recontar narrativas até então

construídas com base num discurso afirmativo do Outro com estereótipos e

racismo.

Para tanto, foram propostos os seguintes objetivos:

Page 18: O negro e a cultura afro-brasileira: uma bricolagem multicultural do

18

1.2 Objetivos

Geral:

Resgatar a importância do negro e da cultura afro-brasileiro no ensino de

Geografia, com vistas para o multiculturalismo emancipatório na

construção da cidadania plena e da democracia racial.

Específicos:

Fazer o levantamento dos discursos sobre o negro e da cultura afro-

brasileira, nos livros didáticos de Geografia do sétimo ano, a partir das

categorias: lugar, espaço, território, paisagem, região e população;

Selecionar e fazer a leitura de imagens que retratem o negro e a cultura

afro-brasileira, nos livros didáticos de Geografia do sétimo ano, e

interpretar à luz do reconhecimento social com que as narrativas textuais

foram recortadas;

Resgatar o pensamento social brasileiro de Freyre (1933)1 e de Fernandes

(1964)2 com base nos marcadores de raça, cultura e classe, para refletir

sobre o ensino de Geografia com vistas para o multiculturalismo

emancipatório;

Discutir a situação social do negro e da cultura afro-brasileira a partir dos

marcadores de raça e de renda à luz do pensamento social brasileiro,

considerando o multiculturalismo como meio, como uma forma de

reconhecimento social, na reflexão dos paradigmas do ensino de

Geografia;

Propor a descolonialidade do ensino de Geografia no resgate do negro e da

cultura afro-brasileira, no conteúdo do sétimo ano, com base no

multiculturalismo emancipatório.

Por que é importante identificar, selecionar e refletir para então propor o

resgate do negro e da cultura afro-brasileira no ensino de Geografia? Na verdade,

o conteúdo do ensino de Geografia sobre o negro e a cultura afro-brasileira faz

1 Ano de lançamento da obra.

2 Idem.

Page 19: O negro e a cultura afro-brasileira: uma bricolagem multicultural do

19

parte do currículo oficial, todavia, o que desde então vem sendo mudado é a sua

abordagem epistêmica e metodológica de como ensinar. A ideia é, com base no

multiculturalismo emancipatório, desconstruir o reducionismo histórico e

econômico das “narrativas mestras” em que o negro é reproduzido como uma

coisa da estrutura social do escravismo. Essa visão não é suficiente para gerar o

autorrespeito, a autoconfiança e a autoestima no aluno hoje; do mesmo jeito, nas

narrativas sobre o Continente Africano os povos são vistos como exóticos,

selvagens, e estigmatizados pela fome, pela pobreza, e pela AIDS divulgada pela

indústria cultural do ocidente sob uma estética perversa. Atualmente, no campo do

currículo de Geografia, essas reproduções têm sido tensionadas no sentido de

construir um reconhecimento positivo do negro e da cultura afro-brasileira sem

distorção e preconceito. Mas, a luta por esse reconhecimento no campo do

currículo não tem ocorrido de forma gratuita e esvaziada de tensão política. Na

verdade, ela é fruto dos primeiros movimentos sociais negros, como a Frente

Negra Brasileira - FNB fundada nos anos 30, que se opunha à opressão que

pesava sobre o negro. Desde então, setores e instituições têm sido tensionados

pela sua integração na sociedade de classes.

Hoje, a lei 10.639/03 representa uma resposta às reivindicações sociais

historicamente iniciadas nas primeiras décadas do século XX, construídas pelos

movimentos sociais negros na luta por reconhecimento social. Contudo, é verdade

que, para alcançar o entendimento de criar uma lei específica para o campo da

educação, primeiro, na Conferência de Durban (2001), oficialmente o Brasil se

assumiu um país racista. Na ocasião, a delegação brasileira contou com muitos

brasileiros engajados em lutas sociais e abertos aos debates que propusessem

novos caminhos que levassem à reversão do quadro de desigualdade racial vivido,

até então por negros e brancos. Para mitigar a divisão entre negros e brancos,

desde então, o governo passou a criar políticas afirmativas e programas

educacionais estratégicos proativos no combate a estereótipos e a preconceitos

raciais e culturais contra o negro.

O desafio do momento tem exigido um ensino que seja combativo ao

racismo e que, ao mesmo tempo, proponha o reconhecimento social do negro e da

cultura afro-brasileira no currículo de Geografia. Acreditamos existir um longo

Page 20: O negro e a cultura afro-brasileira: uma bricolagem multicultural do

20

caminho a percorrer e, ao mesmo tempo, de se construírem teorias e propostas

pedagógicas voltadas para o reconhecimento social do negro e da cultura afro-

brasileira. Estamos certos ser isto importante para a educação básica e para a

afirmação da pluralidade cultural como aponta o referencial teórico.

Propor o resgate do negro e da cultura afro-brasileira no ensino de

Geografia representa um desafio para este pesquisador tendo em vista que esse é

um estudo orientado na pesquisa qualitativa em educação. Com base em Bardin

(1977, p. 34), primeiramente fizemos a análise de conteúdo das narrativas oficiais

dos livros didáticos de Geografia do sétimo ano, o que exigiu selecionar os

discursos de acordo com as categorias básicas do ensino de Geografia: lugar,

espaço, território, paisagem, região e população. Após, no segundo momento, o

nosso desafio aumentou já que escolhemos a técnica da bricolagem como

pesquisa qualitativa, o que demandou assumir o ponto de vista de um pesquisador

bricoleur com base em Dezin e Linconl (2006) e Kincheloe (2007). Para alcançar

esse fim, buscamos fazer sobreposições, montagens, oposição, comparação e

sínteses de diferentes paradigmas a respeito do que é hoje reconhecido como

cultura afro-brasileira; isso porque, no passado, na visão eurocêntrica, a

cosmologia africana não era considerada cultura, e, para o campo das Ciências

Naturais, os africanos seriam da raça inferior. Então, neste sentido, para recontar

sobre a luta do negro no resgate da sua cultura, seria insuficiente toda essa

montagem apenas por uma perspectiva da ciência.

Segundo Khun (2011, p. 29), o ato de fazer “ciência normal” “significa a

pesquisa firmemente baseada em uma ou mais realizações científicas passadas”

sendo assim, entendemos que, para resgatar a importância do negro e da cultura

afro-brasileira no ensino de Geografia com o rigor da narrativa, no mínimo

seríamos obrigados a retonar ao século XVI, quando se iniciou a sua participação

na formação do povo brasileiro, e ver em que perspectivas científicas e filosóficas

ele era reconhecido. Primeiramente é preciso dizer que, no século XVI, escola

pública sob o controle do Estado, estava ainda longe de existir e muito menos a

disciplina de Geografia. Entretanto, hoje, ao abordarmos esta questão no campo

da disciplina, não podemos nos esquecer de que o que fizemos foi uma

montagem, uma bricolagem sobre o passado, no sentido de organizar as narrativas

Page 21: O negro e a cultura afro-brasileira: uma bricolagem multicultural do

21

à luz dos paradigmas com os quais acreditamos responder as questões do nosso

tempo. Ainda nessa mesma direção, Khun (2011) afirma que o ato de fazer ciência

não é algo isolado, ou seja, não se cria nada sem uma finalidade social, ao

contrário, toda ciência estaria integrada a uma “unidade histórica e

pedagogicamente anterior, onde são apresentados” os seus fins (Idem, 2011, p.

71). A partir disso, para resgatar a importância do negro e da cultura afro-

brasileira, o presente trabalho foi construído considerando o paradigma da

geografia tradicional que tinha como base as ciências naturais e, como tal, a sua

crença no determinismo biológico, em que o meio preponderava sobre o homem,

ou seja, a natureza seria determinante sobre o meio social. Estaria o homem

vivendo o processo da história natural e, de acordo com o grau de evolução,

seriam os povos selecionados por raça, que, numa escala de âmbito geral, estariam

sujeitos à classificação social hierárquica. Na verdade, até as primeiras décadas do

século XX, foi esta mentalidade de base naturalista biológico que dominou a

“ciência normal”, com um consenso. Esta visão geográfica a respeito do meio e da

raça, para La Blache (1921), ainda é preponderante, como ele próprio afirma:

As origens das principais diversidades de raças escapam-nos;

perdem-se num passado bem longínquo. Mas, e apesar da

reserva que a imperfeição das observações nos impõe, muitos

fatos advertem-nos de que a matéria humana conserva a sua

plasticidade e que, incessantemente modelada pelas influências

do meio, é capaz de prestar-se a combinações e formas novas.

[...] Os povos adaptam-se, ou, para melhor dizer, domam-se aos

seus habitats sucessivos. Sobre essas misturas que formam traço

de união entre raças distantes e diversas, a influência do meio

reserva a última palavra. (LA BLACHE, 1921, p. 372).

Nota-se, à época, como conceito, que o meio preponderava sobre o social.

Apesar disso, o autor avançou na compreensão sobre a potencialidade humana ao

fazer a densa descrição dos lugares habitados e modelados pelo homem, o que ele

conceituou como modo de vida. Em síntese, para ele, estaria o homem vivendo o

modo de vida de acordo com a sua raça e o seu grau de apropriação e de

transformação da natureza em materialidade (cultura),3 que variava numa escala

de desenvolvimento que ia do homem civilizado ao homem selvagem.

Nesse mesmo sentido, Brunhes (1956) recorreu à mesma escala de

estratificação para explicar o potencial de ocupação “destrutiva” do homem

3 Acréscimo meu.

Page 22: O negro e a cultura afro-brasileira: uma bricolagem multicultural do

22

europeu, considerado o civilizado. Segundo o autor, esse possuía maior domínio

sobre as técnicas, mas por outro lado, seria infinitamente maior a sua capacidade

de degradação das florestas, quando comparado ao homem selvagem. O mesmo

afirma:

Certos povos selvagens praticam a devastação incendiando

floresta e cultivando o terreno assim conquistado, até que o solo

fique esgotado. Nessas regiões, porém, há superabundância de

terra e esse processo não traz como consequência a penúria dos

meios de subsistência; acarreta, apenas, o nomadismo. A

queimada da grande floresta e, sobretudo, da grande floresta

úmida é, realmente, o único meio de instalação para as

existências que vivem mais ou menos desses tipos de cultura

(BRUNHES, 1956, p. 292).

Por possuir um baixo grau de desenvolvimento da cultura do manejo

agrícola, seria selvagem o homem cuja capacidade de destruição seria menos

impactante do que a capacidade do homem europeu?

A geografia tradicional é um ponto de vista construído com base na

ciência moderna, eurocêntrica, cujo princípio se assenta na invenção do homem

universal civilizado do século XVIII, de modo que, tudo que não fosse europeu,

seria o contrário disso. Durante muito tempo esse foi o paradigma dominante no

ensino de Geografia: a descrição do Outro visto a partir das “narrativas mestras”

eurocêntricas, que reproduziam o Continente Africano com um lugar de povos

escravizados e de raça inferior, sem cultura, selvagem e exótico.

Essa foi a ideia reproduzida nos conteúdos e currículos do ensino de

Geografia. Todavia, no Brasil, na década de 80 do século XX, o paradigma da

geografia tradicional foi abalado com a emergência da geografia crítica, que

tinha como base e inspiração as ideias da Geografia Radical de cunho marxista.

Um grupo de autores brasileiros começou a pensar o ensino de Geografia com o

poder de explicação do espaço geográfico a partir das diferenças sociais

produzidas pela desigualdade oriunda do sistema econômico capitalista. Seria a

desigualdade, consequência do modo de produção, o que levaria à divisão social

do tipo interclassistas, pobre e rico, à má distribuição de renda e etc. Como pontua

Vesentini (1991, p. 13):

O confronto geografia tradicional versus geografia crítica,

assim, foi aos poucos cedendo lugar a uma diferenciação interna

à geografia renovada ou crítica que mostra ter múltiplas vias.

[...] Enquanto, por um lado, ainda existe o professor

tradicionalista que ensina nomes de rios ou montanhas, por

outro lado há o fundamentalista, que substitui esse conteúdo

pela transmissão dos conceitos de modo de produção ou

Page 23: O negro e a cultura afro-brasileira: uma bricolagem multicultural do

23

“formação sócio-espacial”. Ao mesmo tempo, surgem aqueles

que buscam não somente substituir um conteúdo por outro, mas

principalmente uma relação pedagógica por outra (tornando o

aluno sujeito do conhecimento e construtor de conceitos, ao

invés de recebê-los prontos; oferecendo material para a crítica

do capitalismo e também do “socialismo real” e do marxismo-

leninismo; procurando ajudar na formação de cidadãos ativos e

não de militantes fanáticos e intransigentes.

Como o autor defende, o paradigma da geografia crítica estaria voltado

para explicar o espaço geográfico a partir da desigualdade produzida pelo sistema

capitalista, e, ao mesmo tempo, desenvolvendo uma relação de ensino e

aprendizagem em que o aluno seria colocado na condição de sujeito, para que o

mesmo alcançasse a sua cidadania. Desde então, o que tem sido observado é que o

currículo de Geografia apresenta um misto de tendências e de paradigmas, tanto

da geografia tradicional quanto da geografia crítica. Entretanto, hoje, o desafio

que está sendo posto pelas políticas educacionais de ação afirmativa, como a lei

10.639/03 que obriga o resgate da cultura afro-brasileira, é a exigência de um

ensino de Geografia, a respeito dessa temática, com novas abordagens e diferente

das perspectivas tradicionais presentes nos currículos e programas em vigor.

Nesse trabalho, procuramos avançar a respeito da importância do negro e

do resgate da cultura afro-brasileira, com base na reflexão dos paradigmas crítico

e pós-crítico no campo do currículo do ensino da disciplina Geografia e, nesse

sentido, buscou-se, ao mesmo tempo, o diálogo com o multiculturalismo

emancipatório por entender que, epistemologicamente, esse conceito tem refletido

sobre o marcador de raça para além do entendimento das teorias raciais do século

XIX, que se baseava no paradigma biológico determinista do meio geográfico

cuja base ontológica está na invenção do homem do Iluminismo: universal,

civilizado, de raça superior, e que hierarquizava e classificava o Outro – o não

europeu, como selvagem, sem cultura e de raça inferior.

Com base em Santos (2010), o multiculturalismo emancipatório tensiona o

conceito de “raça” na perspectiva dos estudos culturais. Para Hall (2008), seria

esse um significado que opera sob-rasura, visto que, biologicamente, ele caiu,

contudo, mesmo assim, continua sendo lido sob outras perspectivas. Nesse

sentido, o multiculturalismo emancipatório abre o debate para o reconhecimento

do negro e da cultura afro-brasileira, com base no jogo das diferenças histórico-

sociais sobre o qual foi construída a formação do povo brasileiro e em que o

Page 24: O negro e a cultura afro-brasileira: uma bricolagem multicultural do

24

africano foi marcado pela diferença de “raça”. Isso fez dele o inferior, o escravo,

aquele que esteve a serviço da estrutura branca, cristã e europeia (GONÇALVES

& SILVA, 2006).

Ao mesmo tempo, pensar o multiculturalismo emancipatório significa

evocar o reconhecimento na diferença da diferença do Outro e nesse caso, é

necessário retomar, no mínimo, as “narrativas mestras” do século XVI, quando

então foi pensado o projeto eurocêntrico colonial, no qual em nome das certezas e

a afirmação do homem europeu, o Outro – o africano era reconhecido de forma

negativa, como aquele que não tinha alma, sem direito de ter direito à igualdade.

Ao contrário, sua diferença era um marcador da sua desigualdade. Com base

nisso, hoje, para reconhecer, evocamos teoricamente as contribuições de Hegel

(2011), Honneth (2007), Fraser (2007); Taylor (1994) e outros que pensaram a

dialética entre os sujeitos sociais na luta por reconhecimento, na perspectiva da

Filosofia do Direito e das políticas sociais.

Na educação, o reconhecimento do negro e da cultura afro-brasileira é uma

luta que se realiza no campo do currículo e, para Silva (1995), o currículo é um

campo contestado e de disputas, o que significa que culturas são incluídas e outras

são excluídas, ou, às vezes, culturas são reconhecidas de forma positiva e outras

são reconhecidas com estereótipos e preconceitos. Nesse caso, muitos têm sido os

autores do campo do currículo que têm apresentado tendências do

multiculturalismo e que abordam, portanto, conceitos e temas voltados para o

reconhecimento do Outro. Para Canen (2002, p. 37), estaria o multiculturalismo,

no campo da educação, voltado para a “centralidade da cultura e da desconstrução

dos discursos educacionais”, no sentido de resgatar ou até mesmo de construir

outros discursos alternativos de reconhecimento do Outro. Para a autora, o

multiculturalismo teria várias formas de discursos: 1. o multiculturalismo

folclórico, que valoriza os mitos e festas populares que, geralmente, fazem parte

do currículo oficial, como o “Dia do índio”, ou o “Dia 13 de maio”, em que se

comemora a Abolição; 2. o multiculturalismo crítico, que compreende a

desigualdade social como consequência do modo de produção do sistema

capitalista, o que levaria a luta de classes; ou 3. o multiculturalismo pós-colonial,

uma tendência que evoca e desafia o binarismo, ou seja, em outras palavras,

“negro x branco, feminino x masculino e outros, que acabam por reproduzir, de

Page 25: O negro e a cultura afro-brasileira: uma bricolagem multicultural do

25

forma invertida, o binarismo eu x outro, normalidade x diferença, bons x maus”

(CANEN, 2006, p. 39).

Na verdade, acreditamos que todo o referencial teórico aqui citado, a

escolha de cada autor, foi feita pela relevância e a contribuição de cada um,

porém, no corpo deste trabalho, ao propor o resgate do negro e da cultura afro-

brasileira para o ensino de Geografia, procuramos não nos prender a tipos e a

categorias, ou seja, cercar o campo da análise na tentativa de manter a reflexão

dentro do referencial, mas, ao contrário disso, o que se pretendeu é que o

referencial fosse um meio para as possíveis reflexões. O que se deseja é construir

a narrativa do resgate do negro e da cultura afro-brasileira no ensino de Geografia

na perspectiva em que o multiculturalismo emancipatório sirva de suporte, ou

seja, de meio para que se faça a bricolagem de diversos tipos de teorias e de

paradigmas diferentes que levem à compreensão do que se quer, hoje, na práxis

do currículo do ensino de Geografia e que esse seja um meio e não um fim no

sentido de construir cidadania do aluno e de provocar a emancipação humana.

Para que isso ocorra e seja possível, nos referenciamos em procedimentos

metodológicos, que serão vistos no próximo item.

1.5 Referencial metodológico

Para resgatar a importância do negro e da cultura afro-brasileira no ensino de

Geografia, foi necessário reunir, a partir da perspectiva do multiculturalismo

emancipatório, pedaços de narrativas produzidas sobre diversos recortes com

base em paradigmas, que envolveram diferentes áreas e campos de investigação,

para explicar os tipos de reconhecimentos, que foram feitos sobre o negro, desde

o século XVI até o século XXI. E, para isso, utilizou-se a pesquisa qualitativa

em educação por envolver um conjunto de práticas interpretativas para explicar

os conceitos de ensino de Geografia, currículo, livro didático, cultura, raça,

renda, relacionados a tudo que se refere ao reconhecimento do negro. No

primeiro momento o procedimento foi selecionar os 10 volumes do sétimo ano

das coleções de livros didáticos de Geografia aprovados pelo PNLD/MEC para

os anos seguintes: 2011 a 2013. O conteúdo do sétimo ano, que aborda a

Page 26: O negro e a cultura afro-brasileira: uma bricolagem multicultural do

26

geografia do Brasil, são os volumes: 1. ADAS, Melhem. Construção do espaço

geográfico brasileiro - 7º ano. São Paulo: Editora Moderna, 2006; 2. SENE, E

de & MOREIRA, J. C. Geografia Moreira e Sene: Geografia: ontem e hoje –

7º ano. São Paulo, Scipione, 2009; 3. VESSENTINI, J. W & VLACH, V.

Geografia Crítica: O espaço brasileiro – 7º. São Paulo: Ática, 2009; 4.

BOLIGIAN, L. [et al.]. Geografia espaço e vivência: a organização do espaço

brasileiro, 7º. São Paulo: Atual, 2009; 5. BIGOTTO, J. F. [et al.]. Geografia

sociedade e cotidiano: espaço brasileiro, 7º ano. São Paulo: Escala

Educacional, 2009; 6. CARVALHO, M. B & PEREIRA, D. A. C. Geografia do

mundo: Brasil, 7º ano. São Paulo: FTD, 2009; 7º. SAMPAIO, F. dos S. [et al.].

Para viver juntos: geografia, 7º ano. São Paulo: Edições SM, 2009; 8.

MAGALHÃES, C. [et al]. Perspectiva. São Paulo: Editora do Brasil, 2009; 9.

DANELLI, S, C de S. Projeto Araribá: Geografia. São Paulo: Editora

Moderna, 2007; 10. PIRES, V & PIRES, B. B. Projeto Radix Geografia, 7º

ano. São Paulo: Scipione, 2009. Todos os discursos com referência ao negro e à

cultura afro-brasileira foram recortados dos mesmos e distribuídos nas

categorias4 de lugar, espaço, paisagem, região, território e população, com o

objetivo de verificar em que medida esses conceitos eram refletidos pelo

paradigma da geografia tradicional e pelo paradigma da geografia crítica e, ao

mesmo tempo, interfaciá-los com a discussão do campo do currículo na

perspectiva do multiculturalismo emancipatório.

Reunido esse material, foi considerado esse o corpus da pesquisa. E, para

fazer os recortes das narrativas sobre o resgate do negro e da cultura afro-

brasileira foi utilizada a técnica de análise documental com base em André e

Lüdke (1986, p. 40), que consideram o livro didático documento oficial. Para

alcançar os devidos fins, que problematizassem os tipos de reconhecimentos do

negro e da cultura afro-brasileira do século XVI aos paradigmas multiculturais

foi necessário dialogar com outras áreas como a Sociologia, a Antropologia, a

Filosofia e com a Teoria do Currículo, portanto essa abordagem exige conhecer

as concepções de raça construídas no campo das Ciências Sociais e Políticas a

respeito do Outro. Sobretudo, por ser essa uma reflexão no domínio do campo

da Educação, na área do ensino de Geografia, o que requereu um exercício maior

4 Conforme mostra do apêndice nas páginas 187-222.

Page 27: O negro e a cultura afro-brasileira: uma bricolagem multicultural do

27

e o máximo de rigor possível. Na verdade, isso exigiu a tarefa de improvisar,

recortar, colar, e de confeccionar uma colcha multicultural, com diversos

pedaços de teorias e paradigmas sobre o negro e a cultura afro-brasileira do

século XVI à lei 10639/03 no ensino de Geografia. Consciente dessa escolha, à

medida que houve um esforço de mostrar como é a relação do pesquisador com

o mundo a pesquisa passou a ser conduzida pela técnica da bricolagem. Como

diz Kincheloe (2007, p. 17), a “bricolagem é um processo cognitivo de alto

nível, que envolve construção e reconstrução, diagnóstico contextual,

negociação e readaptação”, e, com base nesse sentido, a partir de cada pedaço e

recorte narrativo retirado dos livros didáticos de Geografia, costurou-se cultura e

raça, como conceitos centrais na compreensão da narrativa montada sobre o

negro e a cultura afro-brasileira desde o século XVI. E, para refletir acerca de

cada recorte discursivo, categorias e conceitos foram bricolados, dos quais o

primeiro foi o reconhecimento social, que serviu de fio condutor na abordagem

da luta entre senhor e escravo, cuja batalha era de vida e morte, iniciada no seu

apresamento em África até a sua re-construção-escrava na casa-grande no

cotidiano do engenho de açúcar.

A segunda parte da bricolagem foi feita dos diferentes pedaços de recortes

textuais sobre o negro e a cultura afro-brasileira em diferentes abordagens como a

culinária, a música, a dança e a religião afro-brasileira, com base nos paradigmas

do ensino de Geografia, e dos fundamentos da Teoria Social do Currículo. O

reconhecimento social foi a categoria central e usada para “colar” e fixar as

narrativas multiculturais.

Na terceira parte da bricolagem, o estudo abordou o conceito renda e raça

que servem para hierarquizar, gerar preconceitos e a desigualdade entre negros e

brancos. Foram recortadas e coladas ainda, imagens relacionadas ao contexto

porque, como diz Manguel (2001, p. 24): “as narrativas existem no tempo, e as

imagens, no espaço” e, nesse caso, elas tiveram a capacidade de auxiliar na

reflexão e de provocar na consciência do intérprete e do espectador, tipos de

sentimentos sobre o reconhecimento do negro antes da Abolição, como mostra o

capítulo 4.

Foram escolhidas seis imagens e um mapa, para compor a narrativa geral

do capítulo. Na seção 4.1, a imagem 01, óleo sobre tela, “Moinho de açúcar”,

Page 28: O negro e a cultura afro-brasileira: uma bricolagem multicultural do

28

Rugendas (1835), In: (ADAS 2006, p. 37); a imagem 02, óleo sobre tela,

“Engenho de açúcar em Itamaracá”, Post (1647), In: (Idem, 2006, p. 38).

Na seção 4.2, foram interpretadas as imagens fotográficas: 03.

“Manifestações Populares” In: (SAMPAIO, 2009, p. 40); 04. “Oferendas à

Iemanjá”, (Idem, 2009, p. 15); 05. “Capoeira: luta e dança”, In: (PIRES e PIRES,

2009, p. 68); e 06. “Jovens no Ibirapuera” In: (BIGOTO, 2009, p. 9).

Na seção 4.3, foi exposto o mapa 01, “Analfabetismo no Brasil segundo a

cor ou raça”, In: (DANELLI, 2007, p. 45). Para cada narrativa textual dos livros

didáticos de Geografia recortada, seu fundo foi colorido na cor cinza, para ajudar

a compor a nuance da colcha bricoleur multicultural negro-afro-brasileira. É

comum aos autores de livros didáticos utilizarem fontes imagéticas de domínio

público. Com isso, muitas imagens dos 10 livros analisados se repetem.

Na última seção 4.4, se recomenda que, para desconstruir as “narrativas

mestras” coloniais, seria necessário descolonizar ideias e certezas, a partir dos

paradigmas pós-coloniais do reconhecimento da diferença na diferença.

Entendemos que, na pesquisa qualitativa, o seu campo de domínio não se prende

a um conjunto de técnicas, quando esse não é capaz de refletir a natureza de um

fenômeno social, como o da educação. É nesse sentido, que a bricolagem

permite, e com rigor, fazer os recortes, as colagens e as montagens dos

diferentes discursos de tempos e espaços para um determinado fim do presente

trabalho (DENZIN & LINCOLN, 2006), contar a história:

A interpretação na bricolagem não pode acontecer sem a

compreensão de uma ontologia relacional e de uma

hermenêutica simbólica. Por mais que essas noções possam soar

radicais, é interessantes observar que tais conceitos não são

novos, já tendo sido expressos por poetas, griots e contadores de

história em diversas civilizações (KINCHELOE, 2007, p. 111).

Espera-se que, de acordo com a estrutura planejada nesse estudo, os

objetivos propostos tenham sido cumpridos com clareza e coerência, e que

alcancem o leitor, a partir das generalizações feitas pelo pesquisador, visto que,

como pesquisa qualitativa, esse seria seu fim, (ESTEBAN, 2010, p. 139),

conforme descrito na estrutura do trabalho.

Page 29: O negro e a cultura afro-brasileira: uma bricolagem multicultural do

29

1.6 Estrutura do trabalho

A tese se encontra organizada na seguinte estrutura: o capítulo 1 trata o

reconhecimento no ensino de Geografia, com a abordagem para o resgate do

negro e da cultura afro-brasileira, com base nos discursos dos livros didáticos,

na seguinte ordem: a apresentação do problema, a justificativa, os objetivos, o

referencial teórico, o referencial metodológico, e a estrutura do trabalho. No

capítulo 2, trata da Geografia e do multiculturalismo com vistas para os

conceitos e tendência da geografia tradicional, com abordagem racial sobre o

negro pela visão de La Blache (1921) e de Brunhes (1956) e, também, pelos

autores brasileiros, Carvalho (1935; 1949; 1963; 1967) e Azevedo (1943;

1958; 1959; 1968; 1976). Num segundo momento discute os paradigmas da

geografia tradicional e da geografia crítica e as implicações hoje do

reconhecimento social na diferença e na igualdade racial. Na terceira

subseção, visa sobre o resgate do negro e da cultura afro-brasileira pensada a

partir do multiculturalismo no currículo. No capítulo 3, discorre sobre a

contribuição de Freyre (1998) com a obra “Casa-grande e senzala” e de

Fernandes (1978; 2008) com a obra “A integração do negro na sociedade de

classes”, em que o primeiro resgata o negro e a cultura afro-brasileira pela

cultura e o segundo retrata a tensão social vivida pelo negro na sociedade de

classes. No capítulo 4, expõe a interpretação dos dados dos discursos dos

livros didáticos Geografia, com o recorte desde o século XVI, quando o

africano foi trazido da África para ser escravizado e foi reconhecido como

coisa, até a Abolição, quando esse quadro foi mudado. Na segunda seção,

discute a música, a capoeira, a culinária e a língua como resgate e

reconhecimento da cultura afro-brasileira nos livros didáticos de Geografia do

sétimo ano, que refletiu o reconhecimento social do negro do passado até o

presente com a cultura hip hop. Na terceira seção, compara raça, renda e cor,

entre negros e brancos, como marcadores de desigualdades sociais. Para

finalizar, a última seção evoca a descolonialidade do ensino de Geografia para

que possa efetivamente levar à emancipação humana do sujeito social.

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30

2. GEGOGRAFIA E MULTICULTURALISMO

Para a geografia clássica tradicional sistematizada a partir do século

XVII, como método, o mais importante seria descrever as coisas do espaço do que

refletir as contradições sociais sobre elas (CLAVAL, 2001). Entretanto, no século

XX, com as transformações sociais trazidas pela industrialização e pela

urbanização, o paradigma da geografia tradicional com base na descrição das

coisas e dos lugares entrou em crise. Como uma ciência social, o seu desafio

passou a ser não somente descrever, mas explicar o espaço e as suas contradições.

Para Corrêa (2003), o espaço é um dos conceitos-chave da Geografia pelo qual o

homem, através da cultura e do trabalho, dinamiza e significa os lugares na

paisagem. Para Moreira (2010, p. 61), a Geografia tem a função de “desvendar

máscaras sociais”; por isso, seria então sua função revelar os porquês de, ainda

hoje, negros e brancos no Brasil socialmente viverem em espaços tão desiguais.

Para refletir sobre isso e desvelar tais máscaras, na primeira seção desse

capítulo, através do paradigma da geografia clássica tradicional, buscou-se saber

como que os geógrafos europeus interpretavam o homem africano no seu modo de

vida. Sabe-se a Geografia se baseava no método descritivo, cuja finalidade seria

explicar as propriedades das unidades terrestres e também explicar a combinação

dos fenômenos naturais porque, à época, como diz La Blache (1982, p. 47) “a

Geografia é uma ciência dos lugares e não dos homens”. O paradigma dominante

era de uma geografia com base naturalista e, neste sentido, se ocupava com a

descrição do espaço em detrimento da reflexão social, com aquilo que seria

subjetivo ao homem (CLAVAL, 2009).

Dessa foram, o presente capítulo trata dos conceitos e tendências da

geografia tradicional, em que o homem africano é visto pelos geógrafos europeus

como alguém de raça inferior e não civilizado. No segundo momento do capítulo,

a geografia crítica busca explicar as contradições e os conflitos sociais, em

seguida prosseguindo com a reflexão no âmbito do ensino de Geografia com

vistas para o livro didático e a crise dos paradigmas. Num terceiro momento, o

texto aborda a dialética entre a diferença e a igualdade. E, para finalizar, reflete

sobre o multiculturalismo na educação com base na Teoria do Currículo.

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31

2.1 A Geografia Tradicional: conceitos e tendências

Até há bem pouco tempo, os livros didáticos de geografia distribuídos pelo

MEC às redes escolares eram orientados por currículos e programas cujas

propostas pedagógicas valorizavam a reprodução de conteúdos, em que o professor

era o reprodutor e o aluno o receptor. Ao segundo cabia o papel de decorar

conceitos e temas propostos pelo primeiro, muitas vezes de pouco significado para

a sua vida. A função da escola seria a de preparar o aluno para a aprendizagem do

conteúdo. Neste sentido, era papel do especialista fazer o controle do programa,

que exigia do professor o planejamento do conteúdo, o seu plano de curso, com

objetivos gerais e específicos do ensino, que deveriam ser distribuídos de acordo

com a carga horária do ano letivo (DOTTORI, 1963, p. 185).

Na regência, esperava-se do professor o domínio do conteúdo e a didática

para orientar diferentes tipos de aprendizagens. No conteúdo ensinado, o método

recorrente para fazer a transmissão era o mnemônico. A orientação era para

memorizar nomes de rios, países, capitais, e responder a questionários, colorir

mapas - tudo com o fim de induzir o aluno à repetição do conteúdo ensinado, ou

seja, promover uma educação bancária5.

Durante muito tempo, esse modelo de educação inspirava certezas e abria

caminhos à sociedade. Atualmente, essa tendência de ensino, que tinha como

meio a repetição e a memorização do conteúdo está em crise. Os objetivos

vinham esvaziados de críticas o que tornava a aprendizagem, muitas vezes, com

um fim em si mesma, distante da realidade do aluno, fazendo com que ele

desenvolvesse uma visão estreita de mundo. Entretanto, acerca dessa concepção,

Carvalho (1949, p.231) preconizava ao contrário. No século passado, no Brasil,

autores de livros didáticos concebiam um discurso, em que se dizia fazer uma

Geografia Moderna. Postulava a ideia de ser o homem, o elemento importante da

paisagem, o primeiro, o agente causador e transformador da paisagem cultural,

que dito com outras palavras, no que tange ao ensino da Geografia, significava ir

de encontro aos princípios da educação bancária. O que o autor queria dizer é que

ele propunha, em seus livros didáticos, um ensino de Geografia significativo e

aplicado à vida do aluno. Todavia, analisando seus discursos em outras edições de

5 Um conceito de Paulo Freire, do livro Pedagogia do Oprimido. São Paulo: Paz e Terra, 1970.

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32

seus livros, notamos que ele dialogava com o paradigma determinista (Homem e

Natureza) pelo qual categorizava a população numa concepção naturalista. Esse

posicionamento teórico foi mantido até final dos anos 60 (CARVALHO &

CASTRO, 1967, p. 28).

Enquanto isso, outras tendências e abordagens emergiram no campo do

currículo no ensino da disciplina de Geografia. Graças à quebra do paradigma da

geografia tradicional pela geografia crítica, novas perspectivas pedagógicas

surgiram revelando outras visões sobre o ensino e a aprendizagem. Agora o

momento era outro, e os desafios educacionais também eram outros, diferentes

dos anteriores. Entretanto, analisando-se as contribuições dos paradigmas

tradicional e crítico, notou-se um vazio deixado no currículo de geografia tocante

às políticas de identidade racial que refletissem acerca da população negra, pois

esses paradigmas não foram capazes de traduzir de forma propositiva essa

questão. Dessa forma, só depois de mais de um século da Abolição da escravatura,

que custou caro à sociedade e que deixou o racismo por herança, o Estado

reconheceu ser o Brasil um país racista, e passou a criar políticas nesse sentido.

Desde então, no século XXI, para reverter esse quadro, no âmbito da educação foi

criada a Lei 10.639/03, que teve como finalidade resgatar a cultura afro-brasileira

e abrir possibilidades para repensar as diferenças étnicas e raciais, no sentido de

promover a igualdade social.

De acordo com isso, o presente capítulo visa refletir acerca de temas e

paradigmas da geografia tradicional e da geografia crítica, e estabelecer um

possível diálogo com as tendências da geografia pós-crítica, que se caracteriza ao

querer novas perspectivas que ultrapassam o discurso crítico propositivo

transformador, ao oferecer uma visão menos monológica da ciência geográfica e

mais bricoleur na construção das narrativas (KINCHELOE & BERRY, 2007;

DENZIN & LINCOLN, 2006).

A fim de acurar o presente discurso desse trabalho, é importante esclarecer

dois aspectos: o primeiro, o público alvo para o qual direcionamos os fins desta

tese, o professor que atua na educação básica, e também a todos aqueles que têm o

interesse de compreender e de refletir sobre a educação das relações etnicorraciais

no âmbito escolar; e, o segundo: refletir, a partir da bricolagem, outras

epistemologias que apresentem aberturas para o diálogo com as políticas

Page 33: O negro e a cultura afro-brasileira: uma bricolagem multicultural do

33

educacionais, com vistas para o reconhecimento da diferença na diferença para

pensar uma geografia de tendência pós-crítica.

Historicamente, desde o início da ocupação portuguesa, a geografia, como

ciência estava presente nos empreendimentos náuticos das Grandes Navegações

no mar e na terra. Reconhecer territórios, controlar fronteiras e organizar espaços

eram os instrumentos desta ciência, os meios utilitários usados pelo então

colonizador para dominar lugares. Nos relatos deixados pelos viajantes e cronistas

da época é apaixonante a forma com que eles descreviam a beleza dos quadros

naturais e, sobretudo, das paisagens brasileiras. Vista de outro ponto, outras vezes

era possível constatar raças e cores através das pinturas e de desenhos de artistas

europeus que tanto traduziram o cotidiano patriarcal e escravocrata, ora na

Colônia, ora no Império. Como se sabe, a história do descobrimento é um arranjo

feito de narrativas sobre a ocupação europeia, que passou a ser contada pelo

vencedor. E, nisto, a Geografia serviu para instrumentalizar o conquistador que

soube estabelecer os seus domínios territoriais na organização do espaço.

Mas, foi no século XIX, com a inauguração do Instituto Histórico e

Geográfico Brasileiro – IHGB, criado em 1838, um marco da investigação

cientifica do país, que o estudo da Geografia se sistematizou como uma ciência

(MARY, 2010). Para Schwarcz (1993, p. 99), à época, o IHGB inaugurou a era

dos “homens de ciência” aqueles que vão “colligir, methodizar e guardar”

documentos. A esses cabia o papel de escrever a história e de produzir os mitos

fundacionais do Brasil tocante a sua diversidade e a sua grandeza natural. Para

isto, a história servia para fabricar heróis e geografia para descrever os aspectos

territoriais e naturais dessa fábrica de nação.

Todavia, a pesquisa científica, de fato, só se consumou no limiar do século

XX, a partir dos anos 30, com a fundação do Instituto Brasileiro de Geografia e

Estatística - IBGE, voltado para pesquisa quantitativa e que, até hoje, é um órgão

de referência federal. Haja vista que, durante muito tempo, este instituto

contribuiu sobremaneira para com o ensino de geografia. Por mais de três

décadas, publicou a Revista “Tipos e aspectos do Brasil”, uma síntese das

potencialidades naturais e culturais do país, feita com as ilustrações em bico de

pena por Percy Lau6 (BRASIL/IBGE/CNG, 1966); e também proporcionou o

6 (1903-1972) desenhista contratado pelo IBGE. Seu trabalho, segundo Lustosa (2000, p. 3) vai

além disso. Ele “insere-se num seleto grupo de artistas gráficos que muito contribuíram para o

Page 34: O negro e a cultura afro-brasileira: uma bricolagem multicultural do

34

“curso de férias para professores”, no ano de 63, na cidade do Rio de Janeiro e,

um ano depois do treinamento, foram publicadas as súmulas das aulas e

disponibilizadas pelo IBGE (BRASIL,1964).

Em São Paulo, nesta mesma década de criação do IBGE, foi fundada a

Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo

(FFCL/USP) e, doze anos depois, em 1946, criou-se o Departamento de

Geografia, muito importante para o desenvolvimento da ciência geográfica e para

a formação de bacharéis e para a formação de professores licenciados para o

ensino da disciplina de Geografia (PONTUSCHKA, 2007). À época da fundação

do Departamento de Geografia, parte dos professores que assumiu as cadeiras no

curso veio da França, como Pierre Deffontaines, Pierre Monbeig, entre outros.

Certamente, esta ligação entre o Brasil e a França contribuiu para que o

pensamento geográfico brasileiro fosse influenciado pelas tendências da “Escola

Francesa,” de Paul Vidal de La Blache (1845-1918), o seu maior expoente.

Enquanto isto, na França, o ensino de geografia já havia se consolidado

sob a égide da geografia tradicional cujos paradigmas refletiam muito do

discurso nacionalista daquele país, que difundia o projeto imperialista e

civilizatório com o domínio colonial na América, África, Ásia e na Oceania. Por

isso, era urgente ao francês conhecer as suas potencialidades naturais e culturais,

para então “civilizar” o Outro7 e fazer o controle do seu território. Neste sentido,

a geografia, antes de mais nada, serviu para afirmar a civilização francesa, pela

qual o Outro foi interpretado como o não civilizado, o não francês, o não branco.

Tocante ao campo do ensino, as tendências pedagógicas tinham como fim

difundir a ideia de que era papel da disciplina de Geografia descrever o espaço

como algo real, ou seja, como ele parecia ser. Sendo assim, devia a disciplina

levar a criança a desenvolver habilidades e competências de como aprender a

descrever a região e a gostar do seu lugar como um francês. Não era importante

raciocinar e desenvolver um senso crítico no aluno sobre o espaço descrito e

inventariado na aprendizagem. O importante para o ensino era se ocupar em fazer

uma geografia que despertasse o patriotismo e o espírito de pertença à sua nação

(BRABANT, 1994).

desenvolvimento da técnica do desenho e da gravura no nosso país”. Sua produção tornou-se uma

síntese do Brasil, um banco de imagens dos quadros naturais e culturais. 7 Grifo meu. O outro tem o sentido de inferior; pelo discurso epistemológico colonial ele é

diminuído.

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35

De fato, a geografia escolar teve suas tendências pedagógicas baseadas nos

paradigmas da geografia tradicional e, como diz La Blache (1921), esta era uma

ciência dos lugares. Na sua concepção, o papel do geógrafo era o de se ocupar

com a descrição da paisagem e de como ela parecia ser com os seus recursos

naturais, como o clima, o relevo, a vegetação, os mares e os oceanos e, a partir

desses diferentes quadros, explicar como que o homem se adaptou ao meio. Para

tanto, o autor desenvolveu uma metodologia de análise de grau de civilização,

chamada de modo de vida8. Esta metodologia permitia, a partir da observação,

avaliar o grau que variava do de selvagem ao de civilizado. O modo de vida na

escala de aferição, incluía o critério de hábitos, costumes e valores do primitivo ao

mais complexo dos valores dos civilizados. O conjunto de técnica e o seu domínio

é o que definia o grau de evolução da raça ou de um povo. Quanto maior domínio

das técnicas, menor dependência o homem tinha do meio.

Para compreender uma corrente ou um pensamento, é fundamental

conhecer a epistemologia que lhe dá o suporte teórico. Daí, nesta seção,

buscarmos compreender os fundamentos da geografia tradicional e a sua

contribuição para o ensino de Geografia no que tange à questão racial do negro.

Por isso, perguntamos: qual seria o objeto de estudo da geografia tradicional?

Qual seria o sentido de homem, natureza, meio, raça e paisagem, de acordo com

esse paradigma? Responder a estas questões certamente esclarece os paradigmas

de uma época, desde que haja o esforço à alteridade, à prática de se colocar no

lugar do Outro, para que não façamos uma análise maniqueísta sobre as suas

tendências.

A geografia tradicional, nascida com a Ciência Moderna, teve origem no

campo da Física e da Matemática, e foi através dessas áreas, dessa base

epistemológica, que ela se firmou como ciência natural e física. Com isso, o seu

método se desenvolveu com base no determinismo biológico e geográfico, em que

o meio natural era determinante sobre o meio social, mas, segundo Claval (2001),

só no século XX, com a emergência do paradigma da Geografia Humana, esse

entrou em crise. Com base no paradigma biológico, a classificação da população

era determinada por raça pelo meio natural geográfico, como o clima e o relevo,

sendo que esses fatores seriam determinantes para a evolução do homem. Este,

8 Grifo meu. Modo de vida é a capacidade de criar técnicas para se adaptar ao meio natural e até

transformá-lo.

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36

embora fosse o objeto de preocupação da geografia tradicional, era o produto do

meio natural, estava suscetível à natureza. Para o pensamento geográfico físico,

numa escala natural, o homem estava sujeito às forças determinantes do meio

assim como os demais animais; contudo, o que o diferenciava estaria na sua

habilidade e no seu esforço intelectual que o colocavam num ranking de evolução

que ia do marco um, do homem primitivo (o selvagem), ao mais alto grau (o

civilizado). A diferença, portanto, entre o selvagem e o civilizado estaria no

domínio da artificialidade que o segundo tinha sobre a natureza, enquanto, no

primeiro, a natureza era determinante sobre ele. Isso foi possível graças ao

desenvolvimento de estudos etnográficos que permitiam descrever os diferentes

graus de evolução da população e a sua distribuição segundo os critérios naturais

e raciais sobre os diferentes estágios dos habitantes do globo (RATZEL 1990, p.

72). A este autor deve-se a introdução dos princípios da Geografia Humana, visto

que ele foi pioneiro ao propor a Antropogeografia, um subcampo da Geografia

Física e Natural. Como tal, suas reflexões avançaram no que tange às questões do

homem. Ainda que sob uma ótica determinista de “forte e fraco”, potencializava

pelo menos a dimensão política e psicossocial do homem no espaço, quando

então, este passa a ser objeto de disputa vital da luta pelo território.

Foi o determinismo geográfico e biológico a base do paradigma

hegemônico entre os geógrafos do século XIX, e foi também o que embasou o

pensamento da geografia tradicional. Para a Geografia daquele século, não se

pensava o espaço do homem, mas o espaço dominado pela natureza; e isto, à

época, era a base do discurso e do pensamento naturalista que, como tal, partia da

premissa de que o homem era o produto do meio, portanto, estaria ele suscetível

ao determinismo do clima, relevo, vegetação e outros elementos; e, ao mesmo

tempo, essas variáveis eram dominantes e influenciavam o comportamento do

homem. De acordo com esse paradigma, não era objeto da Geografia ocupar-se

com paixões, sentimentos, subjetividade humana, temas para outra Ciência, como

a Sociologia. A Geografia devia se ocupar em descrever as coisas do espaço

natural; a dimensão política e social não era o seu objeto (MARTINS, 1921).

Nesta concepção, a paisagem era um conjunto de unidades que compunha

o quadro natural geomorfológico. Quanto a distribuição da população sobre a

Terra, explicava-se a partir do meio natural geográfico. Mesmo com suas

técnicas, o homem vivia sob o imperativo do determinismo geográfico, e era

Page 37: O negro e a cultura afro-brasileira: uma bricolagem multicultural do

37

passível de ser observado em diferentes estágios da evolução, o que podia variar

de acordo com a raça e o seu modo de vida. Quanto menor fosse o seu domínio

sobre as técnicas, maior seria a probabilidade do seu atraso na escala da evolução

humana.

Ao explicar a atuação do homem sobre o meio, La Blache (1921) criou

uma categoria de análise chamada de modo de vida, uma categoria intelectual que

tinha a função de avaliar em larga escala o quadro natural e o quadro humano da

Terra, e as relações das coisas que havia sobre ela. Nesta avaliação, o autor fazia

um inventário geográfico e estabelecia a relação do meio com o homem. Para ele,

as variáveis naturais ainda determinavam povos e raças, contudo, de acordo com o

grau do modo de vida, o homem podia variar de selvagem a civilizado; segundo a

sua capacidade humana de transformar e de modificar o meio, de acordo com o

domínio das técnicas de que ele dispunha. Entre muitos procedimentos de campo,

La Blache (1921) avaliou o modo de vida dos povos andinos e dos índios do

Amazonas e atribuiu a um conjunto de variáveis naturais e biológicas grau de

evolução desses povos, a ponto de acreditar que o clima determinava o seu estado

natural, e que isso atingia o físico e afetava também o seu comportamento, como

ele próprio coloca:

A igual suavidade das temperaturas e a facilidade do clima

não são, provavelmente, a causa única desse fato. Como a

pressão atmosférica diminui sensivelmente nessas elevadas

altitudes, a combinação do oxigênio do ar com os glóbulos

do sangue opera-se mais lentamente nos pulmões: a apatia,

a repugnância por todo o prolongamento de esforço

muscular ou outro qualquer seriam, segundo observações

dignas de fé, a consequência deste afrouxamento do

mecanismo essencial que, pelo sangue, age sobre a vida

nervosa (LA BLACHE, 1921, p. 163).

Ao ser avaliado o modo de vida dos povos americanos, concluiu o autor

que os mesmos ainda viviam num grau baixo da evolução humana e estariam

longe de conquistar o progresso e tornarem-se uma gente civilizada, isto porque

os fatores naturais ainda seriam determinantes sobre o modo de vida de cada um.

Homem e meio são conceitos importantes apresentados em “Princípios de

Geografia Humana” (1921). Para ele, o homem encontrava-se numa escala de

evolução em diferentes graus conforme o modo de vida e o quadro que

diferenciava a distribuição da população sobre a Terra por raça, que ia de superior

a inferior tinha na sua organização, muito dos aspectos naturais (o meio) e isto

Page 38: O negro e a cultura afro-brasileira: uma bricolagem multicultural do

38

determinava tipos e comportamentos diferentes. Na explicação dos fatores

naturais sobre o homem americano, para ele, a raça é importante e é o que explica

o seu comportamento e a sua moral:

Provenientes de raças, por certo, muito diversas, eles parecem,

entretanto, haver contraído, sob a influência do ambiente, um

caráter comum que se enraizou: a antipatia pelo esforço. [...] eu

recordo-me de ter ficado surpreendido, no México, com a falta

de movimento e da alegria, até dos próprios garotos, naqueles

grupos que se formavam para as refeições à volta dos cais das

estações. Não seria isto apenas um simples efeito de

hereditariedade fisiológica? (Idem, 1921, p. 163).

O que se observa é que, ao se tratar do homem e do meio, ainda que La

Blache (1921) tenha avançado sobre as relações do desenvolvimento e da

apropriação das técnicas – no modo de vida, para ele, ainda não ficava claro se o

que diferenciava o comportamento dos povos mais “atrasados” era o meio

geográfico ou se isso se devia a fatores internos (subjetivos) de cada povo, ele

deixa em aberto a possibilidade de acompanhar com maior frequência o

comportamento de tais fenômenos. Na verdade, ainda que o homem se mostrasse

ativo à natureza, e evoluído e civilizado, mesmo assim, por outro lado, estaria

sujeito também aos fatores do meio geográfico, de acordo com o seu grau de

evolução. Para ele, o homem que não estava no mesmo nível de evolução do

homem francês, mas, o contrário, o oposto disso, como era o caso do homem

americano, o determinismo biológico e geográfico explicava o seu tipo de

comportamento.

Em “Princípios de Geografia Humana” (1921), o autor considerou tudo

aquilo que fazia parte do processo civilizatório para descrever a distribuição

humana no globo, as desigualdades e as anomalias, os instrumentos, os modos de

alimentação, a habitação, meios de transportes, estradas, caminhos de ferro, tipos

de navegação – marítima ou lacustre, ou seja, tudo que ele alcançou e viu no seu

tempo. Sem dúvida, seu trabalho representou um legado para a Geografia Humana

mundial. Contudo, não se pode perder de vista que os seus estudos sobre o homem

e o meio foram produzidos numa época em que o paradigma dominante era o da

Geografia Física com base naturalista e no determinismo biológico. Portanto,

todas as referências do homem “possibilista” e civilizado, notado em seu discurso,

se voltavam para o homem branco e europeu, porque, para La Blache (1921), os

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39

outros povos não eram civilizados, estavam em diferentes fases de sua evolução e,

nessa escala, a evolução prosseguia em seus extremos: de selvagem a civilizado.

Quem também corroborou para com o pensamento da Geografia Humana

foi Brunhes (1869-1930), contemporâneo de La Blache (1845-1918): “foi ele

quem impôs a denominação “Geografia Humana” em lugar da de

Antropogeografia”, diz Deffontaines (1956, p. 9). Segundo esse autor, assumir

uma ciência inteiramente humana, era uma postura ousada, visto que, naquele

tempo, o hegemônico era o paradigma naturalista.

A Geografia Humana tratava de tipos de atividade humana, que não

tinham força de explicação na Geografia Física. A partir dela, o homem saía do

imperativo da natureza e ganhava força de explicação sobre si mesmo e sobre a

sua capacidade de transformação, sobre o espaço, como aborda o autor:

Os homens reflorestam; desse modo, moderam a obra destrutiva

das enxurradas e modificam os climas. Plantam o pinheiro

marítimo, para fixar as areias, e a zostera, para fixar a lama

submarina. Em meio aos seres viventes, podem regular e

orientar numerosas seleções artificiais; cultivam plantas e

domesticam animais. O conjunto de todos esses fatos de que

participa a atividade humana é um grupo verdadeiramente

especial de fenômenos superficiais: ao estudo dessa categoria de

fenômenos geográficos, damos o nome de Geografia Humana

(BRUNHES, 1956, p. 27).

Todo o tipo de atividade produzida pelo homem passava a ser explicada

como um fenômeno humano, artificial, ou seja, criado por ele e não mais

atribuído ao natural. Transformações espaciais a partir da força econômica,

tecnologia desenvolvida pelas grandes civilizações, o homem tornava-se agora

capaz de alterar a paisagem numa velocidade nunca vista antes, e isto o autor

conceituou e passou a chamar de força destrutiva. A Geografia Humana, obra

deixado por Brunhes (1869-1930), é um legado para os estudiosos e, neste

trabalho, a sua contribuição sobre as atividades humanas é relevante. O seu

esforço levou a uma geografia cujo poder de explicação saiu da esfera da natureza

para a esfera econômica, política, e social.

A partir dessa perspectiva, as mudanças ocorridas no espaço não eram

mais obra apenas da natureza, um agente modelador e transformador. Agora, o

poder de transformar, e de destruir e reconstruir vinha das técnicas e da

inteligência humana capazes de produzir espaço exclusivamente artificial, como

era o caso das cidades que acompanhavam o fenômeno urbanização. Artificial,

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40

para Brunhes (1956), era tudo aquilo que o homem fazia e que a natureza era

incapaz de fazer.

O foco sai da natureza e volta-se para o homem. O poder de explicação

que ele busca não está no Físico, no natural, mas, no humano, no artificial, ou

seja, naquilo que o homem faz no e com o espaço, de homem para homem e com

os homens.

Neste trabalho, notamos que o autor se preocupava em fundamentar a

Geografia Humana metodologicamente. Procurava dialogar com os geógrafos, os

seus contemporâneos, para sistematizar e classificar o campo que ele entendia ser

da Geografia Humana, tomou o cuidado de organizar os fatos da Geografia

Humana, o que ele chamou de Geografia das necessidades vitais básicas, comer,

dormir, vestir-se, e classificou mais duas categorias, a Geografia Política e a

Geografia da História. Então, nesse sentido inaugurou uma geografia do homem e

não da natureza. Seguindo essa perspectiva, organizou a Geografia Humana por

fatos essenciais, ou seja, explicava a ocupação improdutiva do solo com base nos

fatores humanos; tratava de descrever formas e tipos de ocupação humana

distribuídas na paisagem, como casas, aldeias, ruas, estradas, cidades,

fortificações e etc.

Um segundo grupo de fatos por ele classificado, diz respeito à descrição da

conquista do homem sobre o mundo vegetal, animal e cultural. Neste grupo,

numa escala global sobre os elementos naturais, o autor estabeleceu um paralelo

da força destrutiva entre os povos civilizados e os povos selvagens. Ele dizia que

a devastação do quadro natural feito pelos povos civilizados era quase

irrecuperável, enquanto a destruição feita pelos povos selvagens era passível de

recuperação. Mas essa comparação não era a mais importante, no sentido da força

destrutiva. O poder maior da ocupação destrutiva ficava com as exportações de

recursos naturais conquistados dos selvagens pelos civilizados. Sobre isto, o autor

vai além da função de descrever os fluxos e o seu impacto destrutivo. Nota-se que,

ao referir-se às modalidades de ocupação, ao falar dos povos “primitivos”

africanos explorados pelos civilizados, é passível de observação um senso de

justiça em seus argumentos sobre a forma com que eram tratados os “selvagens”:

Uma das formas mais repugnantes da devastação entre os

homens é o tráfico de negros. Em seus inícios, a colonização

europeia desenvolveu a escravatura, transplantando infelizes

negros de um continente para outro. A colonização muito

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frequentemente prejudicou os selvagens, seja pela destruição de

seus recursos alimentares, seja pela introdução de verdadeiros

venenos, como a aguardente. A degenerescência dos povos não-

civilizados quando postos em contato com a nossa civilização é

um fato universalmente constatado (BRUNHES, 1956, p. 299).

Nota-se que a ocupação colonial europeia foi um processo histórico

destrutivo tanto dos recursos naturais e da sua economia de subsistência, quanto

da qualidade e do equilíbrio social dos povos que sofreram a descentração do seu

espaço ao serem transplantados e escravizados para as colônias europeias. O

significado do conceito de destrutivo para o autor seria ocorrência, alterações

permanentes nas propriedades física, química e psíquica de quem está sob a força

destrutiva. Neste sentido, o não civilizado, em contato com o civilizado, passava

por um processo de degenerescência palavra derivada do latim, que no francês

significava “perder suas qualidades próprias ou ancestrais”, ou seja, a ocupação

europeia, o projeto colonial, a partir do século XVI, fez com que os povos

conquistados sofressem um processo destrutivo do seu modo de organização e de

sua visão de espaço de mundo.

Numa breve retomada dessa seção, vimos que geografia tradicional como

Ciência Moderna nasceu da Física, e, por isso, a chamada Geografia Física, cujo

método teve como base as ciências naturais e as ciências biológicas. Como uma

ciência, ela se preocupa com a explicação dos fenômenos da Terra e da natureza,

como o clima e o relevo; esses seriam agentes determinantes do espaço geográfico

e o homem estaria sob o seu domínio. Todavia, o homem soube buscar outra

perspectiva, o oposto disto. Como um sujeito ativo, passou a associar a relação

existente entre homem – natureza – espaço, que ganhou força de explicação social

sobre a explicação dos fenômenos da Terra. Do ponto de vista social, e com a

Revolução Industrial e o avanço das tecnologias, as paisagens foram modificadas

e a natureza sofreu profundas alterações com o processo de artificialização.

Graças à inteligência do homem, e suas ações, ele buscou explicar as mudanças do

espaço geográfico e, ao mesmo tempo, foi se desvencilhando do determinismo

geográfico e biológico, como pode ser visto nos pioneiros da Geografia Humana

que refletiram sobre outras perspectivas menos deterministas:

“Antropogeografia”, Ratzel (1990); “Princípios de Geografia Humana”, La

Blache (1921); e “Geografia Humana”, Brunhes (1956).

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O importante foi que a geografia tradicional, dentro do seu tempo e

espaço, mesmo que tenha assumido o papel de inventariar a natureza e as

atividades humanas sobre a Terra e apesar do seu discurso parecer muitas vezes

esvaziado de uma crítica social, permitiu que o mundo fosse visto da perspectiva

europeia, e, como tal, descreveu, classificou e hierarquizou as coisas no espaço de

acordo com o conceito raça e de civilização. Essa ideia, ainda hoje, pode ser

sentida pelo status que ocupava a Geografia Física. Durante muitos séculos, essa

Geografia foi hegemônica, e seus fundamentos conduziram raça e meio no debate

geográfico, e o homem era o produto desse, e, numa escala global de evolução, ele

estaria distribuído pela terra, de acordo com sua história natural, em selvagens e

civilizados e seria o modo de vida e a força destrutiva jeitos diferentes de explicar

esse espaço. No ensino de Geografia, por muito tempo, homem e natureza foram

paradigmas determinantes. No Brasil não foi diferente. Embora sejamos o

resultado das diferenças, para esse paradigma, no que tange ao africano, éramos

uma mistura de raças inferiores. Nos livros didáticos de Geografia, durante

décadas do século XX foi essa a ideia que persistiu, como será vista na subseção

seguinte.

2.1.1 O negro e a raça: Delgado de Carvalho e Aroldo de Azevedo

O livro didático no Brasil tem história. O seu uso e consumo vem desde a

Colônia, no século XVII, diz Schäffer (2001, p. 134). Contudo, a sua difusão

nacional ocorreu a partir das bruscas e profundas mudanças feitas pelo Estado

Novo, em 1934, com a criação do Ministério da Educação e Saúde (MES) que

tinha como fim atender as demandas sociais que o país exigia, a de elevar a

qualidade da educação e da saúde. Mas foi na mesma década, que três anos mais

tarde, foi criado o Instituto Nacional do Livro (INL) e, desde então, políticas e

programas passaram a existir, o que contribuiu na otimização do livro didático.

No ensino de Geografia, temos dois autores pioneiros na produção de

livros didáticos: Delgado de Carvalho (1884-1980) e Aroldo de Azevedo (1910-

1974). Seus trabalhos são imensuráveis para o ensino de Geografia e, ainda hoje,

são referências no país. Muito dos conteúdos e conceitos criados por eles estão

presentes no currículo e em programas do ensino de Geografia. Podemos afirmar

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43

que esses autores, no campo do ensino, escreveram o pensamento geográfico

brasileiro. Eles produziram sínteses do quadro natural e social do país que vai do

Brasil Colônia ao Brasil atual. Mas, ao nos voltar sobre os seus livros didáticos

editados entre os anos 30 e 70, o nosso interesse tem como fim reproduzir os seus

discursos sobre raça e negro, e analisar em que medida eles foram influenciados

pelos paradigmas da geografia tradicional.

Definimos aqui homem e natureza como categorias analíticas da geografia

tradicional. Sabe-se que o segundo determinava geograficamente o primeiro.

Sabe-se também que o homem estava sujeito aos imperativos do meio, ou seja, do

clima, do relevo, da vegetação e das águas. Para tal investigação dos discursos nos

livros didáticos, fomos até a uma edição didática de Delgado de Carvalho da

década de 40, em que ele reduz a quatro classes principais as influências da

natureza sobre o homem, sendo a primeira de ordem climática, visto que, para ele,

o clima de fato era determinante sobre o homem, de modo que a influência seria

tão profunda, que implicava mudanças no seu desenvolvimento físico, nas suas

características biológicas e no seu desenvolvimento moral, como ele afirma:

Os efeitos físicos diretos do meio que se exercem sobre a

vegetação, os animais e o homem. Nesta categoria entram o

clima, que age diretamente sobre o homem como estimulante e

como deprimente, que determina a sua cor e a sua estatura e por

meio do ambiente determina os seus meios de vida. A altitude,

acarretando modificação do clima, também é fator importante.

A pigmentação, por exemplo, depende do clima e da vegetação:

os botocudos que vivem nas matas do alto São Francisco são

mais claros do que os Caiapós que vivem nos campos abertos

(CARVALHO, 1949, p. 232).

A segunda defesa do autor consistia em dizer que o determinismo

geográfico influenciava a tal grau que as religiões, as leis e as línguas são de

ordem natural, e estavam sujeitas também aos imperativos da natureza. Para ele:

Os efeitos psíquicos têm no meio o seu principal fator. As

religiões, os códigos de moral, e as línguas têm estreitas

relações com o ambiente geográfico. A língua dos Herreros e

dos Samoyedas é extraordinariamente rica em descrição de

cores de animais (Idem, 1949, p. 232).

Seria o princípio de causa e efeito produzido pelo meio. Toda criação

humana por ele citada estaria submissa às causas naturais, toda e qualquer

diferença humana tinha influência do meio geográfico. Nesta mesma perspectiva,

os fatores econômicos estariam determinados pelo meio geográfico:

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44

Os efeitos econômico-sociais determinam o tamanho e a

importância dos grupos humanos, a organização da propriedade

e as relações de família. A fertilidade e a superfície de um

distrito determinam o número máximo de habitantes que pode

assumir. Os efeitos puramente topográficos são os que mais

facilmente saltam aos olhos do observador. A montanha

inacessível e o deserto constituem obstáculos às relações entre

os grupos; e os vales, os rios, as planícies, como também os

oceanos, são meios de comunicações (Ibidem, 1949, p. 232).

Nota-se que esta seria uma concepção baseada nas raízes da teoria

malthusiana, em que o meio natural é determinante da produção, e o tipo de solo,

e do tamanho da propriedade e principalmente do controle da natalidade, de forma

que a produção agrícola devia ser maior do que o número de habitante, por que,

do contrário, haveria escassez e fome.

Nesta concepção naturalista argumentada pelo autor, ele concluiu ser mais

fácil observar as forças naturais como elementos determinantes sobre o homem,

pois essas estariam presentes na forma e na distribuição natural do relevo.

Observa-se, no argumento apresentado, que o autor tinha como base os

paradigmas da geografia tradicional e tinha como defesa a tese de que os efeitos

físicos, psíquicos, econômico-sociais e o topográfico são determinantes sobre o

ambiente geográfico quando se tem a ocupação humana das grandes regiões.

Todavia, 14 anos depois, numa publicação específica sobre o Continente

Africano, o mesmo autor traz uma abordagem, em que ele foge do determinismo

geográfico. Embora para ele os fatores naturais fossem importantes no modo de

vida daqueles povos, visto que influenciavam diretamente na economia, não

seriam determinantes. Segundo ele:

Os gêneros de vida muito dependem dos meios geográficos em

que se desenvolvem e distribuem; na África, talvez mais do que

em qualquer outra parte do mundo, a vida econômica se acha na

dependência estreita das zonas de vegetação e fauna. Embora de

grande importância, as condições de clima e topografia são de

menor influência direta nos sistemas econômicos

(CARVALHO, 1963, p. 26).

Naquele mesmo ano, o autor lançou “Geografia humana, política e

econômica”, em que, definitivamente, deixou para trás o uso do conceito natural

de raça. Sob a defesa de que com a mistura dos povos havia deixado de existir

raça pura, ele passou a se apoiar no conceito culturalista para explicar raça, como

ele mesmo diz:

Page 45: O negro e a cultura afro-brasileira: uma bricolagem multicultural do

45

Os antropólogos substituíram o termo raça pelo de etnia.

Atualmente é mais prudente ainda, para uma classificação

geral, reunir a população da Terra em povos, não se levando

em conta os caracteres físicos como forma predominante.

Define-se então povo como um conjunto de indivíduos que

falam geralmente a mesma língua, possuem costumes

semelhantes, transmitidos de pai para filho, e uma história

comum (CARVALHO & CASTRO, 1967, p. 28).

Sobre o autor, concluímos que, no início, a respeito do africano e da raça,

o seu pensamento tinha como base o paradigma naturalista da geografia

tradicional, ou seja, ia ao encontro dos princípios do determinismo geográfico.

Entretanto, mudou, mais tarde, o seu posicionamento para o paradigma

culturalista baseado na defesa de etnia e povo.

O segundo autor de livros didáticos de Geografia analisado foi Aroldo de

Azevedo (1910-1974). Buscou-se saber a respeito do seu pensamento, de como

que ele reconhecia o africano no que tange ao conceito de raça e se esse era

classificado pelo paradigma natural ou pelo paradigma de cultura e como isso

aparecia no seu discurso. Dos seus livros didáticos, foram analisadas duas

publicações da década de 40 e, numa delas, o autor refletia sobre a desimportância

da cultura do povo africano. Sobre a reflexão, ele conclui o seguinte: “nada temos

a dizer sobre o assunto, porque a população africana, constituída como se viu, não

pode oferecer nenhuma manifestação cultural digna de nota” (AZEVEDO, 1943,

p. 428). Isto levava a crer que este autor falava a partir do paradigma naturalista e

que, para ele, só teria cultura o povo que fosse civilizado, para ele, tudo indica, os

africanos seriam, de fato, povos inexpressivos por não serem civilizados. Isto ele

deixava claro ao apresentar os fundamentos tradicionais das razões por que o

negro para aqui foi trazido:

As necessidades da agricultura (cana, café) e da extração de

minerais exigiram, porém, braços mais habituados aos climas

quentes de nosso continente: foram trazidos, então, da África,

alguns milhões de negros, que passaram a trabalhar como

escravos no Brasil e nas Guianas, principalmente

(AZEVEDO, 1943, p.120).

Para ele, a razão pela qual justificou-se traficar negros do continente

africano para o Brasil estaria no fator natural, ou seja, no determinismo

geográfico, na capacidade que o negro teria de se adaptar ao clima tropical, visto

que o lugar de onde ele veio era semelhante ao daqui. Ou seja, segundo as teorias

deterministas, o que importava era a capacidade de adaptação ao clima e a

Page 46: O negro e a cultura afro-brasileira: uma bricolagem multicultural do

46

sujeição à moral do civilizado. Dentro desta ótica da evolução natural, o autor

explicava o que era ser civilizado:

Entre os povos civilizados é que as atividades culturais

alcançaram suas mais altas e admiráveis manifestações. Na

grande maioria dos aspectos, procura-se atingir à perfeição. [...]

Cultuam-se as tradições, animam-se as festas populares e vela-

se pela existência do “folk-lore”. [...] Nos gabinetes de estudo e

nos laboratórios, os homens de ciência entregaram-se às

pesquisas e fazem descobertas importantíssimas. As associações

esportivas, etc., procuram aprimorar os conhecimentos e

aperfeiçoar a raça (Idem, 1958, p. 26).

Para o autor, civilização, raça e ciência eram três coisas que caminhavam

juntas. Um povo se definia segundo a hierarquia natural de raça que podia variar

de selvagem até o seu mais alto grau de aperfeiçoamento, o de civilizado. E a

ciência ocuparia importante papel com a sua contribuição ao aperfeiçoamento da

raça, ou seja, de subsidiar as políticas eugenistas de acordo com os interesses da

ordem social. Nesse sentido, no presente recorte do seu texto, o que chama a

atenção é o ano da edição da publicação do livro didático de Geografia, 1958 - o

que leva a concluir que o pensamento racialista e eugenista ainda era dominante

nos discursos do currículo de Geografia nas escolas do Brasil.

Num outro momento, 1969, o autor lançou uma obra didática para o ensino

médio, em que, na explicação da 6ª edição, ele dizia não ter grandes pretensões

com aquele trabalho, mas que esperava que o mesmo fosse apenas útil para os

estudantes. De fato, foi um trabalho que representou uma quebra de paradigma no

que diz respeito à concepção epistemológica de homem e meio. Neste trabalho,

Azevedo (1976) apresentou uma geografia do Brasil, baseada em uma perspectiva

calcada num paradigma economicista crítico e, juntamente a isso, propôs uma

discussão culturalista a respeito da população brasileira. Neste trabalho, ao

abordar e explicar sobre população, utilizou a geo-história para explicar como foi

formado o território brasileiro desde o século XVI até o século XX. O inédito

deste trabalho foi o conceito de mestiçagem trazido de Freyre (1933). O autor

dizia ser o Brasil um país multirracial mestiço graças ao encontro das três raças,

europeia, africana e indígena que faziam essa diferença na formação do povo

brasileiro, como ele explica:

A exemplo do que acontece em outros países de formação

recente, a população brasileira ainda não se cristalizou sob o

ponto de vista antropológico. Possuímos um verdadeiro

amálgama de tipos étnicos, que se diversificam pela coloração

Page 47: O negro e a cultura afro-brasileira: uma bricolagem multicultural do

47

da pele e por outros caracteres físicos: europoides, negroides e

mongoloides aqui se acham representados e, de longa data,

vêm-se caldeando através de uma complexa mestiçagem. Nosso

cadinho ou melting-pot étnico encontra-se em plena ebulição

(Ibidem, 1976, p. 114).

Portanto, sobre o seu pensamento e sobre as suas publicações feitas

anteriormente, parece, agora, que o autor buscava mostrar uma outra visão acerca

do conceito de raça e também acerca da importância do negro para a civilização

brasileira. Na geografia tradicional, o paradigma dominante era homem e

natureza e o primeiro estaria sujeitado ao segundo, de acordo com o determinismo

geográfico. Sendo assim, na escala das raças, o negro estaria entre as raças

inferiores e seria um empecilho para o progresso e para o desenvolvimento da

civilização brasileira. Neste sentido, o negro só servia para o trabalho. No mais,

seria um obstáculo social. Esta foi a ideia defendida nos argumentos anteriores

desse autor. Todavia, vimos que ele mudou de ponto de vista a respeito do

determinismo geográfico ao utilizar da perspectiva da antropologia culturalista, ao

se apoiar na ideia da mestiçagem, que tinha sua base em Freyre (1933).

Tanto Carvalho (1935; 1949; 1963; 1967) quanto Azevedo (1943; 1958;

1959; 1976) durante muito tempo acreditaram e defenderam o determinismo

geográfico e biológico, em que na relação homem e natureza, a raça seria um fator

determinante na forma da organização do espaço. Nesse sentido, ambos

acreditavam que a raça africana seria inferior à europeia, e, portanto, um fator

negativo na formação do povo brasileiro. Na verdade, até então, os dois tiveram

seus discursos orientados pelo determinismo geográfico; entretanto, a partir da

década de 60, mudaram de paradigma abandonaram o método determinista

naturalista para o uso do método culturalista inspirado em Freyre (1933) para

explicar a formação do povo brasileiro.

Diferente do cenário apresentado pela geografia tradicional e o seu

ensino, cujo poder de explicação estaria no meio - evolucionista, racialista e

civilizador -, no final dos anos 70, o ensino de geografia abriu-se efetivamente

para um novo panorama político, pedagógico e epistemológico e que, certamente,

abalava a tradição e a forma de interpretar o espaço e de como ensinar sobre a

desigualdade entre negros e brancos - tema dos programas e currículo dos livros

didáticos de Geografia da educação básica.

Page 48: O negro e a cultura afro-brasileira: uma bricolagem multicultural do

48

Começava a nascer e a se firmar um novo paradigma - o paradigma da

geografia crítica. Este, como tal, não se limitava apenas a descrever as coisas do

espaço, mas buscava explicar as contradições econômicas e sociais das coisas do

espaço. Acreditava que a desigualdade social era resultado do modo de produção

capitalista e que, por meio das suas técnicas e da apropriação da força de trabalho,

que gerava a mais valia, tudo podia confluir para produzir a desigualdade entre as

classes sociais. O espaço estava determinado pela produção econômica e sob o

controle do dono do modo de produção, de maneira que tudo isso podia explicar o

porquê dos espaços desiguais. Nesse sentido, seguindo esse paradigma, a próxima

seção tem como objetivo evidenciar os argumentos do ensino da geografia crítica,

através das reflexões dos autores que se dedicaram a explicar a desigualdade

social do espaço e, ao mesmo tempo, propor a sua transformação.

2.2 A Geografia Crítica e a transformação social pelo ensino

Para onde vai o ensino de Geografia? Esse é o título do livro organizado

por Oliveira, já na sua 5ª edição (1994), sendo que na primeira, foi em 1989 já

havia reunido um conjunto de temas que abordavam a crise da Geografia, da

escola e da sociedade. Os autores propunham um discurso engajado e, ao mesmo

tempo, comprometido com o ensino. Invocavam outras epistemologias,

propunham novas metodologias a partir de outros enfoques para o ensino da

Geografia. A ideia era de que dentro da escola o conteúdo não fosse abordado de

forma estanque, isolado da sociedade, mas que as questões econômicas, políticas e

sociais refletissem no ensino-aprendizagem do aluno e, que ele desenvolvesse um

olhar crítico, propositivo e que, concomitantemente, fosse construtivo, que levasse

à transformação social.

Todavia, com o ensino de Geografia em perspectiva, o desafio era fazer

com que os novos discursos alcançassem o professor na sala de aula, que muitas

vezes fazia uma jornada tripla de trabalho em escolas distantes o que tornava

quase impossível participar da formação continuada oferecida pelas secretarias de

educação. E mais, havia um segundo agravante - geralmente a licenciatura era de

curta duração.

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49

Nos anos 80 e 90, a habilitação do professor de Geografia em todo o

território nacional, na sua maioria, estava com as faculdades privadas, isoladas e

sem pesquisa, e o curso de licenciatura era de curta duração. À época, a oferta

dessa modalidade foi com base na “Reforma do Ensino” da Lei 5692/71, visto que

o número de matrículas para o primeiro e segundo graus crescera em todo o país,

o que fez aumentar a demanda por professores habilitados para o ensino da

Geografia. A lei passou a permitir a licenciatura de curta duração, todavia, ainda

que precária, a ideia era formar um professor polivalente e que atendesse as

demandas do núcleo de Estudos Sociais.

Como política de educação, a licenciatura de curta duração em Estudos

Sociais atendia a urgência que o governo tinha para resolver a carência de

professor habilitado, todavia, por outro lado, para a Geografia, como ciência e

como área do ensino, esta política contribuiu para a perda de status da disciplina,

com também incentivou a formação de profissionais “genéricos” na geografia do

primeiro e segundo graus.

Além disso, os Estudos Sociais, que praticamente ignoravam as

áreas de conhecimentos específicos em favor de saberes

puramente escolares, contribuíram para um afastamento entre as

universidades e as escolas de primeiro e segundo graus. Isso

prejudicou o diálogo entre pesquisa acadêmica e o saber

escolar, bem como atrasou as necessárias introduções de

reformulações do conhecimento histórico e das ciências

pedagógicas no âmbito escolar (BRASIL, 1997, p. 23).

Contudo, nas décadas seguintes, o quadro da educação nacional foi

marcado com o fim da ditadura militar pressionada pela redemocratização, o que

abriu novos caminhos, sobretudo para o campo das políticas educacionais.

Mudanças profundas aconteceram como a nova LDB 9394/96, a criação do

Fundef - a universalização e a garantia do ensino fundamental, a criação dos

Parâmetros Curriculares Nacionais – PCNs, ou seja, numa sumária conclusão, foi

um conjunto de políticas que conseguiu avançar na medida em que foram sendo

implementadas. Foi por exemplo, o caso da licenciatura de curta duração. Com a

LDB 9394/96, tornou-se obrigatória para o exercício da licenciatura a formação

Plena e não Curta, como era até então. Assim passou a exigir a lei:

Art. 62. A formação de docentes para atuar na educação básica

far-se-á em nível superior, em curso de licenciatura, de

graduação plena, em universidades e institutos superiores de

educação [...] (BRASIL, 1996).

Page 50: O negro e a cultura afro-brasileira: uma bricolagem multicultural do

50

Para tanto, estabeleceu prazos e diretrizes para que o ensino superior

fizesse as mudanças e as devidas alterações acerca da entrada do egresso na

licenciatura. Como meta, o Plano Nacional de Educação – PNE colocou como

exigência que: “no prazo de dez anos, todos os professores com apenas a titulação

de ensino médio possuíssem a formação específica de nível superior, obtida em

curso de licenciatura plena nas áreas de conhecimento em que atuam” (BRASIL,

2001). Certamente, a exigência da Licenciatura Plena trouxe de volta o prestígio

da Geografia como uma das áreas da educação.

Dando prosseguimento à abordagem do paradigma da geografia crítica, o

sentido de sua emergência se deu com a crise da geografia tradicional, cujo

modelo refletia o esgotamento na crença de um ensino baseado em métodos

mnemônicos que valorizavam a repetição e a descrição dos conceitos, cujo fim era

a memorização em detrimento do uso do conteúdo da disciplina aplicado pelo

aluno na sua vida social:

Uma disciplina maçante, mas antes de tudo simplória, pois,

como qualquer um sabe, “em geografia nada há para entender,

mas é preciso ter memória...” De qualquer forma, após alguns

anos, os alunos não querem mais ouvir falar dessas aulas que

enumeram, para cada região ou para cada país, relevo – clima –

vegetação – população – agricultura – cidades (LACOSTE,

1988, p. 21).

Diante desse quadro, a geografia crítica se propunha ir além. Para ela

implicava introduzir mudanças a partir de novas epistemologias e novas formas de

ensinar. Ou seja, cabia naquele momento, repensar o sentido do ensino de

Geografia. Não valia mais o hábito da reprodução, cujo conteúdo fosse esvaziado

de metodologias críticas. Todavia, para que essa mudança ocorresse, seria

necessário apontar as contradições sociais e econômicas tão necessárias e

responsáveis pela dinâmica do espaço. Nesse sentido, enquanto a geografia

tradicional se ocupava em descrever o espaço com os seus quadros naturais, a

geografia crítica se preocupava em dizer e em explicar o porquê da desigualdade

social do espaço geográfico. Por lados opostos, enquanto abordagem, a primeira

descrevia o espaço e a segunda explicava as suas contradições.

Epistemologicamente, a “Nova Geografia” teve como inspiração os

postulados do paradigma marxista e, como tal, considerava a dinâmica social do

espaço geográfico e não contrário como era posto pelo paradigma tradicional do

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homem e o meio, em que o segundo determinava as coisas do espaço sobre o

primeiro. Para o paradigma crítico, a escola devia ser comprometida com a

transformação do sujeito social. À época, o então debate colocado pela geografia

crítica tinha como escopo o materialismo histórico-dialético diferente do da

geografia tradicional dominante, descritiva, acrítica e positivista (OLIVEIRA,

1994, p.27).

A geografia crítica priorizou a aprendizagem do conteúdo e as suas

implicações pedagógicas para o professor e para a escola. A sua preocupação

estava em repensar a escola a partir da realidade social do aluno. Nesse

paradigma, o aluno não era visto como alguém apenas para aprender a reproduzir

conteúdos - ao contrário, o aluno tinha como fim aprender a refletir e a

transformar a sua realidade. Diz Foucher (1989, p. 15) que o foco devia agora se

voltar não para o espaço em si, na sua descrição como coisa, mas voltar-se para o

aluno, para a sua cultura, ou seja, para a forma com que ele se relacionava com o

espaço. O mais importante seria o homem e a sua construção social do espaço. Os

temas emergentes, como sociedade, escola e o ensino, foram exaustivamente

debatidos à luz da crise que a Geografia atravessava, assim como foi debatida a

metodologia do ensino da Geografia acerca dos temas pertinentes à organização

do espaço econômico, político e social.

A ordem bipolar, a rivalidade política e militar entre russos e americanos, a

chamada “guerra fria”, foi um dos conteúdos recorrentes abordados por Vesentini

e Vlach (1994) nos livros didáticos do ensino fundamental e médio. A ordem

bipolar teve origem no pós-guerra, em que as forças antagônicas derivavam de

dois sistemas sociais e econômicos: o capitalismo e o socialismo e ambos

mantinham acordos comerciais e militares estratégicos como forma de controle

dos espaços mundiais. A lógica era cada bloco manter o equilíbrio da política

externa; todavia, no interior de cada um, o descontentamento só fazia aumentar a

tensão: de um lado, a crise no Leste Europeu, em que se exigia a abertura política

e, do outro, o aumento da desigualdade entre ricos e pobres nos países do Norte.

Tudo isso, no final dos anos 80, empurrou o mundo para o aumento de incertezas

enquanto via crescer os conflitos étnicos, as lutas separatistas. Com a queda do

Muro de Berlim e com o desmoronamento da União Soviética, pôs-se o fim à

crença das metanarrativas e nas grandes ideologias do século XX.

Page 52: O negro e a cultura afro-brasileira: uma bricolagem multicultural do

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Nesta perspectiva, o conteúdo do livro didático era explicado com base na

geopolítica mundial, baseado na história política e econômica produzida pelo

homem sobre o espaço. A desigualdade social não seria o resultado de uma

natureza dominadora, como era visto na perspectiva determinista do homem e o

meio. Longe disso, na perspectiva crítica, a desigualdade seria resultado daquilo

que o homem é capaz de fazer a partir dos determinantes políticos e econômicos,

que, no caso desses tópicos aqui descritos, buscava explicar os sistemas

econômicos - o capitalismo e o socialismo. Neste sentido, a natureza seria uma

construção social, fruto das relações do homem para com ela. Portanto, a

desigualdade social per si seria o resultado das forças econômicas, políticas e

culturais pelas quais o homem se apropria do espaço geográfico.

A metodologia do ensino da geografia crítica vai se ocupar em analisar e

em compreender a dinâmica do espaço a partir do determinismo econômico e da

sua relação com a natureza socializada pelo homem, o agente modelador e

transformador do meio. Com base nesta ideia, o saber do aluno ganhava relevo,

visto que ele é também um agente transformador do espaço. Portanto, na escola,

cabia ao professor despertar o senso crítico e orientar o aluno para reconhecer o

meio e as suas contradições sobre aquilo que é construído, como desigualdade

social, fome, racismo e outras contradições do espaço.

Com base neste paradigma, Resende (1989), num trabalho inédito feito

com os seus alunos de 5ª a 8ª série do curso noturno, de classes populares, coletou

um total de 160 relatos, dos quais, foram selecionados 24 para interpretação do

que eles pensavam a respeito do seu espaço social. Disse a autora que se propôs a

conhecer o ponto de vista de cada aluno, o olhar com que cada um via o mundo

como aluno-trabalhador e, para isso, ela considerou como ponto de partida a

realidade de trabalhador e o lugar de onde cada um falava. Dos depoimentos

coletados, ela buscou traduzir o olhar “real”. Sobre o aluno, para ela:

Ele constrói permanentemente um saber sobre o espaço, que,

longe de fragmentá-lo e atomizá-lo como atitude intelectiva,

responde sempre ao seu caráter social, objetivo, de um todo

integrado, presidido por um determinado modo de produção,

em decorrência do qual o espaço é organizado desta e não

daquela maneira (RESENDE, 1989, p. 115).

O espaço geográfico seria visto do seu lugar, considerando a sua classe, a

sua consciência social, o seu trabalho, e outros fatores. Segundo a autora, ouvir o

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53

aluno contar sobre o seu espaço vivido permitia a ele falar de sua luta, de seus

desafios sociais como aluno-trabalhador.

Numa outra interpretação recente do espaço como construção social,

Damiani (2011) incorporou o cotidiano como categoria de análise, e afirmou ser

necessário considerar a experiência pessoal de cada sujeito sobre o cotidiano. Para

ela, a ênfase agora estaria nas ações sociais dos indivíduos ao interpretar o espaço.

Ela aponta:

O social não pode permanecer, em termos de análise, submerso

ao econômico e ao político. Não há uma condição intrínseca

entre essas esferas do real humano; imbricadas, relacionadas,

ainda sobram fissuras, interstícios a examinar (DAMIANI,

2010, p. 162).

Portanto, por maior que seja a influência dos fatores econômicos e

políticos sobre o social, eles não são suficientes para congelar o cotidiano porque

tudo muda o tempo todo. As relações sociais estão sujeitas ao fugidio, ao

contingente, ao ponto de o cotidiano chegar a ser “insuportável”, diz a autora. Ele

é capaz de influenciar e de levar a mudanças no campo da cultura, das técnicas e

na organização política do Estado. Com base nesta categoria de cotidiano, ouso

dizer que uma das causas da crise da geografia tradicional nos anos 80 foi

manutenção a visão fixa, presa à explicação descritiva, calcada no determinismo

econômico e natural do espaço-mundo e, sobretudo, esvaziada de métodos críticos

para o ensino de Geografia. Tornou-se insustentável explicar a dinâmica social do

espaço sem considerar o cotidiano como uma categoria de análise crítica.

Contra isso, a geografia crítica e seus paradigmas apontavam o Estado

Moderno, fruto do projeto burguês e do capitalismo, como causa da desigualdade

social na sociedade contemporânea. Seria a burguesia a mantenedora da ordem

social e a escola a detentora do discurso dominante, a reprodutora do status quo.

No Ancien Regime, o reconhecimento social (o privilégio), segundo à tradição,

estava no ‘sangue azul’ herdado no nascimento. Era status. Nascer nobre, para

sempre nobre. Ao contrário disto, o projeto burguês sucedeu a tradição, o

privilégio do “bem nascido” foi substituído pelo conhecimento e pelo mérito

escolar do diploma (VESENTINI, 1994). Nesse sentido, a escola passou a

representar o meio de reprodução e da garantia do status quo. Até então, a

educação, o conhecimento era um privilégio da nobreza e, agora, na sociedade de

classes, passava a ser função do Estado oferecer a escola como um direito social.

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A obtenção do diploma era um título, com ele estava agregado o capital

simbólico: o mérito e o privilégio.

O título profissional ou escolar é uma espécie de regra jurídica

de percepção social, um ser-percebido que é garantido como um

direito. É um capital simbólico institucionalizado, legal (e não

apenas legítimo). Cada vez mais indissociável do título escolar,

visto que o sistema escolar tende cada vez mais a representar a

última e única garantia de todos os títulos profissionais, ele tem

em si mesmo um valor e, se bem que se trate de um nome

comum, funciona à maneira de um grande nome (nome de

grande família ou nome próprio), conferindo todas as espécies

de ganhos simbólicos (e dos bens que não é possível adquirir

diretamente com a moeda). (BOURDIEU, 2011, p. 148-149).

De fato, no Estado moderno, a escola é vista como a extensão dos

interesses da burguesia, a cultura dominante tem como fim reproduzir os seus

interesses. Além disso, na intenção do projeto, a escola é um fim em si mesma e

deve atender a dois caminhos: um, em que os homens “aptos” através dela são

preparados para o poder, são preparados para comandar; o outro, o que atende à

formação de baixo status social, àqueles que vão ocupar a função de menor

prestígio social, ou seja, os homens que serão comandados por aqueles que

ocupam o poder. Nesta divisão dualista, o diploma seria um indicador sine qua

non, o capital cultural da sociedade meritocrática, o mecanismo propulsor do

poder e de ascensão social, como bem diz esse autor.

Nessa perspectiva reprodutivista, a função de instituições sob o controle do

Estado, como no caso da escola - a elite intelectual, seria reproduzir o discurso

eleito. O melhor, o selecionado, seria aquele que vai ao encontro dos interesses

dos grupos hegemônicos. O controle e a reprodução devem também se estender

sobre outras instituições, como o serviço militar obrigatório, o culto e o amor à

pátria, o uso da língua oficial nacional, a publicação de livro didático impresso na

língua oficial, como também a invenção dos discursos de valorização das

potencialidades dos quadros naturais, da fauna e flora, em forma de conteúdos dos

livros didáticos de Geografia na educação básica, assim como a fabricação dos

heróis nacionais com seus feitos; tudo isso devia ser engessado no currículo.

Baseado nestes valores discursivos, o currículo o conteúdo selecionado e

abordado pelo programa de ensino tinha como fim divulgar uma cultura do

Estado-nação com vistas para a homogeneização das diferenças na consolidação

do Estado nacional, como explica Vlach (1994, p. 42):

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55

Na medida em que estava em jogo a imposição da

nacionalidade, seria necessário suprimir as diferenças internas,

isto é, sociais, sem o que não se forjaria a unidade nacional. É

preciso ocultar a divisão social para que se crie uma comunhão

(artificial) entre aqueles que nasceram no mesmo lugar, falam a

mesma língua, têm a mesma tradição.

No caso do Brasil, essa construção artificial teve suas raízes nas

instituições guardiãs da cultura nacional do século XIX. Os museus, institutos, e

as faculdades de Direito e de Medicina nas cidades de São Paulo, Rio, Recife e

Bahia tiveram um importante papel. Sobre os museus, “a palavra de ordem era

salvar o que mais se pudesse, uma vez que imperava a ideia de que essas culturas

se extinguiriam, estando os “vestígios” mais bem preservados nos museus

metropolitanos” (SCHWARCZ, 1993p. 69). Os museus brasileiros, neste século,

tiveram suas pesquisas guiadas, como foi o caso do Museu Nacional, 1876-1926,

com vistas para áreas como a Botânica, a Zoologia, a Geologia, a Antropologia e

à Arqueologia. À época, sob a égide do paradigma naturalista, as pesquisas

refletiam os interesses dessas instituições através dos seus “homens de ciências”,

que, influenciados pela corrente darwinista se sentiam com o compromisso de

pensar a recém-criada Nação, na qual europeus, africanos e indígenas

protagonizavam o “espetáculo das raças” feito pela miscigenação que, como

debate Schwarcz (1993), custou caro à sociedade, sobretudo com a Abolição e o

advento da República, quando muitos desses homens, com base nos paradigmas

científicos raciais, acreditavam estar o país fadado ao fracasso em decorrência da

degeneração social devida à mistura das raças:

Nas diversas instituições a discussão racial assumiu, naquele

momento, um papel central, surgindo teses alternativas embora

contemporâneas. “Da frenologia dos museus etnográficos à

leitura fiel dos germânicos na Escola de Recife, passando pela

análise liberal da escola de Direito paulista ou pela

interpretação “católico-evolucionista” dos institutos, para

chegar ao modelo” eugênicos” das faculdades de medicina, é

possível rever os diferentes trajetos que uma mesma teoria

percorre (SCHWARCZ, 1993, p. 19).

As pesquisas desenvolvidas nestas instituições nortearam as diversas

abordagens desenvolvidas sobre raça e a questão nacional. Todavia, a escolha pelo

tema estaria condicionado ao interesse pessoal de cada pesquisador, porém

ressaltamos que, sobre esse período, não seria demérito algum utilizar o campo

das ciências naturais para pensar as questões sociais do país, visto que estava em

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56

voga no século XIX, o paradigma racial. A ciência guiava-se pelos parâmetros

naturalistas e a publicação de trabalhos como o de Darwin e o de Lamarck e de

livros e artigos que passaram a circular dentro das instituições fizeram com que a

pesquisa com base nas teorias raciais fora da Europa crescesse. De acordo com o

gosto pelos temas, essas publicações chegavam ao Brasil através dos

pesquisadores, que ocupavam importantes posições dentro dos Museus, Institutos

e Faculdades de Direito e de Medicina e, por muito tempo, isso foi uma tradição o

e duraria de 1870 a 1930, segundo Schwarcz (1993).

De volta à geografia crítica, de fato, ela resgatou temas da política e do

Estado moderno que tratavam da nação brasileira no seu sentido social e

econômico, como abordados pelos textos: 1. O “Estado Nacional e Capital

Monopolista”, Santos (1994, p. 47-80); 2. O “Ensino de Geografia e a Luta de

Classe”, Vesentini (1992, 24-31); 3. “A Geografia e a Crise Brasileira”, Andrade

(1989 p. 25-34); e as publicações francesas dos expoentes do pensamento crítico,

como: 4. “Crise da Geografia, Crise da Escola”, Brabant (1989, p. 15-23);

5.“Liquidar a Geografia... Liquidar a ideia de Nacional”, Lacoste (1989, p.31-82)

e 6. “Os manuais franceses controlados pelo governo brasileiro”, (1989, 181- 200)

e outros. O paradigma da geografia crítica voltou-se para a reflexão sobre o papel

do Estado a respeito da sua formação como a instituição maior de controle

jurídico, político, econômico e cultural e, nesse sentido, os autores focaram seus

olhares e reflexões para a organização do território nacional que teve com base o

pensamento liberal, com uma elite hegemônica nos setores econômicos, jurídicos

e da cultura. Do outro lado, as minorias sociais, como o caso do negro e da cultura

afro-brasileira, ficaram alijados da construção do Estado-nação. Mesmo assim, a

geografia crítica não se ocupou em refletir sobre a organização do espaço visto

desse processo - sua crítica procurou explicar os espaços desiguais pelo

determinismo econômico, fruto do modo de produção capitalista e sua capacidade

de produzir espaços desiguais, o que tornava inevitável a luta de classes.

Sobre o destaque das temáticas desenvolvidas pela geografia crítica a

respeito da situação social do negro, pouco se abordou acerca do racismo como

um fator de desigualdade. O que de fato prevaleceu como fator de exclusão foi a

distribuição de renda, que, segundo os autores, continuou com a minoria dos mais

ricos.

Page 57: O negro e a cultura afro-brasileira: uma bricolagem multicultural do

57

O paradigma da geografia crítica seguiu a premissa de que o modo de

produção seria o principal gerador de desigualdade entre ricos e pobres, entre

explorados e exploradores, ou seja, a lógica da ação social seria que o primeiro

teria acesso a bens e a serviços como produtor, enquanto o segundo receberia o

salário agregado à força do seu trabalho pela produção, o que nem sempre

permitiu uma vida com dignidade, ou, quando permitia, era de baixo status social.

O econômico seria um determinante na explicação da dinâmica do espaço

geográfico, um conceito recorrente usado nos livros didáticos para explicar a

distribuição de renda e o seu impacto social, como aponta Vesentini (2009, p. 50):

Um outro indicador importante da situação econômica de uma

população é a distribuição social da renda. Esse é um indicador

que mostra como está distribuída a renda nacional pela

população, se a renda está muito pouco concentrada. [...] O

Brasil é um país que se destaca negativamente nesse assunto,

pois possui uma renda nacional extremamente concentrada nas

mãos de uma pequena minoria. Nesse quesito, a situação

brasileira é uma das mais concentradas e injustas de todo o

mundo.

No que tange ao desenvolvimento social do país, o paradigma crítico

contribuiu para reforçar a ideia de que a concentração de renda era um hiato entre

ricos e pobres, um marcador de preconceito social. Todavia, sabe-se que tanto o

pensamento liberal, quanto o pensamento de esquerda se retroalimentavam,

durante o século XX, do mito da “democracia racial” e se ancoravam na máxima

de que o preconceito no Brasil seria social, e que, embora houvesse racismo, seria

isto algo pontual, o que tornava dispensável políticas de reparação que

transformassem a estrutura sociocultural do país.

Pelo paradigma da geografia crítica, a ênfase do livro didático de

Geografia estava no econômico e no social, em detrimento da discussão

sociorracial da população negra que vivia um reconhecimento de discriminação e

de desigualdade cultural. Sobre o negro e a cultura afro-brasileira, a orientação

pedagógica do ensino era voltada para a sua importância celebrada na música, na

dança, na culinária, e outras, que os justificava como os elementos de integração

da cultura nacional. Por outro lado e ao mesmo tempo, escamoteavam-se os

estereótipos da cor, da identidade e da autoestima do negro na formação do Estado

nacional. Conclusão: o paradigma crítico tocou no racismo, entretanto, a

desigualdade social foi a sua questão principal e a questão “raça” não foi

contestada com a mesma força.

Page 58: O negro e a cultura afro-brasileira: uma bricolagem multicultural do

58

Diferentemente desse pensamento e metodologias, os movimentos sociais

negros, desde os anos 70, vêm articulando estratégias de combate ao racismo. Tais

posicionamentos, postos por eles desde os anos 30, quando da fundação da Frente

Negra Brasileira – FNB, fizeram-nos sair de denunciantes do racismo para

proponentes de projetos de leis acerca de reconhecimento jurídico e político, que

hoje tem chegado por meio de políticas e programas como agenda do Estado

brasileiro. Todavia, estamos convencidos de que só é possível combater o racismo

à medida que a sociedade assumir a sua existência e o reconheça como um

indicador de desigualdade entre negros e brancos, do contrário ficamos presos aos

discursos cristalizados do mito da “democracia racial”, de que o “problema” do

Brasil seria apenas social e não de “raça”. A persistência desta memória de que o

problema é somente social é real, e é uma realidade inegável entre nós. Entretanto,

a questão atual que se põe é como desafiar ou como romper com esse imaginário

que, de certo modo, está institucionalizado nos discursos acadêmicos, na cultura e

no comportamento social. Daí a obrigatoriedade da Lei 10.639/03, que, ao invocar

a História da África e a cultura afro-brasileira no currículo escolar da educação

básica, abriu para outras perspectivas diferentes da do ensino tradicional atual. É

sabido que temas como a “cultura afro-brasileira”, o “negro” e o “racismo” fazem

parte do currículo escolar desde sempre, todavia, o que mudou com a

obrigatoriedade da lei é a perspectiva com base tradicional eurocêntrica com que

eram abordados, para a tendência pós-moderna, tensionada pelos estudos

culturais, pós-coloniais, através do multiculturalismo emancipatório, uma

abordagem discursiva voltada para raça, gênero, religião, identidade, e etc.

O que muda com a lei 10.639/03 não seriam apenas as metodologias de

ensino. Mudam também as fundamentações ontológicas e epistemológicas na

construção e na proposição de novos conhecimentos, já que, certamente, a visão

tradicional e a crítica não seriam suficientes, não dariam conta de responder às

demandas dos espaços fragmentados. A partir dessas certezas, é que este trabalho

busca construir a sua lógica com base no paradigma pós-crítico dentro do campo

do ensino de Geografia, aberto para a discussão de “raça” que opera sob “rasura”

(HALL, 2009) como um marcador de desigualdade e de estereótipo de cultura

entre negros e brancos, porque é isso que invocamos para o currículo e para o

livro didático.

Page 59: O negro e a cultura afro-brasileira: uma bricolagem multicultural do

59

2.2.1 O livro didático e os paradigmas dominantes

Todo paradigma é um esquema organizado e usado pelo pesquisador para

interpretar e explicar o que ele vê. O pesquisador é guiado por um conjunto de

crenças que ele acredita ter força de explicação sobre as coisas do mundo que ele

interpreta (DENZIN & LINCOLN, 2006, p. 34). A crise da Geografia foi a crise

de paradigmas, a perda da crença no paradigma naturalista positivista, para a

interpretação do espaço geográfico baseado no paradigma crítico de cunho

marxista, que tinha como premissa maior a crença da emancipação humana. Para

o marxismo, o importante é a ação humana, é a práxis, porque “a natureza tomada

abstratamente, em si, separada do homem, é nada para o homem,” diz Quaini

(1979, p. 45).

A crise da geografia tradicional, para Andrade (1989), traduzia o

momento vivido: era tempo de incerteza, e o que se questionava era a função

social do ensino da Geografia assim como os seus métodos, ou seja, enquanto

ciência a Geografia podia ser mais útil para a sociedade. Acreditava-se também

ser possível com a crise, abrir novos caminhos para um novo fazer. Ele afirma:

Os momentos de crise pelas sociedades, como a brasileira nos

dias de hoje, oferecem a oportunidade para uma reflexão sobre

os valores e as atitudes a serem tomadas diantes dos desafios

que surgem (ANDRADE, 1989, p. 7).

Na verdade, a crise da Geografia refletia não só no seu campo enquanto

ciência, como também a crise era na sociedade brasileira e mundial.

Economicamente, foi tão profunda que os anos 80 foram considerados a década

“perdida” visto que a estagnação econômica não permitiu o crescimento e o

desenvolvimento do país. Entretanto, se na esfera econômica o país estagnou, não

podemos dizer que o mesmo aconteceu na esfera do ensino de Geografia, pelo

contrário, essa foi a década da “virada” do ensino tradicional para o ensino crítico.

A articulação entre o ensino superior e a educação básica foi decisivo a evocação

de novas propostas que emergiram nas secretarias com programas e currículos

voltados para novas abordagens pedagógicas da Geografia. Ao mesmo tempo, não

faltaram os debates e congressos, muitos promovidos pela Associação dos

Geógrafos Brasileiros – AGB, que entendeu ser importante discutir o ensino como

uma área de prioridade da Geografia, e que, para isso, certamente seria primordial

a produção de novos conhecimentos e que os mesmos pudessem chegar até à

Page 60: O negro e a cultura afro-brasileira: uma bricolagem multicultural do

60

educação básica. Nesse sentido, entre as muitas contribuições para essa nova

tendência que emergia na área, Vesentini e Vlach (2009) propuseram, para o

ensino fundamental e médio, dois livros didáticos que, como proposta pedagógica,

não esvaziava o conteúdo da Geografia Física do currículo, ao contrário,

integrava-o com a Geografia Humana. Nesta ocasião, essas publicações tiveram

grande aceitação e sua escolha pelos professores permaneceu durante as décadas

seguintes.

Nascia então a “Nova Geografia” - a geografia crítica, que tinha como

crença a luta contra as injustiças sociais e sustentava a premissa de que é possível

a transformação da sociedade através da consciência social, o que levaria à

emancipação humana. Sobre isso, Vesentini (1992, p. 8) colocava as “lutas

sociais, em que se incluem as demandas e formas de organização das mulheres,

minorias étnicas, homossexuais, jovens, educadores críticos, movimentos

ecológicos, etc”, e passava a evocar um ensino de Geografia de domínio histórico-

social, menos estanque e mais próximo da realidade do professor da educação

básica.

Vesentini (1999) pensou princípios metodológicos para o ensino de

Geografia através do livro didático. Acreditava que uma nova proposta de ensino

romperia com a lógica da dominação da geografia tradicional. Nesse sentido, ele

propunha, em síntese, uma geografia crítica e autônoma “com a elaboração de

textos apropriados à realidade social e existencial do aluno como o uso de estudos

participativos do meio, e com debates frequentes sobre temas cruciais”, no

cotidiano da sala de aula. (Idem, 1999, p. 41).

Nesta perspectiva, a reflexão da geografia crítica não se limitava ao

domínio do pensamento, mas se estendia até o cotidiano do professor. Para o

autor, uma geografia comprometida com a justiça social deveria levar em

consideração a situação de trabalho desse profissional que, à época, já revelava a

desvalorização do magistério, às condições precárias de trabalho, a falta de

estrutura da escola, o trabalho sem material pedagógico e segurança. Acreditava

que o livro didático tinha duplos aspectos a serem discutidos: o primeiro seria o

seu valor social, ou seja, um instrumento a serviço da educação e da formação do

aluno e, o segundo, o seu valor de troca, o domínio dos grupos hegemônicos do

mercado editorial. Na verdade, o discurso da geografia crítica para com o livro

didático era engajado e havia um compromisso com a transformação social e,

Page 61: O negro e a cultura afro-brasileira: uma bricolagem multicultural do

61

nesse sentido, a crítica contra o sistema capitalista e contra o monopólio legítimo

do Estado fazia-se notório pelo posicionamento ideológico dos autores desse

período, à beira da militância política de esquerda. O paradigma (ou ideologias)

em alta na época era se assumir como de direita ou de esquerda, ou seja, pensar

socialmente seria pensar a partir das forças dominantes do capitalismo liberal, ou

a partir do pensamento crítico propositivo transformador.

Mas, ao mesmo tempo, os anos 80 assistiram ao “fim da história” ao ver

alianças econômicas e grandes ideologias se esvanecer (FUKUYAMA,1992).

Para Anderson (1992, p. 82), este autor “estava bem equipado para isso”, ou seja,

ele foi capaz de traduzir o momento histórico que o mundo vivia a morte das

metanarrativas. Isso foi assistido e celebrado com o fim do socialismo real,

enquanto ao mesmo tempo, do outro lado, zonas híbridas avançavam na incerteza

da fragmentação do espaço e na crise da identidade social que se estendia para

além das fronteiras fixas dos territórios políticos. Como diz Harvey (2003, p. 19):

Estamos agora no processo de despertar do pesadelo da

modernidade, com sua razão manipuladora e seu fetiche da

totalidade, para o pluralismo retornado do pós-moderno, essa

gama heterogênea de estilos de vida e jogos de linguagem que

renunciou ao impulso nostálgico de totalizar e legitimar a si

mesmo.

Na verdade, essa sensação de incerteza pelo fim na crença da

transformação social pelas metanarrativas ocidental, desse idealismo sobre o

passado tem suas raízes históricas assentadas no sujeito do Iluminismo, do homem

- masculino, de “um indivíduo totalmente centrado, unificado, dotado das

capacidades de razão, de consciência e de ação” (HALL ,2006, p.10). Ao

contrário disso, o sujeito pós-moderno tem o potencial de fragmentar e de

desconstruir, ou até mesmo de reduzir o espaço/tempo e que hoje, com o aumento

da informação, e numa velocidade sem precedente, é possível observar que o

desafio agora passou a ser “o efeito de quebrar (desconstruir) o poder do autor de

impor significados ou de oferecer narrativa contínua” (HARVEY, 2003, p. 55), ou

seja, no espaço fragmentado, não seria mais uma narrativa “mestra” que daria

conta de responder e de explicar todas as contradições sociais da condição Pós-

Moderna.

A significação mais ampla da condição pós-moderna reside na

consciência de que os “limites” epistemológicos daquelas ideias

etnocêntricas são também as fronteiras anunciativas de uma

gama de outras vozes e histórias dissonantes, até dissidentes –

Page 62: O negro e a cultura afro-brasileira: uma bricolagem multicultural do

62

mulheres, colonizados, grupos minoritários, os portadores de

sexualidades policiadas (BHABHA, 1998, p. 23-24).

Numa escala geográfica de mundo, a fragmentação do espaço permite que

vejamos o surgimento de diferentes fronteiras com diferentes grupos sociais de

“raças” e de culturas diversas com muitas narrativas acerca dos grupos até então

excluídos ou reconhecidos de forma negativa pelas narrativas mestras dominantes.

Portanto, no que tange ao propósito deste trabalho que trata da inclusão/exclusão/

do negro e da cultura afro-brasileira, a nossa intenção é tensionar a visão

tradicional interpretativa da narrativa “mestra” do negro (escravo), abordado nos

livros didáticos como aquele que foi importante para a organização do espaço e do

território nacional, pela sua presteza e pela capacidade “natural” de adaptação ao

clima, uma peça importante e estratégica da economia agrária, aquele que

contribuiu para com a cultura brasileira com o seu jeito pitoresco, alegre,

travestido pelo folclore e estereótipos, para agora desconstruir toda essa visão, ou

pelo menos começar a fazer o seu resgate sob outros pontos de vista que não

sejam de uma “narrativa mestra”.

Mas, o que fazer? Negar a escravidão na formação da civilização

brasileira? Não; ao contrário, firmar sua história. Entretanto, a forma de regatar

não deve ser monológica, apenas uma visão interpretativa, uma “narrativa

mestra”. É preciso resgatar de dimensões diferentes. A escravidão, como

narrativa, deve ser recontada a partir de diversos pedaços e partes reunidas e

sobreposições de quadros e contextos sociais diferentes. A ideia é fazer uma

bricolagem como aquele que atua “a partir do conceito de que a teoria não é uma

explicação do mundo – ela é mais uma explicação de nossa relação com o

mundo”, conforme Kincheloe (2007, p.16), ou seja, resgatar é narrar, dizer de

outro jeito. O que buscamos aqui é uma outra narrativa sobre o negro sobre a

cultura afro-brasileira que diz respeito à formação social do país, especificamente

com vistas para a educação e para o ensino de Geografia.

Para essa abordagem, acreditamos que os postulados da teoria crítica

visam à transformação social, como analisam Denzin e Lincoln (2006, p. 35),

contudo, talvez não sejam suficientes para avançar no ensino de Geografia acerca

do conceito de “raça”, o que, para nós, com base em Hall (2008), é um conceito

contestado. Por isso, ao levantarmos que o que estaria em jogo no resgate do

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63

negro e da cultura afro-brasileira seria a política de identidade, o que requer o

reconhecimento da diferença do Outro, evocamos dentro do campo do currículo, a

teoria pós-crítica que resgata narrativas com base nos estudos pós-coloniais,

porque o que precisamos é “ver de fora”, sair de dentro das “narrativas mestras”,

desconstruir a estabilidade, a linearidade histórico-social colonial. Não queremos

aqui resgatar o negro e a cultura afro-brasileira na sua essência, ao contrário,

queremos fazer o resgate através do movimento da descentração da diferença na

diferença, o que requer descentrar a própria construção biologizada de raça como

fator determinante, como no caso da cor da pele que continua sendo um marcador

da diferença entre o negro e o branco. Entretanto, a cor da pele não é determinante

na construção da identidade de “ser negro”, porque “ser negro” é uma construção

biopsicossocial que não é fixa, é instável e é suscetível à mudança de acordo com

o desejo de quem está num estado identitário como mais ou menos “negro”.

Negro é um conceito contestado. A forma como cada um se vê ou como vê o

Outro varia de acordo com a construção identitária de Eu “negro”. Numa visão

pós-crítica, com base na identidade vista na pós-modernidade, o conceito de

negro é um vir-a-ser, uma construção e desconstrução permanente. Pensar essa

dialética por uma dupla consciência, como sugeriu Du Bois9, é uma estratégia,

conforme coloca Billings (2006, p. 262):

A noção da dupla consciência, de Du Bois, aplica-se não apenas

aos afro-americanos, mas a qualquer povo que seja construído

fora do paradigma dominante. É importante ler toda essa

discussão da consciência múltipla com uma descrição de

fenômenos complexos. Não se trata de uma tentativa de impor

os conceitos essencializados da condição “negra” “latina”,

“ásio-americana” ou “nativo-americana” a indivíduos ou grupos

específicos.

Longe disso, mas que nesse sentido deem conta de explicar as novas

fronteiras culturais, com escalas geográficas com as diferentes vozes emergentes,

e que esses sujeitos tenham o poder para tensionar as “narrativas mestras” de

“raça” no sentido de desconstruir as certezas e o consenso, porque o que se espera

é o início da descolonização das narrativas coloniais reproduzidas até então como

um bloco hegemônico de narrativas ocidentais.

Para abordar a organização do espaço, é recorrente nos livros didáticos de

Geografia a utilização do fenômeno globalização para explicar as causas da

9 (1868-1963).

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64

redução espaço/tempo. No entanto, sabe-se que, visto pelo determinismo

econômico, este seria apenas mais um momento em que o espaço se reconfigura

pelo uso das técnicas. “As técnicas seriam oferecidas como um sistema e

realizadas combinadamente através do trabalho e das formas de escolha dos

momentos e dos lugares de seu uso” (SANTOS, 2000, p. 23). Para este autor,

pelas técnicas e por elas é possível contar a história do mundo, sobretudo do

mundo ocidental, que, do século XVI ao século XX, intensificou o uso das

técnicas e aumentou a desigualdade social como um produto desse crescimento. A

ciência moderna teve um grande papel no avanço das técnicas e na sua utilização

para explicar o homem e a natureza, como a população e a sua distribuição no

Planeta Terra seguidas dos fatores naturais como – clima e o meio, assim como o

a distribuição por raça, o que contribuiu para a Divisão Internacional do Trabalho

– DIT, entre os povos colonizados, o homem selvagem, primitivo e os povos

colonizadores, o homem civilizado.

Nesse sentido, o mundo globalizado seria resultado da história das técnicas

produzidas em diferentes espaços, mas, ao mesmo tempo, dentro de um projeto

maior de espaço-mundo, do projeto colonial a partir do século XVI, que foi

impulsionado pelas técnicas da navegação e com o apoio moral e ético da Igreja-

Estado-Sociedade, e pano de fundo da divisão racial e social que caminharam

juntas com esse desenvolvimento dentro de uma ordem social até o século XX.

Hoje, para retomar a questão raça, um tema caro para o espaço-mundo,

evidentemente, no mínimo, é preciso voltar ao projeto colonial. Os desafios

históricos que se põem, como a luta por reconhecimento e o combate ao racismo,

são muitos, já o que todas as evidências levam ao convencimento de que tudo isso

é resultado de uma construção hierárquica em que “raça” foi um discurso

construído técnica e politicamente, de posse e uso do colonizador para

discriminar, classificar, hierarquizar. É fato, raça tem a ver com o modo de

produção, com a força produtiva de quem gere o trabalho e para quem executa a

função. No apogeu do projeto colonial, até o século XIX, esta divisão era clara,

legítima e legal. De um lado, raças inferiores (escravos africanos) e, do outro,

raças superiores (europeus colonizadores).

Hoje, o que nos interessa é discutir, é recontar a configuração do espaço a

partir do discurso das relações etnicorraciais, especificamente sobre o negro e sua

representação social. Se a geografia crítica propunha a transformação social,

Page 65: O negro e a cultura afro-brasileira: uma bricolagem multicultural do

65

agora a tendência do ensino é discutir sobre a diferença como política de inclusão

das categorias de identidade, raça, gênero, religião e outras, numa educação que

tem como referência os Direitos Humanos, como crença na emancipação do

homem. Não basta denunciar o racismo e as injustiças sociais. É importante que

se proponham formas de combatê-los; do mesmo modo é preciso compreender o

processo, a sua gênese e o seu discurso. No que tange ao conhecimento prescrito,

através do livro didático, no currículo, não cabe mais dizer como ensinar tais

conteúdos, mas é preciso perguntar por que este conteúdo está presente e não o

outro? Ou, por que este conteúdo é abordado com estereótipos e o outro não?

A escola é um território regulado pelos mecanismos externos, órgãos

gestores do Estado como o Ministério da Educação e Cultura – MEC, o Instituto

Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais - INEP, e Secretarias de educação.

São eles que fazem a gestão de programas educacionais, como o PNLD, o de

avaliação em larga escala, como Prova Brasil e Saeb10

, IDEB11

, cujo fim seria

também fazer o controle do currículo, assim como acompanhar o desempenho

quantitativo e qualitativo do ensino. O currículo escolar não é algo estanque e

fixo, ao contrário, ele é um espaço de contestação e de mudanças permanentes.

Toda e qualquer mudança na escola reflete diretamente no currículo, concebendo-

se o currículo como toda e qualquer ação dos sujeitos - dos atores sociais que

estão direta ou indiretamente vinculados à escola. No caso do livro didático, ele é

um suporte da cultura selecionada e esta é organizada segundo os critérios de

classe, raça, religião, gênero, e de acordo com os fins de quem ou do grupo que os

produz (APPLE, 2008). Nesse sentido, não podemos tomar o livro didático como

um suporte pedagógico portador de um conjunto de conteúdos esvaziado de

crítica, ou simplificar o seu papel como se fosse apenas um produto de mercado e

ignorar a sua dimensão dentro da estrutura social das relações de domínio dos

discursos na escola. Seria esvaziar o seu poder político e social naquilo que ele

representa na relação ensino e aprendizagem. Consideramos o livro didático um

espaço socialmente construído, feito de diferentes visões e de discursos do poder,

10

A Prova Brasil e o Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (Saeb) são avaliações

para diagnóstico, em larga escala, ambas desenvolvidas pelo INEP. 11

Índice de Desenvolvimento da Educação Básica. Hoje é o indicador nacional que mede a

qualidade e desempenho de cada unidade escolar, municipal, estadual e federal. O objetivo é que a

média nacional atinja, até 2021, o equivalente à média dos países que possuem um alto nível de

educação.

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66

no qual são subentendidas intenções e ideologias de acordo com os grupos que

fazem o seu controle.

No caso dos livros didáticos de Geografia, como ficaria o seu controle e o

seu conteúdo de África e da cultura afro-brasileira? A partir de 2003, foi criada

uma lei de nº 10.639, que alterou o Artigo 26 da LDB 9394/96 e acrescentou o

Artigo 26, e tornou o seu ensino obrigatório. Na verdade, esse conteúdo sempre

fez parte da matriz nacional e, nos anos 90, os Parâmetros Curriculares Nacionais

– PCNs (BRASIL, 1997) novamente reorientaram sobre o mesmo e sugeriram a

sua aplicação como tema transversal e, para tanto, apareceu na abordagem da

Pluralidade Cultural.

Contudo, surgiram perguntas: 1. Não seria uma redundância: se esse

conteúdo faz parte do currículo, para que uma lei que o torna obrigatório? 2. Em

que medida as Diretrizes Curriculares da Educação das Relações Etnicorraciais e

da Cultura Afro-Brasileira implicam no ensino de Geografia?

Sumariamente, respondendo à questão 1, seria para resgatar a cultura afro-

brasileira e combater o racismo e propor a construção de uma educação das

relações etnicorraciais; e, respondendo à questão 2, o ensino de Geografia, até

então, se pautou pela tendência histórica, econômica e folclorista para abordar a

cultura afro-brasileira. Entretanto, com os fundamentos pedagógicos preconizados

na lei 10.639/03, o que desde então passou a ser requerida foi uma proposta

pedagógica na qual o negro seja reconhecido positivamente nas suas diferenças

culturais, na organização e transformação do espaço, considerando seus saberes,

sua estética física e natural e a sua história.

Para isso, o PNLD, no edital licitatório de 2008, postulou as exigências da

lei para que as próximas coleções de livros didáticos de Geografia atendessem os

então critérios propostos.

As coleções devem contribuir efetivamente para a construção da

cidadania. Nessa perspectiva, as obras didáticas devem

representar a sociedade na qual se inserem, procurando:

promover positivamente a imagem de afrodescendentes e

descendentes das etnias indígenas brasileiras, considerando sua

participação em diferentes trabalhos, profissões e espaços de

poder; promover positivamente a cultura afro-brasileira e dos

povos indígenas brasileiros, dando visibilidade aos seus valores,

tradições, organizações e saberes sócio-científicos,

considerando seus direitos e sua participação em diferentes

processos históricos que marcaram a construção do Brasil,

valorizando as diferenças culturais em nossa sociedade

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67

multicultural; abordar a temática das relações etnicorraciais, do

preconceito, da discriminação racial e da violência correlata,

visando à construção de uma sociedade antirracista, solidária,

justa e igualitária (BRASIL, MEC/PNLD, 2008, p. 35-36).

O presente edital teve como base as Diretrizes Curriculares da Educação

das Relações Etnicorraciais da História da África e da Cultura Afro-Brasileira, e,

dentre os pontos destacados, o mesmo chamou a atenção para que as coleções de

livros didáticos do Ensino Fundamental do PNLD voltassem a atenção e o

cuidado para com a abordagem de um ensino de Geografia para as diferenças

culturais. Como tal, deveriam então os autores considerar que a sociedade

brasileira é multietnicorracial, ou seja, somos o resultado das diferentes misturas

de “raças” e culturas e é isto que nos faz igual enquanto nação, e diferentes na

diferença enquanto culturas. A nossa formação é híbrida o que nos permitiu

construir uma história a partir das diferenças, visto que somos frutos do encontro

de diversos continentes culturais.

Com base nesses pressupostos, o edital procurava cumprir a lei, e evocava

a atenção do mercado editorial para com o cuidado de trazer, para as coleções de

livros didáticos de Geografia, abordagens acerca da cultura afro-brasileira que

contemplassem as exigências postas pelos dispositivos legais de acordo com as

Diretrizes Curriculares da Educação das Relações Etnicorraciais da História da

África e da Cultura Afro-Brasileira. Embora a Lei 10.639/03 imponha a

obrigatoriedade do ensino, em especial para as disciplinas de História, Literatura e

Arte, exigindo da escola um currículo preconizado na questão etnicorracial

demandando uma educação antirracista, no mesmo artigo afirmam também que

serão ministradas as temáticas África e cultura afro-brasileira no âmbito de todo o

currículo escolar. Isso significa que, como uma disciplina importante na formação

do aluno, tornou-se um compromisso também da Geografia, que tem como

conteúdo o Continente Africano e a cultura afro-brasileira nos programas do

Ensino Fundamental. Com essas diretrizes curriculares, espera-se a desconstrução

de currículos e programas com base em conceitos e paradigmas cristalizados sobre

discursos estereotipados, porque o que não se quer mais é uma educação na qual o

afrodescendente se vê reconhecido de maneira distorcida. Como diz Taylor (1994,

p. 45): “o não reconhecimento ou o reconhecimento incorreto podem afetar

negativamente, podem ser uma forma de agressão, reduzindo a pessoa a uma

maneira de ser falsa, distorcida, que a restringe”; é sabido que o reconhecimento

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68

falso pode causar prejuízos, dor, sofrimento, discriminação e violência simbólica

e danos morais ao Outro.

O contato entre africanos e europeus, ao longo da colonização, foi

marcado pela sobreposição de culturas em que ambos os lados se beneficiaram

desse processo; entretanto, o colonizador foi o mais favorecido, visto que a

prosperidade de suas colônias e a economia de exportação desenvolvidas nas

Américas só foram possíveis graças à importação da mão de obra, um negócio que

manteve aquecido o mercado internacional de tráfico de seres humanos durante

séculos. Ao mesmo tempo, o hiato que se pôs entre os dois lados está para além

do reducionismo histórico e econômico no qual um foi vítima e o outro o algoz. É

necessário dizer que na relação econômico-cultural entre eles, graças aos

interesses de ambos os lados, é possível ver como os africanos estruturaram suas

sociedades, seguindo uma hierarquia dividida em estratos sociais com diferentes

tipos de reconhecimento para com os seus. No caso dos prisioneiros de guerra,

nem sempre estes eram vistos pelos próprios pares como um dos seus, ao

contrário, entre eles havia uma hierarquização social, um signo, pelo qual, na

condição de presa, o seu provável destino era o escambo - a escravidão

transatlântica. Isto era possível em função do sistema hierárquico estabelecido

pelo tráfico comercial, por exemplo, como no caso de Cabinda, região de Angola,

em que o papel e a função social desenvolvidos pelas autoridades eram

politicamente controlados com as seguintes funções: o rei (o mangoyo); o

responsável pelo comércio (o manfuca); e o governador do litoral (o mambuco).

Sobre o manfuca, é importante saber que seu poder era estratégico para fazer a

manutenção da ordem escravagista. Nesse sentido, no que tange ao comércio

internacional de gente, a respeito do papel do manfuca dizem os autores:

Ele se faz sentir, sobretudo, em relação aos traficantes. Se pelo

manfuca efetivava-se o contato direto com os mercadores

individualmente, a política estabelecida em termos da soberania

do reino é discutida entre o mambuco e as autoridades dos

países interessados (SERRANO & WALDMAN, 2010, p. 177).

A estrutura social e econômica constituída era seguida de um controle

estatal, de modo que a ordem escravagista contava com o comércio de gente, em

que, cada um ocupava um papel e tinha uma função social e moral. Com essa

mentalidade, foi possível manter tal estrutura durante séculos. Todavia, hoje, não

cabe mais fazer interpretações a respeito da escravidão pelo viés maniqueísta no

Page 69: O negro e a cultura afro-brasileira: uma bricolagem multicultural do

69

qual vitimiza-se qualquer uma das partes a respeito do tráfico internacional entre

África e América. De fato, o tráfico foi possível enquanto houve interesses

econômicos, políticos e culturais daqueles que mantinham o controle naquela

estrutura secular. Contudo, isso não justifica a permanência da escravidão e

tampouco a forma com que o projeto colonial se estabeleceu e institucionalizou o

reconhecimento negativo do africano escravizado, classificado e hierarquizado

sob uma projeção filosófica e social do indivíduo, “selvagem”, a “raça inferior”, o

“escravo”, o “negro”, o “preto”, o “mulato”, estigmas e discursos cristalizados

pelos cânones eurocentristas e reproduzidos como “narrativas mestras” da

Modernidade, e que, ainda hoje, ocupam os currículos escolares nas explicações

de que os europeus dominaram e escravizaram povos em África e na América. De

fato, os europeus dominaram povos e lugares e, com isso, a sua cultura tornou-se

universal no que tange às narrativas do mundo ocidental, mas, na visão do

multiculturalismo emancipatório, é tempo de desconstruir “narrativas mestras”.

Enfim, com a homologação da Lei 10.639/03, que preconizou a educação

das relações etnicorraciais, entendemos ser relevante para o ensino de Geografia

problematizar essa abordagem a partir da perspectiva da emancipação humana.

Para isso, consideramos a seguinte pergunta: por que o reconhecimento, a

igualdade e a diferença são conceitos prementes para entender a questão

etnicorracial no currículo?

Para a próxima seção, o argumento, que será abordado, tem como pano de

fundo o multiculturalismo emancipatório com base “no reconhecimento da

diferença e do direito à diferença e da coexistência ou construção de uma vida em

comum além de diferenças de vários tipos”, conforme Santos (2010, p 33) propõe,

mas, para que haja o alargamento desses conceitos, assim como sobre a

aplicabilidade de cada um no campo do currículo de Geografia, é necessário que

vejamos a igualdade como um tipo de reconhecimento (político e jurídico), porque,

sem ela, não seria possível o reconhecimento da diferença, visto que a igualdade é o

primeiro tipo de reconhecimento sobre o qual os fundamentos liberais do Estado

Moderno foram construídos, quando a sociedade era baseada na honra e no

privilégio dos então considerados “bem nascidos”, no Ancien Regime fundamentado

na diferença, um tipo de reconhecimento que tinha como base a moral cristã e esta

foi o que legitimou o projeto colonial e o empreendimento empresarial da escravidão

de africanos nas colônias portuguesas. Porque desse contexto, como pode ser visto

Page 70: O negro e a cultura afro-brasileira: uma bricolagem multicultural do

70

na história da igreja, sabe-se que, a matança de negro foi autorizada pela sua

Santidade. À época, havia todo um incentivo para o ressurgimento da escravidão,

que data desde o século XV, quando, em 1454, o Papa Nicolau V assinou a bula

Romanus Pontifex, que dava “exclusividade aos portugueses nos negócios da África,

inclusive para apresar negros e mandá-los para o reino” (CHIAVENATO, 1980, p.

46). Para os negros, por não serem cristãos portugueses e não serem da mesma raça,

era previsto pela força da Coroa com a rubrica da Igreja o reconhecimento desigual.

Conforme os conceitos morais da época, era consenso que os africanos não tinham

“alma”, ou seja, não tinham direito de expressar a sua diferença, portanto a

escravidão de seus corpos seria uma forma de “resgatá-los” e “purificá-los” da

heresia trazendo-os para o reino de Deus enquanto prestando na Terra a sua

subserviência aos homens “bons”, o que, no discurso da igreja, tornariam-nos iguais,

não em direitos e em bens materiais aqui na terra, mas cabia-lhes todo o tipo de

reconhecimento negativo uma “passagem” para entrar no reino do céu.

Historicamente, o segundo momento importante ocorreu com a abolição

do regime escravagista quando a igualdade se tornou um imperativo da lei, e isso

passou a significar o fim da desigualdade entre o senhor e o escravo todos

passaram a ser reconhecidos como iguais. Todavia, consequentemente, junto com

esse novo estado de igualdade civil, veio a República e, com ela, vieram os

desafios do Estado democrático de promover mecanismo de reconhecimento por

meio das instituições democráticas daqueles que até então eram os desiguais.

Nesse sentido, os desiguais receberam que tipo de reparação e de garantia social?

Em que medida a importância sociocultural foi resgatada? Hoje, ao retomar essas

questões, nota-se que é importante evocar o reconhecimento, a igualdade e a

diferença para o debate, e refletir e ao mesmo tempo propor ações multiculturais

de ação afirmativa para o currículo de Geografia, que venham contribuir para o

resgate do negro e da cultura afro-brasileira.

2.3 O vir-a-ser, diferença e igualdade

A escravidão na América nasceu do projeto “civilizatório” colonial

europeu e, para que esse empreendimento em nível mundial desse certo, o

colonizador contou com um conjunto de fatores econômicos, políticos e

filosóficos a seu favor, o que permitiu implantar o regime escravagista nas

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71

colônias americanas, assim como foi possível também fazer a sua perpetuação por

mais de quatro séculos, pois, no caso da colônia brasileira, após a Abolição, é

inegável a continuidade da mentalidade de relação de superioridade de cor e de

estratificação social do senhor sobre o escravo reconfigurada no âmbito e no

domínio legal da lei, pelas quais as relações etnicorraciais entre negros e brancos

foram garantidas com igualdade de direito. No campo das relações e do status

social, a população negra continuou a existir numa posição inferior ao branco, no

que diz respeito à educação e à distribuição de renda. Daí, não é difícil se projetar

o futuro de uma população à qual faltou reconhecimento social na transição da

escravidão para a vida livre. No imaginário social, tornou-se um campo fértil para

conotações raciais de todos os tipos, que, desde então, fizeram surgir arquétipos e

estereótipos tocantes à cultura afro-brasileira, aos quais não escaparam os

espectros da raça e do racismo, que, até hoje, têm funcionado como marcadores

sociais e servido como código cultural e que, através da linguagem, são

reproduzidos na família e na escola, o que continua garantindo um ciclo de

reprodução de estereótipos com relação ao negro.

Do ponto de vista econômico, a escravidão foi um negócio, uma empresa

na qual se vendia gente, o que era legal e moralmente avalizado com a rubrica da

Igreja que, em consonância com os regimes monárquicos europeus, que criaram

instituições, leis e discursos, e um padrão de educação universal pelo qual

hierarquizaram, classificaram e reconheceram de forma estereotipada a África, de

modo que se propagou, através da cultura universal europeia, a ideia de um

continente selvagem e exótico, cuja imagem projetada de seus povos para o

mundo era de um homem “primitivo” reconhecido pelo seu estágio de

desenvolvimento natural, mais evoluído que os animais das savanas e o mais

atrasado e inferior da escala civilizatória europeia. Foi desse contato do europeu

com o africano que teorias, linguagens e discursos foram criadas e que, ao longo

dos séculos, cristalizaram-se, a tal ponto que “fizeram do negro o meio do

caminho no desenvolvimento do macaco até o homem”, Fanon (2008, p. 33). De

fato, ele foi objeto de densa descrição da etnografia da Antropologia positivista e

do determinismo biológico. Através disso, uma visão racial de África, para o

mundo, foi legitimada: de um continente atrasado, a-histórico e longe do

desenvolvimento econômico e social, europeu. Todavia, para o imperialismo

europeu, no século XIX, “civilizar os nãos civilizados”, seria a máxima da sua

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72

geopolítica, que se consumou com a Conferência de Berlim; daí a supremacia

racial branca etnocêntrica, um capítulo de racismo e ódio cujo desfecho terminou

com o holocausto, de uma Europa que se escreveu no século seguinte, e, hoje, ela

luta para não lembrar.

Nas ex-colônias, todos os lugares que estiveram sob o domínio dos países

europeus, como foi o caso do Brasil, a escravidão de africanos foi comum e o

trabalho compulsório foi o tipo adotado na gestão do sistema econômico do modo

de produção, entretanto, como um fenômeno social, a sua história deve ser vista

em três dimensões: a política, a econômica e a moral. Analiticamente, a

escravidão implica a sua capacidade, não apenas do ponto de vista econômico,

mas do seu poder político e moral, de ajuntar fragmentos, reunir pedaços de

discursos sobre a mentalidade hegemônica da Igreja, do Estado e da família

patriarcal que compõem um universo amostral das principais esferas sociais que

compunham a estrutura colonial de uma Era.

Nesta seção, não é a nossa intenção esgotar a discussão acerca do sentido

do projeto colonial pensado pelos portugueses a respeito do que mais tarde veio a

se tornar Brasil. No que tange ao reconhecimento etnicorracial do negro e da

cultura afro-brasileira, a ideia é abordar a diferença e a igualdade entre negros e

brancos no antes e no pós abolição. Vale ressaltar que, no capítulo 4 desse estudo,

as narrativas foram bricoladas com base na diferença e na igualdade dos seguintes

tipos de reconhecimentos: a mentalidade da instituição escravidão, em que a

diferença era o marcador da luta entre o senhor e o escravo; o após a abolição

quando a liberdade se tornou um direito universal com as instituições

democráticas, inclusive com a escola, que passou a preconizar a prática e o

discurso da igualdade, mas, mesmo assim, o negro e a sua cultura continuaram

sendo reconhecidos como inferiores pelos marcadores socioculturais brancos.

Hoje com as políticas de reparação de ação afirmativa, busca-se no Estado de

Direito, o uso da diferença e da igualdade como dispositivos legais na luta por

reconhecimento sociocultural na igualdade e, ao mesmo tempo, na diferença

quando a igualdade discrimina.

No regime escravagista, na relação de reconhecimento entre brancos

europeus colonizadores e negros africanos colonizados, a diferença era um

marcador político e filosófico de estratificação social, em que o primeiro não

reconhecia o segundo como igual; à época, a diferença era o parâmetro para

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73

hierarquizar, desqualificar, racializar e dominar os povos africanos. Com essa

hierarquia, a cultura era ditada pelos cânones europeus superiores e, enquanto

isso, do outro lado, ficava a cultura africana reconhecida como inferior. Portanto,

foi desenvolvido e aperfeiçoado todo um processo de dominação que ia da força

da violência física à força do discurso pela violência simbólica. A história é

testemunha de que o projeto colonialista tinha como base o desrespeito social, e

usava toda forma possível na punição do corpo negro e criava os meios e os

discursos como forma de controle, o que levava, ao negro, ao rebaixamento da

condição de animal; diferenciava para então subjugar, dominar e escravizar,

porque essa era a lógica do Estado-Igreja-mercado. O tratamento dispensado aos

africanos fazia parte do seu reconhecimento como coisa, um produto de mercado

– o mais vil da condição humana.

Do seu aprisionamento em África a travessia do Atlântico até á casa-

grande como destino final, havia uma moral, uma ética legítima de que o negro

deveria ser obrigatoriamente reconhecido como alguém que não era gente, ou seja,

um ser inferior; a ideia era desconstruir o africano da condição de Outro, “uma

vez que falar é existir absolutamente para o outro” (FANON, 2008, p. 33). O que

resistia e se opunha ao imperativo da escravidão representava uma ameaça à

ordem dos alinhados – Estado-Igreja- mercado, uma estrutura baseada no

privilégio e na honra, herdada e reproduzida do Ancien Regime.

Não é difícil concluir que no colonialismo o poder político estava sob o

domínio europeu e com o homem branco americano que herdou o pensamento da

ética protestante e se apropriou do “espírito do capitalismo”. Antes mesmo da

Revolução Francesa, ele já havia feito a Revolução Liberal Americana, base da

cultura mundial euro-americacentrista. No que tange a estrutura colonial, nas

Américas, o seu monopólio, o controle esteve primeiro com a Igreja e o Estado.

Na “modernidade tardia,” segundo Hall (2006), esse controle foi transferido para

o mercado e para as instituições da indústria cultural que passaram a reproduzir a

visão do centro numa escala universal em detrimento da periferia. Como dizem

Moreira e Silva (2002, p. 27): a cultura no seu sentido de aquisição tradicional é

“unitária, homogênea e universalmente aceita e praticada e, por isso, digna de ser

transmitida às futuras gerações”, e isso se refere à cultura “superior”, à

hegemônica, à selecionada, àquela que como tal deve ser inculcada nos sujeitos

sociais pelas instituições reprodutoras. Hoje, com a emergência do sujeito pós-

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74

moderno, o que se tem visto é o descentramento das instituições hegemônicas e,

ao mesmo tempo, com a informação instantânea, a redução do tempo/espaço da

“sociedade do espetáculo”. Com isto, caminhamos para a inversão da

metanarrativa para a micro-história, do lugar da criação para a desconstrução e da

antítese, segundo (HARVEY, 2003).

No passado eurocentrista, o Ocidente foi uma invenção da sua própria

cultura, da sua própria maneira de se afirmar e de afirmar o Outro: o positivo e o

negativo estereotipado. A escravidão na Modernidade seria uma das formas

justificadas para a afirmação do sujeito moderno, encontrada por ele para explorar

e ao mesmo tempo para existir a partir do Outro. Nos últimos quinhentos anos, o

projeto que justificou a colonização e a escravidão brasileira nasceu de uma visão

ocidental branca, cristã, de natureza jurídica com base na diferença do

reconhecimento da honra do vencedor, enquanto o vencido, o colonizado e

escravizado seria apenas o objeto, a peça do enredo da economia e do

desenvolvimento das nações europeias. De fato, o mundo no século XV e XVI,

principalmente nas monarquias ocidentais, estava alinhado político, econômico e

culturalmente à ordem teocêntrica, em que o controle exclusivamente ficava com

a agenda da fé, pela qual se escrevia e falava o latim – a única versão que se podia

fazer da verdade. Os fiéis cristãos eram guiados pela vontade e no tempo de Deus.

Nada se fazia politicamente sem consultar as autoridades eclesiásticas, porque, o

contrário disso, seria heresia e, certamente, os tribunais do Santo Ofício seriam o

fim para quem tentasse subverter os desígnios dos céus. Nesses séculos, o mundo

hegemônico ainda era cristão e o regime político e econômico, embora já tivesse

começado o início do fim, ainda era feudal. A relação de trabalho era servil, de

senhorio e servo, de honra e lealdade e fidelidade, uma sociedade estamental. Para

a Igreja, a aliada dos Estados nacionais, só havia duas identidades: a de cristão e a

de herege, ou se confessava a sua fé, ou a negava. O poder, a economia e a cultura

giravam segundo a vontade da política de Deus.

Nessa ordem teocêntrica, fica mais fácil de compreender que, o poder

político estava com a nobreza e com a Igreja e que ambas controlavam a

economia e a cultura. Contudo, sabe-se que a força do mercado e a sua expansão

fizeram com que se intensificasse o fluxo do comércio mundial, sobretudo para

com as colônias, e para Portugal, que já tinha a prática da cultura escravagista

desde o contato com os sarracenos, foi fácil a implantação do mercado com a

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África, um grande projeto comercial que por muito tempo se manteve ativo.

Todavia, dentro desta ordem mundial de metrópoles e colônias, para que obtivesse

tanto sucesso um país de extensão e de população tão pequena, Portugal contava

com a estrutura do Ancien Regime baseado no predomínio da nobreza e da Igreja,

que, associadas ao comércio e às rotas marítimas, fizeram da fé um negócio onde

o escravo era o produto competitivo fora da África. Todavia, para que a

hegemonia lusitana se mantivesse inalterada, e que secularização desse domínio se

reproduzisse, muitos mitos a respeito do africano foram criados. Como tantos, um

foi a “maldição de Cam12

” que tinha como função desqualificar e estratificar o

negro no pensamento da época. Como uma instituição pensante e mantenedora da

moral da sociedade tradicional, qual seria a intenção da Igreja ao fazer a

reprodução desse mito?

O seu interesse primeiro era a manutenção da escravidão economicamente,

pois dessa forma, conseguia unir a fé com o desenvolvimento ultramarino, porque,

a Igreja, Deus estava nos negócios, nos empreendimentos materiais. Portanto, era-

lhe conveniente o filho amaldiçoado por Noé, do qual os descendentes, os povos

africanos, seriam uma sub-raça, selvagem e não civilizada. Isso se tornou um

axioma do pensamento do cristianismo, superado apenas no fim do século XIX,

pelo menos no Brasil, do ponto de vista da Arte, quando, em 1895, o artista

plástico Modesto Brocos, da Escola de Belas Artes apresentou uma obra óleo

sobre tela intitulada “A redenção de cam”, hoje no Museu de Belas Artes do Rio

de Janeiro. Para a época, a ideia era contribuir com o imaginário do

branqueamento com a miscigenação da população brasileira. Ao contrário de

então, quando a vontade de Deus seria a “maldição de Cam”, os descendentes

camitas (africanos) estariam sujeitos à condenação; para o pensamento

eclesiástico não haveria salvação para os africanos, a não ser se fossem redimidos

através do trabalho compulsório. Nesse sentido, a escravidão foi o caminho ideal

que levava aos céus. Escravizar seria um ato benéfico e fazer escravos foi a

tecnologia social e de ponta a serviço de Deus e ao alcance das instituições do

ramo do escravismo, que, por elas, mercados foram alavancados e a economia

mundial se expandiu para os novos continentes sob o “pacto colonial”.

12

Mito baseado no Antigo Testamento. Noé, após se embriagar, é encontrado nu por seus filhos,

Cam, Sem e Jafé. O primeiro riu da situação presenciada. O pai repudiou o filho e o amaldiçoou

mandando para terras distantes supostamente africanas.

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76

Já em 1750, o Padre M. R. Rocha recomendava bom tratamento

aos escravos, pugnando pelo dever de alimentá-los, vesti-los,

curá-los em suas enfermidades, educá-los sobretudo moral e

religiosamente, permitir-lhes a família, a propriedade, e afinal a

alforria ou liberdade (MALHEIRO, 1976, p. 81).

A Igreja recomendava que ao escravo se desse todo tipo de apoio, do físico

ao moral, entretanto, essa assistência funcionava como um reconhecimento de que

o mundo branco europeu, para existir como tal, dependia de que o africano

permanecesse na condição de escravo. Nesse sentido, a dependência era mútua. O

europeu estava preso também à condição de estratificação criada pelo regime

escravagista, razão pela qual havia todo o tipo de controle e coerção sobre o corpo

do africano escravizado. O controle no sistema patriarcal no Brasil, no caso da

casa-grande, estava na totalidade da estrutura: a senzala era vigiada por alguém da

confiança do senhor e, em todos os arredores, como na eira, no engenho e etc, o

controle era feita pelo capataz – o homem de confiança do senhor, muitas vezes

um descendente de africano. O certo era que em todos os lugares havia o controle

e a disciplina. Tudo que fosse ao contrário disso poderia representar uma ameaça

à ordem e, para que isso não ocorresse, o sistema era severo e usava de todo o tipo

de punição para conter os subversivos, com pelourinho, correntes, chibatas, e

outros instrumentos mais. A ameaça à ordem estava no tipo de reconhecimento

entre o senhor e o escravo. Para a filosofia política, todo homem sujeitado à

escravidão, consciente da sua dignidade humana, por certo vai odiar ou então não

reconhece o Outro como senhor ou o seu dono, e, se isso ocorria era porque a sua

dignidade já estava dominada pelo senhor.

O conceito de reconhecimento vai aparecer, a partir de Kant (1724-1804),

e depois, mais desenvolvido por Hegel (1771-1831). Segundo Fukuyama (1992),

a luta por reconhecimento é a luta por autoestima, é um desejo remoto da

humanidade. Desde a Grécia clássica o homem já inspirava o reconhecimento.

Este é um conceito que se encontra em “A República de Platão,” com o nome de

thymos. Seria “uma virtude política inata, necessária à sobrevivência de qualquer

comunidade de política por ser a base que permite a um particular desligar-se da

vida egoísta do desejo e voltar-se para o bem comum”, ou não13

.

O conceito exposto tem a intenção de fazer refletir a respeito do papel e do

lugar que o escravo afro-brasileiro ocupava na sociedade patriarcal escravagista.

13

Acréscimo meu.

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77

Ao manter o controle moral sobre ele, havia duas dimensões com que o senhor se

ocupava a seu respeito: o corpo e o psicossocial.

De fato, para que a escravidão fosse sustentada, havia uma biopolítica

identitária direcionada com base num conjunto de instrumentos legais, através dos

quais construía-se socialmente o escravo. Romper com isso, era uma tentativa de

quebrar a barreira política, econômica e filosófica que dava legitimidade a esse

tipo de reconhecimento social, coisa que era difícil, visto que o reconhecimento

econômico do escravo estava na sua reificação:

O escravo era apenas um instrumento de trabalho, uma

máquina; não passível de qualquer educação intelectual e moral,

sendo que mesmo da religiosa pouco se cuidava. Todos os

direitos lhes eram negados. Todos os sentimentos, ainda os de

família. Eram reduzidos à condição de coisa, como os

irracionais, aos quais eram equiparados, salvas certas exceções

(MALHEIRO, 1976, p. 31).

Havia todo um cuidado moral de desconstrução do humano que havia no

africano, no sentido de garantir a sua condição de escravo, de uma coisa, para que

ele não se visse como gente e exigisse reconhecimento. A lógica desenvolvida era

de que todas as esferas sociais refletissem a sua reificação, e que ele se visse

desprovido de todo tipo de direito como a educação e do direito de ter direito a ter

família. Uma vez reduzido à condição de coisa, ele não era gente, portanto, não

era civil e, certamente, não tinha direito à proteção social. Sabe-se que o direito é

um princípio de natureza humana, é uma construção social. Neste sentido, todo

ser humano é um indivíduo com um fim em si mesmo, portanto tem direito de ser

livre como tal. No caso do escravo, na estratificação social, ele ocupava a última

camada e isso o colocava numa posição desfavorável e desprovido de qualquer

tipo de direito. A ele cabia apenas subsistir para o trabalho compulsório. Seu

corpo, como função social, representava para o senhor um número, um valor

monetário importante na sociedade monocultora.

É possível ainda encontrar nos livros didáticos de Geografia, como mostra

análise dos dados do capítulo 4 desse trabalho, a escravidão e a luta do escravo

pela abolição, porém explicadas a partir do determinismo econômico. O negro

aparece como uma coisa. A sua luta por reconhecimento e a sua emancipação

destacaram o quilombo que ganhou notoriedade pela resistência, como o lugar

para o qual ele fugia para se afastar da força do opressor. Todavia, se fizermos o

processo contrário, de trazer a emergência de um novo conceito conforme a

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78

sugestão de Hall (2009, p. 104), é possível fazer o deslocamento dos papéis, e

inverter e potencializar a consciência-de-si que havia no sujeito-escravo, e

enxergar que a opressão que pesava contra ele, a revolta, a fuga, e todos os tipos

de resistir assentia a consciência-para-si.

Potencializando o sujeito-escravo, ele seria o indivíduo que buscava para

si a consciência-de-si e, nesse sentido, se se opusesse ao senhor teria a

consciência-de-si e para-si, o que para Hegel (2011) significava a busca do desejo

e a autorealização. Para o autor, a relação entre o senhor e o escravo seria uma

luta de vida e morte que se põe entre os dois. Para que o senhor pudesse existir

como tal, ele estabelecia uma consciência-de-si e uma consciência-do-Outro

contudo, em contraposição, o escravo buscava uma consciência-de-si, e é contra

essa consciência-de-si que o senhor se opunha “ao mesmo tempo como mediação,

ou como um ser-para-si que só é para si mediante um Outro, se relaciona” (Idem,

2011, p. 147).

Segundo o autor:

O senhor se relaciona mediatamente com o escravo por meio do

ser independente, pois justamente ali o escravo está retido; essa

é sua cadeia, da qual não podia abstrair-se na luta, e por isso se

mostrou dependente, por ter sua independência na coisidade. O

senhor, porém, é a potência que está por cima desse ser; ora,

esse ser é a potência que está sobre o Outro; logo, o senhor tem

esse Outro por baixo de si: é este o silogismo [da dominação]

(HEGEL, 2011, p. 148).

É assim que ocorria na casa-grande a relação de dominação entre o senhor

e o escravo. Aos que eram adquiridos no mercado, a desconstrução de si era um

processo que se iniciava desde o seu aprisionamento em África, que, como

cativos, à medida que eram exportados como mercadorias para as colônias,

deixavam de existir para os seus pares, mas, ainda assim, a consciência-de-si era

recoberta quando ele se via subjulgado junto com os ratos à putrefação nos porões

dos tumbeiros. A consciência-de-si fazia aumentar a saudade, a vontade de

retornar para a sua terra e para o seu povo, coisa que já não era possível, e isso

transformava-se em banzo, doença cuja causa primeira estava na perda de suas

raízes das quais foi arrancado.

Aos sujeitos-escravos nascidos na casa-grande, a desconstrução do seu Eu,

da sua pessoa como gente, passava por um processo educativo: desde pequena, a

criança negra recebia um tipo de reconhecimento distorcido, em que ele não devia

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se ver como gente, mas como alguém que era uma coisa, um objeto, um

brinquedo. Muitas vezes, o sinhozinho, quando ainda criança, recebia de presente

um menino negro para ser o seu “saco de pancadas”, o “mané gostoso” ,

(FREYRE,1998) e, com ele, iniciava sua vida sexual, e praticava todo tipo de

destrato, o que, para aquele tipo de sociedade, era comum, uma vez que estava

estabelecido na moral e na ética cristã que o escravo não era sujeito e sim objeto

do seu dono.

Todavia, ninguém nascia escravo. Ser escravo era uma condição imposta

pelas normas e pela moral da sociedade escravagista que assim reconhecia o

africano nesta condição. Na sociedade colonialista e imperialista, só existiu o

senhor enquanto existiu o escravo e, para que o segundo pudesse existir, o direito

que diferenciava o escravo do senhor era o da diferença, direito em que na lei

dizia ser o primeiro inferior com relação ao segundo. Com a Abolição, a

igualdade tornou-se um direito universal entre negros e brancos. Segundo a lei,

todos, independente da cor, raça, classe social, seriam iguais. começava então a

luta do negro pelo direito da igualdade, uma vez que a garantia da igualdade

formal, no âmbito jurídico, não garantia a igualdade de acesso a todos os tipos de

direitos civis, políticos e sociais iguais aos dos brancos. Na verdade, os brancos

chegaram primeiro e construíram uma sociedade com as seguintes bases: estrutura

social em que a religião era o catolicismo, a economia dirigida por brancos-

senhores, e as leis feitas por eles e para eles, o estamento colonial. O desafio agora

estava em como reconhecer, em como dar direito a quem até então, segundo a lei

não era reconhecido como gente e não tinha direitos. Com a Abolição, a diferença

na lei foi zerada, entretanto, no reconhecimento social, não.

O saldo dessa relação foi uma dívida social alta, um ranço deixado pela

estrutura escravocrata, que, ainda hoje, reflete em todos os segmentos da

sociedade. Após a Abolição, o combate à falta de reconhecimento aos libertos não

aconteceu, não houve o ressarcimento material que lhes dessem condições de

competitividade, e para esta parte da população, que foi tão lucrativa para as

forças hegemônicas do Império, seria justo que, no Estado Republicano, ela fosse

integrada socialmente. Porém, não houve esse resgate. Para que houvesse de fato

o resgate do negro como sujeito de direito, à época, seria necessária a sua

reparação moral, de modo a proporcionar o aumento da sua autoestima, o que a

ele foi negado, seguido de preconceito cultural e racial.

Page 80: O negro e a cultura afro-brasileira: uma bricolagem multicultural do

80

Na verdade, o negro entrou para a sociedade de direito sem o

reconhecimento de si como sujeito de direito. A luta pelo direito a bens e a

serviços viria com a sua ascensão social, o que lhe daria acesso à renda para

alcançar o mesmo status social do homem branco, mas isso não foi possível de

imediato. Não houve políticas efetivas nesse sentido por parte do Estado, que

engessava a ideia de que o racismo não era um marcador social, fazia o discurso

de que todos eram iguais, e que ao negro seria suficiente buscar o seu espaço

como indivíduo, visto que o discurso da igualdade seria suficiente para fazer a

igualdade social. Além do não reconhecimento a bens e status, houve também por

parte da sociedade o não reconhecimento da cultura afro-brasileira. Tudo que

vinha da parte do negro, a dança, a música e a religião, foi durante muito tempo

marginalizado pela cultura dominante. Parte da cultura afro-brasileira só se tornou

parte da cultura oficial a partir dos anos 30, quando o folclore, como um elemento

de integração nacional, passou a ser estudado e aceito como parte do conteúdo dos

programas e currículos da educação formal (MOTA, 2008).

O negro tem lutado por reconhecimento social, e muito até aqui ele já

alcançou, contudo, hoje, ainda enfrenta a luta para combater o racismo e para que

se faça o reconhecimento da cultura afro-brasileira de forma positiva no currículo

escolar.

É preciso contra a falta de reconhecimento evocar o multiculturalismo

emancipatório como instrumento de luta política, como aquilo que tem como fim

desconstruir o poder, ou seja, tudo aquilo que ainda oprime e inferioriza o negro,

para que haja uma sociedade mais igualitária, mas sem que se perca o

reconhecimento do direito da diferença de direito. Nesse sentido, convidamos a

pensar o multiculturalismo na educação.

2.3.1 Pensando o multiculturalismo no currículo

Atualmente a palavra currículo tem aparecido com muita frequência na

mídia quando o tema é educação e ensino, e principalmente em época de IDEB14

e

ENEM,15

em que se vê aumentada a atenção da sociedade para as políticas

14

Índice de Desenvolvimento da Educação Básica. 15

Exame Nacional do Ensino Médio.

Page 81: O negro e a cultura afro-brasileira: uma bricolagem multicultural do

81

educacionais universais. Quanto à ideia que na área de educação tem sobre o

conceito de currículo, talvez esteja relacionada com a memória das aulas de

Didática, ou do Estágio Supervisionado nos cursos de licenciatura, quando a

orientação era de como se preparava uma aula, e considerava o ensino e a

aprendizagem como fim em si mesmos e, para isso, era fundamental: objetivos,

metodologia, e avaliação, elaborados com o máximo de organização e de

planejamento, de modo que a eficiência fosse o objetivo geral; ou seja, fazer uma

boa aula era sinônimo de domínio do conteúdo e também de demonstração de que

se tinha domínio da didática. Essa era uma tendência baseada nas teorias

tradicionais do currículo em que, historicamente, desde as primeiras instituições

de ensino, sempre houve um sentido para a organização e o planejamento do

conhecimento distribuído por idade, série, grau, de maneira que a aprendizagem

pudesse fluir de acordo com o desenvolvimento psicossocial do aluno.

O currículo como campo teórico tem uma história e, como tal, suas teorias

estão identificadas com a história de desenvolvimento social, econômico e

cultural de países do Ocidente, como os Estados Unidos. Segundo Silva (2011),

sumariamente, o currículo aparece como um campo especializado nos Estados

Unidos com a publicação do The curriculum de Bobbitt (1918), num momento

importante e estratégico para a economia daquele país em que o governo buscava

alcançar novos rumos para a sociedade americana e a educação seria o meio pelo

qual alcançariam tais fins. Neste sentido, a publicação do livro “The curriculum16

ia ao encontro do modelo de desenvolvimento daquela economia, visto que a

visão do autor era de que o currículo de uma escola fosse organizado conforme o

modelo de administração de uma fábrica, ou seja, o ensino devia ser em série,

cada bem compreendida, com os seus objetivos e fins definidos, de modo que, na

última etapa, o aluno estivesse pronto, preparado para entrar no mercado de

trabalho dominando as habilidades e competências exigidas, semelhante à

produção fordista em que a linha de montagem é em série e cada parte do

automóvel estandardizarda e, término do processo, o produto está finalizado e

pronto para ir para o mercado.

16

Silva (2011, p. 22).

Page 82: O negro e a cultura afro-brasileira: uma bricolagem multicultural do

82

Ainda nesta mesma perspectiva sumária e histórica, quem coadunava com

paradigmas de Bobbitt (1918) seria Tyler (1949), que publicou “Princípios

básicos de currículo e ensino17

”. A obra confirmava que, para o desenvolvimento

pleno do currículo, a sua organização devia considerar os objetivos da

aprendizagem como um fim em si mesmo; que as experiências estivessem de

acordo com os objetivos finais, como algo que fizesse sentido para a vida do

aluno; e que fizesse o controle do ensino para alcançar os fins propostos (SILVA,

2011, p. 25). Para esse autor, as tendências tradicionais baseadas no ensino-

aprendizagem foram dominantes até os anos 60, quando novas teorias no campo

da educação emergiram sob outras perspectivas, que refletiam sobre o currículo

como um campo sociológico. Tais teorias ficaram conhecidas como teorias

críticas do currículo, por contradizer o sistema de ensino, isto tanto nos Estados

Unidos quanto na Inglaterra, por criticar o sistema econômico e as desigualdades

sociais da época.

Como um novo paradigma do campo do Currículo, a Teoria Crítica

colocava, no centro da discussão, a crítica ao sistema capitalista, à classe social, e

tinha como base pensadores da Sociologia que refletiam sobre a educação, como

Althusser (1983), Bourdieu e Passeron (1975), Bowles e Gintis (1981)18

. Para

eles, a escola seria um aparelho reprodutor das ideologias hegemônicas do Estado.

A reprodução da ideologia se daria por meio do currículo escolar, já que, desde a

infância, seria função da escola inculcar no aluno o conteúdo selecionado de

acordo com os interesses das classes sociais dominantes. A Teoria Crítica oferecia

resistência contra isso ao propor um currículo que buscasse a emancipação e a

libertação dos oprimidos contra os opressores. Neste sentido, o currículo devia ser

visto também pela perspectiva do poder, ou seja, o importante não seria apenas

fazer o seu controle, mas, antes de tudo, perguntar a quem interessava tais

conteúdos selecionados, e esses a que tipo de classe social. A Teoria Crítica do

currículo tinha como um dos seus pressupostos a resistência a qualquer tipo de

opressão aos oprimidos e, nessa perspectiva, vão aparecer outros marcadores no

campo, como classe, raça, feminismo, e etc. O currículo oculto aparece na escala

do cotidiano: são as diferentes vozes emergentes, é o fazer dos sujeitos sociais,

17

Idem (2011, p. 22). 18

Ibidem, (2011, p. 36).

Page 83: O negro e a cultura afro-brasileira: uma bricolagem multicultural do

83

são as vozes excluídas do currículo oficial que buscam prestígio e visibilidade na

cultura escolar. Tanto nos Estados Unidos quanto na Inglaterra, os movimentos

sociais, a luta pelos direitos civis, o movimento feminista e outros são tendências

catalisadas pela Teoria Crítica do Currículo como elementos da cultura popular

que passaram a objeto de reflexão da Sociologia do Currículo. A partir desta

perspectiva, a valorização do conteúdo a ser ensinado, não seria somente o do

currículo oficial, o proposto pelo governo, mas também a cultura trazida pelo

aluno, ou seja, a sua trajetória, as suas experiências de vida passavam a constituir

o chamado currículo oculto.

O aluno deixava de ser reconhecido apenas como um sujeito que recebia a

informação do currículo oficial mediado pelo professor e assumia um papel ativo

na relação de aprendizagem. Ao mesmo tempo, Silva (2011) aponta que outras

abordagens vão emergir no campo do Currículo, como diferença e identidade,

gênero, feminismo, narrativa etnicorracial, teoria queer e multiculturalismo. Para

esse autor, essas novas categorias passaram a imprimir um outro sentido na

compreensão das teorias do campo do currículo. Essas novas tendências ele

classificou como campo Teoria Pós-Crítica.

Com base na última categoria citada, o multiculturalismo, no presente

estudo a intenção é refletir e explicar o seu sentido, tendo em vista que o objetivo

é apresentar as possibilidades de como essa categoria tem operado na educação,

especialmente no campo do currículo, e tem permitido pensar e resgatar a

importância do Outro, como no caso do negro e da cultura afro-brasileira nos

livros didáticos de Geografia do sétimo ano.

Historicamente, o multiculturalismo no Brasil não tem a mesma tradição

como nos Estados Unidos, com os seus efetivos programas de políticas de ação

afirmativa criados a partir dos anos 60. Aqui o racismo sempre foi a “pedra” no

meio do caminho entre negros e brancos de uma sociedade extremamente

conservadora, herança do mito da “democracia racial”, o que fez com que o

modelo americano do black capitalism não fosse encampado pelo Movimento

Negro na sua bandeira de luta, de acordo com Magnoli (2009, p. 99); por outro

lado, o Brasil, encoberto pela imagem de uma “relação cordial19

”, só fez

19

Um conceito de “Raízes do Brasil”, Holanda (1995).

Page 84: O negro e a cultura afro-brasileira: uma bricolagem multicultural do

84

contribuir para o adiamento do combate ao racismo como uma questão social e o

adiamento da responsabilidade do Estado em pensar uma sociedade por uma

educação antirracista. Para esse autor, só mais tarde é que muito das ações das

políticas de ação afirmativa americana vão chegar ao Brasil através de parcerias

com a Fundação Ford – FF, tradicional em apoiar as causas sociais voltadas para

as minorias e principalmente para os negros, nos Estados Unidos. É a FF que

passa a fomentar pesquisa e programas, como coloca o autor:

[...] replicaram nas universidades brasileiras os modelos de

estudos étnicos e de “relações raciais” aplicados nos EUA e

consolidaram uma rede de organizações racialistas que

começaram a reproduzir os discursos e demandas das similares

afro-americanas. Por essa via, a polaridade branco/preto, que se

coagulou nos EUA com a regra da gota de sangue única, foi

exportada para os ativistas no Brasil, um país atravessado por

desigualdades sociais muito diferentes e cuja tradição identitária

articulou-se em torno da ideia de mestiçagem (MAGNOLI,

2009, p. 98).

De fato, o discurso americanizado tocante às políticas multiculturais foi

encampado pelos movimentos sociais e ONGs recentemente, mas, por outro lado,

é não deixar de ser um exagero, por parte do autor, dizer que a incorporação de

ideias importadas tenha suscitado a regra da “gota de sangue”, quando, na

verdade, mesmo sendo uma nação mestiça, no Brasil não foi eliminada a divisão e

o preconceito por cor. Aqui a cor da pele é o marcador a causa do racismo.

Quanto mais escuro for o tom da pele, maiores são as barreiras sociais e culturais.

Ao mesmo tempo, o fato dos movimentos sociais se inspirarem no modelo de

programas de ação afirmativa americanos, não seria demérito, ao contrário, isto é

o que Santos (2006) conceitua de hermenêutica diatópica, uma forma, uma

atitude política de canalizar as semelhanças do Outro para reparar e afirmar a sua

diferença. Como ele explica:

A hermenêutica diatópica baseia-se na ideia de que os topoi de

uma dada cultura, por mais fortes que sejam, são tão

incompletos quanto a própria cultura a que pertencem. Tal

incompletude não é visível do interior dessa cultura, uma vez

que a aspiração à totalidade induz a que se tome a parte pelo

todo. O objectivo da hermenêutica diatópica não é, porém,

atingir a completude – um objectivo inatingível – mas, pelo

contrário, ampliar ao máximo a consciência de incompletude

mútua através de um diálogo que se desenrola, por assim dizer,

com um pé numa cultura e outro, noutra. Nisso reside o seu

caráter diatópico (SANTOS, 2006).

Page 85: O negro e a cultura afro-brasileira: uma bricolagem multicultural do

85

No Brasil e em lugar nenhum o multiculturalismo é consenso, é, na

verdade, um conceito contestado. Isto é fato. Assim como há os seus defensores

que têm se posicionado em defesa da reparação e a favor do reconhecimento

social das minorias, há os seus opositores que insistem em dizer sê-lo inadequado

para a sociedade brasileira, como foi o caso expresso à época pela mídia nacional

sobre a seguinte posição: “qual o projeto de país que se quer? Uma sociedade com

valores para todos ou “multiculturalista”, com tensões raciais, avessa à

miscigenação, uma de suas marcas atávicas” (O GLOBO, 2009) 20

, ou o

extremismo anunciado das “Divisões Perigosas”, livro organizado por Fry e

Maggie (2007), no qual os autores denotam um certo alarmismo ao dizer sobre a

possível divisão racial entre negros e brancos se os projetos de lei, do Estatuto da

Igualdade Racial e o das “cotas raciais” de acesso ao ensino superior fossem

aprovados. Contudo, apesar da manifestação por parte do setor conservador contra

o multiculturalismo, hoje a sociedade vive um outro momento em que, pode-se

dizer, os multiculturalistas venceram a resistência com a aprovação do Estatuto e

com as cotas raciais, que nem por isso dividiu racialmente a sociedade, ao

contrário disso, as políticas de ação afirmativa têm contribuído para integrar

socialmente o negro que estava dividido entre dentro e fora da universidade.

Na educação, o multiculturalismo tem história. Como tal, ele é um

fenômeno iniciado pelos movimentos sociais contra a cultura hegemônica euro-

americacentrista que “tem sua origem nos países dominantes do Norte”, segundo

Silva (1995, p. 85). Para ele, esse é um movimento legítimo de reivindicação dos

grupos sociais em que o mesmo “não pode ser separado das relações de poder”

pelo fato de abrigar culturas, raças, etnias e interesses sociais diferentes. Nesse

sentido, o multiculturalismo poderia ser visto a partir de diferentes tendências.

Para Banks (2006), toda educação tem um fim em si mesma. No caso da

educação multiculturalista, seu fim seria resgatar e combater injustiças do passado

que, no presente, têm causado desrespeito social. A educação multicultural teria

como fim valorizar as “raças” alijadas da cultura nacional, de modo que a cultura

excluída do currículo fosse incluída de forma positiva e sem estereótipos.

Contudo, segundo o autor, para que isso ocorresse, seria fundamental fazer a

20

Este texto é uma nota de prefácio da contracapa do livro “Uma gota de sangue: história do

pensamento racial”, 1ª Edição (MAGNOLI, 2009).

Page 86: O negro e a cultura afro-brasileira: uma bricolagem multicultural do

86

reforma do currículo escolar, que, como tal, seria voltado para uma educação em

que a diferença do outro fosse resgatada e valorizada. Nesse sentido, a reforma

devia atender à inserção de novos conhecimentos a respeito da história do negro e

qualificar o professor para executar este tipo de educação, visto que a primeira

formação do professor ainda é frágil e incipiente o processo político e pedagógico.

Para tanto, o autor propõe alguns apontamentos para o que seria uma

educação multicultural na sua concepção: i) a tentativa de fazer uma integração de

conteúdos no sentido de estabelecer propostas interdisciplinares, como, por

exemplo, a área das Ciências Humanas com a área de Códigos e Linguagens, com

disciplinas da Arte e Literatura. Para ele, essas áreas apresentariam menor

resistência para desenvolver atividades numa perspectiva interdisciplinar. ii) a

construção do conhecimento: o professor, na sala de aula, deveria auxiliar o aluno

a compreender como são construídos os processos de conhecimento e a função

social do mesmo. Seria uma das atribuições do professor explicar para o aluno que

o conhecimento é um discurso organizado, e como tal é sistematizado e que todo

conhecimento é circular: ele veicula através de livros, jornais, televisão, ou em

outros espaços, como centro de estudos e de pesquisas, e estaria imbuído de poder

de uma visão pessoal de raça, etnia de quem ou do grupo social que o produz.

Neste sentido, o professor auxiliaria o aluno para que o mesmo desenvolvesse

habilidades para se tornar um leitor crítico dos conteúdos escolares, para que ele

aprendesse a decodificar e a interpretar os discursos, as narrativas dos conteúdos

do programa do currículo. O conhecimento é o objeto do currículo e, esse, muitas

vezes, é constituído sob a ótica e o interesse de quem o produziu. iii) a redução do

preconceito. “A redução de preconceitos descreve as lições e atividades que

professores usam para ajudar os alunos a desenvolver atitudes positivas para com

diferentes grupos raciais, étnicos e culturais” (Ibidem, 2006, p. 28). Atividades

desse nível seriam orientadas a partir do livro didático e de outros materiais que

descrevessem de forma positiva a história do negro e, sob essa orientação, o aluno

aprenderia a analisar e a fazer reflexões críticas a respeito dos conteúdos

racializados que estão contidos nos livros didáticos.

Para Candau (2008), o multiculturalismo é um conceito que opera a partir

de diversos tipos de abordagens. Dentre as abordagens, a autora opta pela que

denominou de interculturalismo. Segundo ela, essa dimensão romperia com a

Page 87: O negro e a cultura afro-brasileira: uma bricolagem multicultural do

87

visão essencialista em que um grupo ou uma cultura seriam valorizados em

detrimento de outras, porque, se isso acorrer, pode contribuir para a formação de

guetos culturais. E, ao contrário disso:

A perspectiva intercultural que defendo quer promover uma

educação para o reconhecimento do “outro”, para o diálogo

entre os diferentes grupos sociais e culturais. Uma educação

para a negociação cultural, que enfrenta os conflitos provocados

pela assimetria de poder entre os diferentes grupos

socioculturais nas nossas sociedades e é capaz de favorecer a

construção de um projeto comum, pelo qual as diferenças sejam

dialeticamente incluídas (CANDAU, 2008, p. 23).

Para a autora, esta perspectiva ao trabalhar a cultura promoveria uma

educação para o reconhecimento do Outro. Isso significaria a valorização das

diferentes culturas no espaço escolar. O interculturalismo, como uma prática

pedagógica, serviria para a inclusão social, para a valorização da diferença e para

minorar a desigualdade e a injustiça social.

Para Canen (2001), o multiculturalismo seria um conceito que pode

aparecer em diferentes perspectivas e sob diversas categorias de análise. O

multiculturalismo crítico, por exemplo, seria uma dessas categorias cujo objetivo

seria desafiar preconceitos e estereótipos, e abrir precedente para a discussão a

respeito da cidadania daqueles que, até então, se encontravam em estado de

invisibilidade, como o caso do negro que, muitas vezes, ainda é vítima de

preconceito racial. No multiculturalismo crítico, os conteúdos e os programas são

interrogados no sentido de saber em que medida as narrativas raciais refletem de

forma positiva ou negativa as raízes históricas e culturais de um grupo étnico e,

nesta perspectiva, propor mecanismo de combate a preconceito e a discriminação

a favor de uma educação para a igualdade etnicorracial.

Uma outra perspectiva defendida pela autora seria o multiculturalismo

conservador, de tendência e de valorização folclórica, intrinsecamente

relacionado à cultura oficial prescrita nos currículos e nos programas e conteúdos.

Geralmente é comum, nessa tendência, o cumprimento do calendário festivo da

escola, planejado com atividades pedagógicas com o fim de resgatar as datas

cívicas importantes. Tais atividades estariam voltadas para a comemoração da

diversidade da cultural nacional, como o “Dia do Índio”, ou o “13 maio” o que

celebraria a diversidade de identidades culturais e reafirmaria o seu valor; por

Page 88: O negro e a cultura afro-brasileira: uma bricolagem multicultural do

88

outro lado, não questionaria o caráter da sua “construção e nem os discursos que

as congelam em estereótipos e preconceitos” (CANEN, 2006, p. 39).

Portanto, que cada autor, do seu ponto de vista, deu um sentido ao

multiculturalismo para a educação. A nossa ideia foi elencar um conjunto de

temas que denotasse reconhecimento, diferença, diálogo, ou seja, uma gama de

possibilidades para pensar o campo do currículo a partir da diversidade cultural,

pensar o espaço no sentido de que ele seja visto como um sujeito que tenha direito

de ter o direito de se expressar sobre de si mesmo, através das linguagens ao seu

alcance, da sua visão de mundo, no campo da Arte, da Literatura, da História e da

Geografia. Estamos convictos de que o multiculturalismo vem no sentido de

pensar como viver a diferença da diferença na igualdade, ou seja, como

reconhecer as diferenças culturais entre negros e brancos e outras etnias, as

diferenças de sexo, religião, sem se esquecer de que juridicamente, perante a lei,

todos são iguais. Porém, na igualdade, o diferente é discriminado. Por isso,

direitos desiguais para os desiguais.

Com relação à igualdade social do negro, vimos que, durante o regime

escravagista, ele foi reconhecido como um desigual, razão pela qual justificou-se

o regime escravagista. Com a Abolição, o negro foi reparado juridicamente como

um igual, entretanto, mesmo na igualdade, ele continuou a ser discriminado, visto

que ele não foi reparado socialmente e as suas diferenças culturais não foram

totalmente reconhecidas.

Como será visto no capítulo 4 desse estudo, nas narrativas sobre o negro e

a cultura afro-brasileira, os autores destacaram: a escravidão, a origem histórica,

as lutas sociais, a Abolição, a raça, a renda, e o resgate da culinária, da música, da

dança, da língua e etc, no discurso da cultura nacional. Esses são os referenciais

étnicos e raciais que nos fazem iguais e diferentes, que nos afirmam enquanto

brasileiros diante dos não brasileiros.

Nesse sentido, apresentamos teoricamente dois pensadores brasileiros que

analisam enfoques diferentes sobre o negro no Brasil. Cada um, na sua grandeza,

dedicou-se a resgatar o legado da cultura afro-brasileira, a luta do negro pelo seu

reconhecimento na diferença e na igualdade na formação e na integração da

civilização dos trópicos. Freyre (1998) e Fernandes (1978; 2008) refletiram de

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89

forma profunda e de maneira importante para o pensamento social, contribuindo

para afirmar a identidade nacional sobre o que é ser brasileiro. Todavia, no atual

momento em que se exige repensar, com a lei 10.639/03, o ensino de Geografia

no que tange à questão etnicorracial, resgatar a visão de cada um é indispensável,

visto que, até hoje, o discurso freyriano é reproduzido como pano de fundo das

reflexões sobre a cultura afro-brasileira nos livros didáticos de Geografia,

principalmente no que se refere à dança, à música, à culinária e à religião, sob o

otimismo e a valorização dos elementos culturais dos signos africanos resgatados

por ele; e no que tange à renda, à raça e ao racismo, marcadores sociais da

integração do negro na sociedade de classe, a visão fernandiana se torna o

contraponto da realidade social do negro na sociedade brasileira nos anos 50.

Êxodo rural, habitação, educação, luta por reconhecimento moral, trabalho, renda,

tudo isso inquietou Fernandes (1978; 2008) e levou a desafiar o imaginário

nacional do “paraíso” racial que diziam ser o Brasil ao revelar a situação

desestruturadora em que se encontrava o negro na cidade grande. Dois quadros,

duas visões diferentes do Brasil: a casa-grande e a cidade grande, como mostra o

próximo capítulo.

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90

3. O NEGRO, DA CASA-GRANDE À CIDADE GRANDE

Por que “Casa-Grande e Senzala” e a “A Integração do Negro na

Sociedade de Classes” são duas obras referências para fazer o resgate da cultura

afro-brasileira, no ensino de Geografia? Em “Casa-Grande e Senzala”, Freyre

(1933) 21

faz uma síntese sociocultural sobre a formação social brasileira,

utilizando a cultura para olhar o passado, sobre o qual avistou uma nação cujo

futuro certo era multirracial e miscigenado. À época, isso contradizia as

tendências pessimistas baseadas no determinismo geográfico do meio natural e no

determinismo biológico baseado no conceito de raça, o que era dominante no

pensamento social brasileiro. Nesse sentido, Freyre (1933) apresentava uma

interpretação com base na cultura pela qual ele defendia a importância do

encontro e da construção sociocultural das três raças, o que fazia com que a

mestiçagem passasse a ser vista como uma tendência positiva na construção da

identidade nacional. Três décadas depois dessa obra, Fernandes (1964) 22

publicou

“A Integração do Negro na Sociedade de Classes”, trabalho fruto de uma densa

pesquisa de campo, a partir da qual ele passou a refletir sobre a emergência do

negro na ordem competitiva da cidade de São Paulo, onde o maior desafio seria a

sua integração social e o acesso à distribuição de renda. A luta travada pelo negro

que seria para conquistar o direito de ser reconhecido igual ao branco. Ele havia

alcançado um novo patamar de entendimento da sua realidade social, dizia

Lucrécio (1978), “e, assim, o negro moderno, da era nova, era de força e de

inteligência, não quer mais ficar na cozinha da nação. Hoje, ele tem um caminho a

seguir e, seguindo-o, vai ficar na sala de visitas” (Apud FERNANDES, 1978,

p.110). Na verdade, o seu desejo agora era a sua ascensão social, o que traduzia a

busca pela igualdade de status e da mobilidade na sociedade de classes na urbe

paulistana, porque, embora fosse livre, o negro continuava à margem da

sociedade, alijado de políticas e de programas sociais que efetivamente o

integrassem.

21

Ano de lançamento. 22

Ano de lançamento.

Page 91: O negro e a cultura afro-brasileira: uma bricolagem multicultural do

91

Casa-grande e Senzala representa a síntese daquilo que o Brasil devia ser,

um país multirracial e orgulhoso da sua pertença multicultural, como dizem

Larreta e Giucci (2007, p 423), da “integração dos contrários”. Negros e brancos

seguiam o mesmo caminho, porém de lados opostos. Sobre um outro momento,

pós “casa-grande”, a cidade de São Paulo, ícone da modernidade brasileira, ainda

era o lugar em que a desigualdade e o racismo constituíram um hiato na

“integração do negro na sociedade de classes”.

3.1 A cultura afro-brasileira e Gilberto Freyre

Do ponto de vista deste pesquisador, refletir a respeito da cultura afro-

brasileira em Casa-grande e Senzala é uma grande responsabilidade, tendo em

vista a grandeza e a capacidade de Freyre (1933) que, com essa publicação,

cravou um marco na interpretação social do Brasil pela profundidade histórico-

cultural com que ele conseguiu erguer o passado fadado ao fracasso pelo

determinismo biológico, e trouxe como discurso da cultura a importância da

nação tropical e a colocou entre as civilizações do ocidente. Em síntese, Casa-

grande e Senzala nos impressiona pela sua capacidade de retratar o Brasil sob a

dimensão da cultura, da família e da economia e, ao mesmo tempo, de cruzar o

viver e a tensão de cada “sujeito-etnicorracial” uma vez que, pela dinâmica da

cultura, europeu, africano e o índio foram capazes de construir um

reconhecimento sobre si mesmo e sobre o Outro. Acreditamos que, sob essas

dimensões, o autor faz um resgate, a partir do século XVI, dos sujeitos-

etnicorraciais: ressalta a importância da cultura trazida pelo colonizador e, nesse

mesmo sentido, resgata também o seu entendimento com relação àquilo que ele

precisava para então desenvolver e avançar no processo de ocupação, entendendo

ser a família a célula social mais importante na manutenção do processo que então

seria implantado. Daí a importância do lugar que a casa-grande vai ocupar no

enclave açucareiro, como diz o autor: “vivo e absorvente órgão da formação social

brasileira, a família colonial reuniu, sobre a base econômica da riqueza agrícola e

do trabalho escravo, uma variedade de funções sociais e econômicas” (FREYRE,

1998, p. 22).

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92

Passamos a usar a aqui o termo sujeito-etnicorracial, um conceito

proposto por nós, por entender que Casa-grande e Senzala vê a colonização

portuguesa pela janela da cultura, e a cultura aqui é vista como o meio pelo qual

todo e qualquer sujeito traz consigo um potencial psicossocial. O índio e o

africano, é sabido, foram subjugados pela escravidão, entretanto, isso não lhes

retirou o Eu, o potencial de sujeito e, como tal, cada um, a partir da sua “raça” e

da sua etnia, fez a sua história. Ainda que numa posição inferior da estratificação

social, mesmo assim passou a ocupar um lugar dentro do projeto civilizacional, o

que Casa-grande e Senzala não se furtou de retratar: a saga do indígena, assim

como de traduzir o realismo do mais baixo da degradação humana pelo qual o

africano foi socialmente reconhecido como um animal, pois a escravidão era uma

condição criada e implantada pelo regime escravagista. Todavia, contra isso, é

preciso dizer: ninguém nasce escravo. A escravidão é uma condição socialmente

construída, justificada, em que um, para ser o senhor, a existência do Outro tinha

de ser a de escravo.

Embora o Outro estivesse na condição de objeto, ou seja, de coisa, porque

assim o escravo era construído, ele era sujeito. A luta com o senhor era um

combate de vida ou morte, porque o que estava em questão era a liberdade de um

em detrimento da do Outro. A prova de que o escravo era também um sujeito-

etnicorracial estava na sua resistência contra o senhor. Este, para continuar como

tal, usava de todos os tipos de violência física e simbólica, para com o escravo.

Por outro lado, o escravo evidenciava o seu desejo da construção-de-si, como diz

Hegel (2011), o que continuava a existir ao fugir do jugo do senhor e ao buscar

uma sociedade em que ele fosse visto como um igual – e o quilombo seria um

desses lugares.

Todavia, para o escravo que ficou na casa-grande, a senzala foi o seu

lugar. Freyre (1933), olhando para o passado da “janela” da cultura, fez da casa-

grande e da senzala um lugar, “tipo” uma instalação de arte23

, um espaço da

23

Acredita-se que esse olhar inédito trazido por Freyre (1933), da forma com que ele apresentou o

ambiente cotidiano da casa-grande e da senzala, o realismo com que descreveu o africano, tenha

sido influenciado, quando esteve na Alemanha, antes de conceber a obra, em Munique por um

Museu Etnológico, em que havia uma exposição com pigmeus reais. Daí, ele disse que estaria

comprometido a interpretar o Brasil como o “mais real que o real”, (Apud LARRETA, GIUCCI,

2007, p.414), ou seja, o autor trouxe para a sua obra aquilo que o expressionismo alemão dizia

mostrar - o realismo natural.

Page 93: O negro e a cultura afro-brasileira: uma bricolagem multicultural do

93

manifestação sociocultural em que todos os personagens foram elencados naquele

sistema, porém, sem perder de vista as vozes dos sujeitos-enticorraciais que

davam vida àquele espaço social. Feito de engenho, senzala e casa grande, e de

onde ele buscou resgatar, a partir do século XVI, a depravação, a promiscuidade

do senhor para com o escravo, mas, ao mesmo tempo, o escravo é aquele que

ocupa um lugar e, isso faz com que as fronteiras das zonas culturais se

sobrepusessem. Essa sobreposição de fronteiras vai ser chamada pelo autor de

elasticidade do português colonizador para com os índios e africanos. Segundo

Freyre (1998), isso pode ser visto desde os primeiros cruzamentos raciais, em que

o critério biológico não era o mais importante no processo de ocupação e para o

desenvolvimento da economia. Para o colonizador afirmar vinha primeiro a

identidade de cristão do que pureza de raça. O perigo não estava no estrangeiro,

nem no indivíduo de origem primitiva, ou em um homem de raça degenerada. O

que ele não podia ser é herege. Como ele explica:

O Brasil formou-se, despreocupados os seus colonizadores da

unidade ou pureza de raça. Durante quase todo o século XVI a

colônia esteve encarada a estrangeiros, só importando às

autoridades coloniais que fossem de fé ou religião Católica

(FREYRE, 1998, p. 29).

Fé e negócio andavam juntos. O colonizador tinha como aliado as coisas

do céu e o domínio da terra. O clima, por exemplo, seria favorável para o

desenvolvimento da cultura do açúcar e, com isso, superava o determinismo

geográfico, as condições naturais, clima o oposto ao do colonizador que havia

emigrado de uma área de zona climática temperada para o lado tropical, ou seja,

“a importância do clima vai sendo reduzida à proporção que dele se desassociam

elementos de algum modo sensíveis ao domínio ou à influência modificadora do

homem” (Idem, 1998, p. 16). Nesse sentido, a cultura, como potencial

transformador do meio, foi determinante na adaptação e na invenção da

civilização, ainda que escravocrata, híbrida. Os marcadores biológicos foram

diluídos e flexibilizados pela miscigenada. Casa-grande e Senzala, potencializa os

povos africanos como sujeitos-etnicorraciais pela diferença de cultura que eles

traziam, pelas suas diferentes visões de mundo, como os tipos de manejos da terra,

as línguas, dialetos, culinária, música, dança, religião, o que possibilitou a

sobreposição com outras culturas, com elementos e signos trazidos pelos europeus

Page 94: O negro e a cultura afro-brasileira: uma bricolagem multicultural do

94

e indígenas, a coexistência das diferenças, levou à formação da civilização

brasileira.

Casa-grande e Senzala apresenta um quadro natural da paisagem do

Brasil, em que o determinismo geográfico foi superado à medida que o

colonizador português foi se adaptando, e foi ressignificando a sua cultura a partir

da cultura do Outro, graças à sua mobilidade e à sua plasticidade que lhe

permitiram, como diz o autor, fazer o hibridismo social. Nesse sentido,

perguntamos: como os domínios naturais, como o clima e a raça, foram vencidos

já que eles representavam obstáculos para se estabelecer numa região

dominantemente tropical e para construir a civilização? Nesse processo de

formação, qual foi a importância da culinária e como foi possível recriar um

regime alimentar diferente, tipicamente brasileiro, na civilização dos trópicos?

No que tange ao clima e à raça, Casa-grande e Senzala tem a capacidade

de dialogar profundamente com os paradigmas deterministas e dominantes da

época e de estabelecer contrapontos com o campo da Antropologia positivista do

século XIX, como também confrontar as tendências do determinismo biológico,

preconizado pelas correntes da Antropogeografia, essas muito expressivas no

pensamento social brasileiro do século XIX e em alta até a década de 30 do século

seguinte. A Antropogeografia foi a base para o ensaio, “Populações meridionais

do Brasil” de (VIANA, 1920).

Com base na Antropologia Cultural, Freyre (1998) é assertivo ao dizer da

capacidade cultural do colonizador português de se hibridizar com o africano,

sobretudo com a cultura maometana, o que lhe possibilitou o cruzamento, no qual

a miscibilidade teve o maior peso, graças a sua flexibilidade para cruzar sexual e

culturalmente com outros povos. Em Casa-grande e Senzala, a obra afirma a

predisposição do português para a “colonização híbrida e escravocrata nos

trópicos” (Idem, 1998, p, 5), fundamentada segundo Freyre (1998), no passado

étnico do português, um povo indefinido pela fato de sua cultura ser uma mistura

com a cultura africana antes mesmo da colonização nas Américas. Como ele diz:

A influência africana fervendo sob a europeia e dando um acre

requeime à vida sexual, à alimentação, à religião; o sangue

mouro ou negro correndo por uma grande população brancarana

quando não predominando em regiões ainda hoje de gente

Page 95: O negro e a cultura afro-brasileira: uma bricolagem multicultural do

95

escura; o ar da África, um ar quente, oleoso, amolecendo nas

instituições e nas formas de cultura as durezas germânicas;

corrompendo a rigidez moral e doutrinária da Igreja medieval;

tirando os ossos ao Cristianismo, ao feudalismo, à arquitetura

gótica, à disciplina canônica, ao direito visigótico, ao latim, ao

próprio caráter do povo. A Europa reinando mas sem governar;

governando entes a África (FREYRE, 1998, p. 5).

Casa-grande e senzala, numa visão macroespacial, mostra que o encontro

do português com os africanos possibilitou a ruptura com os marcadores rígidos

biológicos ao se tornar intenso o cruzamento racial do colonizador com o

colonizado. Daí na gradação multicor de classificação a figura do mulato, do

pardo, do moreno. Na religião não foi diferente. Embora a matriz africana tenha

sido perseguida e proibida pelo poder oficial, ela sincretizou e se oficializou no

imaginário nacional com elementos e visões de ambos os lados. Hoje, o ritmo o

canto, o vestuário e a dança do povo negro são reproduzidos no carnaval, no

samba e na música popular brasileira, graças ao que foi reproduzido pelas

religiões africanas. O catolicismo, como a primeira religião oficial, recebeu a

influência das religiões de matriz africana à medida que cada lado influenciava o

outro. Por isso, o autor diz que, do encontro entre as partes, foi flexibilizada a

rigidez, à proporção que as trocas aconteciam.

Casa-grande e Senzala mostra uma civilização não pela suposta igualdade

de raça, mas pela diferença de cultura. A obra não se prendeu ao determinismo

biológico da raça e muito menos ao determinismo geográfico que se punha contra

o colonizado. Contra a força do clima e do meio, o português já trazia a

experiência da aclimatação, fruto da experiência, do contato com regiões da

África. Na culinária, cada lado trouxe o seu conhecimento, o seu tempero e as

suas ideias. Um encontro de “juntos e misturados” foi determinante na formação

da cozinha, um espaço híbrido, hoje um ícone da identidade nacional. Por ela, é

possível conhecer em que medida foi importante a cultura do africano com relação

à formação do povo brasileiro.

Para Freyre (1998), o sistema de monocultura, cuja organização era

escravocrata, foi o fator mais importante que impediu o desenvolvimento de um

regime alimentar mais variado e sadio, tendo em vista que havia terra e em

abundância para isso. Mas a forma com que foi conduzido o sistema político e

econômico durante os primeiros séculos, a escassez de produtos alimentícios

Page 96: O negro e a cultura afro-brasileira: uma bricolagem multicultural do

96

frescos, como ovos, leite, carne acontecia porque a policultura, ou os pequenos

produtores rurais, eram desimportantes. Aqui predominou o regime patriarcal,

monocultor e escravocrata. A cozinha brasileira é fruto do encontro das

diferenças, da invenção do novo, da possibilidade de se fazer uma gastronomia

das propriedades naturais nascidas da terra, que passaram a ser ressignificadas

pela cultura trazida do africano que “dominou” a mesa da casa-grande, e fez o que

hoje é a cozinha nacional. Tem-se uma dieta balanceada com o hábito do consumo

de folhas e de legumes graças a misturas dos condimentos, dos temperos, que

foram reinventados na cozinha nacional com uma identidade genuinamente

brasileira.

No regime alimentar brasileiro, a contribuição africana afirmou-

se principalmente pela introdução do azeite-de-dendê e da

pimenta-malagueta, tão característicos da cozinha baiana; pela

introdução do quiabo; pelo maior uso da banana; pela grande

variedade na maneira de preparar a galinha e o peixe. Várias

comidas portuguesas ou indígenas foram no Brasil modificadas

pela condimentação ou pela técnica culinária do negro, alguns

dos pratos mais caracteristicamente brasileiros são de técnicas

africana: a forofa, o quibebe, o vatapá (FREYRE, 1998, p. 453).

Seríamos aquilo que comemos? Casa-grande e Senzala resgata a

importância da cozinha como um ícone da cultura nacional, como aquilo que nos

define como brasileiros. A cozinha, do ponto de vista da cultura, cria uma

identidade entre nós e nos define como aquilo que nós somos. Tomemos

emprestado o conceito explanado por Woodward (2009, p. 42), quando diz que:

“A cozinha é o meio universal pelo qual a natureza é transformada em cultura”. A

cozinha é também uma linguagem pela qual “falamos” sobre nós mesmos e sobre

nossos lugares no mundo. No início desta seção, cunhamos o conceito sujeito-

etnicorracial, ao que parece indispensável no discurso de Casa-grande e Senzala.

O autor resgata o lugar do afro-brasileiro a partir da cozinha sem conotação

diminutiva do seu prestígio. Ao contrário, afirma o seu potencial a partir de um

espaço genuinamente nacional do qual o brasileiro deve se orgulhar. A cozinha é

um espaço de encontro de diferentes hábitos, que transformam a natureza em

cultura e em sabor com aquilo que identificamos como bom e comum. É o caso da

feijoada. Hoje, é um prato típico da cozinha nacional. Apesar de a sua origem ser

contestada, reza o mito ser um prato inventado pelos escravos. O importante é que

com ela nos identificamos e por ela somos afirmados.

Page 97: O negro e a cultura afro-brasileira: uma bricolagem multicultural do

97

Casa-grande e Senzala passou a representar um divisor na interpretação

social do Brasil ao resgatar a miscigenação do povo de forma positiva, diferente

do pensamento hegemônico que, à época, postulava o determinismo biológico que

afirmava ser a mistura das sub-raças africanas e indígenas a causa da nossa

inferioridade comparada com as civilizações europeias. Para Freyre (1933), o

Brasil havia dado certo pela sua miscibilidade, hábito desenvolvido anterior

mesmo à colonização, o que ele chamou de flexibilidade do português por ter o

mesmo aprendido a conviver com outros tipos de culturas, o que fez da raça um

marcador desimportante, o que levou à sobreposição das diferentes fronteiras

étnicas que passaram a definir genuinamente uma civilização híbrida na zona

tropical.

O hibridismo da civilização brasileira foi refletido em Casa-grande e

Senzala sob muitas dimensões. Entre elas, a língua e sua variação, que passou a

ocupar um lugar trazido pelos diferentes contextos históricos e geográficos dos

grupos sociais que construíram a língua portuguesa brasileira. A língua é uma

construção social, portanto ela é dinâmica. Com ela, na casa-grande não havia

fronteiras rígidas entre o senhor e o escravo. Ela era o meio pelo qual cada um

significava aquele mundo social. Participava o escravo da educação do sinhozinho

ou da sinhazinha. Esses, ainda no berço, eram acompanhados pela (o) escrava (o)

com quem aprendiam as primeiras palavras. Nesse contexto, ao longo dos séculos,

como um fator variante, a língua foi amolecida pelos africanos, como expõe o

autor:

Da boca africana aliada ao clima – outro corruptor das línguas

europeias, na fervura por que passaram na América tropical e

subtropical. [...] A linguagem infantil brasileira, e mesmo a

portuguesa, tem um sabor quase africano: Cacá, pipi, bumbum,

tentem, nenen, tatá, papá, papato, lili, mimi, au-au, bambanho,

cocô, didinho, binbinha. Amolecimento que se deu em grande

parte pela ação da ama negra junto à criança; do escravo preto

junto ao filho do senhor branco (Ibidem, 1998, p. 331).

A interlocução entre os sujeitos sociais na casa-grande era na língua oficial

portuguesa, mas, ao mesmo tempo, muitos significados eram deslocados por

outros sentidos nas línguas e dialetos africanos falados e adaptados pela (o)

escrava (o), como nas canções de ninar:

Page 98: O negro e a cultura afro-brasileira: uma bricolagem multicultural do

98

Também as canções de berço portuguesas, modificou-as a boca

da ama negra, alterando nelas palavras; adaptando-as às

condições regionais; ligando-as às crenças dos índios e às suas.

Assim a velha canção “escuta, escuta, menino” aqui amoleceu-

se em “durma, durma, meu filhinho”, passando Belém de

“fonte” portuguesa, a “riacho” brasileiro. Riacho de engenho.

Riacho com mãe-d’água dentro, em vez de moura-encantada. O

riacho onde lava o timãozinho de nenê. E o mato ficou povoado

por “um bicho chamado carrapatu” (Idem, 1998, p. 327).

A casa-grande era um complexo rural, construído com base num sistema

econômico, latifundiário, monocultor e escravocrata. Socialmente, familiar e

patriarcal. Geograficamente, um “microssistema” colonial e, pela sua extensão

territorial, distante um do outro. A vida social e a cultura eram ressignificadas e ao

mesmo tempo misturadas e separadas. Eram constituídas por dois lados: a casa-

grande e a senzala, o branco e o preto, o europeu e o africano, o “sinhozinho” e o

moleque de “pancadas”. Era a fronteira dos extremos: de um lado o senhor e do

outro o escravo, mas, ao mesmo tempo, rompida pela emergência do hibridismo

gerado pelas trocas culturais, na língua, na culinária, na música e na religião, que

se fundiam sob os diferentes tipos sincretizados na alegria e na disposição trazidas

pelas danças dos terreiros nas festas dos santos. Para o autor:

foi ainda o negro quem animou a vida doméstica do brasileiro

de sua maior alegria. O português, já de si melancólico, deu

no Brasil para sorumbático, tristonho; e do caboclo nem se

fala: calado, desconfiado, quase um doente na sua tristeza.

Seu contato só fez acentuar a melancolia portuguesa. A risada

do negro é que quebrou toda essa “apagada e vil tristeza” em

que se foi abafando a vida nas casas-grandes. Ele que deu

alegria aos são-joões de engenho; que animou os bumbas-

meu-boi, os cavalos-marinhos, os carnavais, as festas de Reis

(Ibidem, p. 462).

De fato, tradições folclóricas são heranças herdadas do passado colonial e

ainda hoje é possível notar a presença da cultura afro-brasileira em todos os tipos

de manifestação popular no que diz respeito à música e à dança. Faz parte do

calendário cristão e muitas das manifestações são reconhecidas pelo Estado como

feriado nacional. O carnaval é exemplo. Hoje, ele está no imaginário social

brasileiro. A música é o samba enredo que narra o sentido da cultura nacional

celebrado com ritmo e gingado. Temos também o frevo, o maracatu, a congada, o

jongo, o mineiro-pau, e outros ritos que fazem a cultura popular e o folclore

brasileiro. Tudo isso faz de Casa-grande e Senzala uma síntese da riqueza do

Page 99: O negro e a cultura afro-brasileira: uma bricolagem multicultural do

99

Brasil ao resgatar o legado da diversidade que definiu a nação não pela raça, mas

pela cultura, que foi o determinante para nos afirmarmos enquanto brasileiros.

O outro elemento forte da cultura nacional resgatado em Casa-grande e

Senzala foi o sincretismo religioso. Um país de religião oficial Católica, a

flexibilidade foi determinante nas zonas e fronteiras culturais que misturou fé e

devoção, ligando os rituais cristãos aos orixás, fazendo uma matriz multicultural

da religião universal brasileira.

Verificou-se entre nós uma profunda confraternização de

valores e de sentimentos. Predominantemente coletivistas, os

vindos das senzalas; puxando para o individualismo e para o

privatismo, os das casas-grandes. Confraternização que

dificilmente se teria realizado se outro tipo de cristianismo

tivesse dominado a formação social do Brasil; um tipo mais

clerical, mais ascético, mais ortodoxo; calvinista ou rigidamente

católico; diverso da religião doce, doméstica, de relações quase

de família entre os santos e os homens, que das capelas

patriarcais das casas-grandes, das igrejas sempre em festas –

batizados, casamentos, “festas de bandeira” de santos

compadres, de santas comadres dos homens, de Nossas

Senhoras madrinhas dos meninos, que criou nos negros as

primeiras ligações espirituais, morais e estéticas com a família e

com a cultura brasileira.

Ainda que pareça ter um certo exagero, o otimismo exacerbado do autor ao

dizer dessa relação docial entre a casa-grande e a senzala, resgata o cotidiano, o

local da cultura, o lugar onde os interesses, as preferências, o gosto, e as escolhas

são negociados. No caso da religião, as festas e as manifestações de cultos têm a

capacidade de reproduzir outros tipos de territórios que não sejam os da casa-

grande ou a senzala. Guiados pela fé, no campo da religião as representações

sociais ganham outras conotações. Daí é compreensível as escolhas individuais e

coletivas como diz o autor. Tudo isso vai confluir para as escolhas pessoais, para

os compadrios em nome dos santos e de Deus.

Contudo, em Casa-grande e Senzala, o autor não se restringiu apenas em

afirmar positivamente sobre o cotidiano docializado do enclave colonial. Ele não

se eximiu de expressar todo realismo com que era desqualificado e reconhecido o

escravo na condição de coisa. Nesse sentido, ele retratou de forma contundente as

relações negativas e perversas, como também tratou de dizer da depravação moral

do cotidiano para com o escravo. No regime escravista, o engenho era o lugar

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100

mais importante, porque o açúcar era o principal produto da economia agrária. Na

cadeia produtiva, o negro ocupava a função mais importante do ponto de vista da

produção, contudo, por outro lado, ocupava a posição mais baixa na escala

humana, tanto que, como indivíduo, ele não existia, o seu corpo estava alienado,

era uma coisa, um bem material do senhor. Haja vista que, a escolha do corpo

negro devia atender a um perfil de cultura no quadro social daquele sistema. O

qual considerava primordial: força e saúde e, que, moralmente, o negro fosse dócil

e obediente; Aquela sociedade prezava pela harmonia o que despotencializava os

conflitos sociais. Isto só era possível graças ao outro lado do engenho, daqueles

que faziam o controle - o senhor. Era na figura do senhor do sistema patriarcal que

toda a lógica do sistema girava na casa-grande. Por ela reproduzia-se e

perpetuavam-se os valores morais e sociais da sociedade escravagista.

Na casa-grande, o lugar de cada um era determinado pelo prestígio social,

que se dividia entre os que eram servidos e os que serviam; a relação era de uma

coexistência dos paradoxos: senhor e escravo conviviam sob o mesmo espaço

integrado e separado: o primeiro ocupava a sala de jantar, o segundo ocupava a

cozinha e, como tal, estava exposto a todo tipo de destratos sociais. A

subalternidade não se restringia apenas no servir à mesa. Na verdade, essa relação

tinha o seu início na tenra infância ao ser a criança escrava integrada numa

educação escravagista segundo a moral da família patriarcal. A educação

escravagista tinha como função inculcar na criança a relação do senhor e escravo,

ou seja, que o segundo visse no primeiro a gratidão, obediência e disciplina. A

criança branca era orientada por uma moral para produzir todo tipo de

desprestígio social e de sadismo para com a criança negra e esta era educada para

reconhecer a sua inferioridade com relação à criança branca; como tal devia estar

convencida de que socialmente, para a criança branca, ela era uma coisa, um

objeto ao seu alcance, algo de sua propriedade; à época, era muito usual na casa-

grande os pais presentearem o sinhozinho dando-lhe um negrinho, um tipo “mané-

gostoso”, e dele podia fazer o seu brinquedo ao prazer da sua imaginação. Ali

todo tipo de humilhação era comum. Sua sorte se misturava com o castigo e a

resignação de ser socializada num regime cuja estratificação nivelava na

inferioridade que sobre ela era imputada. (FREYRE, 1998).

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101

Enfim, ao reerguer o passado patriarcal e escravagista e colocar o Brasil

entre as civilizações, Casa-grande e Senzala de fato representou a primeira visão

positiva do Brasil para o Brasil. Todavia, a incursão feita pelo autor, também

abordou o desrespeito, a depravação e a promiscuidade que mediava a relação do

senhor e escravo, mas, além disso, o autor faz o resgate da cultura afro-brasileira,

potencializa e reconhece a importância e a contribuição do africano na formação

social e cultural da civilização brasileira. Em Casa-grande e Senzala, a música, a

dança, a culinária, a língua e a religião formam a base da diversidade multicultural

e a identidade nacional.

3.2 O negro na sociedade de classes por Florestan Fernandes

Quando a escravidão foi abolida, o negro24

cativo deixou de ser coisa e

passou a existir como homem livre. Nesse mesmo contexto, no quadro

transicional pelo qual passava o Brasil, no setor econômico e social, ainda refletia

o pensamento de uma época imperialista que havia chegado ao fim. Com ela foi-

se embora a Monarquia e, agora, a sociedade haveria de se acostumar com o

espírito da modernidade, que trouxe consigo o Estado de Direito inspirado na

República liberal da igualdade e não mais do privilégio. Notadamente, Rio e São

Paulo passaram a liderar a política e a economia, principalmente no caso do

segundo e o oeste paulista, desde então, introduziu o trabalho livre no setor

cafeeiro. Novas relações de trabalho chegaram ao campo e, ao mesmo tempo, a

expansão da economia impulsionou o setor industrial. Dentro das primeiras

décadas do século XX, o país já contava com significativo avanço desse setor, o

que levou ao crescimento das cidades e à urbanização brasileira. Porém, nesse

novo cenário que se desenhava, a urbanização e a industrialização tornaram-se

concretos conscientes da realidade social que o negro precisava alcançar um lugar

de prestígio na paisagem urbana de mercados e fábricas. Contudo, o seu

despreparo profissional foi o determinante para que ele não alcançasse a igualdade

24

Fernandes (1964), na sua obra, A Integração do negro na sociedade de classes, para abordar a

questão do afro-brasileiro, utilizou as expressões “o negro” e “o mulato”. Neste trabalho, usamos a

categoria “o negro”, por ser uma expressão oficial usada pelo IBGE.

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102

de competitividade com o branco imigrante, que encontrou melhores condições de

inclusão no emergente mercado que se despontava em São Paulo.

Em A integração do negro na sociedade de classes, entre os segmentos

étnicos, o negro era o que menos condições de competitividade possuía; isso o

colocava numa posição de desajuste social e tornava dramática a sua situação.

Além disso, tendo em vista a industrialização deflagrada, havia mudado também a

exigência no perfil do trabalhador e isso, quando somado à urbanização,

demandava por mão de obra qualificada, coisa que ainda estava longe da sua

realidade profissional. Na primeira metade do século XX, na cidade de São Paulo,

a maioria analfabeta, despreparada, sem estar à altura das ofertas do emergente

mercado, o negro encontrava-se encurralado, diz o autor, à beira de um abismo

social. Consciente de sua situação, ele entendeu que a sua ascensão social

dependia de profissionalização, emprego e renda, o que, desde então, os seus

problemas e a sua solução vieram a ser perseguidos por esses. Por outro lado, a

sua ressocialização não dependia apenas do seu esforço pessoal. Havia também

um segundo agravante que depunha contra ele, a cor de sua pele. Esse era o ranço

da raça, da sociedade escravagista reproduzido na sociedade livre, competitiva

que, embora se modernizasse, ainda era forte a mentalidade social de que a cor da

pele seria um marcador social e cultural, o causador de mal-estar, de destrato e de

racismo, como ele afirma:

Descobriu que ele não era rejeitado “por ser negro”, pura e

simplesmente. Mas, que a cor e outros caracteres raciais

serviam como um sistema de referência para mantê-lo como um

“estrato social inferior”, que não tinha acesso aos padrões de

vida e às garantias sociais desfrutados por outros grupos

nacionais, étnicos ou raciais (FERNANDES, 1978, p. 37).

Contra isso, o negro paulistano não aceitava a imagem de “preto” ou do

“homem de cor” construída pelo branco. O seu perfil político era de quem

buscava se afirmar como um sujeito de seu destino. Portanto, cabia a ele aceitar

viver sob o discurso da ordem dominante, de que os seus problemas eram apenas

de domínio social, ou então se opor ao discurso da igualdade racial e desconstruir

o mito de que no Brasil não havia racismo. Foi desse sentido que nasceu a então

“ideologia negra”, que tinha um fim: desmascarar a ideologia racial dominante e,

ao mesmo tempo, propor a integração econômica, social e política do negro na

sociedade paulistana (Idem, 1978, p. 94). Para o autor, o negro havia deixado o

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103

campo e agora, como homem livre, senhor do seu destino, na cidade, ele buscava

um lugar no mercado de trabalho, disputava com o estrangeiro imigrante um lugar

na cadeia produtiva de uma cidade que expandia, e principalmente no setor

industrial. O negro da primeira metade do século XX acreditava que sua ascensão

social dependia de fazer valer a igualdade de direito preconizada na lei. Tinha

consciência de que sua integração dependia de educação, emprego, habitação e, ao

mesmo tempo, respeito à sua cultura e à cor de sua pele.

A integração do negro na sociedade de classes é o resultado de uma

pesquisa de cunho sociológico que tem como abordagem revelar um outro retrato

do Brasil, diferente de tudo visto até então sobre o negro. Nesse sentido, o autor

parte de dados amostrais que identificam os caminhos e os descaminhos do afro-

brasileiro após a Abolição, da sua transição do campo para a cidade. A forma com

que autor buscou retratar os espaços desiguais da paisagem urbana tornou-se algo

inovador pelo fato de sua abordagem dizer sobre os lugares desiguais vividos e

ocupados por esse segmento etnicorracial. Foi com base no passado ainda recente

que o autor buscou demonstrar os reflexos, o potencial de segregação que a

escravidão ainda fazia refletir sobre o negro na sociedade de classes. Para o autor,

isso ainda era um ranço herdado da escravidão e ainda muito presente nas relações

entre negros e brancos, desfavorável ao negro, visto que, além disso, comparado

com o branco, o seu preparo para o mundo do trabalho estava muito abaixo.

Na ordem competitiva não bastava ser livre, tinha que ter instrução, e isto

o negro não tinha. Como ocupar um lugar de status quando o alicerce, a base não

foi construída? Na ordem competitiva era assim: exigia-se a qualificação do

indivíduo, mas, para um recém-saído da escravidão, cujo conhecimento técnico

era somente de domínio das atividades agrárias, como se integrar na sociedade de

classes? Para o negro, após a Abolição, a busca pela ocupação foi de alguém que

aprendeu a subsistir na informalidade do mercado de trabalho com atividades de

baixo status social. A sua consciência de classe não era a de quem ocuparia o

“chão” da fábrica, porque, por muito tempo, este autopertencimento esteve longe

de ser a sua realidade por não possuir a qualificação requerida pelo mercado. Por

este exigir um perfil racial branco europeizado, a subida do negro na escala social

foi sendo adiada e afunilada. Na pirâmide, sempre esteve abaixo do branco. Como

se sabe, para o operário, no sistema capitalista, a sua relação de trabalho é

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104

convertida em salário e é com ele, e através dele que o seu status de habitação,

saúde, alimentação é definido, ou seja, é definido o seu poder de consumo. Isto

explica o porquê de o sistema habitacional nas cidades ter ocorrido de maneira

desordenada. No caso do negro, além de baixa renda, a cor de sua pele pesava

contra ele, o que o colocava numa situação de incapacidade para galgar a ascensão

social. No que tange à moradia, de imediato a sua a saída foi ocupar os cortiços e,

mais tarde, pressionado pelo mercado imobiliário, foi empurrado do centro para

os morros e para as baixadas das periferias. De resto, só lhe sobram as áreas de

mananciais, irregulares, e áreas de risco que ganharam o nome de favela.

Na sua integração social na sociedade de classes, para que o quadro de

desigualdade fosse revertido, denunciar a sua verdadeira realidade era uma forma

de combater as injustiças que recaiam sobre ele. Ainda que de forma incipiente,

para a periferia de São Paulo foi muito importante a criação da “imprensa negra”,

uma iniciativa das comunidades afro-brasileiras, que através dos jornais evocava o

negro recém-saído do campo a lutar pelo seu reconhecimento social; ao mesmo

tempo, expunha a desigualdade com relação à habitação, trabalho e educação. As

vozes dessas comunidades revelavam o drama do cotidiano enfrentado duramente

pelo negro num lugar de desiguais. O espaço urbano da época apresentava,

segundo Fernandes (2008), o seguinte quadro:

Como cidade em crescimento rápido, São Paulo exercia enorme

atração sobre os grupos demográficos ou étnicos com

tendências migrantes. Por isso, não é de estranhar que se

convertesse em um dos centros urbanos que iriam polarizar as

variadas e desencontradas migrações internas das “massas

negras”, que se distribuíam pelo país logo após o colapso final

do regime escravo (FERNANDES, 2008, p. 78).

Foi neste tempo de franca expansão industrial e de crescimento de

serviços, que, no cenário urbano, o negro emergiu em busca de sua afirmação

como o dono da sua própria voz, passou a disputar um lugar no mercado de

trabalho enquanto ao mesmo tempo, aspirava ser um cidadão, alguém de prestigio

e de reconhecimento social. Mas, para isso, diz o autor, foi necessário ele

construir uma consciência social sobre si e, como grupo, desenvolver para-si o

arquétipo do coletivo negro, o que na verdade seria a sua consciência política e

social refletida através das organizações e dos movimentos sociais negros. Como

se sabe, toda consciência social nasce dos indivíduos e do desejo de se afirmar

Page 105: O negro e a cultura afro-brasileira: uma bricolagem multicultural do

105

enquanto pessoa e como grupo. Foi desse sentido que nasceu a “consciência

negra”. A partir dela foi que o negro passou a resgatar a sua história, e, para isso,

ele precisou criar uma identidade coletiva que refletisse a sua necessidade, assim

como as suas aspirações, ou seja, o seu desejo por reconhecimento de si e para-si

com diz Hegel (1998), porque, como parte desprestigiada da população, vivia, na

cidade de São Paulo, o desafio de resistir à desigualdade de classes entre negros e

brancos.

De fato, o negro recém-saído da escravidão sentia-se despreparado para

disputar um lugar de status no mercado de trabalho e, além disso, o preconceito

racial pesava sobre ele devido à cor da sua pele ser preta, um arquétipo real, parte

do imaginário social, um marcador com grande potencial de segregação que

impedia a sua ascensão social. Mas, mesmo assim, de outra maneira, ele

conseguiu articular a sua consciência social às formas coletivas ao exigir da

sociedade e do Estado a transformação social, de maneira que elevasse o prestígio

de sua “raça” e do seu segmento étnico como parte constituída da nação. Foi desse

entendimento que surgiram grupos e associações, uma das formas pelas quais o

negro conseguiu erguer a sua militância para então alcançar o seu

reconhecimento. À época, houve da parte da população afro-brasileira o interesse

de se associar a organizações e a clubes negros voltados para o seu prestígio, o

que se tornou uma prática, uma tendência em diversos estados e cidades

brasileiras.

Na cidade de São Paulo, foi fundada a Frente Negra Brasileira (FNB) em

1931. Esta alcançou reconhecimento nacional ao demonstrar a capacidade de se

articular com os outros estados brasileiros e abrir filiações, e, ao mesmo tempo, de

expor suas intenções, o que fez aumentar o número de associados. Desde a sua

fundação, os seus expoentes evocavam uma consciência nacional que tinha como

intenção a justiça social para com a população negra. Nota-se no parágrafo

seguinte o quanto a FNB, e a sua militância foram importantes, uma referência

nacional. Ela representava a voz daqueles que expressavam os problemas sociais

vividos naquele momento, como pondera um dos seus associados:

“Separar era uma contingência necessária. O negro estava

preparado nem técnica, nem psicológica, nem moralmente para vida

livre. Daí o que aconteceu no Brasil. A Frente Negra visava lutar

Page 106: O negro e a cultura afro-brasileira: uma bricolagem multicultural do

106

contra isso: a estratégia era reunir os negros para prepará-los, para

quebrar o seu medo e a sua covardia diante do branco, para dar-lhe

coragem e ousadia, na competição econômica e na defesa de seus

direitos. Mas, a Frente Negra lutava contra toda tentativa ou

tendência de separação racial. O lema político seria, pois: O Brasil é

dos brasileiros. O que se deve é fazer dos negros brasileiros

autênticos” (SANTOS, apud FERNANDES, 1978, p. 35).

Se até então o negro se encontrava com tal despreparo, como diz o autor,

era porque, de fato, faltava-lhe o principal - a cidadania; porque, sem ela, era

possível parecer ser uma atitude covarde de sua parte não se importar com a sua

causa coletiva, no entanto, não era essa a razão do que parecia ser a sua

indiferença: quando nem conhecemos ou nem vivemos um direito, o desejo de

aspirar a uma “boa vida” soa como privilégio e não como um direito de ter direito.

Por outro lado, havia uma militância ativa, mas que também fazia um movimento

de coexistência pacífica, ou seja, dentro da ordem, sem incentivar a divisão racial

entre negros e brancos, como ocorria em outros lugares, como nos Estados

Unidos. Aqui, o lema era unir sem dividir. O que a sociedade sempre temeu:

“UNI-VOS! UNI-VOS NEGROS! UNI-VOS TODOS. Deus

está conosco! Uni-vos, pela elevação moral, intelectual e

econômica da Raça! Pela Dignidade da Mulher Negra! Pela

dignidade e progresso do trabalhador negro! Pela afirmação

política da Gente Brasileira na Constituinte quando vier e

depois da Constituinte que vier! Pelo Brasil de nossos Avós!

(Idem, 1978, p. 35).

Observamos que o negro reivindicava as suas questões sociais pelo

caminho da conciliação, dentro da ordem social estabelecida. O que parecia ser a

sua intenção. Preservar a suposta união entre o seu mundo com o mundo do

branco. Ele queria fazer a “omelete sem quebrar os ovos”, ou seja, transformar a

sua realidade social sem retirar o branco da zona de conforto. Por outro lado, parte

das suas aspirações só ficou na intenção, apenas no campo do discurso. A

transformação como ele desejava não veio naquele momento, o mesmo não teve

força política para concretizar os seus projetos, restando para reverter um quadro

de desigualdade social, no qual o negro ficava abaixo do homem branco. A

situação da mulher negra ainda era pior: sobre ela recaía a desigualdade de raça e

de gênero, uma situação que ainda hoje pesa sobre ela. Não seria ingênuo o negro

de acreditar que o drama racial se resolveria pelo Estado de Direito, pelo caminho

da Constituinte? De que forma a FNB articulava a transformação social do negro

na sociedade de classes?

Page 107: O negro e a cultura afro-brasileira: uma bricolagem multicultural do

107

Em A integração do negro na sociedade de classes, o autor abordou três

propostas políticas apresentadas pelos frentes negrinos que acreditavam fazer a

transformação social através delas. A primeira tentativa estava em reverter a sua

situação através da lei, ao garantir a igualdade de direito entre negros e brancos,

apesar de se mostrar consciente de que a igualdade de direito não era o suficiente

para fazer a integração social na sociedade de classes. A segunda proposta

evocava o reconhecimento da sua cultura, à distribuição de renda e o seu acesso à

educação que, se assim fosse, garantiria a sua estabilidade econômica e os seus

direitos sociais estariam assegurados para as futuras gerações; e, a última e

terceira proposta tratava de fazer o resgate da sua história e do seu prestígio como

alguém que foi importante na formação do povo brasileiro e que deu a sua

imensurável contribuição para a economia, e para o desenvolvimento do país, o

que, em outras palavras, trazendo para interpretação na perspectiva do

reconhecimento, com base em Honneth (2007), o que a FNB desejava era o

autorrespeito e a autoconfiança. O que o negro buscava era o seu resgate moral

como indivíduo numa sociedade de iguais em que ele não era visto pelo Outro

como um igual. Ele buscava o prestígio e a estima das suas diferenças culturais

para que fosse reconhecido como igual na lei e, ao mesmo tempo, diferente na sua

cultura. Essa seria uma luta por reconhecimento numa sociedade de iguais em que

o autorrespeito e a autoconfiança eram fundamentais para a cidadania e para a

emancipação social.

3.3 A cultura e a luta por reconhecimento

O presente capítulo, nas duas primeiras seções, abordou o reconhecimento

da cultura afro-brasileira resgatada por Freyre (1933) e a partir da própria

perspectiva do negro, e Fernandes (1964) pôs em debate a sua luta por

reconhecimento social na sociedade de classes. Mas, afinal, o que têm de

importante as obras Casa-grande e Senzala e A integração do negro na sociedade

de classe, para o conteúdo “população brasileira” do programa do livro didático

de Geografia do sétimo ano? As reflexões que foram apresentadas aqui tiveram

como objetivo resgatar dois momentos importantes do pensamento social

Page 108: O negro e a cultura afro-brasileira: uma bricolagem multicultural do

108

brasileiro, que, em diferentes épocas, cada um na sua perspectiva, reconheceu o

papel social do negro na formação do Brasil. O primeiro resgata o negro a partir

da cultura e, o segundo reconhece o negro a partir da sua própria perspectiva de

luta por reconhecimento.

Casa-grande e senzala foi publicada numa época em que o país buscava

se afirmar como uma civilização dos trópicos e, nesse sentido, a sua narrativa

sobre a formação do povo brasileiro Freyre (1933) defendia uma nação que havia

dado certo pela sua capacidade de fusão, de hibridizar e de colocar a cultura no

lugar da raça. O autor defende a tese de que, desde o início do processo de

colonização, o português, o dominante, não se importou com a raça como fator

determinante para erguer o projeto colonial. Preferiu aumentar a população pelo

processo de miscigenação, e, para isso, a cultura foi a variável mais importante na

formação da população brasileira. O lançamento de Casa-grande e senzala

coincidiu, à época, com a implantação do Estado Novo e, nesse tempo, o Brasil,

politicamente, buscava-se afirmar para si e para o mundo como uma nação que

pensava e valorizava a cultura brasileira como a identidade nacional. O sucesso de

Casa-grande e senzala se deve ao resgate e à valorização do encontro da cultura

das três raças, europeia, indígena e africana. Sobre a cultura africana, o autor

resgatou o seu sentido na música, na dança, na culinária, na língua e na religião, e

diz ser o Brasil uma nação híbrida, porque, para ele, a cultura representava o

espaço de encontro das diferenças de cada um. Daí que o resgate da cultura afro-

brasileira inicialmente se deve a esta obra, visto que a interpretação sobre o Brasil

até então retratava a “tristeza brasileira” como “Retrato do Brasil”, de Paulo

Prado, 1928, um dos expoentes da “Semana de Arte Moderna”. Ele apostava na

propensão do brasileiro à melancolia. Seria isto um determinismo biológico sobre

o social (PRADO, 1981, p. 92). Mas, para Freyre (1933), seria o oposto, a cultura

sobrepôs o determinismo geográfico.

Para Mota (2008, p. 67-69), a década de 30 vai se tornar o marco do

processo que ele diz ser 1933-1937 o “redescobrimento do Brasil” e, para ele,

Casa-grande e senzala “representava uma ruptura com a abordagem cronológica

clássica, com as concepções imobilistas da vida social do passado (e do

presente)”. Diz ainda o autor sobre a obra de Freyre (1933), ser difícil classificá-la

de acordo com os moldes tradicionais de se fazer ciência, tendo em vista sua

Page 109: O negro e a cultura afro-brasileira: uma bricolagem multicultural do

109

capacidade de dialogar com diversas áreas das ciências humanas: “Economia,

História, Sociologia, Antropologia, etc” (Idem, 2008, p. 71).

Hoje, qual é a importância dessa obra para os currículos e programas do

ensino de Geografia do Ensino Fundamental? Como já foi dito anteriormente,

Casa-grande e senzala resgatou a cultura brasileira na: música, dança, folclore,

culinária, religião e língua. Neste sentido, como no próximo capítulo em que os

dados da pesquisa foram analisados, observar-se-á que o usual são os autores de

livros didáticos de Geografia do sétimo ano, ao abordarem a cultura afro-

brasileira, fazerem o resgate a partir da dimensão da cultura, e são unânimes na

defesa dos elementos etnicorraciais representarem positivamente a identidade

nacional, como o carnaval, a capoeira, a culinária, a dança e a religião.

Por outro lado, A integração do negro na sociedade de classes teve como

abordagem a sua inserção na ordem competitiva capitalista. Nessa perspectiva, o

autor teve o rigor de mapear a realidade da cidade de São Paulo a respeito da

situação social que o negro enfrentava na primeira metade do século XX. Para o

autor, o negro seria a principal vítima da sociedade, porque, esse, ao transitar da

ordem escravista para a ordem capitalista, não foi preparado para viver em

condição paritária com o branco. Com isso, foi abandonado à própria sorte, e,

desde então, passou a enfrentar o drama da discriminação racial e, ao mesmo

tempo, a inércia da imobilidade social no “mundo dos brancos” (FERNANDES,

1978). A presente obra traça uma abordagem a partir da luta do negro por

reconhecimento social. Fernandes (1978) torna-se o mediador, aquele que dá a

palavra ao negro para que ele diga sobre a sua realidade social vivida na cidade de

São Paulo.

Dentre os marcadores sociais postos pelo negro, o autor colocou no centro

da discussão a questão da raça e da renda. Ou seja, para ele, seriam esses os

fatores impeditivos da mobilidade e da ascensão social do negro na sociedade de

classes. Nesse sentido, no próximo capítulo, muitos são os autores de livros

didáticos de Geografia do sétimo ano que trazem a reflexão a respeito da raça e da

renda como marcadores etnicorraciais que carecem de atenção, ao abordar a

cultura afro-brasileira na escola por parte do ensino, como será visto. Porque, no

campo do currículo, a cultura representa mais que conhecimento acumulado sobre

Page 110: O negro e a cultura afro-brasileira: uma bricolagem multicultural do

110

uma civilização. Para a Teoria Crítica, a cultura é um espaço de poder, de disputa

e de contestação.

Vista dessa perspectiva, A integração do negro na sociedade de classes é

uma obra contemporânea e importante. A sua reflexão no conteúdo “população

brasileira” do programa do sétimo ano é necessária, visto que a luta do negro por

reconhecimento deve passar pelo marcador raça, que ainda é um hiato das

relações raciais, e pelo marcador renda, já que, sem ela, torna-se impossível a

conquista plena da cidadania. Só se tem cidadania quando alcançamos os direitos

civis, políticos e sociais; ao contrario disso, é um engodo da democracia racial.

No próximo capítulo, o presente estudo busca refletir a perspectiva dos

autores a respeito da população negra no Brasil e analisa como que cada um

refletiu sobre a realidade social desse segmento etnicorracial a partir dos recortes

das narrativas feitas sobre o livro didático de Geografia do sétimo ano.

Page 111: O negro e a cultura afro-brasileira: uma bricolagem multicultural do

111

4. OS DISCURSOS DOS LIVROS DIDÁTICOS DE GEOGRAFIA

O capítulo 4 tem, como finalidade, apresentar a análise sobre os dados

coletados do total de dez livros didáticos de Geografia do sétimos ano, dos quais

foram selecionados textos e imagens cujos conteúdos curriculares abordavam o

negro no espaço geográfico, em diferentes momentos históricos e culturais, como

um dos segmentos etnicorracial mais importantes na formação do povo brasileiro.

Após acessar o denso material, observar e refletir sobre a formação

etnicorracial do povo brasileiro, notou-se que o negro é reconhecido na sua

diversidade cultural, entretanto, quando o critério de análise compara cor e raça,

ele ainda se encontra na posição mais elevada de desigualdade social com relação

ao branco.

No decorrer deste trabalho, ao longo das leituras feitas em livros didáticos e

das reflexões sobre as mesmas, foi possível perceber que diversas matrizes, como

a indígena a e africana, em diferentes momentos contribuíram na construção da

identidade brasileira. Historicamente, o Brasil é um país multicultural de

formação, visto que ele nasceu do encontro de várias etnias. Entretanto, os livros

didáticos mostraram narrativas históricas sobre o negro, das mais variadas, nas

quais ele aparece como o escravo, ou como aquele que apenas deixou um legado

de representações folclóricas, como culinária, música e dança. Por outro lado,

quanto a sua participação em outros segmentos, como na economia, a escravidão

ainda é o período de maior relevância, entretanto, sobre a sua participação na

economia da sociedade de classes, ou mesmo sobre a sua integração social nessa

sociedade, o que tem sido apresentado é a desigualdade social entre negros e

brancos, que, segundo o IBGE, ainda é discrepante.

Contudo, houve também autores que refletiram sobre a educação e sobre a

distribuição de renda, considerando-as causa da desigualdade, que, ainda hoje, é

um grande desafio no que tange à população negra.

Para refletir sobre essas questões apresentadas, o presente trabalho utilizou

o multiculturalismo como o fio condutor na análise, que, para este pesquisador,

Page 112: O negro e a cultura afro-brasileira: uma bricolagem multicultural do

112

tem o sentido de meio pelo qual se luta por reconhecimento político e social,

contra qualquer tipo de injustiça social.

Nesse sentido, nesta primeira seção, buscou-se fazer a revisitação das

relações intersubjetivas entre o senhor e o escravo, na casa-grande, no tempo da

escravidão, através das narrativas extraídas dos recortes e fragmentos dos livros

didáticos de Geografia do PNLD/MEC (BRASIL, 11/13).

4.1 O reconhecimento do escravo: da África à casa-grande

Antes dos portugueses aqui chegarem, as sociedades indígenas ocupavam o

que hoje é conhecido como o território nacional.

Quando os colonizadores portugueses desembarcaram pela primeira vez no litoral

brasileiro, as terras encontradas já eram habitadas havia milhares de anos por diversos

povos indígenas. Eles viviam, em geral, da caça, da pesca e de pequenas lavouras. Muitos

deles, quando os alimentos tornavam-se escassos em um lugar, logo partiam para outras

áreas em busca de fartura. Muitos desses povos indígenas mantinham línguas, hábitos

alimentares e tradições religiosas distintas, o que constituía uma enorme diversidade

cultural (BOLIGIAN, et al, 2009, p. 19).

Nota-se que a diversidade cultural estava no jeito do homem americano de

subsistir. Dito de outro modo, na forma de se apropriar do espaço e de significar

os lugares do espaço segundo a sua cultura. O fato de a sua cosmovisão ser

diferente da do homem europeu não lhe tirava o sentido social, já que, como

sujeito, sabia se apropriar e atribuir significados aos lugares os quais ocupava.

A prova do seu conhecimento e do seu domínio sobre o espaço estava no

manejo dos recursos naturais, como os utilizados sobre a fauna e a flora. O

respeito para com a natureza fazia com que os índios, ao utilizar tais recursos, os

mesmos não se esgotassem. Segundo a cultura das nações indígenas, cabia às

novas gerações fazer o seu manejo, assim como utilizar e cuidar de sua

preservação. Todavia, não foi essa a visão que se perpetuou sobre o índio.

Esta presente seção foi apresentada no GT Currículo, Imagens e Culturas, - do I Seminário

Internacional Imagens da Justiça, Currículo e Educação Jurídica, da Universidade Federal de

Pelotas, a Faculdade de Educação – Programa de Pós- Graduação em Educação e Grupo de

Pesquisa Gestão, Currículo e Políticas Educativas - e a Faculdade de Direito e o Curso de

Especialização em Direito Ambiental, em novembro de 2012, Pelotas, RS e publicada sua versão

completa nos anais do Seminário.

Page 113: O negro e a cultura afro-brasileira: uma bricolagem multicultural do

113

Historicamente, a imagem secular, inventada pelo colonizador, foi de um índio

indolente e selvagem.

De fato, a colonização no seu decurso civilizatório, através de um projeto

multicultural eurocentrista, embora este conceito não houvesse sido criado, impôs

o arquétipo do homem branco e cristão sobre os demais colonizados, pelo qual o

reconhecimento do Outro foi de alguém que precisava ser colonizado. Portanto, a

cultura fora deste padrão era considerada inferior. Hoje, esse paradigma caiu. Não

se interpreta a cultura de uma sociedade seguindo o critério superior e inferior.

Culturas são diferentes (LARAIA, 2002).

Sobre isso, o livro didático tem hospedado uma diversidade de sínteses

históricas e culturais sobre tipos de sociedades e povos. Neste trabalho,

especialmente, foi escolhida a cultura brasileira, com ênfase na contribuição dos

povos africanos sobre a formação do espaço geográfico brasileiro.

Para o campo do ensino de Geografia, uma das formas de se estudar a

formação do povo brasileiro é através da formação histórica, política e econômica

do território nacional. A palavra território é um conceito que explica o espaço na

sua dinâmica política. Neste sentido, o conceito pode variar de acordo com a

abordagem feita pelo autor. Utiliza-se o conceito de território para se referir a

lugar, como também para significar área delimitada fisicamente por fronteiras

geográficas. Explicado de outro modo, território significa disputa de poder sobre o

mesmo espaço, por grupos sociais diferentes. No caso da formação do território

brasileiro, a sua organização e as suas disputas sociais e econômicas incorreram

ao longo dos séculos de colonização, desencadeadas pelo colonizador europeu

sobre a sociedade indígena americana.

Durante os séculos XVI, XVII e XVIII, a ocupação do território brasileiro aconteceu de

várias formas, por exemplo: no Norte, por causa da exploração de drogas do sertão

(cacau, cravo, castanha-do-pará) na Amazônia; no Nordeste, houve a ocupação do interior

para criação de gado; no Sudeste e Centro-Oeste, em razão da descoberta de ouro e

pedras preciosas na região dos atuais estados de Minas Gerais e Goiás e do

desenvolvimento de uma agricultura e pecuária voltadas para atender principalmente os

mineradores. MAGALHÃES, C. [et al]. Perspectiva, 7º ano. São Paulo: Editora do Brasil,

2009, p.22.

Page 114: O negro e a cultura afro-brasileira: uma bricolagem multicultural do

114

Nota-se que a formação do território brasileiro nasceu da estratégia que se

usava para ocupar e dominar o lugar. A formação territorial brasileira sua

ocupação, só foi possível graças à estratégia de demografia pensada pelo

colonizador, cujo mecanismo desenvolvido tinha a imigração como incentivo para

povoar os domínios territoriais. Para ocupar, precisava produzir. À época, isto

custou abrir frentes para o interior, com investimentos e empreendimentos

econômicos de todos os tipos.

No início do século XVI, a ocupação portuguesa das terras que hoje compõem o território

brasileiro restringia-se a uma parte da faixa litorânea, onde primeiramente se desenvolveu

intensa exploração do pau-brasil, madeira abundante nessa região e muito valorizada no

mercado europeu. O povoamento, de fato, somente se iniciou com a introdução de

lavouras de cana-de-açúcar e de engenhos – que transformavam a cana em açúcar –

sobretudo no Nordeste e no litoral paulista. (BOLIGIAN, et al, 2009, p. 19).

A cana-de-açúcar tornou-se o negócio de então. Engenhos passaram a

existir e terras foram sendo apropriadas à medida que havia o incentivo para este

tipo de empreendimento. Como o autor afirma, a ocupação e o povoamento do

território brasileiro se estenderam do Nordeste ao litoral paulista. Isto só foi

possível graças à implantação de um modo de produção econômico sobre o

espaço, o qual atendia aos interesses econômicos dos grupos hegemônicos

coloniais.

A primeira forma de ocupação dos portugueses com objetivo de fixação no território

ocorreu por meio da implantação dos engenhos de cana-de-açúcar, principalmente no

Nordeste. Entre 1580 e 1640, questões relacionadas à sucessão do trono em Portugal

levaram a uma união dos países ibéricos (Espanha e Portugal). MAGALHÃES, C. [et al].

Perspectiva, 7º ano. São Paulo: Editora do Brasil, 2009, p.22.

A geoeconomia do açúcar foi amplamente planejada e, de fato, foi o que

deu sentido político para a ocupação do território nacional. O clima tropical e a

terra favoreciam a implantação dos engenhos. É verdade também que, para um

modo de produção que teve seu início no século XVI, fazia-se necessário uma

mão de obra que atendesse as demandas internas do então sistema econômico.

Para isso, pôde contar com o mercado de escravo trazido da África. A política

ultramarina da escravidão, durante muitos séculos, abasteceu o mercado brasileiro

com a mão de obra escrava. Foi um gerador de bens e serviços institucionalizado

e que se manteve ativo até o último quarto do século XIX. Por conta disto, o

tráfico internacional de escravo foi um grande negócio econômico. Contudo, o

mais desumano da Era Moderna.

Page 115: O negro e a cultura afro-brasileira: uma bricolagem multicultural do

115

À época, a África tornou-se a porta de entrada do tráfico e a saída de

escravos para o mundo. Do ponto de vista econômico, a escravidão transformava

seres humanos em moeda de troca. Isto foi possível por causa da mentalidade

cultural e dos acordos multilaterais dos setores privados e estatais das instituições

europeias e africanas que ambicionavam tais negócios. O negro era mercadoria

disponível no mercado internacional e, quanto mais se intensificava o tráfico,

maior era o fluxo migratório.

Pessoas migram motivadas por diversas razões. Migrar é deixar um lugar

cujas raízes são rompidas para recomeçar em outro lugar, cujas raízes são

reconstruídas sobre a continuidade e na descontinuidade. Sobre a migração

completa o autor:

O ato de migrar é complexo e envolve um conjunto de necessidades, desejos, sofrimentos

e esperanças. Ao longo da história, podemos citar exemplos de migrações que

envolveram tais aspectos: o que dizer dos milhões de escravos que foram trazidos à força

para o Brasil no período colonial? Ocorre migração forçada quando as pessoas são

obrigadas a sair do seu lugar de origem. Ou porque há situação de risco de morte

(catástrofes naturais, epidemias e guerras) ou porque são retiradas à força a fim de serem

comercializadas, ou ainda devido às condições impostas pelo regime político e

econômico. [...] Assim, devemos analisar não só os fatores que estimulam as migrações,

mas também os fenômenos decorrentes, como a aceitação ou rejeição para com os

migrantes no lugar de chegada, seus anseios, necessidades, conquistas e o papel que

desempenham na organização do espaço. BIGOTO et alli. Sociedade e Cotidiano, 7º. São

Paulo: Atual, 2009, p. 111.

Foi o que ocorreu com os africanos que aqui chegavam. A migração

custou muito caro para eles. Primeiro, foi um processo forçado e não espontâneo.

Segundo, foi aviltante. Utilizou-se do grau mais baixo do desrespeito humano

para com esta população. O transporte e o tratamento dispensados aos tripulantes,

então degredados, eram próprios de animais e não de gente. Visto desse ponto,

não lhes restava expectativa alguma ao chegar ao novo lugar. O destino estava

traçado. Expostos no mercado, o seu fim era pertencer a quem lhes comprasse.

Restava-lhes vir a ser a mão de obra, a força de trabalho do seu senhor.

Os autores também transcreveram um trecho do poema “Navio Negreiro”

de Castro Alves (1977), em que o poeta traduziu um pouco da condição desumana

e humilhante com que o escravo era recebido no tumbeiro, no decorrer da

travessia, ao ser transportado da África para o Brasil:

Page 116: O negro e a cultura afro-brasileira: uma bricolagem multicultural do

116

Navio negreiro

Senhor Deus dos desgraçados!

Dizei-me vós, senhor Deus!

Se é loucura... se é verdade

Tanto horror perante os céus...

Quem são...

São os filhos do deserto

Onde voa em campo aberto

A tribo dos homens nus...

São os guerreiros ousados,

Que com os tigres mosqueados

Combatem a solidão...

Homens simples, forte bravos...

Hoje míseros escravos

Sem ar, sem luz, sem razão.

ALVES, Castro. Em: Antologia escolar brasileira. Rio de Janeiro: Fename, 1977. In.

BIGOTO et alli. Sociedade e Cotidiano, 7º. São Paulo: Atual, 2009, p. 112.

Nota-se que o escravo era exposto a todo tipo de destrato e, como tal,

sofria de dois tipos de violência: a física, com o castigo corporal, e a simbólica,

com a desconstrução de sua individualidade. Sobreviver ou morrer era o seu

único direito. Dispensava-lhe o ar e a luz. Privado da razão, era como se se

desconstruísse o seu Eu, ou seja, a sua identidade. A travessia de África para o

Brasil não só causava o sofrimento físico, como também o desrespeitava

moralmente. Hábitos e costumes eram trazidos apenas na memória. A lógica do

tráfico era capturar para comercialização de corpos, pois o mercado demandava

por homens possuidores de força física e não de homens para integrar à economia

do sistema açucareiro: isto era coisa para branco; o labor era necessário; e para o

preto, pensar era desimportante.

Page 117: O negro e a cultura afro-brasileira: uma bricolagem multicultural do

117

Neste sentido, a cidade do Rio de Janeiro, no século XVIII, ainda

mantinha um dos mercados mais intensos de venda de escravos de origem

africana. À época, os sobreviventes da travessia, a então “mercadoria” humana,

eram armazenados nos depósitos dos estoques dos armazéns do Valongo, e

algumas peças eram expostas nas vitrines das lojas daquele mercado, à espera de

comprador. Enquanto isso, a falta de higiene e a alimentação insuficiente eram os

vetores de proliferação de doenças entre os escravos expostos no Valongo

(HONORATO, 2008).

Sobre esta época, são muitos os fatos registrados em diários de viajantes,

tipo desenhos e pinturas que retratavam a condição na qual vivia o escravo. O

hábito de registrar coisas, por meio do uso da imagem, é uma prática muito

utilizada antes mesmo da invenção da escrita. O homem do período da Pré-

História já se utilizava de desenhos, símbolos e sinais, conhecidos como pintura

rupestre, para expressar suas representações. A imagem é um recurso facilitador,

pelo qual é possível compreender um determinado contexto social, que, com a

riqueza de seus signos, possibilita ao intérprete compreender a realidade

representada.

Hoje, sem exceção, os livros didáticos de Geografia se utilizam de fontes

imagéticas como recurso, cuja função é complementar o texto escrito. Entende-se

que a imagem é um recurso pedagógico importante, e, como tal, tem um papel

muito significativo na aprendizagem. Como recurso visual, os elementos

pictóricos, como significantes, despertam o olhar do leitor para o contexto

impresso.

Para interpretar as imagens presentes neste trabalho, foi utilizado o

conceito de significação iconográfica proposto por Panofsky (1979). Para este

autor, a leitura deve ser apreendida considerando os princípios subjacentes que

revelam o contexto social e, como também, o de raça e etnia,25

como propositura

da leitura de imagem.

Essa perspectiva é um recurso metodológico que possibilita compreender e

interpretar o tempo e o espaço sobre o fato social. Neste sentido, o presente

25

Acréscimo meu.

Page 118: O negro e a cultura afro-brasileira: uma bricolagem multicultural do

118

trabalho, na sua fase de coleta de dados, propôs-se a uma seleção de um conjunto

de imagens sobre diversos contextos que tratavam da população negra e sobre a

sua condição social, do tempo da Colônia aos dias atuais.

A imagem a seguir foi coletada do livro didático Adas (2006), Geografia

Construção do espaço geográfico brasileiro - 7º ano. São Paulo: Editora Moderna.

O título: Mercado de Escravos no Valongo - Rugendas, 1802-1855. A escolha

desta imagem não foi aleatória. Baseou-se no conceito de espaço geográfico

proposto por Adas (2006). Para o autor, o espaço geográfico é dinâmico e

histórico.

Abaixo, a imagem 01 apresenta uma cena do cotidiano, no Brasil do século

XIX, na cidade do Rio de Janeiro. O local era o Valongo. Este era um lugar, no

qual se mantinha uma intensa logística de importação de mão de obra escrava,

vinda das diversas regiões da África, para fazer o abastecimento e a manutenção

do mercado escravocrata, no sentido de fazer o suprimento das demandas para as

lavouras de café e de açúcar das regiões do Estado do Rio de Janeiro.

Rugendas (1835), na sua composição, retrata a dimensão de como era o

cotidiano do mercado de escravos no Valongo.

Imagem 01. Johann Moritz Rugendas, 1835. (ADAS, 2006, p. 37).

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119

Observam-se homens, mulheres e crianças em torno de uma panela sobre

uma fogueira; parecem estar preparando seu alimento. E, próximo aos joelhos de

um dos escravos, havia uma penca de bananas, complemento alimentar típico do

cardápio da dieta dos escravos. A alimentação dos escravos era uma preocupação

dos comerciantes, pois uma boa venda dependia do estado de saúde de cada um.

Com o objetivo de maximizar o preço de venda dos escravos

recém-chegados, os comerciantes lhes davam um tratamento

diferenciado que incluía banho e duas refeições diárias com

pirão de farinha de mandioca e fubá de milho. Procuravam

utilizar cozinheiros negros para conquistar maior confiança dos

africanos, também lhes davam frutas para evitar o escorbuto

(HONORATO, 2008, p. 117).

Ainda na imagem 01, à esquerda, um escravo se encontra deitado, coberto

com um tecido azul, provavelmente sem condições físicas para ficar de pé, coisa

que não era comum a um escravo, se prostrar, quando ali já se encontrava exposto

para a consumação da venda. Por parte dos comerciantes, havia um controle

sanitário para que a perda de peças fosse baixa. O autor aponta o outro lado do

controle sanitário:

Após serem desembarcados no porto da cidade do Rio de

Janeiro passavam pela chamada “visita saúde”. Caso fosse

constatado que estavam doentes ou eram portadores de alguma

moléstia contagiosa, ficavam em quarentena para tratamento

nos trapiches ou lazaretos da cidade; e só depois eram

conduzidos aos armazéns do Valongo, para serem postos à

venda (Idem, 2008, p. 117).

É pertinente ressaltar que a imagem 01 não era a realidade. Ela é uma

representação da realidade. É o ponto de vista do artista sobre a realidade por ele

representada, que como base em Manguel (2001): é uma narrativa sobre a qual o

artista, como intérprete, atribuiu um caráter temporal, retratando o mercado de

escravo do Brasil do século XIX.

Sobre esta situação, à época se dizia: “antes de 1840 o Brasil é presa do

tráfico de africanos; o estado do país é fielmente representado pela pintura do

mercado de escravos no Valongo” (NABUCO, 2000, p. 1). O país respirava

escravidão. A escravidão era uma instituição legal que contava com o apoio da

igreja e com o apoio dos setores mais conservadores da economia, o café e o

açúcar. A igreja fazia o controle moral da sociedade escravocrata. Na economia, a

importação da mão de obra mantinha aquecido o mercado Brasil e África. O

Page 120: O negro e a cultura afro-brasileira: uma bricolagem multicultural do

120

destino final da importação era o abastecimento do engenho de açúcar com

escravos, que passariam a se ocupar com o trabalho árduo dos canaviais.

Sua sorte estava lançada segundo o interesse de quem o adquirisse.

Homem, mulher, criança, sem exceção, eram submetidos à intensa dureza do

trabalho servil no engenho, como mostra na imagem 02:

Imagem 02. Engenho de açúcar em Itamaracá, Frans Post, de 1647. (ADAS, 2006, p.38)

Mas quem era o/a trabalhador/a do engenho? Que tipo de tratamento social

a ele/a era imputado? Conforme Cardoso (1990), o/a escravo/a era uma

propriedade do seu senhor, ele/a não tinha vontade própria, e vivia sob o regime

de trabalho compulsório. Como uma propriedade, o seu futuro não lhe pertencia.

Sua sorte estava nas mãos do senhor, que sobre ele/a, tinha o direito de dar o

destino que lhe achasse justo. Segundo o autor, a situação, “como escravo, sua

condição era hereditária, e a propriedade sobre sua pessoa era transmissível por

venda, doação, legado, aluguel, empréstimo, confisco” (Idem, 1990, p. 104).

Mesmo assim, a relação interpessoal fazia próximos escravo e senhor.

Ambos conviviam no mesmo espaço. Da casa-grande ao engenho, a ordem era

obedecer. A repressão era necessária a qualquer manifestação contrária. No

engenho, o escravo que saísse da conduta era castigado. O uso do chicote era

recorrente naquele espaço.

Quando o castigo era aplicado por outro escravo, o feitor

colocava um segundo negro atrás da vítima, de chicote em

punho, para agir quando necessário e, levando mais longe ainda

suas preocupações tirânicas, colocava-se ele próprio em terceiro

lugar, para castigar o fiscal no caso em que este não cumprisse

o seu dever com bastante severidade. As duas tiras de couro da

ponta do chicote arrancavam, no primeiro golpe, a epiderme,

tornando o castigo mais doloroso; este era, em geral, de 12 a 30

Page 121: O negro e a cultura afro-brasileira: uma bricolagem multicultural do

121

chicotadas, depois das quais se tornava necessário lavar a chaga

com pimenta do reino e vinagre, para cicatrizar as carnes e

evitar a putrefação, tão rápida em clima quente (DEBRET,

Apud MELLO, 1973, p. 72).

Punir era necessário. Essa era a lógica do sistema escravocrata. O corpo

era peça estratégica do modo de produção e o que saísse de série estaria colocando

em perigo o rendimento, assim como os resultados da produção. Portanto, vez e

voz eram elementos desimportantes num escravo. Seus desejos e manifestações

pessoais eram proibidos. A ele cabia demonstrar força e trabalho. Do contrário, a

ordem era reprimir e o chicote era o instrumento recorrente no controle da

disciplina.

Na casa-grande, a relação entre senhor e escravo começava na infância. A

família patriarcal usava de destrato social para com o menino preto, que, com isso,

fazia diminuir sua autoestima, como também o levava a refletir sobre sua

condição de inferior ao se comparar com os meninos brancos. Nos seus primeiros

anos, na sua infância, era domesticado com valores morais recebidos dos adultos,

quando, então, era orientado para se tornar o brinquedo-acompanhante, o “saco de

pancadas” dos meninos brancos.

Suas funções foram as de prestadio Mané-gostoso, manejado à

vontade por nhonhô; apertado, maltratado e judiado como se

fosse todo de pó de serra por dentro; de pó de serra e de pano

como os Judas de sábado de aleluia, e não de carne como os

meninos brancos. [...] Nas brincadeiras, muitas vezes brutas,

dos filhos dos senhores de engenho, os moleques serviam para

tudo: eram bois de carro, eram cavalos de montaria, eram bestas

de almanjarras, eram burros de liteiras e de cargas as mais

pesadas. Mas principalmente cavalos de carro. [...] (FREYRE,

1998, p. 336).

O menino escravo era colocado como objeto de uso do seu sinhozinho.

Sujeitado aos seus desejos, desde então, sem referência de si, crescia vendo-se

refletido apenas na sua inferioridade animalesca.

Com a menina, não era diferente. Recebia uma criação semelhante à do

menino. Quando entrava na fase de “menina-mulher”, seu corpo passava à

propriedade de uso do seu senhor, e também o objeto de perseguição das

senhoras, conforme afirma a autora:

O desenvolvimento físico da escrava adolescente marca a

passagem da escrava animal de estimação para escrava objeto

sexual, com suas inevitáveis consequências na relação senhora-

Page 122: O negro e a cultura afro-brasileira: uma bricolagem multicultural do

122

escrava. A ideologia corrente que associa a negra ao prazer

sexual do branco, identificando em seu corpo o agente do

estupro institucionalizado, fez recair também sobre a escrava,

como se não bastasse a objetificação sexual, inconfessáveis

sentimentos de inveja das senhoras. (GIACOMINI, 1998, p. 79).

O desrespeito social não se limitava à mulher apenas como objeto sexual.

Na casa-grande, ela ocupava papéis e funções sociais como cozinheira e

arrumadeira. Como era uma sociedade escravocrata e hierarquizada, tais papéis

eram reconhecidos com desprestigio social, pois viver na servidão não permitia

ser diferente.

Esse desprestigio social começava quando o/a escravo/a ainda era criança.

A escravidão foi um regime, cuja estrutura social foi constituída por dois polos

antagônicos. De um lado, estava o senhor, e, do outro, o escravo. O ambiente

social de aprendizagem, tanto para a criança branca quanto para a criança preta,

era o mesmo, entretanto, os valores imputados a elas se diferenciavam. A primeira

era orientada para reproduzir toda forma de reconhecimento negativo e de

desprezo para com a segunda. Ela era educada para assumir a identidade de

senhor, enquanto a segunda era educada para assumir a identidade de escravo.

Como se sabe, a identidade é uma construção social (SILVA, 1995; 2000; 2003;

HALL, 2006a; 2006b; 2008; 2009). Ninguém nasce senhor e muito menos

escravo. Ambas as posições assumidas, pelas crianças, eram resultados da

educação patriarcal orientada conforme os padrões sociais da época.

É sabido que, na ordem escravocrata, o sistema de produção era sustentado

pelo trabalho escravo, oriundo do tráfico, mas isto não era suficiente para manter

o regime. O sistema precisava produzir novos escravos. Aos africanos nascidos no

Brasil, filhos de escravos, as instituições culturais se encarregavam de inculcar a

identidade de escravo, fazendo um vir a ser dessa relação.

Porque, embora fosse nascido na condição de escravo, era preciso

construir essa condição, que, em síntese, era um processo que tinha seu início na

infância. Tanto é que, mesmo quando o escravo era adquirido no mercado, a

preferência do comprador era por escravos de menos idade, porque isso facilitava

ao dono “adestrar” a peça, a coisa, segundo os valores morais daquela sociedade

(HONORATO, 2008).

Page 123: O negro e a cultura afro-brasileira: uma bricolagem multicultural do

123

Parafraseando Foucault (1987), esta lógica estava em produzir, no seio da

família patriarcal, “corpos dóceis” e utilitários não para a disciplina, como foi

posta pelas instituições do trabalho livre, como propunha o autor em “Vigiar e

Punir” (1987), mas para a servidão. A ordem de então era trabalhar, servir e

obedecer. Qualquer sentimento que colocasse a estabilidade social em perigo

significava ser necessário punir o corpo coisificado, como diz Ianni (1988, p. 56):

O caráter repressivo e violento do escravismo não se explicava

pelo medo que o senhor poderia ter da revolta ou vingança do

escravo. Não há dúvida de que esse era um dado da consciência

do senhor. Todo escravo aparecia, na consciência do senhor,

como sua propriedade e seu inimigo. Afinal de contas, a

condição escrava tornava o escravo e o senhor, ao mesmo

tempo e reciprocamente, inimigos. Mas seria incompleta a

explicação que se limitasse a situar a repressão e a violência

características do escravismo como produto do medo.

Para esse autor, a repressão e a violência, comuns na relação senhor e

escravo, constituíam a base da estrutura instituída do sistema de produção

escravista. Como tal, a produção de trabalho era de mais-valia absoluta sobre

aquilo que o escravo produzia e, como ele mesmo diz, era a mais-valia dupla:

estavam alienados ao senhor a produção do trabalho e o corpo do escravo; ambos

eram produtos de sua propriedade.

A escravidão mantinha um sistema de funcionamento completo e para o

escravismo, enquanto formação social, a violência e a repressão seguiam de

acordo com a exigência política, social e cultural, própria daquela época (Idem,

1988). A escravidão foi um período impagável, uma marca na formação social

brasileira. Um período tão importante que, ainda hoje, é abordado como conteúdo

obrigatório na disciplina de Geografia na educação básica. Ainda que tenha

deixado, como sua marca, a desigualdade social, estudar esta época tem servido

para reafirmar nossas raízes culturais e ampliar o sentido de pertencimento a

identidade nacional. Um povo sem memória é um povo sem identidade.

Nesta seção, a questão geradora que perpassou à discussão, foi saber, nos

livros didáticos de Geografia, como é abordada à relação intersubjetiva entre o

senhor e o escravo. Como objetivo, buscou abordar a relação moral com que era

reconhecido o escravo pelo senhor.

A revisão teórica sobre este período mostrou que o senhor reconhecia o

escravo apenas como peça de seu patrimônio. Isso contribuía, no dia-a-dia, para o

Page 124: O negro e a cultura afro-brasileira: uma bricolagem multicultural do

124

desprestigio social do negro, visto que isto era uma prática recorrente para o

primeiro na manutenção da ordem social.

Dos livros analisados, o resultado apontou a preferência dos autores por

uma abordagem economicista, na qual ressaltou o papel social do escravo como

mais-valia da produção escravista, em que o destaque é dado para o escravo como

peça central no trabalho compulsório. Ficaram relegados, a segundo plano, os

aspectos relacionais, psicossociais, que, no entendimento deste pesquisador, são

elementos importantes para compreender a complexidade dos papéis sociais do

senhor e do escravo naquela ordem social.

Contudo, o continente africano tem servido de pano de fundo ao retratar o

período dessa história. Num ensaio sobre o multiculturalismo, McLaren (2000, p.

111) explica que, ainda hoje, são recorrentes narrativas, nos currículos das

disciplinas de ciências sociais, em que a África é retratada “como um continente

selvagem e bárbaro ocupado pelas mais inferiores das criaturas que eram privadas

das graças salvadoras da civilização ocidental”. Para o autor, esta visão tem como

fim reafirmar a supremacia racial branca e a ideia de representação dos afro-

americanos como escravos, submissos e passivos. Seria uma visão cercada de

estereótipos culturais euro-americacentristas, sobre a cultura africana. A essa

visão conservadora, racialista, o autor denominou de multiculturalismo

tradicional, ou seja, uma forma de reconhecimento negativo da cultura do Outro.

Por outro lado, ao tratar a cultura afro-brasileira, abordada nos livros

didáticos, do período da escravidão, a mesma deve ser tensionada no sentido de

desconstruir estereótipos e desafiar preconceitos, de forma que possam promover

uma educação para a cidadania, recomenda Canen (2001a; 2001b; 2009a; 2009b).

Na presente seção, no que tange ao currículo de Geografia, o conteúdo que

tem como abordagem o espaço geográfico do tempo da escravidão pôde ver a sua

importância ao ressaltar o desprestigio social com que era reconhecido o escravo

naquela sociedade. Na verdade, ninguém nascia escravo, mas, já na infância, era

reconhecido com tal.

Sobre o reconhecimento, Honneth (2007) afirma ser este um processo

social, que, primeiramente, começa nas relações com a família. No nosso caso

específico, a casa-grande era um meio de socialização para uma educação

Page 125: O negro e a cultura afro-brasileira: uma bricolagem multicultural do

125

escravista. Os filhos de escravos cresciam em torno da mesa do senhor e, como

tais, eram conduzidos para o desprestigio social. Tanto um quanto o outro eram

um produto social, resultado da construção cultural das instituições da época, que,

como na família, fazia a reprodução das relações primárias de reconhecimento

social. Como se sabe, o reconhecimento incorreto pode funcionar como uma

forma de agressão e reduzir a pessoa a uma forma falsa e pejorativa (TAYLOR,

1994).

O fim do reconhecimento incorreto do africano como escravo só

aconteceu com a Abolição e com o advento da República, quando o negro, de

escravo, passou a cidadão. Com a República, mudanças estruturais ocorreram no

campo econômico, político e social o que refletiu sobre o ex-escravo, agora o

novo cidadão republicano. Este, agora, passava a lutar por direitos sociais. Seu

desafio estava em ser reconhecido, na esfera jurídica, para que se pudesse ver e

para que fosse visto como um sujeito de direito. Durante o século XX, a luta do

negro foi pela sua integração na sociedade de classes da ordem competitiva

(FERNANDES, 2008).

Nos anos trinta, no “Estado Novo”, embora vivendo em um regime

ditatorial, a cultura afro-brasileira ganhou relevância e tornou parte da cultura

brasileira. À época, o governo tinha em vista a homogeneização da cultura pelo

projeto nacionalista. Isto significava a construção de uma cultura comum em

detrimento da pluralidade cultural.

Para tanto, o governo pôde contar com o sistema educacional, que

funcionava como um disseminador da cultura estatal, ou seja, a educação servia

para fazer a reprodução das ideologias propostas pelos intelectuais a serviço do

Estado. Sobre este tipo de política, Hall (2006) lembra a importância do sistema

educacional que opera a favor do Estado.

A formação de uma cultura nacional contribuiu para criar

padrões de alfabetização universais, generalizou uma única

língua vernacular como o meio dominante de comunicação em

toda a nação, criou uma cultura homogênea e manteve

instituições culturais nacionais, como, por exemplo, um sistema

educacional (HALL, 2006, p. 49-50).

No que tange à cultura afro-brasileira, o sistema educacional serviu para

disseminar a figura do ex-escravo, que, agora, passava a ser visto como alguém

que fazia parte da cultura nacional.

Page 126: O negro e a cultura afro-brasileira: uma bricolagem multicultural do

126

Tratava-se de formar mentalidade comum à juventude mediante

a uniformização dos procedimentos pedagógicos e da

padronização de conteúdos, currículos e livros didáticos

impostos em âmbito nacional (MENDONÇA, 1990, p. 345).

Neste bojo, a cultura afro-brasileira ganhou importância no cenário

nacional, com reconhecimento das tradições na culinária e na religião, assim como

na música e na dança, diferentemente do pensamento racializado com que foi

abordado em “Os Sertões”, de Euclides da Cunha (1901), e em a “Evolução do

povo brasileiro”, de Oliveira Viana (1922), em que a mistura de raças era

responsabilizada pelo atraso do Brasil.

Ao contrário dessa visão, nos anos trinta do século XX, a história do

pensamento social brasileiro viveu uma “virada cultural” com a publicação de

“Casa-grande e Senzala” (1933) de Gilberto Freyre. Com ele, foi inaugurada uma

visão culturalista na interpretação do Brasil. No lugar da visão racialista,

pessimista, em que o atraso do Brasil estaria na mistura das raças, como

apontavam os autores citados acima, Freyre (1933) passou a explicar o Brasil pela

diversidade de cultura e não de raça.

Hoje, ainda é recorrente os livros didáticos de Geografia utilizarem a

perspectiva culturalista iniciado por Freyre (1933), para interpretar a diversidade

social brasileira, como será visto na próxima seção.

4.2 A cultura afro-brasileira: da cozinha ao hip hop

Cultura é um conceito amplo que possui muitos sentidos. Seu significado

vem de Kultur no alemão, que simbolizava os aspectos espirituais de uma

comunidade, e de Civilization, no francês, que significava as realizações materiais

de um povo. Tais sentidos foram reunidos na língua inglesa na palavra Culture,

que passou a significar todas as possibilidades da realização humana (LARAIA,

2002, p. 25) e, desde então, este conceito tem sido ampliado por outras línguas e

linguagens, agregando diferentes significados, que vão do universal ao particular,

através do modo com que cada pessoa se vê e se representa no espaço.

Esse significado derradeiro mostra que cultura é uma representação social

e, que, como tal, está intrinsecamente relacionada às linguagens e às

Page 127: O negro e a cultura afro-brasileira: uma bricolagem multicultural do

127

representações simbólicas, ou seja, com tudo aquilo que é significado pelo

homem. Não é, portanto, uma coisa que emana do sobrenatural; é um constructo

social, é fruto da ação humana e da sua materialidade, o que faz ela ser dinâmica e

dialética. Como produto da materialidade, sua produção varia de tempo e de lugar

e com sentidos diferentes. Vale ainda dizer: ela é produzida, primeiro, na mente

das pessoas e, a posteriori, na ação política assentida e significada, nas relações e

nas contradições sobre si mesma.

Nesta presente seção, o objetivo é refletir sobre a cultura de matriz afro-

brasileira apresentada pelos autores dos livros didáticos de Geografia, nos quais se

buscou compreender como essa matriz, com suas diferenças culturais, são

reconhecidas dentro das suas diferenças.

Para discutir essa questão, foi apresentado um conjunto de textos extraídos

dos livros didáticos de Geografia numa perspectiva histórica e social, em que o

pesquisador não se prendeu a fatos isolados e a elementos estanques. Ao

contrário, diante da diversidade de textos que tem como abordagem a cultura

nacional, buscou identificar os discursos afro-brasileiros e os sentidos pelos quais

foram consagrados no imaginário social, assim como o seu reconhecimento no

currículo escolar.

Num segundo momento da presente seção, buscou-se identificar as

tendências: i) a cultura crítica, que é vista como um território contestado; ii) e a

cultura pós-crítica, que é considerada um campo discursivo, cuja diferença

cultural é reconhecida dentro da diferença.

Sobre a cultura nacional, para Hall (2006), ela é forjada com o objetivo de

unificar aquilo que é comum e de desenvolver o sentido de pertença de um povo.

Uma cultura nacional é um discurso – um modo de construir

sentidos que influencia e organiza tanto nossas ações quanto a

concepção que temos de nós mesmos. [...] As culturas

nacionais, ao produzir sentidos sobre “a nação”, sentidos com

os quais podemos nos identificar, constroem identidade. Esses

sentidos estão contidos nas estórias que são contadas sobre a

nação, memórias que conectam seu presente com seu passado e

imagens que dela são construídas (HALL, 2006, p. 50-51).

Nesse caso, a construção da cultura nacional, como um discurso

construído, para o campo da educação, é vista sob uma perspectiva crítica, que

Page 128: O negro e a cultura afro-brasileira: uma bricolagem multicultural do

128

deve passar por um processo seletivo determinado pelos grupos hegemônicos.

Esses grupos agem em comum acordo com o Estado, que, através do mercado

editorial, com os seus especialistas, fazem a seleção do que deve e o que não deve

ser significado como cultura e, com isso, a cultura é selecionada e distribuída

através dos livros didáticos.

No Brasil, o governo federal, através do Fundo Nacional de

Desenvolvimento da Educação – FNDE, desenvolve uma política nacional de

cunho universal, através do Programa Nacional do Livro Didático – PNLD, sob a

chancela do Ministério da Educação e Cultura – MEC, que, hoje, se ocupa em

distribuir, para todas as unidades escolares de ensino público, o livro didático de

todas as disciplinas do currículo nacional comum, do ensino fundamental e médio.

Entendemos que essa política faz do livro didático o currículo oficial, com poder

de inculcar no imaginário de cada geração aquilo que foi legitimado pela cultura

nacional comum, ou seja, aquilo que deve parecer comum a todos. Contudo, por

outro lado, mostra o lado excludente da seleção.

Neste processo seletivo, culturas são eleitas e culturas são excluídas.

Quando a cultura é vista deste ponto, no campo do currículo, vai além de “um

modo de vida”, como aquele primeiro significado apresentado na abertura desta

seção. Uma visão crítica sobre cultura no livro didático põe, em questão,

perguntas do tipo: por que uma cultura é incluída e outra é excluída? Por que uma

cultura é reconhecida de forma positiva e outra é reconhecida de forma negativa?

Sobre a cultura nacional, no que tange à inclusão da matriz afro-brasileira,

essa passou a ser incluída pela cultura nacional e de forma positiva, a partir dos

anos 30, com a publicação de Casa-grande e senzala de FREYRE (1933), que,

pioneiramente, passou a interpretar o Brasil com base no paradigma culturalista, o

oposto do paradigma racialista que, até então, era utilizado pelos pensadores e

intérpretes do pensamento social brasileiro, que tinham o cuidado de divulgar a

história oficial, que teve a sua origem nos “guardiões” do Instituto Histórico e

Geográfico Brasileiro – IHGB, (SCHWARCZ, 1993).

A nação, cuja mistura de raças estava determinada a fracassar, viu nascer,

com o paradigma culturalista, novas luzes sobre um Brasil que começava a se

descobrir e a se valorizar pelas diferenças culturais, pelas quais se reconhecia e

Page 129: O negro e a cultura afro-brasileira: uma bricolagem multicultural do

129

não se condenava por isso. Ao mesmo tempo, é importante ressaltar que a

valorização da cultura nacional não minimizava o racismo brasileiro. Ao contrário,

a exaltação das diferenças bifurcava-se para a sua valorização e, ao mesmo tempo,

para a afirmação do mito da “democracia racial” (FERNANDES, 1978).

Por isso, sobre este período, não podemos incorrer no romantismo ingênuo

de pensar que todas as culturas passaram a ser reconhecidas, como também não

podemos “jogar fora a água do banho com o bebê”, ou seja, embora não ocorresse a

integração das “raças” e culturas, não podemos deixar de afirmar que o período em

questão foi significativo, representou um salto político, sobretudo porque o

reconhecimento do Brasil reverberou para a educação que passava a refletir sobre

tendências pedagógicas menos tradicionalistas e mais democráticas, desencadeadas

por reformas no âmbito da educação, como ressalta Moreira (1990, p. 91-92):

As reformas elaboradas pelos pioneiros representaram um

importante rompimento com a escola tradicional, por sua ênfase

na natureza social do processo escolar, por sua preocupação em

renovar o currículo, por sua tentativa de modernizar métodos e

estratégias de ensino e de avaliação e, ainda, por sua insistência

na democratização da sala de aula e da relação professor-aluno.

Consequentemente, no bojo dessas reformas, em 1937 foi criado o

Instituto Nacional do Livro – INL, na gestão do então ministro, Capanema

(SCHAFFER, 2001). Desde então, o livro didático tem sido uma política de

Estado, que, é notório observar, ao longo de sua trajetória tem alcançado uma

melhoria de cunho qualitativo e quantitativo. Ele é o espaço no qual a cultura

oficial passa por um processo seletivo, para então chegar ao público específico – o

aluno. Nesse caso, a cultura nacional, abordada no livro didático não é um

conjunto de conteúdos selecionados aleatória e desinteressadamente e, muito

menos, algo que seja neutro sem pretensão de quem elabora. É certo que sua

organização tem um fim em si mesmo, no qual subjaz o interesse implícito e

explícito dos grupos hegemônicos que têm o poder de sistematizar, selecionar e

legitimar, para daí passar a ser feita a sua distribuição, através dos órgãos

governamentais como o PNLD/FNDE26

do governo federal, às unidades

escolares.

Estas sistematizações assinalam os “territórios” da cultura de

onde se selecionam componentes do currículo. Os critérios para

26

Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação.

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130

selecioná-los entre eles mesmos são os seguintes: buscar os

elementos básicos para iniciar os estudantes no conhecimento e

acesso aos modos e formas de conhecimento e experiência

humana, as aprendizagens necessárias para a participação numa

sociedade democrática, as que sejam úteis para que o aluno

defina, determine e controle sua vida, as que facilitem a escolha

e a liberdade no trabalho e no lazer e as que proporcionem

conceitos, habilidades, técnicas e estratégias necessárias para

aprender por si mesmo (SACRISTÁN, 2000, p. 60).

O currículo tem a função social de mediar e de facilitar a apreensão da

cultura oficial. Esta última é sistematizada por disciplinas em que, cada uma, vai

tratar das especificidades de acordo com sua área de conhecimento. Atualmente,

no caso da disciplina de Geografia, a cultura nacional aparece prescrita nos

Parâmetros Curriculares Nacionais - PCNs de Pluralidade Cultural, em que o

mesmo recomenda:

Conhecer a diversidade do patrimônio etnocultural brasileiro,

cultivando atitude de respeito para com pessoas e grupos que a

compõem, reconhecendo a diversidade cultural como um direito

dos povos e dos indivíduos e elemento de fortalecimento da

democracia (BRASIL, 1997, p. 143).

A partir dessas referências oficiais, dos livros didáticos de Geografia

analisados foram selecionados trechos de textos que retratam a cultura afro-

brasileira acerca do seu valor como parte do patrimônio nacional. Para isso,

observou-se que os autores foram cuidadosos na adequação dos textos, que,

tiveram como fim, atender os objetivos propostos pelos Parâmetros Curriculares

de Pluralidade Cultural e de Geografia (1997).

A priori, pôde se notar que os autores são recorrentes em destacar a música

e a dança, assim como a religião e a culinária como marcadores da cultura

nacional. Se a cultura nacional é um discurso construído, como afirmou Hall

(2006), ela é também um discurso seletivo, que se segue segundo o interesse

político e ideológico dos grupos hegemônicos, sendo eles quem determina o que

deve ser prescrito no livro didático ou não, o que serve como um mecanismo de

distribuição e de controle. Neste caso, hoje, podemos afirmar, a cultura afro-

brasileira encontra-se presente nos livros didáticos, em diversas perspectivas

epistemológicas, como descrevem os autores a seguir.

Neste parágrafo, o marcador destacado foi a música. Diz o autor:

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131

A influência cultural dos diversos grupos indígenas deu-se, sobretudo por meio da

culinária, como no uso do milho e da mandioca, e da incorporação de palavras do

vocabulário de diversos grupos indígenas. Os africanos, durante o período da escravidão,

contribuíram com a religião, especialmente com a prática do candomblé e umbanda, na

música27

, com a utilização de instrumentos como o atabaque e o pandeiro [...], e na

língua (SAMPAIO, 2009, p. 15).

Hoje, o samba, é instituição nacional. Mas, no século XX, atabaques e

pandeiros eram instrumentos marginalizados e reconhecidos como “coisas” de

negros. Para a sociedade que não se aceitava mestiça, a música nascida no morro,

desceu a ladeira, chegou ao “asfalto”, um espaço de brancos, e esse se sucumbiu

ao samba.

Música é feita de ritmo, melodia e harmonia. É meio pelo qual o intérprete

representa o mundo que vê e que sente. Como linguagem ela é arte, sensibiliza e

ao mesmo tempo democratiza espaços, como os mostrados na imagem 03.

À direita, o desfile da escola de samba “União da Ilha” na Marquês de

Sapucaí, Rio de Janeiro. Um retrato da manifestação democrática, um

caleidoscópio cultural da mistura de cores, raças, classes e religiões, no qual se

celebra a festa mais popular do Brasil.

À esquerda, o festival de Parintins, apresentação folclórica do boi-bumbá,

a maior manifestação regional do Amazonas. Lendas indígenas e ribeirinhas são

representadas por canto e dança.

27

Grifo nosso.

Imagem 03. Manifestações Populares (SAMAPAIO, 2009, 40)

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132

A contribuição cultural dos povos africanos à cultura brasileira é grande. Elementos dessa

herança podem ser percebidos na nossa música, dança28

, [...] (MAGALHÃES et alli,

2008,p.41).

Na dança, é grande a contribuição da cultura negra, como mostra a

imagem 04. O desfile das escolas de samba na cidade do Rio de Janeiro, o ícone

midiático do carnaval nacional, mostra o “samba no pé”, que entretém e agrega

todas as classes e culturas. O carnaval da Avenida Marquês de Sapucaí representa

a integração do morro com o asfalto, celebra as misturas embaladas nos sambas

enredos, que traduzem a nossa história na boca e no pé.

Nota-se, entretanto, ao observar os livros didáticos, que a música e a

dança, de herança afro-brasileira, (MOTA, 2008), até o início do século 20 foram

marginalizadas. Todavia, a partir do “Estado Novo”, com novas políticas

educacionais, houve o incentivo pelas manifestações populares oriundas desse

segmento e o governo passou a reconhecê-las como parte da cultura oficial. Hoje,

a cultura afro-brasileira se integra à cultura nacional e tem sido uma referência da

nossa brasilidade, da nossa identidade, daquilo que nos define e nos afirma.

Com a religião não foi diferente. O Brasil, um país que havia assumido

oficialmente a religião católica, só tempos depois passou a reconhecer as demais

matrizes e credos religiosos como aqueles que compõem o quadro sincrético das

manifestações de diferentes vertentes no país. No caso das religiões afro-

brasileiras, o candomblé, a umbanda, a quimbanda e outras, coube ao Estado fazer

o seu reconhecimento e, como de direito de liberdade de expressão religiosa,

foram enquadradas como religiões oficiais, “apesar da repressão sofrida pelos

povos africanos durante o período de escravidão, suas manifestações culturais, tais

como a música, a religiosidade”29

(DANELLI, 2007, p.43). Daqueles que para

aqui foram forçados a migrar, é sabido que, consigo, trouxeram apenas seus

corpos. Suas memórias e suas visões de mundo imaterial, como a religiosidade, a

experiência com o sobrenatural, vieram na mente de cada um e aqui foram

ressignificadas. Desse modo, ainda que houvesse a repressão sobre estas

diferentes matrizes, visto que isto foi real, ao mesmo tempo essas mesmas

matrizes buscavam formas de resistir à repressão oficial. Hoje, a liberdade de

28

Grifo nosso. 29

Grifo nosso.

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133

culto religioso é garantida na Constituição, embora os conflitos e tensões

continuem a existir.

Atualmente, na educação formal, abordar a religiosidade de matriz

africana como uma práxis de ensino tem sido um desafio para o docente. Isto

porque, até a homologação da lei 10.639/03, esta temática estava silenciada, ou,

quando aparecia nos programas e currículos, era recorrente deparar com textos e

imagens com conteúdos estereotipados que reafirmavam a discriminação. Hoje,

com a lei, outras demandas apareceram, como aponta Silva (2005), ao que ele se

refere como despreparo do docente para abordar a temática religião:

A propósito, os PCNs sugerem posturas diferenciadas, mas as

políticas educacionais precisam ir muito além, promovendo a

qualificação de docentes para os desafios contemporâneos. Isto

significa investir em parcerias com o movimento social, com a

academia, entre outros setores, a fim de alfabetizar gestores e

seus subordinados sobre os temas que o processo histórico

atesta terem permanecido à margem do contexto escolar, a

exemplo de questões também de ordem cultural como o racismo

e a intolerância religiosa (SILVA, 2005, p. 122).

Sobre este contexto, há, portanto, também de se enfrentar o racismo e

intolerância religiosa, ainda hoje tabus que, como tais, devem ser combatidos

através de um ensino para a diversidade. Esta constatação, feita pelo autor, reforça

a ideia de que é urgente a ampliação de programas de formação continuada para

docentes. Antes da homologação da lei 10639/03, no Brasil, o ensino superior não

oferecia, em seus currículos de licenciaturas, disciplina que tratasse da cultura

afro-brasileira de forma combativa ao racismo e à intolerância. Essa negação é

histórica vem dos tempos da Colônia o reconhecimento negativo. Havia por parte

das estruturas socioculturais o assentimento da satananização das religiões de

matriz afro-brasileira.

Atualmente, a religião afro-brasileira é conteúdo obrigatório no currículo

da educação básica. Entretanto, para este pesquisador, o maior desafio é a

formação continuada do professor, que depende de parcerias de todos os tipos de

instituições voltadas para a produção do conhecimento e daquelas que militam

pela causa. Muitos têm sido os estados e municípios que fazem investimentos na

formação de professor, entretanto, ainda insuficiente para qualificar a sua maioria.

Por outro lado, ao mesmo tempo, em que se busca a qualificação, os livros

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134

didáticos atuais têm enfatizado a importância de se conhecer a cultura afro-

brasileira e seus marcadores culturais. Como já vimos até aqui, desde que a

cultura afro-brasileira se tornou cultura oficial, ela passou a fazer parte dos

currículos e programas. Hoje, podemos ver os diversos tipos de manifestação,

como, por exemplo, a imagem abaixo, em que o autor destacou uma manifestação

religiosa (SAMPAIO, 2009):

De tradição iorubá, Iemanjá é considerada, pelas religiões de matriz

africana, a rainha dos mares. Em várias regiões do Brasil, é costume de seus

devotos cultuá-la nos festejos, com flores e cantos. No campo da simbologia, o

elemento água representa força, liberta e abre caminhos, que na mitologia afro,

Iemanjá é sinônimo de resistência, de mulher destemida, que soube invocar as

forças da natureza e abriu o caminho para o mar (PALITOT, 2007, p. 03). Nota-se

a transição entre a realidade e o mundo imaterial. O mito de Iemanjá fundamenta-

se na família, na autovalorização feminina em oposição à opressão e ao

machismo, enquanto, por outro lado, o sobrenatural é o subterfúgio na resolução

dos problemas do mundo material.

Outra forma de manifestação e de resistência afro-brasileira é a capoeira.

Para Danelli (2007), a capoeira alegra o país.

Imagem 04. Oferendas à Iemanjá. (SAMPAIO, 2009, p.15)

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135

O Brasil está mais alegre ao som dos berimbaus, que soam nas praças, nas rodas de

capoeira no bailado dos corpos negros. É a estética da resistência. É o mostrar-se ao

mundo, com dignidade. É o saber cultural de um povo forjado na luta que está inscrito

para sempre na história da identidade brasileira.” (DANELLI, 2007, p. 44).

Mas isso nem sempre foi assim. A capoeira nasceu como instrumento de

luta usado por escravos e quilombolas contra a repressão colonial. Após a

Abolição, ela sofreu um golpe do judiciário, que proibiu sua manifestação. Só em

1932, o Estado reconheceu-a como cultura nacional e, desde então, deixou de ser

uma ameaça social. Hoje é um ícone da identidade nacional, como mostra a

imagem 06.

Hoje, a capoeira está presente em diversos espaços sociais. Na escola, por

exemplo, sua valorização e seu resgate têm como marco a lei 10.639/03, que, de

acordo com a LDB 9394/96, propõe o seguinte artigo:

Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e de

ensino médio, públicos e privados, torna-se obrigatório o

estudo da história e cultura afro-brasileira e indígena. § 1o O

conteúdo programático a que se refere este artigo incluirá

diversos aspectos da história e da cultura que caracterizam a

formação da população brasileira, a partir desses dois grupos

étnicos, tais como o estudo da história da África e dos

africanos, a luta dos negros e dos povos indígenas no Brasil, a

Imagem 05. Capoeira: luta & dança (PIRES & PIRES, 2009, p. 68).

Page 136: O negro e a cultura afro-brasileira: uma bricolagem multicultural do

136

cultura negra e indígena brasileira e o negro e o índio na

formação da sociedade nacional, resgatando as suas

contribuições nas áreas social, econômica e política,

pertinentes à história do Brasil (BRASIL, 2004).

Agora, a capoeira é reconhecida como arte e, como tal, deve ser

reproduzida, como cultura nacional. Todavia, nem sempre foi assim. Se hoje a

capoeira é reconhecida como cultura oficial e se tornou um ícone nacional, no

passado custou muita luta com o poder político para conseguir esse respeito

social. A capoeira, até a década de 30, era marginalizada e quem a praticava era

considerado um “capoeira”, aquele que seria sem moral, vingativo, traiçoeiro. Se

hoje ela é praticada por todas as “raças” e classes, foi porque os movimentos

sociais negros lutaram não apenas com o corpo, mas contra o preconceito à sua

cultura para que as suas diferenças culturais fossem prestigiadas e se tornassem

importantes na cultura nacional,

Na culinária não foi diferente. Conhecida nacionalmente como um prato

tipicamente afro-brasileiro, reza o mito fundacional que a feijoada foi criada pelos

africanos, como afirmam os autores: “Em nossa culinária, que é uma das mais

diversificadas do mundo, encontramos a influência de povos como os africanos,

que criaram a feijoada” [...] (PIRES e PIRES, 2009, p.68). Entretanto, fontes

históricas afirmam ser a feijoada uma culinária conhecida dos europeus antes

mesmo de aqui chegar e que, no Brasil, no século XIX, era um dos pratos

preferidos da elite carioca. Portanto, a lenda de que ela teria vindo da senzala não

passaria de uma “bela estória” (ELIAS, 2007, SILVA e GOMES, 2008). Longe de

contradizer tais fontes, contudo, entendemos que, popularmente, a feijoada foi

institucionalizada como um ícone tipicamente afro-brasileiro.

Enfim, os marcadores que aqui foram grifados, música, dança,

religiosidade, capoeira e feijoada, sob a apresentação dos autores dos livros

didáticos de Geografia do sétimo ano, são considerados instituições que compõem

a cultura nacional.

Hall (2006) chama isso de tradições inventadas, narrativas do mito

fundacional do país. Diz ele:

Tradições que parecem ou alegam ser antigas são muitas vezes

de origem bastante recente e algumas vezes inventadas.

Tradição inventada significa um conjunto de práticas..., de

natureza ritual ou simbólica, que buscam inculcar certos valores

Imagem 05. Capoeira: luta & dança (PIRES & PIRES, 2009, p. 68).

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137

e normas de comportamentos através da repetição, a qual,

automaticamente, implica continuidade com um passado

histórico adequado [...] (HALL, 2006, p. 54).

Na nossa tradição inventada, os marcadores afro-brasileiros, certamente,

no passado, foram relegados e até mesmo proibidos. No presente, são

reconhecidos como patrimônio material e imaterial, uma conquista social e

política, que, têm sido importantes como marcadores da identidade nacional.

Hoje, a Constituição Federal (1988) dispõe no seu Artigo 215, inciso

primeiro, o papel de o Estado fazer a proteção das “manifestações das culturas

populares, indígenas e afro-brasileiras e das de outros grupos participantes do

processo civilizatório nacional” e, na LDB 9394/96, o Artigo 26 diz ser

obrigatório, no currículo nacional de base comum, a inclusão dessas culturas; para

complementar, foi acrescentado o Artigo 26 A, pela lei 10.639/03, que tem como

fim fundamentar o caráter político e epistemológico desta obrigatoriedade.

Neste sentido, do conjunto de textos extraídos dos livros didáticos de

Geografia, o recorte, a seguir teve, como fim, abordar cultura como espaço de

reconhecimento da diferença afro-brasileira na diferença e como lugar de

transformação social. Ao mesmo tempo, para isso, foram reconhecidas também as

múltiplas linguagens de diferentes grupos e indivíduos com as quais cada um

trazia a sua diferença:

Em meados da década de 1980, muitos jovens se encontravam com bastante frequência

no Largo São Bento, no centro da cidade de São Paulo. Eles faziam parte de um

movimento político-cultural denominado hip hop, em que discutiam as condições sociais

do negro em nossa sociedade. Nesse lugar, eles se expressavam por meio da arte, como a

dança, a música, a poesia e o grafite, e assim mostravam suas posições diante dos

problemas. A atuação do grupo nessa área era intensa. Além de divulgar o movimento,

não permitiam atitudes discriminatórias e reivindicavam seus direitos, exercendo,

portanto, uma luta cidadã. Ao delimitar uma área e nela atuar, esse grupo estabelecia

diferentes relações; entre elas destacam-se o poder que exerciam sobre aquele espaço e a

identidade negra. Assim, sua atuação pode ser identificada como a delimitação de um

território. Porém, a delimitação de um território não acontece sem conflitos. Esse grupo,

por exemplo, encontrou resistência de pessoas que apresentavam posições contrárias, o

que resultava em embates. Isso pode ocorrer quando um grupo social delimita um

território e o utiliza para se expressar, para mostrar sua posição político-cultural.

Território pode ser definido, portanto, não apenas como a configuração política de uma

cidade, estado ou país, mas um espaço construído em embates políticos, culturais, sociais

e econômicos. A delimitação de territórios pode ocorrer tanto na cidade como no campo,

os quilombos e as áreas indígenas são exemplos de territórios. BIGOTTO, J. F. [et al.].

Geografia sociedade e cotidiano: espaço brasileiro, 7º ano. São Paulo: Escala

Educacional, 2009, p. 8-9.

Page 138: O negro e a cultura afro-brasileira: uma bricolagem multicultural do

138

Tal fragmento de texto foge ao estilo dos recortes até então apresentados,

de discurso elogioso no tocante ao reconhecimento da música, dança, comida e

religião de matriz afro-brasileira, como marcadores da cultura nacional. Para esses

autores, a cultura é vista como um território de contestação e de gestão de

conflitos. A dança e a música, a poesia e o grafite, são meios que grupos e

indivíduos têm para dizer e contradizer o Outro. Neste sentido, a arte é o pano de

fundo e, ela tem um potencial para dinamizar. Ao mesmo tempo, os atores sociais

conseguem interagir na diferença da diferença com outros grupos sociais, em

torno de um mesmo projeto comum o que, geralmente, tem como fim a busca da

liberdade e da justiça social. Imagem 06:

Como mostrado nesta imagem, hoje, jovens buscam novos espaços em que

eles se sentem com liberdade para expressar suas opiniões e, ao mesmo tempo,

mostrarem a arte de cada um. No espaço urbano é possível de se ver como que os

micros lugares, muitas vezes, são ressignificados pelos atores sociais que buscam

expressar o seu ponto de vista sobre o que eles pensam de si e da sociedade. A

arte é linguagem. As diferentes linguagens, sejam elas do esporte, da música ou da

dança, têm se tornado cenas nas cidades do cotidiano, jovens de todas as cores,

raças, e credos buscando o seu espaço, ou seja, a sua liberdade de dizer sobre si e

Imagem 06. Jovens no Ibirapuera. (BIGOTO, 2009, p. 9)

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139

sobre ou outros. Isto porque a cultura tem um significado crítico e de contestação.

Por outro lado, pode ser observado, nos diferentes espaços, que a desigualdade

social ainda atinge diretamente os jovens de origem negra. Eles trazem a herança

histórica de desigualdade reproduzida pelo sistema político e econômico e, contra

isso, os jovens negros têm buscado espaço alternativo, como o hip hop, no qual

colocam a voz e protestam contra a opressão social e racial.

Enfim, retomando o topo dessa seção, a cultura afro-brasileira, como

cultura oficial, teve seu reconhecimento pelo Estado a partir dos anos trinta - de

marginalizada, tanto na música quanto na religião, passou a ser reconhecida e a

fazer parte da cultura nacional. No bojo do ideário nacionalista, Casa-grande e

senzala, Freyre (1933), trouxe uma nova abordagem sobre a interpretação do

Brasil, ao substituir o marcador raça por cultura. Isto levou à inversão de

reconhecimento que, até então, imputava às “raças” inferiores o atraso social do

país, agora, a diversidade etnicorracial passava a ser reconhecida pelo Estado e

este reconhecimento colocava o Brasil com os olhos voltados para o futuro, como

o país que se assumia multirracial.

No âmbito da educação, a incorporação da cultura afro-brasileira pelo

Estado como cultura oficial se efetivou com a criação da política nacional do livro

didático (1938). Desde então, esta política avançou e, atualmente, o currículo

nacional comum da educação básica tem passado por uma nova roupagem,

principalmente com a homologação da lei 10.639/03, cujo objetivo tem sido o

reconhecimento da cultura afro-brasileira e o combate ao racismo (BRASIL,

2004).

O que se conclui é que existe, uma intrínseca relação política entre

sociedade, Estado e educação. A sociedade é controlada por grupos hegemônicos

que utilizam mecanismos sutis para situar o discurso dominante de cultura como o

necessário e único e, ao mesmo tempo, o Estado, o monopólio legítimo do poder

por ele, culturas são oficializadas e outras, não. Nesta lógica reprodutivista, a

educação segue a dinâmica econômica e política da sociedade, retroalimentando

os interesses dos grupos dominantes que optam por certos temas e discursos em

detrimentos de outros. Numa abordagem crítica de cultura, para complementar,

Moreira e Silva (2002, p. 26) colocam que a “educação e currículo são vistos

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140

como profundamente envolvidos com o processo cultural,” porque, para eles, a

cultura é um campo de disputa e de possibilidade na transformação social.

Finalizando, nesta perspectiva, a seção apontou que, para maioria dos

autores, o discurso sobre a cultura afro-brasileira passa pelo reconhecimento dos

marcadores culturais, música, dança, religiosidade, capoeira e comida

(SAMPAIO, 2009; MAGALHÃES, 2008; DANIELLI, 2007; PIRES & PIRES,

2009). Ao mesmo tempo, observa-se que esses autores foram redundantes na

linguagem elogiosa ao destacar a importância, a influência e a contribuição da

cultura afro-brasileira através desses marcadores. Não obstante, o presente

pesquisador manteve sua proposta inicial de que os fragmentos textuais e

imagéticos seriam refletidos à luz da abordagem crítica e pós-crítica de cultura.

Neste sentido, as narrativas foram analisadas dentro de uma perspectiva histórico-

social e os discursos “elogiosos” foram tensionados com vista no passado social

do negro, o qual era firmado em preconceitos e estereótipos.

Bigoto (2008), dentre os autores dos livros didáticos, foi o único a

apresentar uma abordagem da cultura para além da intenção elogiosa. Ele debateu

a cultura como um espaço de contestação, um lugar em que se luta pela

transformação social, como mostra o seu recorte na página 137. Para completar,

ele ilustrou o seu texto com uma imagem que inspira arte como linguagem, com

hip hop, grafite e poesia, daqueles que lutam contra a opressão e pelo direito de

ter direito na diferença.

Vimos, então, nesta seção, que o livro didático ocupa um lugar estratégico

entre cultura, sociedade e escola. Ele é o espelho sobre o qual rebatem interesses,

políticos e ideológicos, que se materializam através do currículo. Este último não

é apenas um conjunto de conteúdos organizado por técnicos e distribuído pelo

governo às escolas. Ao contrário, o currículo é um campo de disputas e de arranjo

econômico e social, pelos quais se refletem épocas, saberes e ideologias.

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141

4.3 Raça e renda: negros e brancos em espaços desiguais

Nesta penúltima seção, os textos apresentados, extraídos dos livros

didáticos de Geografia do sétimo ano, abordam a exclusão do negro dos espaços

sociais, com base no conceito de raça e renda. Com efeito, fomos educados, na

cultura do pensamento liberal, a identificar a exclusão, com maior frequência,

pelos indicadores sociais e não pelos marcadores raciais com um sentido social.

Isto fez com que, com o tempo, fosse gerada no inconsciente nacional a ideia de

que a causa da desigualdade entre negros e brancos não seria uma questão de

preconceito racial, mas apenas de preconceito social. A ideia que vingou e se

fixou no imaginário nacional, portanto, foi a de que o preconceito no Brasil é

social, fazendo cair no esquecimento a desigualdade de raça. O Estado e a cultura

dominante avalizaram esse discurso. Dessa forma, não fazia sentido assumir o

racismo, já que a sociedade se orientava em viver “plenamente” uma democracia

racial.

No país da República, “todos são iguais”, isso já estava consumado desde

a Constituição de 1891; no mesmo sentido, nos anos trinta, o nacionalismo

também propalava esse ideal de igualdade, o que fazia esquecer as contradições à

época e, desde então, o racismo teria ficado para trás, o mesmo havia sido

sepultado junto com a escravidão no século passado.

Porém, há sem dúvida, controvérsias sobre esse ideal de igualdade de

inspiração liberal. Para Fernandes (1978; 2008), isto não passou do que ele

chamou de “mito da democracia racial”. Acerca desse período de otimismo, de

afirmação positiva, o autor diz ser a situação do negro a mais aviltante: o mesmo

foi alijado de direitos sociais e sua garantia de igualdade estava apenas na lei. A

ele faltava o acesso à educação, à igualdade de oportunidade e a uma cidadania e

segundo seu ponto de vista, é possível que, ainda hoje, esta realidade não se

mostre tão diferente da que ele dizia.

Hoje, a disparidade entre negros e brancos ainda persiste no quadro social

brasileiro. Na verdade, a trajetória do negro conta com um agravante histórico - no

passado, foi-lhe negada a igualdade de oportunidade e isto se arrasta atualmente

fazendo-nos acreditar ser essa causa de ele não ter conquistado a sua plena

paridade de status com o branco. Basta olhar para o atual judiciário brasileiro, no

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142

seu degrau mais alto – o Supremo Tribunal Federal (STF) _ lugar sobre o qual se

espelha a realidade desigual, na proporção de Ministros por cor e gênero. No total,

são dez. Sua divisão: Ministros, homens e brancos, sete; Ministros, homens e

negros, um; Ministras, mulheres e brancas, duas; Ministras, mulheres e negras,

zero. O homem negro perde por cor e por gênero; encontra-se atrás do homem

branco e da mulher branca. A mulher negra perde em todas as comparações. Ela

está ausente neste espaço. Por quê?

O fato de o homem negro e de a mulher negra encontrarem-se em menor

número em ocupação de status elevado comparados com o homem e com a

mulher branca, em qualquer setor social de trabalho, não pode ser atribuído a sua

incapacidade intelectual, mas à sua trajetória social, que teve a sua origem num

passado excludente. De fato, historicamente, estes fazem parte de um grupo da

população brasileira que até então se encontrava fora do direcionamento dos

setores de políticas universais efetivas e também de políticas de ação afirmativa.

Por isso, nesse sentido, o objetivo especifico desta seção é apresentar os recortes

textuais que tratam da causa da desigualdade entre negros e brancos, apontada

pelos autores sob duas abordagens diferentes. Em uma, a causa principal da

desigualdade seria a raça e, na outra, a renda, ou seja: a primeira discute os efeitos

da discriminação racial e a segunda acusa a má distribuição de renda.

Na perspectiva deste pesquisador, raça e renda são indicadores que

permitem cartografar a realidade social de uma sociedade, de representar os seus

avanços e contradições. Um conceito não excluiria o outro: renda serviria para

mostrar a distribuição e o acesso ao status quo e raça, para mostrar a estrutura

hierárquica, em que se construíram historicamente os estratos sociais. Raça é uma

“velha” questão do mundo, desde quando já se utilizava do conceito para

hierarquizar e discriminar gente. Ocorre que, na Modernidade, o conceito foi

ressignificado politicamente e ganhou espaço no campo das Ciências Naturais no

século XIX e alcançou o status de ciência por certo tempo, até deixar de ser no

campo da Biologia (MUNANGA, 1999, p. 21).

Hoje, quando nos referimos ao conceito “raça” no que tange ao estudo da

população, geralmente, o sentido recorrente, pelo qual ele é lembrado, é o

biológico. Historicamente, na Era Moderna, o discurso de raça foi

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143

institucionalizado a partir de significados que se baseiam nos referenciais de

linhagem sanguínea, cor da pele, tamanho do crânio e etc., criado pela suposta

“ciência” que se tornou determinante na hierarquização da população, classificada

em raça superior e inferior. O pensamento racial moderno se misturava, assim,

com o projeto de colonização europeia, quando, no século XV, o conceito de

humanidade foi colocado em dúvida a partir da descoberta dos povos negros,

ameríndios, melanésios, etc., que, à época, foram classificados pelos europeus

como raças inferiores (Idem, 1990). Tal crença inspirou teorias e doutrinas raciais

que serviram de pano de fundo para justificar o trabalho compulsório e o

ultrajante tratamento social que o colonizador passou a exercer sobre os

ameríndios e africanos. Isso teve duração até final do século XIX, quando a

escravidão foi abolida no Brasil.

Entretanto, a Abolição não significou o fim da supremacia racial europeia

sobre os povos racialmente hierarquizados. O então século XX, que estava

começando, pôde assistir, no decorrer de sua história, ao desdobramento do

projeto “civilizatório” iniciado no século XIX pelo imperialismo em África e Ásia

a se materializar com o desencadeamento da Primeira e da Segunda Guerra

Mundial, que teve como seu “ideal” (a Segunda Grande Guerra) alcançar a pureza

da raça, o que levou à ascensão do nazismo e findou com o holocausto

(MUNANGA, 1999). De certo, o saldo de exclusão social do século XX foi

herdado de uma época cujo pensamento firmava-se em torno do hiato raça, e que,

ainda hoje, separa o indivíduo em superior e inferior por uma perspectiva histórica

e não biológica.

Embora as ciências naturais, através da genética, comprovem que raça não

existe e isto ser incontestável, para as ciências sociais o sentido biológico de raça

não é determinante. As mesmas operam com outros paradigmas diferentes do das

ciências naturais. Para as Ciências Sociais, raça tem um sentido político e social e,

como tal, sempre foi usada para hierarquizar e classificar pessoas em inferior e

superior (QUIJANO, 2005). Basta olhar para a história da eugenia mundial: países

ditos democráticos, tanto na Europa como na América, desenvolveram políticas

públicas e privadas eugenistas, baseadas no aperfeiçoamento do homem e na sua

evolução, a cada geração, pela busca do perfil de um ser saudável, belo e forte

(DIWAN, 2007, p. 22).

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144

Mas, ao mesmo tempo, raça ultrapassou o campo teórico e se materializou

como política de Estado. Desde sua adoção, gente foi classificada e hierarquizada,

assim como exterminada em nome da raça “pura” – a história é testemunha. A

questão que se põe atualmente é: como desierarquizar pensamentos e estruturas

sociais que foram hierarquizados segundo o paradigma racial?

Na opinião de Ikawa (2008), raça desde sempre serviu para:

(...) a construção de hierarquias morais convencionais não

condizentes com o conceito de ser humano dotado de valor

intrínseco ou com o princípio de igualdade de respeito (...). Se a

raça foi utilizada para construir hierarquias, deverá também ser

utilizada para desconstruí-las (IKAWA, 2008, apud

LEWANDOWSKI, 2012).

Este pensamento foi acolhido recentemente na jurisprudência brasileira,

com base no parecer do Ministro do STF, Ricardo Lewandowski, em 2012, que se

posicionou e votou favorável à “adoção de cotas raciais para o ensino superior”.

Para tal, à época, em suas argumentações, entre muitas das referências, esta autora

foi uma delas, que ele citou, por refletir sobre a raça na perspectiva social. No seu

entendimento, as cotas representam um meio à universidade. Uma das formas de

se permitir àqueles que têm menos possibilidades, e que no passado foi negado o

direito de alcançar a igualdade de direito, de chegar ao ensino superior. Hoje, as

cotas tem a função de fazer a reparação social. Atualmente, essa desigualdade

social ainda resvala sobre seus descendentes afro-brasileiros, que continuam

carecedores de reconhecimento e de igualdade de status (FRASER, 2007, p. 118).

Neste mesmo sentido, Hall (2006) diz ser raça uma construção de

linguagem com sentidos ideológicos diferentes. Segundo o autor:

A raça é uma categoria discursiva e não uma categoria

biológica. Isto é, ela é a categoria organizadora daquelas formas

de falar, daqueles sistemas de representação e práticas sociais

(discursos) que utilizam um conjunto frouxo, frequentemente

pouco específico, de diferenças em termos de características

físicas e corporais, etc. – como marcas simbólicas, a fim de

diferenciar socialmente um grupo de outro (HALL, 2006, p.

63).

O ponto de vista apresentado por Hall vem ao encontro dos argumentos

defendidos aqui por este pesquisador, que se pautou na tese de raça como

construção social. O conceito de raça serve, antes de mais nada, para desmascarar

Page 145: O negro e a cultura afro-brasileira: uma bricolagem multicultural do

145

a desigualdade de distribuição de renda e de direitos sociais, como habitação,

saúde e educação. Não faz mais sentido, portanto, operacionalizar com o

significado biológico, sobretudo se for ao que se refere às políticas sociais de ação

afirmativa. Tomando emprestada a afirmação de Ikawa (2008), raça serviu para

construir hierarquias, e agora deve servir para desfazer as hierarquias deixadas

pelas doutrinas raciais. A questão que se põe é: como desconstruir as hierarquias

sociais deixadas pelas doutrinas racialistas?

Para o ensino de Geografia, no conteúdo do livro didático sobre

“população”, raça é um conceito utilizado por muitos autores e escamoteado ou

negado por outros. Nos recortes textuais analisados, é possível identificar a

preferência autoral pelo uso do termo raça, enquanto outros utilizam o discurso de

renda.

No ensino de Geografia, os conceitos lugar, território e paisagem são

categorias utilizadas para explicar o espaço geográfico e a relação do homem com

ele. Quando abordamos uma questão social, localizamo-la a partir do lugar, do

território que, historicamente, se encontra na paisagem. Nos presentes recortes, foi

possível observar a desigualdade por raça e cor, com também, numa escala social,

notar que o negro ocupa um lugar desigual, nas paisagens do território nacional.

Como os autores confirmam:

[...] as paisagens humanizadas de um lugar são construídas e modeladas por uma enorme

quantidade de pessoas. Portanto, para entender como o espaço geográfico está organizado

no presente, é preciso compreender um pouco das relações sociais, da vida dessas

pessoas, numa perspectiva histórica. [...] Você já viu que a paisagem acumula parte da

história, ou seja, que na paisagem podemos encontrar formas de diferentes idades. Essas

formas são uma herança de outros tempos, quando havia outras relações humanas, às

vezes muito diferentes das que existem hoje. Vejamos as heranças deixadas pelos povos

que construíram o Brasil. SENE, E de & MOREIRA. Geografia: ontem e hoje – 7º

ano. São Paulo, Scipione, 2009, p.89 -90.

O contexto histórico, para o qual os autores apontam, aborda a condição de

trabalho a que o escravo era submetido. Tempo em que os africanos foram

forçados a migrar para o outro lado do Atlântico, para trabalhar no fabrico do

açúcar, no engenho, acabando por obrigá-los, a cada um, à construção de uma

nova identidade, já que o território não era mais o seu e a história que passavam a

construir não era mais sobre a mesma paisagem.

Page 146: O negro e a cultura afro-brasileira: uma bricolagem multicultural do

146

Hoje, sabe-se, embora os africanos tenham migrado como escravos,

ninguém nascia escravo. A escravidão era uma instituição que legitimava as

estruturas sociais a fazerem escravos. Dizem os autores:

Desde sua captura em solo africano, os escravos eram tratados como peças que só

precisavam de manutenção ou reposição. Os portugueses colonizadores não se

preocupavam em saber sobre sua língua, cultura ou procedência étnica. (Idem, 2009).

A dimensão humana do africano importado era desimportante para o seu

dono. Seu reconhecimento vinha de sua força e da destreza, qualidades

indispensáveis no seu trabalho. Ao ser negociado, os consumidores tinham

preferência por corpos sem defeitos, com dentes saudáveis. Esses indicativos

davam a certeza de que sua vida produtiva seria longa e um bom negócio para

quem o comprasse.

Os negros, trazidos como escravos no período da colonização brasileira, não compunham

uma população homogênea- originaram-se de diferentes grupos étnicos africanos.

Calcula-se que, durante o período da metade do século XVI à primeira metade do século

XIX (até 1850), cerca de 4 milhões de negros foram trazidos ao Brasil. De acordo com o

Censo 2000, os negros compõem cerca de 6,6% da população e se concentram

principalmente nos estados do Maranhão, Bahia, Minas Gerais, São Paulo e Rio de

Janeiro. BIGOTO et alli. Sociedade e Cotidiano, 7. São Paulo: Atual, 2009, 91-92.

De fato, o Brasil, desde o século XVI, foi o lugar que mais recebeu

africano. Hoje é o país que tem a maior concentração de população negra fora da

África; na verdade, apenas a Nigéria - um país africano - tem população negra

maior que a do Brasil. É um contingente populacional significativo, que ajudou a

fazer a história desse país e, contudo, até hoje, uma grande parte dessa população

luta por recursos básicos para sua subsistência, ainda é a parcela menos

favorecida. Para Boligian (2009) e outros, a causa desta questão volta-se para a

distribuição de renda e educação. Expõem:

A concentração da renda no Brasil é, certamente, o maior motivo das desigualdades

sociais existentes. Uma parte razoável da população brasileira vive em condições

extremamente precárias de moradia, educação e saúde, enquanto uma parcela bem menor

apresenta elevados padrões de vida. BOLIGIAN [et al.]. Geografia espaço e vivência: a

organização do espaço brasileiro, 7º. São Paulo: Atual, 2009, p.52

Para esses autores, a concentração de renda seria a maior causa das

desigualdades sociais, que acaba por polarizar o desenvolvimento social, ficando

de um lado a minoria rica e, do outro, a maioria pobre privada de infraestrutura e

de acesso a serviços de qualidade. De fato, essa é uma realidade que pode ser vista

Page 147: O negro e a cultura afro-brasileira: uma bricolagem multicultural do

147

a olho nu. Na maioria dos espaços urbanos e rurais do país, a desigualdade ainda

permanece e tudo isso tem uma explicação histórico-social:

Com a intensificação das pressões inglesas para o fim do tráfico negreiro e com a edição

da Lei Eusébio de Queirós, de 1850 (que proibiu a vinda de novos escravos), os

proprietários de terras, especialmente de fazendas de café – atividade predominante no

pais na segunda metade do século XIX e primeira metade do século XX - , passavam a

incentivar a vinda de imigrantes para substituir a mão de obra escrava. (VESENTINI &

VlACH, 2009, p. 33-34).

A vinda do imigrante branco, a partir de meado do século XIX, de fato foi

um agravante para o negro, porque, à medida que o processo de abolição foi se

acelerando, ele também foi se deslocando para a cidade em busca de outras

condições de vida. Na cidade, ele passava a disputar com o branco imigrante um

lugar no mercado de trabalho e, certamente, o imigrante tinha um grau de

instrução ou uma profissão que o colocavam à frente. Concluímos que, a ponte

para a cidadania, desde então é a educação. Sem o mínimo de instrução, a

condição de ascensão social torna-se quase que impossível.

Hoje, o que herdamos foi um país desigual. O século XX assistiu à luta

pelo acesso à educação como um bem fundamental para a cidadania plena. É

como disse Boligian (2009): hoje, a parcela mais rica, além de garantir o acesso à

educação, vê seus filhos estudarem nas melhores escolas e universidades. Por

outro lado, a outra parcela da população, vive uma realidade oposta, inclusive no

ensino superior, como nos conta Reis (2007, p. 50-51):

As oportunidades entre negros e brancos não se deram de forma

igualitária, e isto se refletiu também na realidade educacional. O

espaço acadêmico é, atualmente, onde esta realidade se expressa

com maior intensidade. [...] estudos demonstram que somente

2% dos jovens negros chegam aos cursos superiores, o que

levou a ações no sentido de reverter positivamente este quadro

(HENRIQUE, 2001 Apud, REIS, 2007).

Acredita-se que, com o tempo, com as políticas de ação afirmativa para o

ensino superior, que estão sendo amplamente implementadas, esse quadro vá

sofrer alteração. No entanto, sabemos que o déficit social na trajetória do negro é

histórico e, por isso, está longe de chegar em condições de igualdade com a

população branca. Quando falamos de trajetória social, estamos nos referindo ao

direito de acesso a bens e serviços. Para tanto, seria função do Estado promover

políticas sociais eficientes, que atendessem os anseios da população negra, que

Page 148: O negro e a cultura afro-brasileira: uma bricolagem multicultural do

148

durante muito tempo esteve alijada e longe de acesso aos direitos sociais. O

agravante maior é que, ainda hoje, isto reflete na estrutura educacional do país.

Como pensar cidadania se o direito social fundamental, que é a educação, até

então foi excludente? Em todos os tempos, em todas as pesquisas feitas até então

pelos órgãos oficiais, a população de raça negra, comparada com a população de

raça branca, tem sido menos favorecida a bens a serviços. Por quê? É redundante

dizer, mas uma população que durante séculos viveu na condição de coisa, com

direito só a subsistência, ao ser levada ao status de cidadão, se não conquistou

educação e renda, torna inerte a mobilidade social.

A educação é o ponto central da mobilidade da população negra, isso todos

sabem. O difícil era o acesso a esse direito oferecido pelo serviço público, quando,

nas primeiras décadas do século XX, o controle do ensino da educação básica

estava com o Estado e com o setor conservador da igreja. Isso mostra que a

cidadania tão esperada, inclusive pelos movimentos sociais negros, como a FNB,

não aconteceu. Só muito mais tarde, com a Reforma da LDB com a Lei 5692/71, é

que de fato vai se iniciar o processo de democratização do ensino, com a expansão

do primeiro e do segundo graus atingindo os lugares mais distantes do país,

beneficiando as populações de poder aquisitivo mais baixo.

Durante todo o século XX, a população negra comparada com a população

branca foi a que menos acesso a bens e serviços alcançou. A lógica da sociedade

capitalista é simples para se compreender: a ascensão só vai ocorrer à medida que

o indivíduo seja colocado em igualdade de condição para a competitividade na

sociedade que presume a liberdade e a igualdade. Todavia, se a igualdade de

condições não estiver à altura dos outros pares, àqueles que possuírem menores

condições de competitividade, certamente a chance para vencer também será

menor.

Para entender como essa divisão ainda persiste e de forma tão desigual,

uma pesquisa do Dieese30

aponta o analfabetismo ainda como um fator de

exclusão, como mostra o mapa 01, na página seguinte. Em cada região do IBGE, a

cor negra e parda são as que demonstram ter maior número de analfabetos

absolutos do país.

30

Cf. (DANELLI, 2007, p. 45),

Page 149: O negro e a cultura afro-brasileira: uma bricolagem multicultural do

149

Do resultado apresentado no mapa, sobre o número de analfabetos ser

maior entre negros e pardos, a autora argumenta:

Durante muito tempo acreditou-se que a “mistura” de povos fazia do nosso país uma

democracia racial, isto é, um país sem racismo, onde todos seriam tratados da mesma

forma e teriam as mesmas oportunidades. No entanto, em nosso país há um racismo

disfarçado contra negros e indígenas, levando grande parte da população a não reconhecer

sua própria origem. Prova disso é que muitas pessoas que poderiam ser classificadas

como pardas ou negras se autodeclaram brancas. DANELLI. Geografia. São Paulo:

Editora Moderna, 2007, p.45.

Portanto, para essa autora, a causa número um do analfabetismo ainda se

perpetuar sobre a população negra estaria no racismo disfarçado, ou seja, segundo

a lei, todos são iguais, entretanto, a via de acesso à igualdade estaria fechada para

a população negra.

Neste mesmo sentido, para Carvalho e Pereira (2009), a cor e o sexo são

fatores de exclusão e o grupo mais atingido seria o dos negros. Os autores dizem:

As desigualdades sociais existentes entre as pessoas não resultam exclusivamente das

condições econômicas. Há pelo menos dois outros fatores que exercem grande influência

nesse sentido, e cuja importância merece ser registrada. Ainda é muito forte o tratamento

discriminatório e desigual a que as pessoas são submetidas no Brasil apenas por causa de

Mapa 01: Danelli, (2007), Projeto Araribá.

Page 150: O negro e a cultura afro-brasileira: uma bricolagem multicultural do

150

suas condições de cor ou sexo, segundo o levantamento realizado pelas últimas pesquisas

do IBGE. Da mesma maneira, entre brancos e não brancos as diferenças são grandes.

Comparando-se o rendimento médio das populações preta e parda (segundo denominação

utilizada pelo IBGE) com a branca, constatou-se que os primeiros receberam em 2001 a

metade do que receberam os brancos. E aqui, também, as maiores diferenças de

rendimentos foram encontradas entre os mais escolarizados, com 12 ou mais anos de

estudo. CARVALHO, M. B & PEREIRA, D. A. C. Geografia do mundo: Brasil, 7º

ano. São Paulo: FTD, 2009, p.122-123.

Para esses autores, a cor e o sexo são dois fatores que contribuem para a

manutenção da discriminação racial, associados ao preconceito de gênero e de

raça. Para eles, tal disparidade reflete diretamente no mercado de trabalho:

Ao comparar os rendimentos, os homens pretos e pardos ganham cerca de 30% menos do

que as mulheres brancas, o que parece ser uma forte indicação de que no Brasil a cor da

pele é motivo de discriminação maior ainda do que a condição de gênero. Diante desses

dados, não seriam necessários longos argumentos nem explicações complicadas para

convencer qualquer um da importância dessa discussão, sobretudo quando consideramos

que a população brasileira, além de ser majoritariamente constituída de mulheres

(conforme nos indicam os próprios dados do IBGE), é visivelmente uma população

mestiça, com elevada quantidade de negros; estes, no entanto, aparecem nas estatísticas

populacionais como minoria absoluta, diante da maioria branca e parda que os últimos

censos têm revelado. (Idem, 2009).

Para os autores, a disparidade de salário entre negros e bancos e entre o

homem negro e a mulher branca tem suas raízes na formação social do Brasil.

Para eles, a mesma elite que escravizou, após a Abolição usou de subterfúgios,

como o mito da “democracia racial” para escamotear o drama social e racial no

qual o negro vivia e, com isso, se eximiu de uma reparação para com o mesmo.

Eles ponderam:

[...] São muitas as explicações para origens dessa atitude de discriminação. Para

enumerá-las, com certeza seríamos remetidos inclusive à própria história da formação do

país e de sua sociedade, como a imposição de valores pela colonização europeia, as

disputas territoriais com os indígenas e os séculos de mão de obra negra escravizada. Não

é o caso, aqui, de nos desviarmos para as análises desses episódios. [...] De qualquer

forma, não poderíamos encerrar nossa abordagem da geografia da população brasileira

sem fazer referência a aspectos que evidenciam uma geografia que é também de injustiças

e discriminações. Omitindo tais aspectos, contribuímos para alimentar mitos comuns e

muito difundidos para caracterizar a população brasileira, como o de “democracia racial”,

uma situação em que prevaleceria uma condição de igualdade de oportunidades para

todas as pessoas, independentemente da cor da pele ou da origem etnicorracial de cada

um (Ibidem, 2009).

Infelizmente, não foi esse o caminho tomado. Na verdade, o caminho

bifurcou-se para a desigualdade e para a invisibilidade do negro e, para o branco,

em privilégio e poder. Graças à estrutura social e econômica historicamente

Page 151: O negro e a cultura afro-brasileira: uma bricolagem multicultural do

151

construída, seu presente, comparado com o do branco, continua desigual. Isto

porque:

Durante quase meio século, permaneceu soberana e intocável

uma ideologia racial que colidia com as bases ecológicas,

econômicas, psicológicas, sociais, culturais, jurídicas e políticas

de uma sociedade multirracial, de estrutura secularizada, aberta

e em diferenciação tumultuosa! [...] Na ânsia de prevenir

tensões raciais hipotéticas e de assegurar uma via eficaz para a

integração gradativa da “população de cor”, fecharam-se todas

as portas que poderiam colocar o negro e o mulato na área dos

benefícios diretos do processo de democratização dos direitos e

garantias sociais. Pois é patente a lógica desse padrão histórico

de justiça social. Em nome de uma igualdade perfeita no futuro,

acorrentava-se o “homem de cor” aos grilhões invisíveis de seu

passado, a uma condição subhumana de existência e a uma

disfarçada servidão eterna (FERNANDES: 2008, p. 363,309).

Cabe ao Estado brasileiro desafiar, com políticas efetivas, tais

desigualdades, criando mecanismos de combate ao racismo e mecanismos outros

que façam com que o negro salte a linha de pobreza. Como diz esse autor, fazer

acontecer a ascensão vertical do negro. Para isso, acreditamos ser necessário

desafiar a barreira de raça e de classe, o que exigiria política de reconhecimento

que resgatasse sua história e sua autoestima social. Por outro lado, acreditamos ser

necessário vencer a barreira de classe e fazer a redistribuição de renda, com

políticas de ação afirmativa voltadas para a educação e para os jovens negros que

aspiram ao mercado de trabalho e que vivem em estado de vulnerabilidade, como

aqueles que são maioria fora da escola. Não é possível reverter esse quadro

desigual sem este enfrentamento, visto que a realidade social ainda é carregada de

discriminação. Como dizem os autores:

Devido às condições socioeconômicas a que foi historicamente submetido, esse grupo

apresenta atualmente menores índices de qualidade de vida, sendo muitas vezes vitima de

atitudes discriminatórias ou preconceituosas. [...] A população caracterizada como parda

é resultante do processo de miscigenação e, de acordo com o Censo 2000, compreende

quase 40% da população brasileira. Em geral as pessoas que compõem esse grupo muitas

vezes se autodeclaram morenas ou mulatas. Assim como os negros, grande parte das

pessoas desse grupo enfrenta problemas econômicos e, especialmente as mais pobres,

também sofrem com atitudes discriminatórias. [...]BIGOTO et alli. Sociedade e

Cotidiano, 7º. São Paulo: Atual, 2009, 91-92.

Ainda no mesmo texto, os autores discutem a autodeclaração de

pertencimento etnicorracial e a posição de quem se assume pertencente a um

grupo. Argumentam:

Page 152: O negro e a cultura afro-brasileira: uma bricolagem multicultural do

152

No recenseamento, ao classificar os grupos por raça e cor, corre-se o risco de não

quantificar corretamente a porcentagem de cada grupo diante da população total. As

pessoas podem assumir sua identidade de acordo com as suas posições políticas,

condições socioeconômicas ou consciência étnica. Muitas vezes, indivíduos optam por

negar a sua verdadeira origem para se proteger de discriminação racial ou econômica. Há,

por exemplo, um número considerável de orientais, negros, pardos e índios que não se

assume como tal. Portanto, na realidade, não é a cor da pele que acaba definindo o grupo

a que uma pessoa pertence, mas sim a consciência e a posição que ela assume diante da

sociedade. (Idem, 2009).

De fato, a consciência é o lugar primeiro que norteia e define a pessoa a

assumir sua identidade. Porém, a cor da pele é também um marcador de sua

identidade. A consciência é a posição que a pessoa assume sobre o que ela é, ou

seja, sobre aquilo que vem do Eu interior e de sua formação psicossocial, de como

ela aprendeu a se olhar interior e exteriormente. As características físicas são

marcadores que permitem à pessoa se identificar a proporção que ela se vê

refletida no Outro, com aquilo que o seu Eu diz sobre ela mesma. Neste sentido, o

Eu reflete a autoconfiança, o autorrespeito e a sua autoestima (HONNETH, 2007).

A cor da pele como representação social ultrapassa as propriedades

biológicas do homem. Como um marcador racial, ela agrega representações,

linguagens e sentidos diversos, pelos quais, se não houver uma identidade

construída positiva, a pessoa se vê refletida nos estereótipos negativos e

desenvolve um potencial para se vitimar na estereotipia dominante que a cerca.

Nesse caso, o corpo torna-se “um dos locais envolvidos no estabelecimento das

fronteiras que definem quem nós somos, servindo de fundamento para a

identidade” (WOODWARD, 2009, p. 15) e, essa, como tal, é dinâmica e

complexa, o que possibilita mudar e sempre.

Como diz esta autora:

A representação inclui as práticas de significação e os sistemas

simbólicos por meio dos quais os significados são produzidos,

posicionando-nos como sujeito. É por meio dos significados

produzidos pelas representações que damos sentido à nossa

experiência e àquilo que somos (Idem, 2009, p. 15).

Nós nos assumimos, portanto, enquanto pessoa, de acordo com aquilo que

refletimos no outro. Ou seja, se fomos educados num sistema carregado de

estereótipos, em cujas representações a pele (preta) foi vista de forma distorcida,

significada de forma negativa, associada à “sujeira”, à “cor do carvão”, ao “feio” e

etc., não houve, para o negro, a construção de uma identidade positiva, porque a

Page 153: O negro e a cultura afro-brasileira: uma bricolagem multicultural do

153

significação tem poder, porque a significação é linguagem. A palavra pele é um

signo linguístico, é a junção do significante e do significado. Como significado,

são muitos os conceitos que lhe dão sentidos. O significado de pele-preta, no

campo das Ciências Políticas e Sociais, não tem o mesmo sentido que tem no

campo da Biologia. A conotação se dá de acordo com as ideologias e o

posicionamento político dos grupos e indivíduos, no seu campo, e para cada

ciência.

Somos aquilo que construímos sobre nós mesmos. Por meio da linguagem,

socializamos com aquilo que nos faz existir enquanto gente. A consciência

política e cultural, ou seja, a forma com que significamos e damos sentido às

coisas do espaço, é resultado de como nós nos construímos e nos representamos

para o outro. Vale dizer, esta construção não é fixa, ela é dinâmica. Só é fixa a

mudança. Portanto, identidade é mutável, e a cultura é determinante sobre ela.

Na presente seção, abordou-se a desigualdade social e a discriminação

racial, um drama que atinge, ainda hoje, a população negra no Brasil. Estudos

mostraram essa população ser a que menos tem acesso à saúde, à habitação e à

educação e, quando tem, é de forma bastante precária, como afirmou (DANELLI,

2007). No que tange ao seu padrão social, pardos e negros, comparados aos

brancos, têm renda menor e ainda sofrem o agravo da discriminação racial

institucionalizada, herança, um ranço do passado (BIGOTO et alli, 2009).

Na verdade, a história do negro começa desigual. Chegou como escravo e

o branco como senhor. O branco era o conquistador e dominador. O negro, o

conquistado e dominado. Como tal, não era indivíduo, seu corpo não tinha

“alma”. Racializá-lo era papel da casa-grande e da igreja. Reconhecedoras de sua

subserviência e de sua inferioridade, dispensavam-lhe tratamento desigual. Com a

Abolição, um novo quadro social foi formado, sua realidade transformada e novas

perspectivas surgiram, porém sob o desafio de aprender a conviver com a sua

invisibilidade e a parca presença de direitos sociais, que lhe deixava fora da ordem

competitiva, sem a mobilidade social (FERNANDES, 2008).

À época, a República garantiu-lhe os direitos individuais na Constituição

de 1891 Art. 72, § 2º que diz “Todos são iguais perante a lei”, entretanto esta

igualdade, ainda hoje, não se materializou em efetivas políticas sociais que

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154

proporcionassem o acesso à renda e o combate ao racismo, o que gerou

obviamente a falta de renda e a persistência do racismo.

A falta de renda e a discriminação racial a alguém é o seu não

reconhecimento ou o seu reconhecimento negativo. Contra isso, teríamos de

assumir, de fato, políticas sociais de ação afirmativa, que viabilizassem a

redistribuição de renda e o reconhecimento da cultura da pessoa. Se tal não ocorre,

fica abalada a sua autoestima.

Neste sentido, tomamos emprestado o conceito “paridade participativa” de

FRASER (2007), e “boa vida” de HONNETH (2007), como também o conceito

de raça como construção social, proposto por HALL (2009a; 2009b) e

MUNANGA (2004), por entender que, juntos, são elementos centrais para o

reconhecimento na redistribuição de renda e no combate ao racismo no que tange

à população negra no Brasil. Para Fraser (2007), o caminho viável para o

reconhecimento da população negra, alijada da sociedade, seria promover

mecanismos de integração que a colocassem em condição paritária, ou seja, com

poder de competir com os outros. A autora acredita que, se houver distribuição de

renda e acesso a status, isso seria suficiente para reduzir a desigualdade social.

Para Honneth (2007), a dimensão econômica é importante para alguém que se

sinta fora da sociedade, vivendo alguma forma de desrespeito social. No entanto,

apenas colocá-lo em condição paritária, não seria suficiente para seu

reconhecimento. Para o autor, o reconhecimento se daria ao se considerarem

outras dimensões do sujeito, passando pelas dimensões do Eu primeiramente, pela

esfera da família, lugar em que ocorrem as primeiras formas de reconhecimento e

autoconfiança e, a posteriori, na esfera jurídica, lugar em que o reconhecimento se

dá na luta pelos direitos sociais, na busca do autorrespeito. Para esse autor, é

fundamental o sujeito adquirir, no seio de suas relações primárias (a família), o

reconhecimento do outro. Seria pelo outro que se buscariam as primeiras formas

de reconhecimento e a autoconfiança. Consequentemente, na esfera jurídica (na

sociedade), buscaria estabelecer políticas culturais e de identidade, no sentido de

promover a integridade social, gerando o autorrespeito e a autoestima.

Outra forma de se lutar por reconhecimento encontramos nos conceitos

que Hall (2009a; 2009b) e Munanga (2004) quando defendem raça como uma

Page 155: O negro e a cultura afro-brasileira: uma bricolagem multicultural do

155

construção social. Ambos não utilizam do entendimento secular com base no

campo biológico, das ciências naturais, ao contrário disso, eles discutem raça a

partir da diferença e da hierarquia/social das ciências sociais, com base em outros

paradigmas, em que o primeiro propõe “uma nova lógica política”

multiculturalista, em que o particular desafia o universal, e a igualdade e a

diferença são invocadas a tensionar as relações culturais e jurídicas da sociedade

liberal democrática. Para o primeiro, raça, hoje, opera sob rasura; seu sentido

biológico, cunhado nas teorias raciais do passado, caiu; contudo, ficou de pé o

conjunto de crenças e doutrinas e uma sociedade forjada na hierarquia social

deixados pelo discurso da raça. Para o segundo, raça ganhou conotação mais

doutrinária e política, em que parte dessas doutrinas foi incorporada pelo

nacionalismo e pelas ideologias de Estado como o caso do nazismo. No caso do

Brasil, o efeito, ou seja, a estratificação produzida por ela está no pós-escravidão,

assunto amplamente abordado neste trabalho. Como se sabe, após a Abolição,

instituiu-se um Estado desigual, hierarquizado, no qual havia, de um lado

cidadãos inclusos e, do outro, ex-escravos lutando pela inclusão.

Com efeito, cada autor aqui contribuiu para esta seção, à medida que cada

um teve algo a dizer sobre renda e desigualdade de raça. No caso da população

negra, que luta ainda hoje por acesso à renda e no combate ao racismo, a saída

seria a promoção de políticas de reconhecimento que consigam atender as

questões centrais: a renda e o antirracismo. Neste sentido, comungamos com o

pensamento de Fraser (2007) e Honneth (2007). Para a primeira, reconhecer é

colocar em igualdade de condições os pares para competir, e para o segundo, é

necessário o reconhecimento da cultura e da identidade. Essas duas formas de

reconhecimento, juntas, colocariam o negro em condição de igualdade de

competição o que, ao final, o levaria a ter prestígio social e cultural.

Fomos educados a tratar a desigualdade com política de igualdade. Usar a

política da diferença para tratar a desigualdade é um desafio que está sendo posto

pelas políticas atuais, de ação afirmativa. De fato, hoje as políticas de ação

afirmativa estão em diferentes esferas da sociedade brasileira e, nesse caso, a

educação tem sido a que mais tem ganhado destaque pelas travadas e calorosas

discussões sobre leis e políticas de cotas raciais que abriram o acesso para o

ensino superior. No que tange à educação básica, a implementação da lei

Page 156: O negro e a cultura afro-brasileira: uma bricolagem multicultural do

156

10.639/03 trouxe como proposta o resgate da cultura afro-brasileira, um desafio

que propõe tensionar as relações sociais e combater o racismo, o que ainda

persiste manchar o tecido pluricultural formador da população brasileira.

Pedagogicamente, no total de todas as argumentações aqui apresentadas, e no que

esse trabalho pretende avançar, estaria o custo de buscar a orientação adequada da

cultura afro-brasileira e dos apontamentos de raça, racismo, e renda, para um

público tão especifico, discente do sétimo ano, e, para isso, entendemos ser

necessário desenvolver uma linguagem que vá ao encontro do que aponta a lei

10.639/03.

4.4 A descolonialidade do ensino de Geografia

Até aqui, os nossos esforços foram concentrados no sentido de construir

uma síntese histórico-social e espacial da narrativa do negro deslocado com a

diáspora africana a partir do século XVI para as colônias portuguesas da América,

e especialmente para o Brasil, em que a luta por reconhecimento entre o senhor e

o escravo durante séculos foi um embate de vida e morte, em que o primeiro

soube fazer da violência o império da força para a manutenção do seu

reconhecimento sobre o segundo. Do outro lado, ao mesmo tempo, a luta pela

emancipação fazia também formas de resistir na religião, na música, na dança e

nos quilombos, lugares e espaços pelos quais cultivavam a igualdade daqueles que

lutavam contra as forças opressoras do senhor. Como mostra o capítulo 2 desse

trabalho, no mundo, até o século XVI, havia dois tipos de identidades globais: a

europeia e a não europeia. De acordo com os paradigmas da Geografia,

conceitualmente o mundo era pensado com base nos parâmetros biológicos das

ciências naturais, em que a raça era o marcador social que definia o potencial

natural de população e meio, e que se distribuía entre superior e inferior segundo

La Blache (1921). Ademais, foi criada a classificação de civilizado, do homem

europeu, branco, cristão, ao selvagem, ao homem americano, africano, asiático,

preto e amarelo, de religião primitiva. Essa dimensão reproduziu a crença na

explicação pela geografia tradicional de que a raça era o marcador determinante

das diferenças entre os povos. Nesse caso, a Geografia como ciência se baseou no

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157

método naturalista que tinha como um fim a crença na natureza, de que o meio era

um determinante do espaço; ou seja, o meio geográfico era determinante sobre o

meio social. Esse paradigma prevalece como uma verdade e é usada pelas ciências

naturais e pela Antropologia positivista até as três primeiras décadas do século

XX, no Brasil considerado pelo pensamento social o período do “espetáculo das

raças” (SCHWARCZ, 1993). Nesse sentido, no ensino de Geografia, com base no

método descritivo da geografia tradicional, todo o direcionamento tinha como

perspectiva a importância da descrição das coisas no espaço. O que importava era

descrever os lugares e não o que os homens faziam com as coisas dos lugares.

Visto deste ponto, para a geografia tradicional o homem, o seu fazer social, ou

seja, a sociedade, era menos importante do que as leis naturais que explicavam as

coisas no espaço e a sua localização. No caso da população mundial, a sua

distribuição e a sua localização no globo seguiam o critério civilizatório de raça

superior de um lado, e raças inferiores do outro e essa ideia, até o século XVI,

seria hegemônica. Isso fundamentou os elementos do discurso imperialista

reproduzido para o mundo na versão de que o Continente Africano representava o

berço das raças inferiores e do homem primitivo e que, para inverter esse quadro,

civilizar seria necessário. Tamanho foi o peso político e ideológico desse discurso

que a Conferência de Berlim, 1884, selou o destino da África, que foi dividida

entre os impérios cujo fim só veio com a descolonização pós Segunda Guerra

Mundial.

Essa ideia se tornou uma “narrativa mestra” e hegemônica de que a África,

na escala civilizatória, expressava a inferioridade do continente para o mundo.

Mas quem construiu esse discurso? Interessava a quem dizer que os africanos

eram inferiores? Seriam inferiores a quem? Para responder a essas questões, não

podemos perder de vista que, no século XIX, historicamente, os Estados

modernos buscavam se afirmar a partir das instituições democráticas e, para isso,

utilizavam dos mecanismos de controle e de reprodução da invenção da cultura

comum nacional da qual cada país deveria se orgulhar de pertencer. A criação da

escola pública teve um importante papel no sentido de sistematizar a cultura, o

saber em forma de conhecimento científico, organizado em forma de disciplinas

para então ser reproduzido e ensinado como o conhecimento oficial do currículo

escolar. Mas, ao mesmo tempo, como diz Foucault (2009):

Page 158: O negro e a cultura afro-brasileira: uma bricolagem multicultural do

158

A organização das disciplinas se opõe tanto ao princípio do

comentário como ao do autor. Ao do autor, visto que uma

disciplina se define por um domínio de objetos, um conjunto de

métodos, um corpus de proposições consideradas verdadeiras,

um jogo de regras e de definições, de técnicas e de

instrumentos: tudo isto constitui uma espécie de sistema

anônimo à disposição de quem quer ou pode servir-se dele, sem

que seu sentido ou sua validade estejam ligados a quem sucedeu

ser seu inventor. Mas o princípio da disciplina se opõe também

ao comentário: em uma disciplina, diferentemente do

comentário, o que é suposto no ponto de partida, não um

sentido que precisa ser redescoberto, nem uma identidade que

deve ser repetida; é aquilo que é requerido para a construção de

novos enunciados. Para que haja disciplina é preciso, pois, que

haja possibilidade de formular, e de formular indefinidamente,

proposições novas (FOUCAULT, 2009, p. 30).

Neste sentido estruturalista pensado pelo autor, seria a função da disciplina

buscar a construção de novos significados. Nesse caso, com o surgimento da

disciplina de Geografia, uma criação do Estado nacional que, como tal, estava a

serviço do discurso dos grupos hegemônicos, vai reproduzir, através dos livros

didáticos, os estereótipos sistematizados com validade científica, com base nas

produções do século XIX, de que o Continente Africano era constituído por

paisagens naturais exóticas, selvagens, com povos primitivos e de raça inferior e

sem cultura. No Brasil, não foi diferente a reprodução dessas ideias nas disciplinas

de Geografia. Neste trabalho, no capítulo 2, isso ficou claro para nós, ao

retomarmos as obras de dois autores brasileiros de livros didáticos de Geografia,

do início do século XX, Delgado de Carvalho (1884-1980) e Aroldo de Azevedo

(1910-1974), que durante décadas reproduziram em seus discursos uma África

continental sem cultura e de raça inferior. Só mais tarde substituirão esse

paradigma de raça pelo paradigma de cultura.

Hoje, a abordagem da cultura afro-brasileira no ensino de Geografia não

deve ser vista como uma mera reprodução de conteúdos esvaziada de interesse de

raça, e estanque. Ao contrário disso, a visão proposta no capítulo 2 trata do

resgate da cultura afro-brasileira com base no vir-a-ser da diferença e da

igualdade como conceitos centrais do multiculturalismo emancipatório, que, na

verdade, tem como fim o reconhecimento social e cultural do negro no currículo

do ensino de Geografia. O currículo aqui é visto como um campo de contestação e

de disputa das culturas selecionadas e incluídas e excluídas e, no caso da cultura

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159

afro-brasileira, a intenção foi saber em que medida, em que perspectivas ela é

representada pelos autores dos livros didáticos de Geografia.

Para isso, o capítulo 3 abordou a categoria raça a partir do pensamento de

Freyre (1993) na perspectiva de “Casa-grande e senzala”, e do pensamento de

Fernandes (1964) na perspectiva da “A integração do negro na sociedade de

classes”. Na verdade, a escolha desses dois autores e, especificamente, dessas

duas obras, tem a ver com a forma com que o conteúdo a respeito da cultura afro-

brasileira foi apresentada nos dados desta pesquisa, (capítulo 4), quando foi

observado o resgate da música, da dança, da culinária e da religião, pelo primeiro

autor, e a luta pela integração do negro na sociedade classes resgatada no segundo,

e essa visão de classe social, posta por ele, pode ser vista nos conteúdos dos livros

didáticos de Geografia do sétimo ano, pelos autores que fazem a abordagem de

classe e renda ao explicar a diferença social entre negros e brancos.

No caso de Casa-grande e senzala, a obra é uma referência do pensamento

social brasileiro no estudo do negro e da cultura afro-brasileira. O autor faz uma

incursão histórico-social da contribuição cultural do negro na formação do povo

brasileiro desde o século XVI quando houve o encontro do colonizador português

com o africano. Freyre (1933), com essa obra, pôs o Brasil entre as civilizações ao

defender a tese de que o valor nacional estaria na miscigenação, ou seja, ele

substituiu a visão pessimista do determinismo biológico de raça pela mistura das

diferentes culturas e raças e isso foi o que tornou a formação do povo brasileiro o

melhor da sua civilização. Para ele, nem os obstáculos naturais, como o clima,

impediu a integração entre as diversas culturas. Neste caso, um dos lugares que o

autor buscou resgatar foi a cozinha da casa-grande, porque este era o espaço de

encontro das diferentes linguagens, em que a natureza (o tempero) era

transformada em cultura, como os ingredientes das diferentes culinárias que fazia

o sabor da identidade da cozinha nacional. Do mesmo jeito, ele resgata o ritmo e

a dança e a religião como elementos importantes da cultura nacional e, isso, hoje,

a partir do seu resgate, tem sido reproduzido nos conteúdos dos currículos e

programas dos livros didáticos de Geografia como parte da cultura oficial.

Mas, por outro lado, ao mesmo tempo, o autor mostrou também um outro

espaço da casa-grande ao descrever o cotidiano da luta de vida ou morte por

Page 160: O negro e a cultura afro-brasileira: uma bricolagem multicultural do

160

reconhecimento do senhor e do escravo. No capítulo 4, foram selecionados

fragmentos de textos de diversos autores que têm como abordagem este embate

entre as duas partes, o senhor e o escravo, em que este é retratado desde a sua

saída de África, no seu tráfico, submetido à condição de coisa pelo senhor na

casa-grande, lugar onde era rebaixado à condição de animal. Porém, ninguém

chegava escravo ou nascia escravo, na verdade, eram apenas pessoas submetidas e

desconstruídas ou construídas como coisa, para que assim se visse na condição de

escrava. Uma construção social seria o destino dado pelas mãos e pelo

consentimento do senhor na casa-grande, quando ainda criança o sinhozinho

recebia então, de presente, uma criança negra escrava, como um animal de

estimação com quem ele deve brincar, usar, castigar como um brinquedo

qualquer. Na sociedade patriarcal escravagista isto era legal e moral.

Isto confirmava que a escravidão era um sistema perverso e

desumanizador. Mas “Casa-grande e Senzala” é a obra que permite olhar a

formação do povo brasileiro sobre o cotidiano, o que, às vezes parece comum,

corriqueiro, mas que, ao mesmo tempo, denota os diversos tipos de sentimentos e

valores morais, sociais e culturais. O cotidiano revela a sobreposição de gente

com gente, que não é reconhecida como gente, e que assume um lugar sobre o

mesmo espaço, ao mesmo tempo separados e misturados.

Sob outra perspectiva, Fernandes (1964), em a “A integração do negro na

sociedade de classes”, vai deixar um legado na história do pensamento social

brasileiro ao resgatar a cultura afro-brasileira do ponto de vista do negro na luta

por reconhecimento social. A partir da urbanização, ele busca colocar a sua

cultura como parte da cultura nacional, ou seja, enquanto em “Casa-grande e

Senzala” a obra retratava o escravo e o senhor, no campo, em “A integração do

negro na sociedade de classes”, o negro é retratado como o homem livre, o

habitante da cidade, ou seja, o cidadão, aquele que agora passava a disputar um

lugar na ordem competitiva capitalista com o branco. Fernandes (1964) vai

resgatar a voz do negro na condição de homem livre que vivia o drama da divisão

social, consequência do ranço da escravidão e do racismo que pesava contra ele,

um marcador racial (a cor da sua pele), o que por muito tempo tornou-se um hiato

que o afastou do acesso à cidadania plena. O autor pôs em questão também a sua

luta como meio de buscar o reconhecimento social, pois a sua esperança estaria na

Page 161: O negro e a cultura afro-brasileira: uma bricolagem multicultural do

161

distribuição de renda e na crença de que a cidadania viria à proporção que

houvesse o acesso à educação. Nesse sentido, a obra mostra as demandas sociais

postas pelo negro desde o pós-abolição o que, desde então, mostrava como ele

lutava por reconhecimento e por reparação, já que, como cidadão, o Estado não

oferecia políticas públicas, direitos sociais.

Entendemos que, se hoje existimos enquanto civilização, foi graças ao

processo de colonização portuguesa, com africanos e indígenas, porém, isso

custou caro à construção do Brasil, cujo passado ficou marcado pela escravidão

dos africanos e, isto, até hoje, arrola uma dívida para a sociedade, por ainda não

haver construído de fato a cidadania plena dos afro-brasileiros. Para reverter este

quadro no campo do currículo do ensino de Geografia, é fundamental iniciar o

processo de descolonização do seu ensino enquanto disciplina, porque, hoje, para

resgatar a cultura afro-brasileira através dela, a sua desconstrução é a pedra

fundamental que erguerá todo um novo processo, visto que, até aqui, os seus

paradigmas dominantes foram eurocêntrico, branco, e cristão. Com base nisso é

que foi concebido o currículo do curso de Geografia no ensino superior e

consequentemente para a educação básica, sendo esta concepção sentida até hoje.

Ao evocar o resgate da cultura afro-brasileira no ensino de Geografia,

estamos convencidos de que é fundamental fazer a descolonização dos

paradigmas dominantes que justificam esta ciência como disciplina escolar. Para

isso, entendemos que a base do processo de descolonização estaria em

compreender o que fizeram de nós e, de agora em diante, o que fazer daquilo que

fizeram conosco. Como pontapé inicial desse processo, como conceitos basilares

do homem moderno, estão, sine qua non, a compreensão do uso do conceito da

diferença e da igualdade. A compreensão e o uso político da diferença como um

conceito da moral foi o que produziu o reconhecimento desigual entre o senhor e

o escravo, durante o tempo da Colônia e do Império. As instituições Estado,

família e igreja consensaram que o africano não tinha alma, e isso era o mesmo

que não ter direito, e justificavam ser a sua natureza de animal; como tal, devia

ficar a serviço do homem branco cristão. Abordar a escravidão, dizer sobre ela do

ponto de vista economicista, seria escamotear a sua dimensão política e filosófica

que justificava a sua manutenção secular.

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162

Há quem interessava a permanência da escravidão? Em que medida esse

sistema mundial deixou de ser legal e passou a ser imoral? Qual a relação da luta

pelo fim da escravidão com a expansão do capitalismo? A existência e o fim da

escravidão estavam intrinsecamente construídos num campo maior, um campo

que envolve a natureza jurídica do que seria a diferença e a igualdade desde que

foi erguido o colonialismo, de como o europeu reconhecia o não europeu, quais

seriam os sistemas de classificação e de hierarquização criado para descrever os

diferentes de europeus. A questão central estaria no tipo de reconhecimento.

Todavia, enquanto foi de interesse manter a escravidão, o africano foi reconhecido

pelo europeu como diferente e biologicamente de raça inferior. Este não teria alma

e nem cultura, portanto, a sua diferença servia de parâmetro para discriminar de

forma negativa perante aos iguais. Ao mesmo tempo, à medida que o europeu foi

também construindo a sua cidadania, foi concebendo o sujeito moderno, o

indivíduo, aquele que tinha o direito civil e o político e, posteriormente, o social; a

ideia de natureza jurídica sobre a escravidão construiu a sua base na doutrina

liberal, que passou a contestar os fins jurídicos e filosóficos que justificavam a

escravidão.

Neste contexto, é possível notar que a escravidão, a sua história e o seu

fim, foi acompanhada de luta e de pressão, tanto interna quanto externa, nascida

do pensamento liberal europeu, do entendimento de juristas e militantes

abolicionistas, que lutavam pela igualdade de direito. Dessas perspectivas, não

fazia mais sentido a manutenção de gente excluída pela diferença na condição de

escravo. A escravidão passou a ser vista como uma instituição imoral, à medida

que ela feria o princípio da individualidade, da liberdade, ou seja, de que todos os

homens fossem iguais. Com base nos princípios liberais, ninguém nascia para a

escravidão. Ela seria uma condição criada pelo homem, um ranço do Ancien

Regime que não tinha mais lugar na Modernidade. Ainda que tardia, na

Modernidade só cabia o sujeito de direito.

Foi desse ponto de vista, da luta por reconhecimento que, nesse capítulo,

fizemos a montagem da narrativa do discurso de cultura e raça do negro dos livros

didáticos de Geografia do sétimo ano. A intenção foi trazer diversos trechos desta

história iniciada no século XVI, em que o africano foi justificado socialmente

como o escravo, em que o mesmo viveu todo tipo de reconhecimento negativo na

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163

casa-grande, mas, ao mesmo tempo, juntos e separados, no cotidiano daquele

regime, foi capaz de resistir com as suas diferenças culturais. No segundo

momento da presente narrativa, foi discutida a sua condição social a partir de

diversas colagens da sua condição de ex-escravo, de homem livre, de homem

urbano, daquele que, no século XX, disputava, na ordem competitiva, um lugar

com o homem branco, entretanto, em desvantagem, porque não foi feita a ele a

devida reparação social. Se no passado a raça foi o marcador determinante da sua

exclusão como diferente, agora, na sociedade livre, a renda era a condição

fundamental para a sua ascensão e a sua integração na sociedade de classes como

igual.

Hoje, a luta do negro por reconhecimento se estendeu para além da

questão de classe e raça. No campo da educação, no âmbito do currículo, busca-se

resgatar a cultura sob um ponto de vista positivo. A emergência da lei 10.639/03

nasceu desse sentido, para resgatar e para recontar a sua história e a sua cultura,

não da “narrativa mestra” com base nos cânones ocidentais. Com a lei 10.639/03,

o que se espera é construir um currículo com base na pedagogia da educação das

relações etnicorraciais, em que erija o reconhecimento da diferença na diferença e

que o conceito raça seja retomado na perspectiva sociológica, no sentido de

tensionar as hierarquias e tensionar o mito da superioridade e dos estereótipos

culturais. Acreditamos, para isso, ser necessária a descolonialidade das estruturas

brancas do ensino de Geografia. Mas como fazer isso? O que propor?

Em primeiro lugar, devemos nos perguntar: como ciência de matriz

europeia, a Geografia Moderna, em toda a sua época de existência, vem

cumprindo a sua função social. No século XIX, esteve a serviço do imperialismo.

No século XX, a serviço do Estado. Mas, e hoje, como uma disciplina da

educação básica, que tipo de ensino nós queremos? Em que medida esta disciplina

de origem na Física, pode, hoje, auxiliar na compreensão do homem como sujeito

social?

Hoje, temos, como ponto superado, que a Geografia é uma ciência social.

Portanto, como tal, a sua função é desafiar, é explicar as contradições sociais do

espaço e não se limitar a descrevê-lo apenas. Nesse sentido, partimos da premissa

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164

de que primeiro ela se construiu sob o paradigma físico, natural, com base no

meio como um determinante do espaço.

Depois, como Geografia Humana, encontrou no marxismo o método para a

explicação social do espaço pelos determinismos econômicos oriundos do mundo

das técnicas e dos modos de produção, o que explicaria a luta de classes. Agora, o

foco sai do espaço físico e do econômico, dominado pelo mundo das técnicas, e

recai a ênfase sobre o sujeito social. Isso não significa negar a importância desses

espaços, mas é preciso fazer a descolonialidade de cada um para que possa

emergir o sujeito social. Na descolonialidade no ensino de Geografia, vem

primeiro o sujeito e não o espaço. O sujeito é o mais importante. Ele é que

significa e dá sentido ao que denominamos de espaço. A descolonialidade estaria

interessada em saber quem são os sujeitos que construíram e constroem material e

simbolicamente os espaços da cultura sob a tensão dialógica e dialética dos

diferentes e desiguais. A descolonialidade está preocupada em perguntar a quem

interessa que os sujeitos sociais sejam reproduzidos como diferentes e iguais nas

narrativas discursivas do currículo de Geografia. A descolonialidade pergunta por

que sujeitos sociais estão afirmados com estereótipos no espaço.

O ensino de Geografia é um campo político e pedagógico que requer ser

tensionado pelo processo de descolonialidade sobre aquilo que discrimina,

diminui e reconhece de forma negativa o sujeito social. Nesse sentido,

entendemos que a descolonialidade, primeiramente, evoca novas epistemologias

e, para isso, requer desconstruir as “narrativas mestras” reproduzidas como

verdades imutáveis nos livros didáticos de Geografia do sétimo ano. Esse estudo,

não seria suficiente, e não é nossa intenção esgotarmos todas as possibilidades,

porque elas são infinitas, históricas. Mas o que propomos aqui é pensar o ensino

de Geografia a partir da descolonialidade, como mostra a seguir, a conclusão.

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165

5. CONCLUSÃO

Atualmente completou uma década a homologação da Lei 10.639/03, que

alterou a LDB 9394/96 no seu Artigo 26 e acrescentou o Artigo 26 A, e tornou

obrigatório o ensino da história da África e da cultura afro-brasileira para todas as

disciplinas da educação básica. Desde então, esforços e iniciativas têm sido

criados no campo das políticas educacionais no sentido de fazer a sua

implementação. Com base na lei, as Diretrizes Curriculares da Educação das

Relações Etnicorraciais da História da África e da Cultura Afro-brasileira visam

ao reconhecimento social e, ao mesmo tempo, ao combate do racismo que ainda

pesa contra a população negra. Diante desses fins e para justificar a relevância

desse estudo, foi feito um levantamento no banco de dados da Coordenação de

Aperfeiçoamento Pessoal de Nível Superior – CAPES dos últimos dez anos, para

verificar em que medida, no campo da educação, a questão racial no ensino de

Geografia tem sido objeto de interesse dos pesquisadores. No levantamento desses

dados, foram consultadas as seguintes palavras: multiculturalismo e geografia,

racismo e livro didático, lei 10.639/03 e ensino de geografia e geografia e

racismo. Da busca, foram selecionados 20 resumos que versavam sobre as

palavras pesquisadas, contudo, apenas 1 autor abordou na sua pesquisa o racismo

e o preconceito na escola, com vistas para os fundamentos das Diretrizes

Curriculares da lei 10.639/03. Diante disso, entendemos que ainda existe uma

distância muito grande sobretudo entre o que se propõe como educação das

relações etnicorraciais, e o que, de fato, tem sido pensado no campo da pesquisa

sobre este debate no ensino de Geografia. Neste sentido, entendemos ser

importante o objetivo geral desse estudo: resgatar a importância do negro e da

cultura afro-brasileira no ensino de Geografia, com vistas para o

multiculturalismo emancipatório na construção da cidadania plena e da

democracia racial.

Para alcançar esse objetivo, o presente estudo buscou construir um

referencial teórico com base na seguinte pergunta: considerando o

multiculturalismo como um campo de reconhecimento social, como o negro e a

cultura afro-brasileira são representados nos paradigmas do ensino de Geografia?

Para isso, com base nas tendências e abordagens do paradigma da geografia

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166

tradicional, retomamos os clássicos, como os “Princípios de Geografia Humana”

de La Blache (1921) e “Geografia Humana” de Brunhes (1956) para verificar em

que medida esse autores reconheciam socialmente os povos africanos.

Concluímos que, para eles, o negro era considerado o homem selvagem, sem

cultura e de raça inferior quando comparado ao homem europeu. E foi essa a ideia

que durante muitas décadas se perpetuou no ensino de Geografia no Brasil, como

também mostraram os primeiros autores de livros didáticos, Carvalho (1935;

1949; 1963; 1967) e Azevedo (1943; 1958; 1959; 1965; 1976), que reproduziram

em seus discursos pedagógicos hegemônicos que o negro não tinha cultura e fazia

parte das raças inferiores e de que era sem cultura. Com base nisso, buscou-se

saber como o negro fora reconhecido pelo paradigma da geografia crítica, cujas

tendências e abordagens estavam voltadas para a explicação das desigualdades

sociais. Para esse paradigma, negros e brancos seriam iguais, e a causa da

desigualdade entre eles seria derivada de fatores sociais, como a má distribuição

de renda e a falta de oportunidade; todavia, não por questões raciais. No caso do

racismo, a geografia crítica reconhecia a sua existência, mas raça não foi a

abordagem central, e sim a luta de classe, uma das inquietações postas pelos

autores brasileiros. Estaria em voga, nos anos 80, o paradigma crítico de base

marxista refletido pelos autores nacionais no ensino de Geografia cuja tensão e

debates estavam voltados para as desigualdades sociais explicadas pelo campo

econômico com base na organização do espaço pelo modo de produção capitalista

e socialista.

Vimos que ainda existe uma lacuna no ensino de Geografia a ser suprida

no que tange à “raça” como um marcador de desigualdade social e de racismo

cultural no que se refere às relações sociais no âmbito da educação e, para avançar

sobre esta questão, buscou-se resgatar o negro e a cultura afro-brasileira como

conteúdos importantes do currículo do sétimo ano. Neste sentido, com base no

multiculturalismo emancipatório, o presente estudo buscou tensionar o conteúdo

do sétimo ano sobre o negro e a cultura afro-brasileira e, como fim, propôs refletir

sobre a ideia da descolonialidade do ensino de Geografia, mas, ao final dessa

conclusão, voltaremos a abordar sobre ela. Vimos que o multiculturalismo

emancipatório, como um campo de análise, é flexível, dialético e dialógico com

outros campos como o da Filosofia do Direito; na verdade, ele preconiza a luta

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167

por reconhecimento do sujeito com base na igualdade e na diferença; ele vê a

“raça” como um marcador de desigualdade social, e, sobretudo, tensiona a práxis

da educação, em que os conteúdos dos livros didáticos não são vistos como mera

reprodução, ao contrário, são reconhecidos como discursos carregados de poder,

raça, classe, etc. Para que pudéssemos avançar mais sobre a discussão, no capítulo

3 resgatamos duas obras do pensamento social brasileiro: a primeira, “Casa-

grande e senzala” (FREYRE,1933), um marco da abordagem da formação do

povo brasileiro, em que mostra um Brasil que havia dado certo pela miscibilidade.

Para a época, o autor foi ousado em desafiar o paradigma naturalista biológico

determinista de raça ao propor a cultura como o elemento de integração e de

construção da identidade nacional. É verdade que, com a reflexão trazida por essa

obra, o Brasil deixava de ser visto como uma nação que estava fadada ao fracasso

pela mistura de raças, uma vez que a mistura de cultura e de povos fizeram uma

nação diferente e não inferior às civilizações europeias. Na segunda obra, “A

integração do negro na sociedade de classes” (FERNANDES, 1964) retratou a

condição social do negro, a sua disputa pelo reconhecimento social e moral no

espaço urbano. Nesta obra, estaria o negro vivendo os desafios da sociedade

competitiva, urbana e industrial pela atraente força do capitalismo, mas, ao

mesmo tempo, a liberdade sem a cidadania mostrava a sua desigualdade social.

Para resgatar a importância do negro e da cultura afro-brasileira, optou-se

pela técnica de pesquisa de bricolagem, com que foi possível fazer uma grande

montagem de narrativas, uma colcha bricoleur “negro-afro-brasileira”

confeccionada nas seguintes partes do capítulo 4: a primeira bricolagem tratou do

reconhecimento que o escravo recebia desde a sua saída em África, até o seu fim,

na casa-grande, lugar em que para o senhor existir era necessária a sua extensão

social, a do escravo. Na escravidão, durante todo o tempo, pôde-se notar que a

luta por reconhecimento era uma disputa de vida ou morte entre o senhor e o

escravo. Na verdade, como bem este estudo apontou, ninguém nascia escravo. A

escravidão era uma condição moral e social, uma instituição legal que autorizava

o Outro a viver num estado de sub-humanidade. A segunda bricolagem tratou da

cultura como resistência, em que “Casa-grande e senzala” resgata o cotidiano da

cozinha como um espaço bricoleur, de múltiplas linguagens que se sobrepuseram

nas misturas das culinárias reinventadas pelos africanos e, nesse mesmo sentido, a

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168

obra faz o resgate da capoeira, da música, da língua e da religião. Para o autor,

seria tudo isso elementos de integração, de reinvenção de uma cultura que já não

seria mais europeia, africana ou indígena, mas a cultura nacional afro-brasileira.

E, na terceira bricolagem, os marcadores de raça e de renda foram objetos de

comparação do desenvolvimento social e cultural entre negros e brancos e

concluiu que, no que tange ao salário, moradia, e educação, o primeiro

encontrava-se em desvantagem com relação ao segundo. E, a quarta e última

bricolagem abordou a dimensão epistemológica do multiculturalismo

emancipatório no ensino de Geografia. Se por um lado, ele visa à emancipação, à

afirmação daqueles que lutam por reconhecimento e desafiam preconceitos, por

outro, é também um campo de contestação. Explicado com outras palavras, há

teorias e movimentos sociais que se opõem contra o multiculturalismo, que

acreditam ser essa uma tendência perigosa, o que poderia provocar separação ao

invés de agregar.

O multiculturalismo emancipatório é uma categoria de análise que, na

metodologia deste estudo, nos permitiu confeccionar uma grande colcha e de

fazer diversas sobreposições de conhecimento e de áreas de diferentes tipos de

narrativas para compreender, histórica e socialmente, tempos e lugares diferentes.

Nesse sentido, o reconhecimento social é determinante, visto que, ele se dá de

acordo com a moral e a com a política, como também com a Ciência Moderna

que, como uma crença, por muito tempo reconheceu o negro na condição de

Outro como o selvagem, sem cultura e de raça inferior. Esse quadro só foi

revertido graças à luta pelos direitos civil, político e social sinônimos de

cidadania. Com isso, a escravidão deixou de ser um “negócio bom” e, de acordo

com o conceito jurídico feria a dignidade humana. Ao mesmo tempo, as doutrinas

liberais preconizava a máxima de que todos são iguais diante da lei, independente

de raça, cor da pele, religião e etnia.

Quanto ao ensino de Geografia, vimos que nos discursos que foram

analisados, recortados dos livros didáticos, os seus autores abordaram a

importância do negro e da cultura afro-brasileira a partir de suas crenças e

paradigmas. Observou o sentido da escravidão como uma “narrativa mestra” em

que o negro aparece como aquele que contribuiu na formação do Brasil, na

economia, na culinária, na língua, na religião e outros. Por outro lado, a integração

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social do negro na sociedade de classes foi tensionada pelo racismo, em que a cor

da pele ainda funciona como um marcador, um gerador de desigualdade social e

cultural entre negros e brancos. Acreditamos que, nos livros didáticos, os seus

conteúdos são frutos da trajetória intelectual, política e ideológica de cada autor, e,

nesse caso, cada um deles fala de um lugar de onde expressam suas crenças de

raça e cultura ao abordar a importância do negro e da cultura afro-brasileira.

Portanto, nesse caso, o que se espera para os próximos livros didáticos não seriam

novas metodologias de como trabalhar a cultura afro-brasileira a partir da

homologação da lei 10.639, mas entendemos que é preciso primeiro buscar novas

epistemologias acerca do que se pensa como reconhecimento da cultura afro-

brasileira, ou seja, precisa-se construir novos pensamentos, com vistas nas

narrativas dos estudos pós-coloniais, em que o Outro fala de si na condição de

sujeito e não de objeto narrado e reconhecido pela visão eurocêntrica. Para isso,

defendemos ser necessário a descolonialidade, que representa, desconstruir,

reinventar, reescrever, resgatar, desafiar preconceitos e estereótipos. Neste

sentido, o multiculturalismo emancipatório é dialético e dialógico, e isto significa

que a luta pelo reconhecimento da cultura é uma disputa cotidiana e como tal deve

ser vista, como processo em que se deseja o reconhecimento da diferença do

Outro na diferença.

Historicamente, a escravidão se deve à estrutura social herdada do mundo

medieval, em que reconhecimento era marcado pela honra e pelo estamento o que

definia o reconhecimento desigual entre os homens. Na verdade, essa estrutura foi

a base de criação do homem universal do Iluminismo: racional, criador da ciência

moderna, dos paradigmas positivistas, crenças deterministas, de parâmetros

hegemônicos naturalista e biológico de branco, cristão, heterossexual, raça

superior, civilizado, diferente do Outro; porque, para o europeu, o Outro não

existia como homem, e igual. O Outro seria o não europeu: o oriental, o africano,

o asiático, o americano, o exótico, o selvagem, a raça inferior. Enfim, esses

antagonismos e binarismos seriam frutos da classificação e hierarquização do

eurocentrismo. Hoje, evocar o resgate do negro e da cultura afro-brasileira na

perspectiva do multiculturalismo emancipatório requer defender a igualdade de

direito perante a lei e, ao mesmo tempo, defender a diferença para afirmar a

existência do Eu e do Outro. O Eu só existe por causa do Outro. No caso do

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170

ensino de Geografia, o multiculturalismo emancipatório, como uma categoria de

análise dialética e dialógica evoca a bricolagem histórico-social da luta por

reconhecimento do negro nesse estudo desde o século XVI. Seria limitador refletir

sobre o reconhecimento do Outro com base em apenas um ramo ou uma área da

ciência. O multiculturalismo emancipatório abre para o diálogo, para as

montagens e para as sobreposições de narrativa de todos os tempos e lugares

sobre os diferentes paradigmas. Porque, na verdade, o tempo histórico é

sincrônico, diacrônico e simultâneo. Ao mesmo tempo fenômenos sociais ocorrem

e em tempo diferente. O multiculturalismo como emancipação, abre para

possibilidades de reconhecimento do Outro em qualquer tempo e espaço. Ele

reconhece os diferentes sujeitos sociais e as polifonias, porque, para ele, vale a

performance no lugar da obra acabada, como diz Harvey (2003).

Apontamentos finais: a emancipação é ação, é luta por reconhecimento

entre o Eu e o Outro que pensam diferentes e vivem, na diferença e na igualdade,

uma construção histórica da política moderna, da construção do sujeito de direito.

Nesse sentido, para que de fato ocorra o resgate do negro e da cultura afro-

brasileira, através de ações efetivas multiculturais que levem à emancipação

humana, é preciso primeiramente a descolonialidade do ensino de Geografia.

Entretanto, a descolonialidade é processo, é disputa, é tensão. Isso significa que se

parte do pressuposto de que a descolonialidade não teria resposta engessada,

acabada. Ela não se prende a receitas de como fazer o reconhecimento do

diferente. A descolonialidade desafia a pensar o Outro na diferença da diferença.

Para isso é preciso pensar o reconhecimento do Outro na sua totalidade, numa

dimensão histórico-social, política, econômica e filosófica.

Como fazer a descolonialidade do conteúdo do sétimo ano do ensino de

Geografia, no que tange ao negro e à cultura afro-brasileira com base no

multiculturalismo emancipatório? Para responder, fizemos os seguintes

apontamentos que certamente são passíveis de mudanças à medida que este estudo

for aprofundado com base na dialética e no diálogo por outros pares.

1. O multiculturalismo emancipatório ele é meio e não um fim em si

mesmo. Ele visa à emancipação do Outro, ele é histórico-social, é

dialético e dialógico, é o vir-a-ser entre o Eu e o Outro, ele é de

Page 171: O negro e a cultura afro-brasileira: uma bricolagem multicultural do

171

natureza social, portanto, sempre esteve presente nas relações

sociais desde que o homem passou a desejar o seu bem estar. Ele é

o motor histórico-social motivador da luta por reconhecimento

social no jogo das diferenças;

2. Historicamente, houve, na Modernidade, a construção dos direitos

civis, políticos e sociais, assim como a Ciência Moderna, as

Revoluções políticas e econômicas, a industrialização e a

urbanização. Tudo isso propiciou, no Estado Moderno, o

nascimento do indivíduo da luta por reconhecimento do sujeito de

direito, e isso requereu o debate da igualdade e da diferença numa

sociedade estamental em transição, marcada pela honra em que o

Outro (o burguês) lutava pela igualdade de direito. Ao mesmo

tempo, nas sociedades coloniais, como é o caso do Brasil, a luta

por reconhecimento foi marcada pela disputa de vida e morte entre

o senhor e o escravo pela manutenção do status quo. Com base na

moral e nas instituições sociais permanentes, o senhor foi mantido

como tal enquanto justificou manter a estrutura social escravagista.

Neste sentido, hoje, resgatar a importância do negro e da cultura

afro-brasileira, como já foi colocado aqui, exige que evoquemos a

descolonialidade como debate. Por quê?

3. A descolonialidade contesta os discursos oficiais hegemônicos

construídos como “narrativas mestras” com macro poder de

explicação;

4. Para a descolonialidade, raça é um conceito, uma construção social

de dimensão política, ideológica e científica, que, embora tenha

esvaziado o seu poder de explicação no campo biológico,

continuou sendo lida sob “rasura”, visto que a sociedade atual se

encontra organizada e hierarquizada social e politicamente

racializada por esse discurso;

5. Para a descolonialidade, a igualdade é um conceito contestado,

uma vez que, quando um sujeito é inferiorizado, discriminado,

impedido à cidadania plena, evoca-se a diferença para reparar a

desigualdade de direitos desiguais para os desiguais;

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172

6. Para a descolonialidade, a diferença não é um bloco homogêneo da

consciência social, em que todos pensam sem conflitos e

contestações. Por exemplo, “ser negro” no Brasil não significa que

exista uma forma única, acabada, congelada, engessada, em que a

diferença não teria lugar. “Ser negro” é uma identidade social

construída, é dialética e dialógica e é marcada pela diferença na

diferença. Nesse caso, a descolonialidade está voltada para

interpretar a diferença da diferença na luta por reconhecimento

social daquele que luta pela diferença;

7. A descolonialidade contesta a escravidão como “narrativa mestra”

com base no determinismo econômico que explica o projeto

colonial construído a partir do século XVI, como foi o caso do

Brasil. Para a descolonialidade é preciso retomar e reconstruir os

discursos que sustentaram as instituições de cada época e que

“naturalizaram” a diferença social binária do senhor e do escravo,

do sinhozinho e do “muleque de pancadas”, da casa-grande e da

senzala, por aqueles que se viram estereotipados e afirmados de

forma negativa;

8. A descolonialidade contesta a explicação histórica linear no que

tange à formação política territorial do Brasil. Para a

descolonialidade, a territorialização é vista como um processo

social que se territorializa e se desterritorializa, cuja base está na

cultura material e simbólica capaz de marcar a identidade coletiva

de um povo não determinada na essência de ser europeu, africano,

indígena, ou outro, mas afirmar na pluralidade das culturas, do

encontro das diferenças e do reconhecimento social entre o Eu e o

Outro.

A descolonialidade é processo, é contestação e ao mesmo tempo significa

possibilidade de transformação social pelos sujeitos sociais no cotidiano. Isto

significa que pensar esse processo no currículo do ensino de Geografia vai

depender de cada sujeito social. Isto é: quem é o sujeito que produz o currículo,

qual é a sua trajetória? Fala de onde? Ao mesmo tempo quem é o sujeito que

reproduz e produz o currículo na práxis? Quais são os seus interesses políticos e

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173

ideológicos no que tange ao reconhecimento do Outro? Tudo isso envolve a

complexidade do processo que ocorre no tempo sincrônico, diacrônico, com

continuidade e descontinuidade. Em cada lugar, há caminhos e descaminhos

semelhantes e desiguais. Portanto, para a descolonialidade, mais importante do

que os resultados são os processos.

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Page 187: O negro e a cultura afro-brasileira: uma bricolagem multicultural do

187

7. APÊNDICE

QUADRO SELETIVO

DISCURSOS SOBRE O NEGRO NO LIVRO DIDÁTICO DE GEOGRAFIA

DO 7º ANO: ESPAÇO, TERRITÓRIO, LUGAR, PAISAGEM, REGIÃO E

POPULAÇÃO.

Coleções Espaço Território

GEOGRAFIA

(ADAS)

ECONOMIA

COLONIAL

A partir de 13 de

1888 (data da Lei

Áurea), as

relações

escravistas de

trabalho foram

proibidas por lei e

substituídas pelas

relações

assalariadas de

trabalho ou de

produção, ou seja,

o trabalho deixou

de ser escravo e

passou a ser pago

(assalariado).

Entretanto,

devemos lembrar

que, antes da Lei

Áurea, já havia

pessoas

trabalhando em

troca de

pagamento em

dinheiro. p. 36

CAPÍTULO 3

Page 188: O negro e a cultura afro-brasileira: uma bricolagem multicultural do

188

A

CONSTRUÇAO

DE ESPAÇOS

GEOGRÁFICOS

NO BRASIL

1. Espaço

geográfico e

economia

colonial

Fig. 3.2, p. 37:

Dois momentos

da história do

trabalho no

Brasil. Em cima,

à esquerda,

Mercado de

escravos, gravura

de Johann Moritz

Rugendas, cerca

de 1835.

A

CONSTRUÇÃO

DE ESPAÇOS

GEOGRÁFICOS

NAS

ECONOMIAS

COLONIAL E

PRIMÁRIO-

EXPORTADOR

A

Figura 3.3

Detalhe de

Engenho de

açúcar em

Itamaracá,

gravura de Frans

Post, de 1647. p.

38

Figura 3.9. OS

Page 189: O negro e a cultura afro-brasileira: uma bricolagem multicultural do

189

CAMINHOS DA

TROPA

Pouso de

tropeiros, óleo

sobre madeira, de

1827, do artista

inglês Charles

Landseer (1799-

1874), que esteve

no Brasil e

retratou vários de

seus aspectos.

OS ESPAÇOS

GEOGRÁFICOS

DA ZONA DA

MATA

Figura 4.7

Engenho de

açúcar, aquarela

de Johann Moritz

Rugendas (1802-

1858), desenhista

e pintor alemão

que viajou pelo

Brasil entre 1821

e 1825 e retratou

vários aspectos

do país. p. 55.

A EXPANSÃO

DA

CAFEICULTUR

A

Figura 6.6

Derrubada da

Mata Atlântica no

sec. XIX, do

desenhista e

pintor alemão

Johann Moritz

Rugendas (1802-

1858). Rugendas

Page 190: O negro e a cultura afro-brasileira: uma bricolagem multicultural do

190

esteve no Brasil

entre 1821 e

1825,

aproximadamente

, e registrou, entre

outras coisas, a

derrubada da

Mata Atlântica,

no Vale do

Paraíba, para o

plantio de café.

Observe a

utilização da mão

de obra escrava.

p. 81

GEOGRAFIA

(MOREIRA;

SENE)

GEOGRAFIA

CRÍTICA

GEOGRAFIA,

ESPAÇO E

VIVÊNCIA

CAPÍTULO 1 - O TERRITÓRIO BRASILEIRO:

CARACTERÍSTICAS GERAIS

BRASIL: TERRITÓRIO E FRONTEIRAS

Extensão territorial do Brasil;

A posição geográfica do território brasileiro;

Brasil: limites e fronteiras.

CAPÍTULO 2

Extensão Territorial do Brasil; posição geográfica do território

brasileiro; pontos extremos; os fusos horários; Brasil: limites e

fronteiras; Território brasileiro no século XVI, XVII, XIX, XX

e XXI, numa perspectiva histórica.

Page 191: O negro e a cultura afro-brasileira: uma bricolagem multicultural do

191

TERRITÓRIO BRASILEIRO NO SÉCULO XVII

Figura: Johann Moritz Rugendas – Moinho de açúcar. p. 20

TERRITÓRIO BRASILEIRO NO SÉCULO XVIII

Figura: Johann Baptist Spix e Karl Friedrich Philipp von

MMartius – Lavagem de Diamantes em Curralinho – Arquivo

Nnacional – Rio de Janeiro p. 21

UNIDADE II

TERRITÓRIO E POPULAÇÃO BRASILEIRA

Isto aqui, ô, ô... É um pouquinho de Brasil, Iaiá...

Desse Brasil que canta e é feliz, feliz, feliz

É, também, um pouco de uma raça

Que não tem medo de fumaça, ai, ai

E não se entrega não...

BARROSO, Ary. Ary Barroso 100 anos: homenagem ao

mestre. p. 37

GEOGRAFIA,

SOC. E

COTIDIANO

DIFERENTES TERRITÓRIOS

Em meados da década de 1980, muitos jovens se encontravam

com bastante frequência no Largo de São Bento, no centro da

cidade de São Paulo. Eles faziam parte de um movimento

político-cultural denominado hip hop, em que discutiam as

condições sociais do negro em nossa sociedade.

Nesse lugar, eles se expressavam por meio da arte, como a

dança, a música, a poesia e o grafite, e assim mostravam suas

posições diante dos problemas. A atuação do grupo nessa área

Page 192: O negro e a cultura afro-brasileira: uma bricolagem multicultural do

192

era intensa. Alem de divulgar o movimento, não permitiam

atitudes discriminatórias e reivindicavam seus direitos,

exercendo, portanto, uma luta cidadã.

Ao delimitar uma área e nela atuar, esse grupo estabelecia

diferentes relações. Entre elas, destaca-se o poder que exerciam

sobre aquele espaço e a identidade negra. Assim, sua atuação

pode ser identificada como a delimitação de um território.

Porém, a delimitação de um território não acontece sem

conflitos. Esse grupo, por exemplo, encontrou resistência de

pessoas com posições contrárias, o que resultava em embates.

Isso pode ocorrer quando um grupo social delimita um

território e o utiliza para se expressar, para mostrar sua posição

político-cultural. P. 8

Território pode ser definido, portanto, não apenas como a

configuração política de uma cidade, estado ou país, mas um

espaço construído em embates políticos, culturais, sociais e

econômicos. P. 9

A delimitação de territórios pode ocorrer tanto na cidade como

no campo. Os quilombos e as áreas indígenas são exemplos de

territórios. P. 9

Os atuais quilombos são áreas formadas por comunidades

negras (descendentes ou não de escravos) que geralmente

vivem em áreas rurais onde produzem para a sua

sobrevivência. No passado, parte dos quilombos se referia a

uma área ocupada por escravos fugitivos das propriedades dos

senhores ou que tinham obtido alforria. Eles buscavam viver

em liberdade, mesmo que, para isso, tivessem de lutar contra a

Coroa portuguesa ou os latifundiários.

MAPA – BRASIL: distribuição espacial dos quilombos por

município (2000). p. 10

TERRITÓRIO POLÍTICO-ADMINISTRATIVOS E SEUS

GOVERNANTES

A construção do território brasileiro

Brasil.

Distribuição dos grupos indígenas antes da chegada

dos colonizadores.

Terra Brasílis.

Brasil: Capitanias hereditárias (séc. XVI).

Brasil: atividades econômicas – século XIX.

Page 193: O negro e a cultura afro-brasileira: uma bricolagem multicultural do

193

Fronteira do Brasil Colonial. p. 17-21

A FORMAÇÃO DOS ESTADOS BRASILEIROS

Brasil: 1940 e 2009 (Mapas). p. 22

GEOGRAFIAS

DO MUNDO

CAPÍTULO - FORMAÇÃO DO TERRITÓRIO E DA

GEOGRAFIA DO BRASIL

Fronteira de um planeta Terra chamado Brasil

PARA VIVER

JUNTOS

DIVERSIDADE CULTURAL DO BRASIL

Os primeiros europeus que aqui chegaram, no século XVI, se

depararam com a exuberância da paisagem e com os indígenas

que habitava essas terras, cujos traços físicos e costumes eram

desconhecidos por eles. A miscigenação de indígenas, negros

africanos e brancos europeus resultou na mistura étnica e

cultural que deu origem ao povo brasileiro. Ao longo dos

séculos XIX e XX, a vinda de imigrantes, como os italianos, os

alemães e os japoneses, contribuiu para ampliar a diversidade

étnica e cultural da população.

Assim, os traços culturais de cada um desses grupos foram

contribuindo para a formação da cultura brasileira,

caracterizada pela mescla de referência linguística, religiosa,

gastronômica, etc. Entre as principais contribuições dos

colonizadores portugueses, podemos citar o uso do português

como língua oficial do Brasil e a religião católica. p.15

AS INFLUÊNCIAS CULTURAIS

Page 194: O negro e a cultura afro-brasileira: uma bricolagem multicultural do

194

A influência cultural dos diversos grupos indígenas deu-se

sobretudo por meio da culinária, como no uso do milho e da

mandioca, e da incorporação de palavras do vocabulário de

diversos grupos indígenas. Os africanos, durante o período da

escravidão, contribuíram com a religião, especialmente com a

prática do candomblé e umbanda, na música, com a utilização

de instrumentos como o atabaque e o pandeiro, na língua e na

culinária.p.15

PERSPECTIVA A FORMAÇÃO DO TERRITÓRIO BRASILEIRO

Configurando o Brasil: a história de sua formação

PROJETO

ARARIBÁ

LOCALIZAÇÃO DO TERRITÓRIO BRASILEIRO

Extensão do território

O Brasil é o 5º maior país do mundo, com uma área de

8.514.876 km². Os países que superam essa área são Rússia,

Canadá, China e Estados Unidos.

A localização do território brasileiro e as distâncias entre seus

pontos extremos ajudam a explicar a predominância de climas

tropicais e de horários diferenciados em nosso país. p.12

FORMAÇÃO DO TERRITÓRIO BRASILEIRO

A formação do extenso território brasileiro resultou de um

longo processo de expansão colonial iniciado com a chegada

dos europeus.

A chegada dos portugueses à América

Expansão territorial

PROJETO

RADIX

O TERRITÓRIO BRASILEIRO: EXTENSÃO E

LOCALIZAÇÃO NO MUNDO

Limites e fronteiras do território brasileiro

Page 195: O negro e a cultura afro-brasileira: uma bricolagem multicultural do

195

DISCURSOS SOBRE O NEGRO NO LIVRO DIDÁTICO DE GEOGRAFIA DO 7º

ANO: PERSPECTIVAS PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES

ETNICORRACIAIS

Coleções Lugar Paisagem

GEOGRAFIA

(ADAS)

GEOGRAFIA

(MOREIRA;

SENE)

A PLURALIDADE CULTURAL

BRASILEIRA

Você já viu que a paisagem acumula parte

da história, ou seja, que na paisagem

podemos encontrar formas de diferentes

idades. Essas formas são uma herança de

outros tempos, quando havia outras relações

humanas, às vezes muito diferentes das que

existem hoje. p.89

Desde sua captura em solo africano, os

escravos eram tratados como peças que só

precisavam de manutenção ou reposição.

Os portugueses colonizadores não se

preocupavam em saber sobre sua língua,

cultura ou procedência étnica. [...] Após

séculos de segregação e preconceito social,

os afro-brasileiros demonstram querer

redescobrir as raízes de sua raça. Esse

movimento é motivado pela contribuição,

cada vez mais evidente, que dão à cultura

nacional. Hoje, várias das manifestações

mais brasileiras – na musica, dança ou

Page 196: O negro e a cultura afro-brasileira: uma bricolagem multicultural do

196

culinária – têm algum tributo a pagar aos

escravos que, mesmo a contragosto,

cruzaram o Atlântico trazendo consigo

genes e costumes que formaram o espírito

nacional.

QUEM somos, afinal? Os Caminhos da

Terra. São Paulo, juh. 1998. p. 64- 65

GEOGRAFIA

CRÍTICA

GEOGRAFIA,

ESPAÇO E

VIVÊNCIA

GEOGRAFIA,

SOC. E

COTIDIANO

GEOGRAFIAS

DO MUNDO

PARA VIVER

JUNTOS

PAISAGEM E CULTURA

Ao longo do tempo, a sociedade transforma

as paisagens de acordo com seus interesses

e necessidades. Novas construções, como

habitações, edifícios, templos religiosos,

ruas, avenidas e outras edificações,

incorporam-se à paisagem, ou mesmo

substituem parte de sua forma original.

O resultado dessa interferência sobre o

meio produz, nas paisagens, características

que revelam os traços culturais dos grupos

sociais que habitam essas regiões. [...]. p.16

Por todo o território brasileiro restam

algumas comunidades quilombolas

constituídas por descendentes de escravos

foragidos na época da escravidão. Os

habitantes dessas comunidades têm uma

ancestralidade africana comum e procuram

preservar seus hábitos culturais, como as

crenças religiosas, a culinária e as técnicas

Page 197: O negro e a cultura afro-brasileira: uma bricolagem multicultural do

197

de construção de suas casas. Parte dessas

comunidades sobrevive da agricultura e

reside em habitações construídas de pau-a-

pique com chão de barro socado.

No Sul do Brasil, a influência cultural de

povos europeus, como os italianos e os

alemães, expressa-se na paisagem por meio

dos estilos arquitetônicos das habitações,

dos materiais utilizados nas construções,

etc. (p16)

QUESTÕES GLOBAIS

1. Estas fotografia retratam traços

culturais do povo brasileiro

expressos na paisagem de diversas

localidades.

a) Associe as imagens aos textos

abaixo e escreva no caderno a

sequência numérica correta.

Fotografias página 34

4. O texto abaixo foi escrito por Darcy

Ribeiro, antropólogo e autor do livro O

povo brasileiro. Leia e responda às

questões.

[...] Isso é o Brasil, uma Roma melhor

porque mestiça, lavada em sangue negro,

em sangue índio, sofrida e tropical. Com as

vantagens imensas de um mundo enorme

que não tem inverno e onde tudo é verde e

lindo, e a vida é muito mais bela... E é uma

gente que acompanha esse ambiente com

uma alegria de viver que não se vê em outra

parte. Esse país tropical, mestiço, orgulhoso

de sua mestiçagem [...] (p.34)

a) Qual é o principal assunto

tratado no texto? O texto

ressalta o caráter mestiço

do povo brasileiro.

Page 198: O negro e a cultura afro-brasileira: uma bricolagem multicultural do

198

b) Escreva um titulo para esse

texto. Resposta pessoal.

Professor: espera-se que o

aluno explore o conceito de

mestiçagem.

c) Por que o autor afirma que

o Brasil é “orgulhoso de

sua mestiçagem”? Resposta

pessoal. p.34

PERSPECTIVA

PROJETO

ARARIBÁ

PROJETO

RADIX

DISCURSOS SOBRE O NEGRO NO LIVRO DIDÁTICO DE GEOGRAFIA DO 7º

ANO: PERSPECTIVAS PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES

ETNICORRACIAIS

Coleções Região População

GEOGRAFIA

(ADAS)

A IMIGRAÇÃO

ESTRANGEIRA

Em 1850, a Lei Eusébio de

Queirós proibiu o tráfico de

escravos para o Brasil. O

problema da falta de mão de

obra para a cafeicultura se

agravou devido à elevação de

preço de venda desse tipo de

trabalhador. Para se ter uma

ideia, por volta de 1845, o

preço médio de um escravo era

378 mil-réis; em 1865, ele

triplicou, passando para 1.059

mil-réis. Além disso, havia as

fugas em massa e os ataques a

engenhos por um movimento

abolicionista cada vez mais

Page 199: O negro e a cultura afro-brasileira: uma bricolagem multicultural do

199

ativo no país.

Diante dessa situação, os

fazendeiros passaram a

considerar a possibilidade de

empregar trabalhadores livres

(assalariados). O que não se

sabia era onde consegui-los,

uma vez que o número de

brasileiros disponíveis para

trabalhar na cafeicultura era

insuficiente para atender às

reais necessidades. P. 85

APROFUNDAMENTO

LEITURA

COMPLEMENTAR

“A QUESTÃO DA TERRA”

ATIVIDADES

2. Observe esta fotografia, que

registrou uma colheita de café

em 1882.

a) Que tipo de mão de obra era

utilizada na cafeicultura

mostrada na foto? Como você

sabe?

b) Você verificou que entre os

trabalhadores há crianças.

Quanto você imagina que uma

criança ganhava por dia de

trabalho?

Legenda:

Imagem: In: FERREZ, G. A

fotografia no Brasil: 1840-

1990. Rio de Janeiro: Fundação

Pro-Memória, 1985.

Page 200: O negro e a cultura afro-brasileira: uma bricolagem multicultural do

200

CAPÍTULO 11

PAÍS DE

INDUSTRIALIZAÇÃO

TARDIA OU

RETARDATÁRIA

APROFUNDAMENTO

Leitura Complementar

“O Quadrilátero Ferrífero” p.

175

Atividades

3. Analise, com atenção , a tela

da pintora paulistana Tarsila do

Amaral (1886-1973) e

responda:

a) Na sua opinião, por que a

pintora deu esse titulo à sua

obra?

b) Que outros elementos

servem para confirmar a sua

resposta?

c) Nessa tela, há

predominância de que grupo

étnico? Tente explicar a razão

disso. p. 176

RESPOSTA:

Na tela Operários de Tarsila do

Amaral (1933), predominam

pessoas de origem europeia e

alguns mestiços brasileiros. A

presença de apenas dois negros

na tela mostra a exclusão a que

o negro foi submetido. Mesmo

depois da abolição, os negros

não foram incluídos na

sociedade: a eles foram dados

direitos elementares como

trabalho e escola, resultando na

Page 201: O negro e a cultura afro-brasileira: uma bricolagem multicultural do

201

triste situação em que os

afrodescendentes vivem ainda

nos dias de hoje. p. 50

GEOGRAFIA

(MOREIRA;

SENE)

O CRESCIMENTO

DEMOGRÁFICO E A

PLURALIDADE CULTURAL

A população brasileira

começou a crescer mais rápido

após a liberação da entrada de

outros imigrantes europeus, em

1808. Entretanto, as correntes

migratórias só se

intensificaram a partir do

momento em que foi proibido o

tráfico de escravos (Lei

Eusébio de Queirós, de 1850)

e, sobretudo, a partir da

abolição da escravidão (Lei

Áurea, de 1888). p.87

GEOGRAFIA

CRÍTICA

CAPÍTULO 2 – A

POPULAÇÃO BRASILEIRA

1.O CRESCIMENTO

DEMOGRÁFICO

2. ESTRUTURA DA

POPULAÇÃO POR IDADE E

SEXO

3. AS MIGRAÇÕES

[...] A partir de 1850, quando o

tráfico de escravos cessou, a

imigração se intensificou.

Antes disso, já ocorria

imigração, mas em número

pouco expressivo.

Com a intensificação das

pressões inglesas para o fim do

tráfico negreiro e com a edição

da Lei Eusébio de Queirós, de

1850 (que proibiu a vinda de

novos escravos), os

Page 202: O negro e a cultura afro-brasileira: uma bricolagem multicultural do

202

proprietários de terras,

especialmente de fazendas de

café – atividade predominante

no país na segunda metade do

século XIX e primeira metade

do século XX - , passaram a

incentivar a vinda de

imigrantes para substituir a

mão de obra escrava. p.33-34

GEOGRAFIA,

ESPAÇO E

VIVÊNCIA

REGIÃO SUDESTE

ATIVIDADES

Análise de Imagens (p.104)

Café- Candido Portinari (1935)

Gazo – Tarsila do Amaral (1924)

Observe as paisagens retratadas

pelos artistas brasileiros Candido

Portinari (1903-1962), na

imagem A, e por Tarsila do

Amaral (1886-1973) na imagem

B.

Agora, realize as atividades a

seguir no caderno:

a) Nas paisagens retratadas

pelos artistas, vemos

alguns aspectos que

marcaram a economia e o

processo de urbanização

na região Sudeste, nas

CONCENTRAÇÃO DA

RENDA AGRAVA AS

DESIGUALDADES SOCIAIS

A concentração da renda no

Brasil é, certamente, o maior

motivo das desigualdades

sociais existentes. Uma parte

razoável da população

brasileira vive em condições

extremamente precárias de

moradia, educação e saúde,

enquanto uma parcela bem

menor apresenta elevados

padrões de vida. P. 52

Page 203: O negro e a cultura afro-brasileira: uma bricolagem multicultural do

203

primeiras décadas do

século XX. Que aspectos

são esses?

b) Que imagem remete às

atividades desenvolvidas

no campo? Justifique sua

resposta.

Resposta do livro (p. 74).

Análise das Imagens

a) Na imagem A, vemos

características da

cafeicultura e, na imagem

B, a artista retratou

alguns aspectos da

urbanização, como o

surgimento das fábricas,

dos automóveis, de ruas e

avenidas.

b) A imagem A, pois nela

podemos ver o trabalho

no campo, a plantação e

as sacas de café.

GEOGRAFIA,

SOC. E

COTIDIANO

POPULAÇÃO, RAÇA, COR E

ETNIA

Existem muitas expressões,

com concepções diferentes,

para denominar os grupos que

compõem uma sociedade. De

forma simplificada, para

designar um grupo social com

base nas referências

linguísticas, culturais, no

autopertencimento e no

reconhecimento, utiliza-se a

expressão etnia. p. 88

Para se referir aos grupos de

acordo com a sua constituição

física, aparência e origem

(ameríndios, africanos,

europeus, entre outros), utiliza-

se o conceito de raça, como

negros, brancos e amarelos.

Atualmente essa expressão é

muito discutida, pois tem

Page 204: O negro e a cultura afro-brasileira: uma bricolagem multicultural do

204

origem em definições

biológicas que por muito tempo

foram utilizadas para justificar

preconceitos.

Quando queremos saber

quantos são e como vivem as

pessoas e os grupos que

compõem a sociedade de um

determinado pais, região,

estado, cidade, bairro, entre

outros, nos referimos à

população.

O órgão responsável pelos

levantamentos de dados e

pesquisas sobre a

caracterização da população

brasileira é o Instituto

Brasileiro de Geografia e

Estatística (IBGE). [...] Para

fazer o recenseamento da

população brasileira, o IBGE

utiliza o critério de cor e raça,

baseado no autopertencimento,

e especifica cinco categorias;

branca, parda, preta, amarela e

indígena. P. 88

Os dados sobre a população

são necessários para que se

possa compreender melhor o

país, assim como organizar e

planejar o destino dos recursos

públicos. Além disso, essas

informações podem ser

utilizadas por instituições

públicas e privadas para

diversas finalidades. P 88

QUEM SOMOS (TEMA

TRANSVERSAL–

PLURALIDADE

CULTURAL)

A população brasileira resulta

Page 205: O negro e a cultura afro-brasileira: uma bricolagem multicultural do

205

de um intenso processo de

miscigenação, isto é, a mistura

de etnias e culturas. Esse

processo vem ocorrendo desde

a ocupação de nosso território

pelos colonizadores

portugueses. p. 89

GRÁFICO: Constituição da

população brasileira segundo a

raça e a cor.

p. 89

SORRISO NEGRO (Música)

(...) Um sorriso negro

Um abraço negro

Traz felicidade

Negro sem emprego

Fica sem sossego

Negro é a raiz da liberdade (...)

BARBOSA, Adilson,

CARVALHO, Jair e

PORTELS, Jorge. Em: Bodas

de Ouro de Dona Ivone Lara.

Sony Music, S/d. p. 90

Os negros, trazidos como

escravos no período da

colonização brasileira, não

compunham uma população

homogênea- originaram-se de

diferentes grupos étnicos

Page 206: O negro e a cultura afro-brasileira: uma bricolagem multicultural do

206

africanos.

Calcula-se que, durante o

período da metade do século

XVI à primeira metade do

século XIX (até 1850), cerca de

4 milhões de negros foram

trazidos ao Brasil.

De acordo com o Censo 2000,

os negros compõem cerca de

6,16% da população e se

concentram principalmente nos

estados do Maranhão, Bahia,

Minas Gerais, São Paulo e Rio

de Janeiro. Devido às

condições socioeconômicas a

que foi historicamente

submetido, esse grupo

apresenta atualmente menores

índices de qualidade de vida,

sendo muitas vezes vitima de

atitudes discriminatórias ou

preconceituosas. p. 91 [...]

[...] A população caracterizada

como parda é resultante do

processo de miscigenação e, de

acordo com o Censo 2000,

compreende quase 40% da

população brasileira. Em geral

as pessoas que compõem esse

grupo muitas vezes se

autodeclaram morenas ou

mulatas. Assim como os

negros, grande parte das

pessoas desse grupo enfrenta

problemas econômicos e,

especialmente as mais pobres,

também sofrem com atitudes

discriminatórias. p. 91

CONSCIÊNCIA DE RAÇA E

COR

Page 207: O negro e a cultura afro-brasileira: uma bricolagem multicultural do

207

* Imagem de uma criança

branca e outra negra, numa

piscina.

No recenseamento, ao

classificar os grupos por raça e

cor, corre-se o risco de não

quantificar corretamente a

porcentagem de cada grupo

diante da população total. As

pessoas podem assumir sua

identidade de acordo com as

suas posições políticas,

condições socioeconômicas ou

consciência étnica. Muitas

vezes, indivíduos optam por

negar a sua verdadeira origem

para se proteger de

discriminação racial ou

econômica. Há, por exemplo,

um número considerável de

orientais, negros, pardos e

índios que não se assume como

tal.

Portanto, na realidade, não é a

cor da pele que acaba definindo

o grupo a que uma pessoa

pertence, mas sim a

consciência e a posição que ela

assume diante da sociedade.

(p.92)

ATIVIDADE – (Leitura e

Debate)

Consciência de raça e cor

Leia o texto a seguir e depois

discuta as questões com os

Page 208: O negro e a cultura afro-brasileira: uma bricolagem multicultural do

208

colegas.

A cor dos brasileiros

Deu na imprensa: o pessoal do

IBGE está tendo o maior

trabalho para identificar a cor

dos brasileiros. É como se

caíssemos naquela velha

pergunta do programa dos

Trapalhões: casada, solteira ou

tico-tico no fubá? Pelas

respostas que os recenseadores

têm recebido, deu tico-tico na

cabeça. Se somos meio

brancos, somo também meio

negros, meio índios, meio...

O Brasil é mestiço, e não sabe

definir exatamente qual a sua

cor.

Até mesmo na Bahia, onde a

negritude é tão louvada em

música e letra e onde um dos

maiores sucesso do pré-axé foi

o samba-regae “Eu sou negão”,

computou-se um total de mais

de 300 variantes de cores

citadas nas entrevistas. Um

verdadeiro arco-íris na velha

São Salvador, “a terra do

branco mulato, a terra do preto

doutor”, segundo o compositor

Dorival Caymmi.

O Dia,

Rio de Janeiro, 17 de agosto de

2000

1. Você concorda que

nem todas as pessoas

têm consciência de sua

verdadeira origem, cor

ou raça? Por quê?

Page 209: O negro e a cultura afro-brasileira: uma bricolagem multicultural do

209

2. Por que se afirma que

o Brasil é um país de

mestiços?

3. Algumas organizações

que atuam contra o

preconceito racial

afirmam que parte da

população negra não se

classifica como tal

quando interrogada

pelo censo

demográfico. Em sua

opinião, por que isso

acontece?

4. Que prejuízos podem

ocorrer quando um

número considerável

de pessoas nega a sua

origem?

5. E você, a que grupo

(cor e raça) pertence?

Justifique.

RESPOSTA

1. Resposta pessoal.

2. Porque o processo de

miscigenação no Brasil

foi intenso e resultou

em uma população

com uma grande

diversidade. Os pardos,

que resultaram da

mestiçagem, formam o

segundo maior grupo

que compõe a

população brasileira.

3. Isso é resultado do

processo de exploração

a que submetido o

negro no Brasil, desde

o período da

colonização até os dias

atuais. Assumir-se

como negro implica

fazer parte de um

grupo com baixa

qualidade de vida, que

apresenta os piores

índices sociais e que

ainda enfrenta

preconceitos e

Page 210: O negro e a cultura afro-brasileira: uma bricolagem multicultural do

210

discriminação.

4. O grupo pode receber

menor número de

investimentos por parte

do governo federal e

reduz-se o poder de

barganha das

instituições que lidam

com ações afirmativas.

5. Resposta pessoal. p. 35

ESCOLARIDADE

Em sua opinião, que

dificuldade uma pessoa

analfabeta enfrenta?

Você acha que, em nosso país,

todas as pessoas têm as

mesmas oportunidades de

acesso à educação? p.101

No Brasil, 13% da população é

analfabeta e 30,5 analfabeta

funcional. [...]

[...] Além da taxa de

analfabetismo, há outros dois

elementos que constituem o

indicador de escolaridade:

a média de anos de

estudo da

população – no

Brasil a média é de

9,8 anos entre

brancos e 7,7 entre

negros e pardos

(IBGE, 2004);

atraso escolar – no

Brasil essa

situação chega a

34,2% na região

Nordeste e 12,9%

na região Sul de

jovens cursando

séries que não

Page 211: O negro e a cultura afro-brasileira: uma bricolagem multicultural do

211

correspondem à

faixa etária

adequada (IBGE,

2000). p. 103

EXERCÍCIOS

1. Responda às questões:

a) Qual é a diferença

entre etnia e raça?

A etnia se refere a um grupo

social que assume e se

reconhece como portador de

características linguísticas ou

culturais semelhantes. A etnia

tem caráter social, a raça tem

um caráter que leva em

consideração as características

físicas, a aparência e a origem

semelhantes (brancos, negros,

ameríndios, etc).

b) Por que o conceito de

raça pode levar a

preconceitos?

Porque se baseia nas

características físicas.

MOVIMENTOS

POPULACIONAIS (CAP. 6)

QUE MOTIVOS LEVAM ÀS

MIGRAÇÕES

O ato de migrar é complexo e

envolve um conjunto de

necessidades, desejos,

sofrimentos e esperanças. Ao

longo da história, podemos

citar exemplos de migrações

que envolveram tais aspectos: o

que dizer dos milhões de

escravos que foram trazidos à

Page 212: O negro e a cultura afro-brasileira: uma bricolagem multicultural do

212

força para o Brasil no período

colonial? [...]p.111

MIGRAÇÕES FORÇADAS

Ocorre migração forçada

quando as pessoas são

obrigadas a sair do seu lugar de

origem. Ou porque há situação

de risco de morte (catástrofes

naturais, epidemias e guerras),

ou porque são retiradas à força

a fim de serem

comercializadas, ou ainda

devido às condições impostas

pelo regime político e

econômico.

Leia atentamente alguns

trechos deste poema de Castro

Alves:

Navio negreiro

Senhor Deus dos desgraçados!

Dizei-me vós, senhor Deus!

Se é loucura.... se é verdade

Tanto horror perante os céus...

Ó mar! Por que não apagas

Com a esponja de tuas vagas

De teu manto este borrão?

Astros! Noite! Tempestades!

Rolai das imensidades!

Varrei dos mares, tufão!...

Page 213: O negro e a cultura afro-brasileira: uma bricolagem multicultural do

213

Quem são estes desgraçados,

Que não encontraram em vós

Mais o rir calmo da turba

Que excita a fúria do algoz?

Quem são...

São os filhos do deserto

Onde a terra esposa a luz

Onde voa em campo aberto

A tribo dos homens nus...

São os guerreiros ousados,

Que com os tigre mosqueados

Combatem na solidão...

Homens simples, forte bravos...

Hoje míseros escravos

Sem ar, sem luz, sem razão.

ALVES, Castro. Em:

Antologia escolar brasileira.

Rio de Janeiro: Fename, 1977.

(p.112)

GEOGRAFIAS

DO MUNDO

DESIGUALDADE E

DIVERSIDADE NA

POPULAÇÃO BRASILEIRA:

OS NEGROS E AS

MULHERES

Page 214: O negro e a cultura afro-brasileira: uma bricolagem multicultural do

214

Ainda é muito forte o

tratamento discriminatório e

desigual a que as pessoas são

submetidas no Brasil apenas

por causa de suas condições de

cor ou sexo, segundo o

levantamento realizado pelas

últimas pesquisas do IBGE.

Da mesma maneira, entre

brancos e não-brancos as

diferenças são grandes.

Comparando-se o rendimento

médio das populações preta e

parda (segundo denominação

utilizada pelo IBGE) com a

branca, constatou-se que os

primeiros receberam em 2001 a

metade do que receberam os

brancos. E aqui, também, as

maiores diferenças de

rendimentos foram encontradas

entre os mais escolarizados,

com 12 ou mais anos de

estudo.

Ao comparar os rendimentos,

constatou-se ainda que os

homens pretos e pardos

ganham cerca de 30% menos

do que as mulheres brancas, o

que parece ser uma forte

indicação de que no Brasil a

cor da pele é motivo de

discriminação maior ainda do

que a condição de gênero.

Diante desses dados, não

seriam necessários longos

argumentos nem explicações

complicadas para convencer

qualquer um da importância

dessa discussão, sobretudo

quando consideramos que a

população brasileira, além de

ser majoritariamente

constituída de mulheres

(conforme nos indicam os

Page 215: O negro e a cultura afro-brasileira: uma bricolagem multicultural do

215

próprios dados do IBGE), é

visivelmente uma população

mestiça, com elevada

quantidade de negros; estes, no

entanto, aparecem nas

estatísticas populacionais como

minoria absoluta, diante da

maioria branca e parda que os

últimos censos têm revelado.

[...]

São muitas as explicações para

origens dessa atitude de

discriminação. Para enumerá-

las, com certeza seríamos

remetidos inclusive à própria

história da formação do país e

de sua sociedade, como a

imposição de valores pela

colonização europeia, as

disputas territoriais com os

indígenas e os séculos de mão

de obra negra escravizada. Não

é o caso, aqui, de nos

desviarmos para as análises

desses episódios. [...] De

qualquer forma, não

poderíamos encerrar nossa

abordagem da geografia da

população brasileira sem fazer

referência a aspectos que

evidenciam uma geografia que

é também de injustiças e

discriminações. Omitindo tais

aspectos, contribuímos para

alimentar mitos comuns e

muito difundidos para

caracterizar a população

brasileira, como o de

“democracia racial”, uma

situação em que prevaleceria

uma condição de igualdade de

oportunidades para todas as

pessoas, independentemente da

cor da pele ou da origem

etnicorracial de cada um.

p.122-123

Page 216: O negro e a cultura afro-brasileira: uma bricolagem multicultural do

216

AMPLIANDO OS

HORIZONTES

Mitos e realidades da

população brasileira (texto

complementar. p 124-125

PARA VIVER

JUNTOS

A FORMAÇÃO DO POVO

BRASILEIRO

Durante a colonização

portuguesa, povos africanos

foram trazidos como escravos.

Inicialmente trabalharam na

produção da cana-de-açúcar, no

atual Nordeste brasileiro;

depois no garimpo das minas.

(p.38)

O POVO BRASILEIRO

No censo demográfico do

IBGE de 2000, a maioria dos

brasileiros declarou ser de cor

branca (54%), seguidos pelos

pardos ou mestiços (cerca de

40%), pretos (pouco mais de

5%), amarelos (orientais, como

japoneses ou coreanos, cerca

de 0,5%) e indígenas (0,4%).

AFRODESCENDENTES E

OUTROS GRUPOS ÉTNICOS

A presença de

afrodescendentes é mais forte

nas regiões Nordeste e Sudeste,

áreas que mais utilizaram a

Page 217: O negro e a cultura afro-brasileira: uma bricolagem multicultural do

217

mão de obra escrava africana.

Nessas duas regiões, as

maiores do país em população,

também se percebe facilmente

influência cultural africana no

vocabulário, culinária, na

dança e na música, entre outros

elementos.

Assim, pode-se dizer que o

brasileiro é um povo

particularmente miscigenado e

multicultural. p.39

DIVERSIDADE ÉTNICA

Os grupos étnicos formadores

do povo brasileiro são o

indígena, o branco europeu e o

negro africano.

A forte miscigenação que

caracteriza o país ao longo de

sua história torna os brasileiros

de norte a sul um povo de

costumes, culinária e tradições

bem variados. p.40

PERSPECTIVA

CAPÍTULO 4 – QUEM VIVE

NO BRASIL?

A ORIGEM DO POVO

BRASILEIRO p.40

A contribuição cultural dos

povos africanos à cultura

brasileira é grande. Elementos

dessa herança podem ser

Page 218: O negro e a cultura afro-brasileira: uma bricolagem multicultural do

218

percebidos na nossa música,

dança, religião e culinária. p.41

DIVERSIFICANDO

LINGUAGENS

O Brasil e seu povo são,

frequentemente, retratados por

meio de manifestações

artísticas. Leia um exemplo a

seguir e observe a obra de

Tarsila do Amaral.

Lourinha Bombril (Parate y

mira)

Para e repara

Olha como ela samba....

p.43

PROJETO

ARARIBÁ

REGIONALIZAÇÃO DO

TERRITÓRIO BRASILEIRO

O que é regionalização?

Dividir para melhor governar

Por que regionalizar (p.22-23)

NORDESTE: OCUPAÇÃO E

ORGANIZAÇÃO DO ESPAÇO

O CANAVIAL E A

ORGANIZAÇÃO DO ESPAÇO

A FORMAÇÃO DA

POPULAÇÃO BRASILEIRA

A miscigenação trouxe grande

diversidade de traços culturais

na formação da população

brasileira. (p.42)

Os povos africanos

Assim como os indígenas, os

povos africanos pertenciam a

diferentes grupos étnicos,

vindos de varias regiões da

África, e representavam,

numericamente, boa parte do

total da população no período

Page 219: O negro e a cultura afro-brasileira: uma bricolagem multicultural do

219

Ao longo do século XVI, a

organização do espaço nordestino

esteve relacionada à economia

canavieira, que proporcionou

poder político e econômico à

região no período colonial.

Alguns aspectos

socioeconômicos ligados à

produção açucareira marcaram a

organização do espaço:

formação de latifúndios,

ou seja, concentração de

grandes ares destinadas à

plantação de cana-de-

açúcar;

desenvolvimento de

monocultura, isto é,

cultivo de apenas um

produto, nesse caso a

cana-de-açúcar;

trabalho escravo com

pessoas trazidas da

África. p.117

REGIÃO SUDESTE

ATIVIDADE

COMPLEMENTAR

Compreender um texto

CHICO REI

O texto a seguir nos conta a

história de Galanga, que era rei

em sua terra natal, o Congo, na

África, e foi trazido para o Brasil

como escravo. Vamos saber

como ele voltou a ser o rei de seu

povo, mesmo tão distante de sua

da colonização.

Aproximadamente 4 milhões

de africanos foram trazidos

para trabalhar como escravos

no Brasil, entre os séculos XVI

e XIX.

Apesar da repressão sofrida

pelos povos africanos durante o

período de escravidão, suas

manifestações culturais, tais

como a música, a religiosidade,

a dança e a comida, compõem

a cultura brasileira. Basta

lembrarmos duas das “marcas

registradas” do Brasil: a

feijoada e o samba. p.43

Hoje, milhares de famílias de

descendentes dos povos

escravizados vivem nas

comunidades remanescentes de

quilombos (onde se localizam

os antigos quilombos),

existentes em muitos estados

brasileiros. p.43

O MITO DA DEMOCRACIA

RACIAL

Um dos aspectos levantados

pelos censos brasileiros é a

distribuição da população

segundo cor ou raça. Para

realizar esse levantamento, o

IBGE apresenta cinco grupos

étnicos, definidos, de modo

geral, pela cor da pele, para que

as pessoas se autoclassifiquem.

Observe a figura 11. p.45

Durante muito tempo

Page 220: O negro e a cultura afro-brasileira: uma bricolagem multicultural do

220

terra natal. (p.162-163).

acreditou-se que a “mistura” de

povos fazia do nosso país uma

democracia racial, isto é, um

país sem racismo, onde todos

seriam tratados da mesma

forma e teriam as mesmas

oportunidades.

No entanto, em nosso país há

uma racismo disfarçado contra

negros e indígenas, levando

grande parte da população a

não reconhecer sua própria

origem. Prova disso é que

muitas pessoas que poderiam

ser classificadas como pardas

ou negras se autodeclaram

brancas.

Ao comparar, por exemplo, as

taxas de analfabetismo da

população brasileira, dividida

por cor ou raça, verificamos a

enorme desigualdade: 7% da

população branca é analfabeta,

e entre a população parda e

negra esse valor dobra, sendo

15,6% e 14,6%

respectivamente. A figura 12

mostra o analfabetismo por

região demonstrando que as

diferenças relacionadas à cor

da pele somam-se às diferenças

regionais. p.45

ATIVIDADE

SAIBA MAIS

A capoeira

Page 221: O negro e a cultura afro-brasileira: uma bricolagem multicultural do

221

“De origem remota e

controversa, é verdade que a

capoeira é brasileira. Foi aqui

que fincou suas raízes e criou

mitos e lendas, como a que

envolve o mestre Besouro e

tanto outros, na afirmação da

resistência contra a opressão. A

capoeira, hoje, é parte do

cenário urbano. Perseguida por

quase trezentos anos, era

praticada às escondidas.

Marginalizada, era jogo que se

jogava por alguns corajosos.

Era apenas uma tradição dos

negros.

Herança deixada pelos negros

bantos, vindas de Angola como

escravos, foi cultivada e

praticada por escravos

fugitivos que, ameaçados de

recaptura, defendiam-se usando

a técnica. Para não levantar

suspeitas, os movimentos de

luta foram adaptados às

cantorias africanas para que

parecessem uma dança. [...]

O Brasil está mais alegre ao

som dos berimbaus, que soam

nas praças, nas rodas de

capoeira, no bailado dos corpos

negros. É a estética da

resistência. É o mostrar-se ao

mundo com dignidade. É o

saber cultural de um povo

forjado na luta que está inscrito

para sempre na história da

identidade brasileira.”

ARAÚJO, Zulu. A afirmação

da capoeira. p. 47

Page 222: O negro e a cultura afro-brasileira: uma bricolagem multicultural do

222

PROJETO

RADIX

MÓDULO 3 – A

POPULAÇAO BRASILEIRA

[...] Essa pluralidade da cultura

brasileira tem origem na

formação do nosso povo, que,

como já vimos, aconteceu a

partir do encontro de diferentes

povos: os indígenas, que

habitavam essas terras há

milhares de anos; os europeus,

principalmente os portugueses

colonizadores; os africanos; e

diversos povos imigrantes,

entre eles italianos, alemães,

espanhóis, japoneses e árabes.

Cada um desses povos deixou

uma herança cultural que hoje

está presente em nosso modo

de vida. Os portugueses

deixaram as marcas mais

profundas em nossa cultura,

como a língua e a religião

católica, a mais praticada no

país. Os indígenas nos legaram

hábitos como tomar banho

diariamente, descansar em rede

e utilizar alimentos como

mandioca e o milho. Em nossa

culinária, que é uma das mais

diversificadas do mundo,

encontramos a influência dos

africanos, que criaram a

feijoada e o vatapá; dos

portugueses, que introduziram

os doces à base de leite e ovos;

dos italianos, que trouxeram a

pizza, macarronada, a polenta

e a lasanha; dos japoneses, que

nos apresentaram o suchi e o

sashimi, entre outros. p.68