o nascimento da tragédia no espírito da música (f.w.nietzsche)

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Universidade de Braslia Instituto de Cincias Humanas Departamento de Filosofia

NIETZSCHE E A MSICA: Consideraes do filsofo sobre a msica como proposta de afirmao da vidaPor Clia Evangelista de PaulaBraslia-DF Setembro, 2006

Trabalho de Concluso do Curso de Especializao em Filosofia 2005/2006, Departamento de Filosofia, Universidade de Braslia, como requisito para obteno do titulo de Especialista em Filosofia, sob a orientao do Professor (a) Flvio Ren Kothe.

Prof. Flvio Ren Kothe orientador Prof. Rogrio Basali co-orientador Prof. Agnaldo Cuoco examinador convidado Dedico esta pesquisa aos meus pais, aos eternos amigos e a todos aqueles que tm uma inexplicvel vontade de potncia; os que com coragem e determinao dizem sim vida. AGRADECIMENTOS Agradeo aos Professores Flvio Kothe e Rogrio Basali que, com suas orientaes e observaes, ricas e pertinentes pesquisa, forneceram-me condies para desenvolver este estudo. Agradeo tambm a possibilidade de contato com o pensamento Nietzschiano, possuidor de sabedoria inesgotvel e profunda, permitindo aos que o lem atentamente, transformar e ampliar suas vises de vida.

Quo pouca coisa necessria para a felicidade! O som de uma sanfona. - Sem msica a vida seria um erro. (Friedrich W. Nietzsche) RESUMO Este estudo faz parte do II Curso de Especializao em Filosofia da Universidade de Braslia 2005/2006. Tem como objetivo levantar algumas das principais consideraes realizadas por Friedrich Wilhelm Nietzsche no tocante msica e sua importncia para a afirmao da vida. A partir dos livros O nascimento da tragdia (1872), O Caso Wagner e Nietzsche contra Wagner (1888), a pesquisa procura evidenciar e entender as reflexes desse filsofo quando da construo dessas obras em seu contexto. O pensamento nietzschiano sobre a origem da arte trgica grega e a fora mtica dionisaca, alm de sua decepo junto ao compositor Richard Wagner para o renascimento do trgico no drama musical, foram analisados nas suas principais implicaes e relevncias para a msica, enquanto elemento significativamente artstico e afirmador da vida.

SUMRIO 1 APRESENTAO 2 VIDA E OBRA BREVE BIOGRAFIA 3 A MSICA EM "O NASCIMENTO DA TRAGDIA": O ENCANTAMENTO POR WAGNER 4 A MSICA EM O "O CASO WAGNER": DESENCANTAMENTO E DOENA 5 CONCLUSO 6 REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS 1. APRESENTAO Esta pesquisa tem por objetivo explorar algumas das principais consideraes feitas pelo filosofo Friedrich Wilhelm Nietzsche sobre a msica e sua importncia para a afirmao da vida, principalmente a partir das obras O nascimento da tragdia (1872), O Caso Wagner e Nietzsche contra Wagner (1888), alm de outras vinculadas ao conjunto de textos do filsofo. Conforme afirma Nietzsche A msica nos oferece momentos de verdadeiro sentimento [1] pois S a msica colocada ao lado do mundo pode nos dar uma idia do que deve ser entendido por justificao do mundo como fenmeno esttico [2], percebe que A vida sem a msica simplesmente um erro, uma tarefa cansativa, um exlio. [3] Nestas citaes, percebe-se o quanto o filsofo atribui msica a importncia para o pensamento e para a vida, ocupando um lugar central na esttica de Nietzsche no que se relaciona afirmao da existncia humana. Cabe ressaltar que a pesquisa leva em considerao integralmente a mesma significao da expresso msica adotada por Nietzsche. Nesse sentido, esclarece Viviane Mos:

() ao se dirigir msica, Nietzsche no estava, necessariamente falando da arte musical em si, mas de uma melodia original dos afetos ou uma melodia primordial. (), refere-se a uma lngua originria, puramente sonora, impossvel de ser simbolizada, fundo de todas as coisas, o querer universal. Esta msica impossvel de se manifestar, por se caracterizar pela ausncia de forma, o dionisaco. [4] Refora Mos que Desta msica originria derivaria a msica propriamente dita, a poesia lrica e pica, a linguagem prosaica e a cientifica, em ordem decrescente. Nem mesmo a arte musical seria capaz de manifestar esta linguagem to primordial, esta msica dionisaca, embora seja a que mais se aproxima dela. [5] J Curt Paul Janz, especialista na msica de Nietzsche, em entrevista a Paulo Csar de Souza, explica que O pensamento de Nietzsche foi musical na medida em que foi fortemente emocional, nascido da vivncia do momento no obstante toda a agudeza do intelecto. Sua musicalidade influi tambm na configurao, na forma de seus escritos, o que por outro lado determina sua relao com a msica (). [6] Ao levantar e confrontar as diversas percepes, consideraes e idias nietzschianas a respeito da msica, torna-se quase impossvel deixar de fora alguns aspectos pessoais do universo do filsofo. Sua sensibilidade, estilo singular, ndole romntica, liberdade intelectual, intuio musical e potica so, com efeito, estimulantes nessa sua paixo pela msica. O trabalho est dividido em dois captulos A Msica em O nascimento da tragdia: o encantamento por Wagner e A msica em O Caso Wagner: desencantamento e doena e se prope a mapear parte dessa relao entre Friedrich Wilhelm Nietzsche e a msica, buscando evidenciar qual a importncia que esse filsofo dava mesma, bem como entender o significado dessa relao para a afirmao da vida. 2. VIDA E OBRA BREVE BIOGRAFIA Filho de Karl Ludwig, pastor luterano, Friedrich Wilhelm Nietzsche nasceu em 15 de outubro de 1844, em Rcken, localidade prxima a Leipzig (Alemanha). Foi instrudo pela me em rgidos princpios, principalmente religiosos e seu nome foi dado em honra a Frederico Guilherme IV, rei da Prssia. Em 1849, ou seja, aos cinco anos, perde o irmo e o pai, mudando-se com a famlia para Naumburg. Cresce em companhia da me, da irm, duas tias e da av materna. Em 1858, obteve uma bolsa de estudos no Colgio Real de Pforta. Datam dessa poca suas leituras de Schiller (1759-1805), Hlderlin (1770-1843) e Byron (1788-1824), cujas influncias comeam a afast-lo do cristianismo. Durante o ltimo ano em Pforta, escreveu um trabalho sobre o poeta aristocrata Tegnis (sc. VI a.C.). Partiu em seguida para Bonn, onde se dedicou aos estudos de teologia e filosofia; desistindo logo aps, passou filologia. Destaca-se como brilhante aluno e passa a lecionar Filologia na

Universidade de Basilia, na Sua, de 1868 a 1879, ano em que deixou a ctedra por motivo de doena. Quando a Alemanha entrou em guerra com a Frana, em 1870, Nietzsche serviu o exrcito como enfermeiro, mas por pouco tempo, pois logo adoeceu, contraindo difteria e disenteria. Em 1871, publica a obra O nascimento da tragdia no esprito da msica, com fortes influncias do filsofo Schopenhauer e do compositor Richard Wagner. Conhece este ltimo em 1867, na cidade de Leipzig. Em 1879, em razo da sade frgil, Nietzsche passa a receber aposentadoria da universidade. Publica em 1880 O Andarilho e sua Sombra. Um ano depois aparece Aurora, obra com a qual se empenhou num estudo sobre a moral. Em 1882, escreve A Gaia Cincia, depois Assim falou Zaratustra (1884), Para Alm de Bem e Mal (1886), O Caso Wagner, Crepsculo dos dolos, e Nietzsche contra Wagner (1888). Passando o inverno de 1882-1883, na Itlia, ele redige Assim falou Zaratustra. Nesta obra, o pensamento nietzschiano encontraria, num personagem persa, o meio de expresso. No outono de 1883 voltou para a Alemanha e passou a residir em Naumburg, em companhia da me e da irm. Foi internado em Basilia por doena degenerativa no crebro, diagnosticada como "paralisia progressiva". Nietzsche faleceu em Weimar, a 25 de agosto de 1900 e foi sepultado na cidade alem, Rocken. So obras pstumas Ecce Homo, Ditirambos Dionisacos, O Anticristo e Vontade de Potncia. Alm das obras publicadas, Nietzsche deixou milhares de pginas com esboos e anotaes, chamados de Fragmentos Pstumos. Apesar das dificuldades de vida encontradas perdas familiares, problemas de sade, desastres amorosos, incompreenso de suas idias Nietzsche afirma que para atingirmos algo que valha a pena, devemos fazer um esforo extraordinrio. Seu pensamento continua despertando interesse nos mais diversos pensadores das mais diferentes reas. Sua obra de inesgotvel valor. 3. A MSICA EM O NASCIMENTO DA TRAGDIA: O ENCANTAMENTO POR WAGNER

Copleston, em seu livro Nietzsche, Filsofo da Cultura, escreve: Aquela alma potica e idealista no podia deixar de ter sido influenciada pela atmosfera religiosa da sua infncia, pelos ofcios e msica da igreja rural [7]. O mesmo autor ainda conta que foi em Naumburg que a msica comeou a desempenhar um papel importante na vida de Nietzsche. J adulto Nietzsche veio a ser um dos mestres da literatura alem e continuou a sentir uma paixo profunda pela msica. Nessa poca, o filsofo tinha Plato e squilo como seus autores clssicos favoritos. Compondo poemas e msica, fundou com alguns amigos uma agremiao literria denominada Germnia. Mas foi na universidade que Nietzsche, como aluno, passou a tratar das relaes entre a msica e a tragdia grega. Em Leipzig, escreve ele: trs coisas constituem para mim uma consolao: o meu Schopenhauer, a msica de Schumann e, ultimamente os meus passeios solitrios. [8] Seu primeiro livro O nascimento da tragdia no Esprito da Msica, escrito em 1871, foi reeditado em 1886 com o ttulo, O nascimento da tragdia, ou Helenismo ou Pessimismo, obra com fortes influncias do filsofo Arthur Schopenhauer e do compositor Richard Wagner. Sobre o livro, Nietzsche esclarece: Vi por vrias vezes citada a minha obra com o subttulo de Renascimento da tragdia pelo esprito da msica; olhou-se somente para a nova frmula da arte, para as intenes, com o escopo wagneriano, no se tendo observando aquilo que esse livro continha de importante. Helenismo e Pessimismo seria um titulo mais preciso, dado que ensina pela primeira vez como os gregos se libertaram do pessimismo, com que meios o superaram (). A tragdia uma prova precisa de que os gregos no eram pessimistas. [9] Em primeiro lugar, este livro representa uma homenagem a Richard Wagner, uma interpretao de seus dramas musicais como obras de arte totais que igualam s tragdias antigas. Traz uma dedicatria explcita ao compositor Wagner: () declaro que, por convico profunda, considero na arte a misso mais elevada e a atividade essencialmente metafsica da vida humana, no que acompanho o pensamento do artista a quem dedico este trabalho, meu nobre companheiro de armas, meu precursor neste difcil caminho. [10] Em Wagner, Nietzsche pensava ter encontrado um aliado para trazer a tragdia para o palco, como uma transfigurao cultural e resgatar o valor da sabedoria trgica dos gregos para a sua poca.

A obra traz a concepo que Nietzsche tinha da tragdia baseada numa viso fundamentalmente nova da Grcia, ou seja, o sentimento trgico da vida antes a aceitao e celebrao dessa, a jubilosa adeso ao horrvel e ao medonho, morte e ao declnio. Ao resgatar o valor do homem trgico grego, Nietzsche elege a msica e seus significados para a afirmao da vida: amor, liberdade, fatalismo e morte. Na juventude, Nietzsche identifica-se de imediato com a filosofia da msica do compositor Richard Wagner, quando este redige, em 1870, um escrito em homenagem ao centenrio de Beethoven. Passa a acreditar no drama musical wagneriano enquanto possibilidade de uma reforma e revoluo na cultura a partir da criao artstica. A tragdia no seria o desprezo da existncia e sim uma afirmao contrria cultura metafsica crist-platnica, a qual padecia a cultura ocidental. Pensa o filsofo ser a msica de Wagner o meio ideal para esse fim. Assim, em 1872, Nietzsche escreve seu primeiro livro O nascimento da tragdia. O jovem Nietzsche afirmava que a unio das artes, e em particular das imagens mticas representadas no palco, necessria para tornar suportvel a fora destrutiva da msica pura que, de outro modo, provocaria a destruio do indivduo ou dos princpios individuais tempo, espao e causalidade. Destacar dois pontos ou duas idias na sua argumentao. A primeira idia buscar a origem, a composio e a finalidade da arte trgica grega. Para isso, ele investigar a anttese entre dionisaco e apolneo. Na segunda idia, Nietzsche denuncia a morte da arte trgica perpetrada por Eurpedes, homem terico e racional que remete ao poeta e ao artista explicaes racionais baseadas nos preceitos socrticos. Escreve Nietzsche sobre sua obra: Entre as duas importantes inovaes trazidas por este livro a primeira a interpretao do fenmeno dionisaco entre os gregos e a segunda a interpretao do socratismo, instrumento de decomposio grega como tipo decadente, ou o raciocnio em oposio ao instinto. [11] Nietzsche distingue na cultura grega dois princpios fundamentais: O apolneo e o dionisaco. Nas palavras do prprio filsofo vem a explicao: Que significam as oposies de idias entre apolneo e dionisaco que introduzi na esttica, ambas consideradas como categorias de embriaguez? A embriaguez apolnea

produz, acima de tudo, a irritao dos olhos que confere aos olhos a faculdade da viso. O pintor, o escultor, o poeta pico so visionrios por excelncia. Em contrapartida, no estado dionisaco, todo o sistema emotivo est irritado e amplificado: de modo que descarrega de um s golpe todos os seus meios de expresso, expulsando sua fora de imitao, de reproduo, de transfigurao, de metamorfose, toda espcie de mmica e de arte de imitao". [12] ento exposta sua tese: a tragdia grega nasce a partir do coro dos stiros e desenvolve-se da luta entre as duas pulses estticas a apolnea e a dionisaca. Sendo Apolo o deus da clareza, da harmonia e da ordem e Dioniso, o deus da exuberncia, da desordem e da msica. Nietzsche conclui que os dois princpios so, na verdade, complementares entre si e, no sendo antagnicos, formam uma aliana, fazem uma reconciliao. Essa ligao estabelecida entre o culto dionisaco e a arte trgica fornecer a hiptese necessria sua teoria da tragdia. Expressando a fora existente nos mitos e o papel da msica, encarnada no coro, Nietzsche destaca quais importantes funes desempenhavam as tragdias gregas. Sua obra faz uma anlise profunda sobre a cultura grega, ressaltando a conexo entre o sentido do trgico e a expresso musicalmente vigorosa da viso mtica. O papel da tragdia seria ento o de resgatar o mito, dar-lhe um contedo mais profundo, uma forma mais expressiva, realizar a verdadeira unio entre msica e mito. O instinto era despertado no homem e este, num estado dionisaco, sentia a prpria vida, fundindo-se a ela. Segundo Nietzsche: () O homem dionisaco incapaz de no compreender uma sugesto qualquer, no deixa escapar nenhum vestgio de emoo, possui no mais alto grau o instinto compreensivo e advinhador, como possui no mais alto grau a arte de se comunicar com os outros. [13] Para o filsofo, o que torna a arte trgica possvel a msica e ele busca a valorizao da msica para pensar a tragdia grega como uma arte fundamentalmente musical ou com origem no esprito da msica. O mito trgico, enquanto smbolo sublime oriundo da msica, arranca o ouvinte espectador de seu sonho de aniquilao orgistico, fundindo-o natureza, diluindo sua individualidade. Em sua analise, Nietzsche denuncia a percepo do valor ntimo do trgico, captvel atravs da msica conjugada fora plstica do mito.

O objetivo metafsico supremo da tragdia e da arte em geral era, portanto, que a imagem apolnea protegesse e revelasse tal qual um vu que mostra e esconde a fora destrutiva do dionisaco. Desse modo, tem-se Dioniso falando a lngua de Apolo, mas Apolo, ao final, falando a lngua de Dioniso. Os conceitos de apolneo e dionisaco aparecem no sentido da essncia e da aparncia, da representao e da vontade, de Schopenhauer. Descreve que os deuses e heris apolneos so aparncias artsticas que tornam a vida desejvel, encobrem o sofrimento pela criao de uma iluso, ou seja, o princpio da individuao, processo de criao do indivduo. J o Dionisaco a harmonia universal dada pela experincia de reconciliao das pessoas com as pessoas e com a natureza. Tem um sentido mstico de unidade e escapa da individuao, se fundindo ao uno, ao ser e integrando a parte com o todo ou a totalidade. O Apolneo, enquanto princpio da individuao, determina as formas da aparncia e proporciona a medida, a diviso, a figurao, manifestando-se, sobretudo, na pintura, na escultura e no ritmo das msicas cadenciadas. O Dionisaco, enquanto uno primordial, diz respeito destruio de toda individuao, a uma total e desmedida embriaguez, manifestando-se principalmente na melodia e na harmonia dissonante, presentes na msica cantada pelo coro dos stiros. A juno dessas duas pulses, proporcionaria ao espectador da tragdia, segundo Nietzsche, a possibilidade de entrar em contato com a fora destruidora de Dioniso, sem que, entretanto, fosse destrudo por ela, pois serviria de salvao pelo poder da bela aparncia oferecida por Apolo. Ambas as pulses tornam-se fundamentais ao homem, pois a imaginao figurativa, que gera as artes da aparncia (as palavras poticas e as artes plsticas) e a potncia emocional, que d voz e vez msica, so asseguradas no prazer esttico produzido pelo horror encenado na tragdia grega. Nesse sentido, Nietzsche percebe que: A vida no fundo das coisas, a despeito de toda a mudana dos fenmenos, indestrutivelmente poderosa e alegre. Esta consolao aparece com nitidez corporal como coro de stiros, coro de seres naturais que vivem inextinguivelmente por trs de toda a civilizao (). [14] A aliana ou reconciliao entre os dois princpios aparece para estabelecer o culto dionisaco e a arte trgica. Assim, a multido encantada de stiros e silenos d origem

tragdia, permitindo a possesso causada pela msica, onde esta a expresso imediata e universal da vontade, como essncia do mundo. Em suma, a tragdia, fundada na msica, a expresso das pulses artsticas apolneas e dionisacas, ou seja, a unio da aparncia e da essncia, da representao e da vontade, da iluso e da verdade. a atividade que permite o acesso s questes fundamentais da existncia. A msica, enquanto arte essencialmente dionisaca, o meio para se desfazer da individualidade. Nesse caso, ela acrescentada de componentes apolneos cena e palavra e o coro dionisaco se descarrega em um mundo apolneo de imagens. O mito trgico, criado pelo coro, apresenta uma sabedoria dionisaca atravs do aniquilamento do indivduo herico e de sua unio com o ser primordial, o uno originrio (vontade). A finalidade aceitar o sofrimento com alegria como parte integrante da vida, uma vez que o aniquilamento do indivduo nada afeta a essncia da vida. A tragdia na definio nietzschiana: Um coro dionisaco que incessantemente se descarrega num mundo apolneo de imagens e, ainda, O coro, em seu primeiro estgio, na tragdia primitiva, a imagem que a natureza dionisaca percebe de si mesma. Portanto, o coro dos stiros , antes de mais nada, uma viso da multido dionisaca, como , por seu turno, o mundo do palco uma viso desse coro satrico. [15] O filsofo tenta arrancar a msica ao texto, relanar suas potencialidades significantes antes de toda captura pela palavra ou pela idia. Porm, com o advento da razo em detrimento do instinto, surge o socratismo de Eurpedes, usando as palavras do filsofo, o qual baseia-se no fato que tudo deve ser inteligvel para ser belo ou, como dizia Scrates, tudo deve ser consciente para ser bom. Eurpedes expulsa o elemento dionisaco, original e onipresente, da tragdia e o substitui por um teatro para a arte, para a moral e para a compreenso que no eram dionisacas. Eurpedes, contudo, era apenas uma mscara desta razo preponderante, uma vez que A divindade que falava atravs dele no era Dioniso, no era Apolo, mas um demnio recm-nascido e chamado Scrates tal a nova contradio o dionisaco e o socrtico e nesta contradio faliu a obra de arte que era a tragdia grega. [16] Eurpedes transforma-se no poeta do socratismo esttico.

Esse esprito racionalista de Eurpedes no a nica causa da morte da tragdia; ele , em ltima instncia, manifestao de algo mais profundo o racionalismo socrtico resumido nas trs frmulas: Virtude saber, s se peca por ignorncia e o virtuoso feliz. Em detrimento do saber mtico, comea a preponderar uma dialtica e uma tica otimista, que pressupe serem os problemas essenciais da existncia resolvidos pelo saber racional. Desprezando o instinto, o socratismo condena e arruna a arte trgica. Conforme Nietzsche, isso desvalorizou a sabedoria instintiva ou inconsciente, a viso mtica do mundo. Se o que se toma como critrio o grau de clareza do saber ou a conscincia terica do artista, a arte trgica estaria desclassificada e sua morte decretada. Consequentemente, o desaparecimento e a morte da arte trgica levam consigo o saber instintivo, a expressividade mtica e o sentir primordial, todos importantes existncia humana. Estava arruinada na medida em que a metafsica racional socrtica e criadora do esprito cientifico estavam sobrepostos metafsica do artista trgico. Nesse sentido, Scrates pe fim afirmao do homem trgico. Em sua denncia, afirma Nietzsche: Aqui sobrepe-se o pensamento filosfico arte para a obrigar a cingir-se ao movimento da dialtica. () Scrates, heri dialtico do drama platnico, lembra-nos o heri de Eurpedes, que tambm forado a justificar os seus atos pelo recurso da razo e do argumento, e muitas vezes assim se arrisca a perder a nossa compaixo trgica. [17] Assim, a dialtica socrtica distingue dois mundos: o essencial (verdadeiro e inteligvel) e o aparente (falso e sensvel). Como juiz de sua prpria arte, Eurpedes faz de sua poesia o eco de seu pensamento consciente, mas ao reavaliar elementos da tragdia como a linguagem, os caracteres, a construo gramtica e o coro, exclui o componente dionisaco da tragdia, e com este, a msica. A crtica nietzschiana vem rapidamente, escrevendo ele: A dialtica otimista, munida com o aoite de seus silogismos, expulsa a msica para fora da tragdia: isto , destri a prpria essncia da tragdia, que s se deixa interpretar como manifestao e figurao de estados dionisacos, como simbolizao visvel da msica, como mundo sonhado por uma embriaguez dionisaca. [18] Para Nietzsche, a grande tragdia grega apresenta como caracterstica o saber mstico da unidade da vida e da morte e, nesse sentido, constitui uma chave que abre o caminho

essencial ao mundo. Os homens viviam seus deuses, que mostravam a vida sob um olhar glorioso. Na tragdia grega, a platia participava tambm, era artista. Nos cultos, o deus se revela, mostrando o drama da individualizao. Conclui assim que, a filosofia dos pr-socrticos afirmadora da vida e da natureza, pois o pensamento est unido com esse fenmeno, a vida. Partindo da descoberta do dionisaco no cerne da civilizao grega, Nietzsche redescobre de modo inovador, a conexo entre o sentido do trgico e a expresso musicalmente vigorosa da viso mtica. Numa de suas intuies geniais, exaltou a fora expressiva que o mito desempenha na tragdia grega. Inspirado, como Wagner, nas teses shopenhauerianas, teve os relmpagos de compreenso que o pensamento domesticado da poca recebeu como afrontas ao senso comum. Empregando o mito na traduo plstica do conflito ntimo de foras do psiquismo humano, os grandes trgicos, ao tomar essa matria como substncia do trabalho, superava as limitaes sociais das inspiraes de seu tempo, passando a criar fora do tempo e para todos os tempos. A funo fundamental das tragdias descrita por Nietzsche como o poder que excita, purifica e descarrega a vida inteira de um povo. [19] A msica, na viso nietzschiana, era a experincia da verdade dionisaca indissocivel da aparncia apolnea. O grande significado e papel da msica manter a possibilidade de acesso realidade da natureza. A msica seria a voz da natureza, a voz da realidade interior da vida. Fundar um Estado sobre a msica fundar um Estado sobre a prpria realidade, como teriam feito os antigos helenos. Alm da filosofia de Schopenhauer, foi com essa perspectiva citada que o filsofo sentiu-se atrado e entusiasmado pelo projeto wagneriano de regenerao da cultura alem. Nietzsche acreditava estar a linguagem dos homens modernos pervertida. Eles se tornaram escravos dos homens, das convenes, dos artificialismos, do pensamento correto, das idias claras e distintas. Com a msica, dar-se-ia um retorno natureza, alm de todos os limites e enquadramentos da linguagem. Quanto ao seu distanciamento de Schopenhauer, escreve Nietzsche: A tragdia est longe de demonstrar algo a favor dos pessimistas gregos, no sentido de Schopenhauer,

que poderia antes ser considerada como sua refutao definitiva, como seu julgamento. A afirmao da vida, mesmo em seus problemas mais estranhos e mais rduos; a vontade de viver, regozijando-se no sacrifcio de seus tipos mais elevados, por seu prprio carter inesgotvel o que chamei de dionisaco, nisso que acreditei reconhecer o fio condutor para uma psicologia do poeta trgico, [20] pois: () s as almas mais espirituais, admitindo-se que sejam as mais corajosas, dado viver as tragdias mais dolorosas: mas por isso que estimam a vida, porque ela lhes ope seu maior antagonismo. [21] O filsofo pensa a msica como arte dionisaca que traduz diretamente a dor e o prazer do querer, maximizando a vontade de vida, pois () s poeta o homem que possui a faculdade de ver os seres espirituais que vivem e brincam em torno dele; s dramaturgo o homem que sente o impulso irresistvel de se transformar e de falar mediante outros corpos e outras almas. [22] Em suma, sua anlise, por meio de uma intuio excepcional, resgata e reconhece a percepo do valor ntimo do trgico, sendo este captvel atravs da msica conjugada fora plstica do mito. Assim permanecer o pensamento nietzschiano at a publicao de O Caso Wagner, em 1888, onde Nietzsche, desencantado com Wagner e sua msica, faz um profundo e impiedoso exame sobre o drama musical wagneriano e seus males. 4. A MSICA EM O CASO WAGNER: DESENCANTAMENTO E DOENA Nietzsche conheceu o compositor Richard Wagner em 1868, em Tribschen. O efeito de Wagner sobre Nietzsche foi imediato e esse passa a consider-lo como um bom representante de Dioniso que tanto buscava. O filsofo passa a ver no compositor a representao de seus ideais quanto ao pensamento schopenhauriano e o resgate ao valor do mito e da msica, como foras afirmadoras e criativas. Para Nietzsche, Wagner era o poeta, o msico, o dramaturgo ditirmbico que exprimia mais transparentemente o pensamento de Schopenhauer. Por meio de sua msica, a arte poderia retornar sua origem na antiguidade e recuperar a unio entre vida e sentimento. Em busca de uma msica verdadeira que deixasse soar em si o som total do mundo, Nietzsche fica, a princpio, encantado com a msica wagneriana. O drama musical wagneriano poderia recuperar o impulso dionisaco desaparecido com o socratismo e ser a flauta do deus Dionsio, com seu poder transformador. Porm, essa relao passar de

um encantamento com expressiva amizade e defesa a uma decepo, seguida de afastamento e crticas. Foi uma iluso pensar o drama musical wagneriano como uma salvao do sofrimento pelo desconforto enfrentado na cultura. Sobre sua primeira obra dedicada a Wagner, Nietzsche esclarece: Para ser justo com O nascimento da tragdia (1872), ser preciso esquecer certas coisas. Ele (Wagner) surtiu efeito e mesmo me fascinou pelo que nele era defeito por sua aplicao ao wagnerismo, como se fosse um sintoma de comeo. Esse escrito foi, por isso mesmo, na vida de Wagner, um acontecimento: foi desde ento que puseram grandes esperanas no nome de Wagner (), me lembram que sou eu propriamente o responsvel, se uma to alta opinio sobre o valor cultural desse movimento prevaleceu. [23] Quando escreveu a obra acima citada, Nietzsche estava envolvido com o wagnerianismo, sua msica e suas idias. Neste aspecto a pera wagneriana seria uma revoluo. O filsofo traria, junto com Wagner, a sabedoria trgica dos gregos seu pulsar de vida instintiva e mtica para a sua poca. Havia um sonho: transformar a cultura metafsica crist-platnica, a qual negava a vida, para a celebrao desta e sua afirmao. E ainda, o racionalismo exacerbado de Scrates j tinha fincado razes bastante profundas. Era preciso interpretar a multiplicidade do homem e re-valorizar o instinto dionisaco tiranizado pela razo. A identificao inicial com as idias wagnerianas estava intensa quando escreveu O nascimento da tragdia, mantendo-se, inclusive, aps a sua publicao. Entusiasmado, escreve (a Rohde), em 28/01/1872: Firmei um pacto com Wagner. Voc nem pode imaginar como agora estamos prximos e como nossos planos se tocam. [24] No comeo do sculo 19, a busca pelo mito possua fortes causas para seu ressurgimento, tornando-se um meio de apaziguar as dores da existncia. Nietzsche pensa na elevao da arte como sendo capaz de uma recriao da cultura mtica. Os mitos e sua existncia davam ao homem a fora necessria para encarar a vida, tornando-os soberanos e poderosos, medida que superavam suas dificuldades. Com a perda do mito, o homem encontrava-se s e j no podia mais buscar essa fora. Ainda tinha que encarar o contexto da poca: fim do Iluminismo, autoquestionamento das limitaes da razo e quebra da sociedade ps-feudal, trazendo conseqncias

penosas utilitarismo econmico e egosmo privado. O homem sente-se sozinho, apavorado e enfraquecido. A unidade social, antes reunida pelo mito, tambm estava perdida. Surge O Caso Wagner e, como uma espcie de breve descanso, Nietzsche escreve essa obra no intuito de esclarecer seu afastamento quanto ao papel revolucionrio que a msica wagneriana teve para ele. Sua reverncia ao compositor destruda, surgindo assim um desencantamento e conseqente distanciamento, definitivos na relao de amizade junto a Richard Wagner. Numa carta ao amigo Peter Gast, datada em 17/7/1888, o filsofo escreve: [...] Caro amigo, voc se recorda do pequeno panfleto que escrevi em Turim? Est sendo impresso agora; e peo encarecidamente a sua colaborao. Naumann (o editor) j tem o seu endereo. O ttulo O Caso Wagner: um problema para msicos. [25]. Na poca, Wagner ainda tinha pensamentos revolucionrios, defendendo que a corrupo da sociedade tambm corrompia a arte. Defendia ele que o mais alto objetivo do ser humano o artstico. Quando de sua amizade com Nietzsche, Wagner estava politicamente mais calmo, porm no havia ainda abandonado seu desejo de pensar a arte enquanto elemento revolucionrio. Muda seu pensamento e adota ideais ascticos e cristos, transformando essa arte numa espcie de esttica mercantil e de entretenimento, um espetculo sedutor, com efeitos calculados e hipnticos junto ao pblico. Numa de suas sesses cortadas do livro O Caso Wagner, Nietzsche revela: () Mas falemos do mais famoso dos schopenhauerianos vivos, de Richard Wagner. A ele aconteceu o que j sucedeu com muitos artistas: enganou-se ao interpretar os personagens que havia criado e no compreendeu a filosofia implcita em sua arte mais caracterstica. [26] O que Nietzsche esperava de Wagner e seu drama musical era a re-unio dionisaca nas camadas profundas do sentimento, a significao mtica da vida. Agora, sentindo a volta lenta e servil de Wagner ao cristianismo e igreja, afasta-se do compositor e de seu projeto cultural catlico e germnico. Tinha que subtrair essa dominao, pois no compartilhava da mesma idia. Em seu escrito autobiogrfico, esclarece aos leitores:

Para fazer justia a esta obra (O Caso Wagner) necessrio sofrer a fatalidade da msica como se fora a dor de uma chaga aberta. De que sofro, quando padeo o destino da msica? Ressinto-me de que a msica tenha sido privada do seu carter afirmativo e transfigurador do mundo, que se tenha tornado msica de decadncia, no sendo mais a flauta de Dioniso Contudo, ainda que se admita a causa da msica como uma causa prpria, como a histria dos prprios sofrimentos, reconhecer-se- que esta obra cheia de consideraes e sobremodo indulgente. [27] Em novembro de 1874, na inaugurao da Casa dos Festivais em Bayreuth, Wagner atinge o auge de sua carreira. Explica Safranski: Richard Wagner distingue o cerne da religio de seu aparato mtico com seus dogmas e cerimnias complicados e discutveis todo o fundo de tradio religiosa que apenas sobrevive na medida em que reforado pelos hbitos e protegidos pelo poder oficial. () queria atingir o efeito sacralizador e redentor atravs do carter da obra de arte total. A arte tem de mobilizar todas as foras. Temos a msica, que encontra para o indizvel uma linguagem que s a sensibilidade compreende; temos a ao no palco, os gestos, a mmica, a configurao espacial e, sobretudo, o ritual festivo dos dias de espetculo, todos reunidos em torno do altar da arte. () nesses esforos ele um expoente do comrcio de arte que tanto odeia. Sua arte () torna-se um ataque generalizado a todos os sentidos. [28] Ao criar expectativas sobre o drama musical wagneriano, enquanto desprendido de pretensas convenes ou impregnados de leis, Nietzsche rompe com o compositor e se desencanta, mudando seu pensamento. A msica wagneriana no seria mais um veculo confivel para se afirmar a vida. A arte do notvel msico, considerada antes como o renascimento da arte da Grcia, agora pensada como uma grande corrupo para a msica, cuja funo o passe hipntico e a excitao de nervos cansados. As divergncias aparecem e O que vai separ-los depois dessa harmonia inicial ser o contraste entre uma produo de mitos que exige validade religiosa (Wagner) e um jogo esttico com o mito a servio do viver (Nietzsche). [29] Em O Caso Wagner vem a crtica: Wagner no era msico por instinto. Ele o demonstrou ao abandonar toda lei e, mais precisamente, todo o estilo na msica, para dela fazer o que ele necessitava, uma retrica teatral, um instrumento de expresso, do reforo dos gestos, da sugesto, do psicolgico-pitoresco. Nisso podemos t-lo como inventor e inovador de primeira ordem. [30] Nietzsche acusa Wagner de colocar sua msica a servio da decadncia cultural e contra tudo que se esperava de revolucionrio. Alm de produzir espetculos para a burguesia

e todo tipo de Filitesmo, essa msica servia ainda como instrumento anestesiante da religio. Sobre esse rompimento, Janz, de maneira lcida e neutra, distingue trs nveis nessa mudana da relao entre Nietzsche e Wagner, quer sejam: () o humano-pessoal, o religioso e filosfico e o histrico-espiritual. Wagner tinha uma personalidade exuberante, mas tambm dominadora e intolerante para com outros artistas (como Brahms). Nietzsche tinha de subtrair a essa dominao. Wagner nasceu em 1813 mesmo ano do pai de Nietzsche e ele em 1844. No era uma relao inter pares. preciso lembrar que, enquanto Wagner j era famoso mundialmente, Nietzsche era um jovem desconhecido. No plano filosfico e religioso, as divergncias foram se acentuando. Nietzsche rompeu com o cristianismo aos dezessete anos, um passo doloroso, documentado tambm nas composies da poca, que eram sacras (oratrios), e subitamente passaram profanas. Quando Wagner comps o Parsifal, Nietzsche acreditou ver na obra uma converso ou recada do velho Wagner no cristianismo o que era para ele uma grande ofensa. (). Nietzsche tambm desaprova o apego de Wagner filosofia pessimista de Shopenhauer. O terceiro plano a superao do romantismo por Nietzsche. [31] Enquanto o livro O nascimento da tragdia trazia dedicatria ao compositor, reconhecendo sua msica quanto importncia que esta poderia trazer ao prenunciar uma nova cultura e um melhor relacionamento entre os homens, em O Caso Wagner, Nietzsche rompe definitivamente com esse pensamento, afirmando ser a msica de Wagner doente e possuidora de sentido moral, religioso e metafsico. A msica, significando o princpio bsico da esttica nietzschiana, no poderia negar a existncia, ao contrrio, deveria sim afirm-la e torn-la mais livre. Dessa forma, o drama musical wagneriano no estava livre de pretenses metafsicas ou redentoras, acabando por se tornar altamente ideolgico como j tinha mostrado a histria, de modo trgico e consequentemente perigoso afirmao da vida. Nietzsche reconhecia em Wagner um squilo moderno, o qual poderia restaurar os mitos instintivos, tornando a unir a msica e o drama em xtases dionisacos. esse o carter de sua msica que, segundo Nietzsche, junto com o povo alemo, iria restaurar o mundo experimentado sob transe mstico. O filsofo, que at ento interpretara a msica de Wagner como o "renascimento da grande arte da Grcia", mudou de opinio, achando que Wagner inclinava-se ao pessimismo sob a influncia de Schopenhauer, convertera-se declaradamente ao

cristianismo, entre outras divergncias. O que parecia ser a msica de Wagner um indcio de cura, de regenerao, de recuperao e de liberdade, apresenta-se como o sintoma mais definitivo do fracasso, da doena, da perda e da runa. Wagner j no produzia mais msica que exalasse calor e vida, tendo se transformado em um () artista da dcadence eis a palavra. E aqui comea a minha seriedade. Estou longe de olhar passivamente, enquanto esse decadent nos estraga a sade e a msica, alm disso! Wagner realmente um ser humano? No seria antes uma doena? Ele torna doente aquilo em que toca ele tornou a msica doente. [32] Wagner voltara-se ao cristianismo e Nietzsche enganara-se, pois, segundo ele, Richard Wagner, aparentemente um heri conquistador, mas agora um decadente desesperado que apodreceu, deixou-se afundar subitamente, impotente e alquebrado, diante da Cruz Crist. [33] O Nietzsche de 1872 enganara-se quando acreditou na possibilidade de uma arte dionisaca esquiliana na Europa, atravs de Wagner. O seu ressentimento atenuou-se por saber o quanto Wagner, e sua prpria arte, estavam vivendo uma fase decadente. Porm, Nietzsche ao tomar conscincia dessa crise, procura superar-se criando uma filosofia de crtica aos valores de uma sociedade burguesa arruinada culturalmente. E a norma socrtica de decadncia conhece-te a ti mesmo deveria ser substituda pela norma mais humana do supera-te a ti mesmo, porque o homem no precisa seno de si mesmo. Sua crtica a essa metafsica da arte, aliada com a rejeio filosofia de Schopenhauer, passa a falar agora aos europeus do futuro. De fato, O Caso Wagner realmente um ataque contra Wagner, mas mais ainda um ataque contra a nao alem que vem se tornando cada vez mais preguiosa e desprovida de instinto nas coisas do esprito, escreve ele. Nietzsche lamenta, alm disso, que Wagner ao envelhecer tenha se germanizado. A msica wagneriana revelou-se e perdeu o seu valor para Nietzsche. Wagner no podia ser sincero e essa ruptura, todavia, est na compreenso da msica wagneriana como uma expresso e ndice da decadncia e da impossibilidade de se realizar uma arte

vigorosa, uma arte herica e potica; a msica alem jamais poderia levar ao renascimento da tragdia na cultura europia. A filosofia musical de Nietzsche unida a Wagner foi uma tentativa do filsofo em entender o universo sonoro musical como revelao de uma verdade abissal sobre o ser humano. Porm, ao subordinar a msica ao drama, o que o filsofo repreende no compositor este us-la como instrumento das idias religiosas e da moral, transformando-a em arte de seduo e de hipnose, alienao e anestesiamento. Sobre sua amizade estelar com Wagner, escreve no seu livro A Gaia Cincia: Ns ramos amigos e nos tornamos estranhos um para o outro. Mas est bem que seja assim, e no vamos nos ocultar e obscurecer isto, como se fosse motivo de vergonha. Somos dois barcos que possuem cada qual, seu objetivo e seu caminho; podemos nos cruzar e celebrar juntos uma festa, como j fizemos e os bons navios ficaram placidamente no mesmo porto e sob o mesmo sol, parecendo haver chegado a seu destino e ter tido um s destino. () e assim vamos crer em nossa amizade estelar, ainda que tenhamos de ser inimigos na terra.[34] 5. CONCLUSO Nietzsche no busca um ideal de verdade, mas antes o valor do artista e de sua arte na busca de uma interpretao que fixe o sentido dos fenmenos, reconhecendo-os como fragmentrios e parciais. Ao maximizar a pulso instintiva do homem, sua sabedoria, fora criativa e afirmadora da vida, reconhece na msica essa fora, pois esta traz junto a possibilidade de fuso entre homem e natureza, indivduo e existncia, a aproximao verdadeira entre o uno primordial e o cosmos. Importava para ele uma msica distante de lgrimas e de culpas ou a que estivesse mais prxima da vida, causando-lhe um estremecimento de temor. Em suas palavras, descreve: () Direi ainda uma palavra para os ouvidos mais seletos: o que eu quero propriamente da msica. Que ela seja serena e profunda, como uma tarde de outubro. Que seja singular, travessa, terna, uma doce pequena mulher de baixeza e encanto (). [35] Somente a msica dionisaca, livre de moralismos e castidades, possibilita o reaparecimento dessa pulso instintiva e vital no homem, podendo despert-lo para uma existncia (tambm) livre de remorsos, ressentimentos e crises de conscincia, numa associao entregue coragem, ao herosmo e ao fatalismo. Para o filsofo, plena de

vida e sedenta de liberdade a msica dionisaca, pois expressaria a fora e a fatalidade no homem. Nesse sentido, afirma Nietzsche: A msica, como a entendemos hoje, no igualmente seno uma irritao e uma descarga completa das emoes, mas no mais que o resto de um mundo de expresses emocionais muito mais amplo, um resduo do histrionismo dionisaco. Para tornar a msica possvel, enquanto arte especial, imobilizou-se certo nmero de sentidos, em primeiro lugar o sentido muscular (ao menos em alguma medida: pois, sob um ponto de vista relativo, todo ritmo fala ainda a nossos msculos): de maneira que o homem no possa mais imitar e representar corporalmente tudo o que sente. Contudo, este precisamente o verdadeiro estado normal dionisaco e, em todos os casos, o estado primitivo; a msica a especificao desse estado, especificao lentamente adquirida, em detrimento das faculdades prximas. [36] A relevncia do instinto para o homem, enquanto ser livre que sente e flui no mundo, acentuada em todo momento no pensamento nietzschiano. Dias refora a idia destacando que: Para Nietzsche, a tragdia no apenas uma nova forma de arte ou um novo captulo na histria da arte, ela tem a funo de transformar o sentimento de desgosto causado pelo horror e absurdo da existncia, numa fora capaz de tornar a vida possvel e digna de ser vivida. Para Nietzsche, o verdadeiro valor do homem reside no instinto, pois na realizao do instinto que ele encontra sua expresso espontnea e livre, criando e recriando. [37] Quando o filsofo pergunta: J se percebeu que a msica faz livre o esprito? d asas ao pensamento? que algum se torna mais filsofo, quanto mais se torna msico?", [38] ele quer afirmar a fora artstica e interpretativa, prprias da vida, que mais tarde vai chamar de vontade de potncia, como msica. O Dionisaco esta msica que, ao se manifestar, precisa necessariamente da transposio apolnea da representao, pois () a luta, a dor, a destruio dos fenmenos aparecem necessrias para ns. [39] Ambas as pulses deixam entrever algo de mais profundo que transcende qualquer heri individual; o eterno vivente criador. [40] Ainda, somente a partir do esprito da msica entendemos a alegria diante do aniquilamento do indivduo. [41] Ao criticar e excluir da histria da msica os ltimos dramas musicais wagnerianos, Nietzsche separa os aspectos positivos da msica, ou seja, esta enquanto transmissora de estmulos vitais, afirmadora da existncia, a que clama sim vida, daquela msica doente, decadente, enquanto mecanismo de manipulao e apatia, transformada e

transfigurada em omisses, cuja funo anestesiar, alienar e distanciar o homem do valor de sua existncia. A msica, sendo uma linguagem universal em alto grau, expressa todas as sensaes humanas e seus esforos, podendo o homem exprimir-se pelas melodias. O peso da existncia atenuado com estimulantes. Dessa forma, a msica recupera a vida, transporta beleza e desenvolve uma multiplicidade de sensaes positivas existncia. Enquanto mecanismo ativo de estmulo e criao, a msica afirma a vida e se torna importante elemento artstico, cuja funo criar homens voltados vida e cultura. Com efeito, a msica a voz sonora de um povo, de uma cultura, de uma verdadeira arte. Nietzsche refora a idia quando destaca que: A msica , de fato, no uma linguagem universal para todos os tempos, como se tem dito muitas vezes em seu louvor, mas corresponde exatamente a um perodo particular e ao ardor duma emoo que envolve uma cultura individual e perfeitamente definida, determinada pelo tempo e pelo espao, como a sua mais ntima lei. [42] O pensamento Nietzschiano, ao criticar as formas decadentes da arte musical, relacionase diretamente com o sentido afirmativo da existncia, clamando sim vida. Afirma o filsofo: A msica a ltima planta a vir luz, aparecendo no Outono e na estao morta de cultura a que pertence. O sculo XVIII sculo da rapsdia, dos ideais desfeitos e da felicidade transitria apenas se revelou na msica de Beethoven e de Rossini. O amador de sorrisos sentimentais bem podia dizer que toda a msica realmente importante foi um canto de cisnes. [43] A msica o ltimo hlito de uma cultura, escreve Nietzsche. [44] A crtica, conforme cita Copleston, direcionada s culturas tirnicas, onde o homem est submetido e governado ao que ele chama de o incorreto sentir, [45] pois se desejam falar, a conveno segreda-lhes a rplica que ho de dar e isso os obriga a esquecer o que, a princpio, tencionavam dizer. () Desta forma se transformam em pessoas absoluta e completamente diferentes, ficando reduzidas a objetos escravos de um incorreto sentir. [46] Copleston segue em seu argumento explicando:

Mas quando os acordes da msica dum mestre desabam sobre uma humanidade assim doente e sofredora, o significado dessa msica o correto sentir, inimigo de toda a conveno, de todo isolamento artificial e de toda a falta de compreenso de homem para homem. Essa msica significa o regresso natureza e, ao mesmo tempo, uma purificao e remodelao dessa mesma natureza. [47] Percebe-se que, desde O nascimento da tragdia at O Caso Wagner, Nietzsche, por meio de seu pensamento genial e incomparvel, tenta elevar o valor sobre a questo da existncia. O homem, possuidor de instinto e de razo, no poderia omitir um em detrimento do outro. Nesse sentido, esse psiclogo da espcie humana, como se intitulava, formular profundas e relevantes crticas s doutrinas que menosprezem a vida como o cristianismo, conforme afirmava tornando homens livres em submissos e separados da unidade da vida. A msica, enquanto criao humana da arte, apreendida principalmente pelos sentimentos, remete-nos a um recurso otimista revitalizante para suportar a realidade da dor do sofrimento humano. Seu esprito livre e sua capacidade instintiva e criativa so despertados pela herana da cultura mtica grega, como forma de pensar o significado da vida seu valor e sua fora. 6. REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

Copleston, Frederick, S. J. Nietzsche, Filsofo da Cultura. 9 v. Porto: Livraria Tavares Martins, 1953, 9 v. Dias, Rosa Maria. Nietzsche e a Msica. So Paulo: Discurso Editorial, 2005. Nietzsche, Friedrich. Crepsculo dos dolos. Coleo Grandes Obras do Pensamento Universal 28. Traduo de Antnio Carlos Braga, So Paulo: Escala 2006. Nietzsche, Friedrich. Ecce Homo. Traduo de Pietro Nassetti, So Paulo: Martin Claret, 2003. Nietzsche, Friedrich. Humano, Demasiadamente Humano. Coleo Grandes Obras do Pensamento Universal 42. Traduo de Antnio Carlos Braga, So Paulo: Escala, 2006. Nietzsche, Friedrich. Nietzsche contra Wagner: dossi de um psiclogo. Traduo, notas e prefcio de Paulo Csar de Souza, So Paulo: Companhia das Letras, 1999. Nietzsche, Friedrich. O Caso Wagner: um problema para msicos. Traduo, notas e prefcio de Paulo Csar de Souza, So Paulo: Companhia das Letras, 1999. Nietzsche, Friedrich. Vontade de Potncia. Coleo Mestres Pensadores. Traduo, prefcio e notas de Mrio D. Ferreira Santos, So Paulo: Escala, 2006.

Nietzsche, Friedrich W. A Origem da Tragdia. Org. por Silvio Donizete Chagas, So Paulo: Moraes, s.d. Nietzsche: Obras Incompletas. Coleo Os Pensadores. 3 ed. Traduo de Rubens Rodrigues Torres Filho, So Paulo: Abril Cultural, 1983. Safranski, Rudiger. Nietzsche, biografia de uma tragdia. Traduo de Lya Luft, So Paulo: Gerao Editorial, 2005. Viviane Mos. Disponvel , 30/03/2006.

Apud SAFRANSKI, Rudiger. Nietzsche, biografia de uma tragdia, So Paulo: Gerao Editorial, 2005.[1]

Nietzsche, O Nascimento da Tragdia, 24. In: DIAS, Rosa Maria. Nietzsche e a Msica, So Paulo: Discurso Editorial, 2005.[2]

[3] Nietzsche, Cartas a Peter Gast, Nice, 15 de janeiro de 1888. In: Safranski, 2005. [4] Viviane Mos filsofa e autora do livro Nietzsche e a Grande Poltica da Linguagem. So Paulo: Civilizao Brasileira, 2005. Ver tambm