o-nÃo-e-o-sim---antónio-ramos-rosa.txt

Upload: helton-prado

Post on 22-Feb-2018

225 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

  • 7/24/2019 O-NO-E-O-SIM---Antnio-Ramos-Rosa.txt

    1/38

    antnio ramos rosa

    O No e o Sim

    graffiti

    Quetzal Editoreslisboa/1990

    capa: rogrio petinga

    c Antnio Ramos Rosa e Quetzal Editores

    Quetzal editoresRua Sanches coelho, 3, 9.o Esq.1600 LisboaTelefones: 76 13 97, 76 25 93telex: 65732 pegest p

    Impresso por:tipografia GuerraViseu

    Depsito legal n.o 35297/90

    NQz.02.026.94.90

    fala,mas no separes o no e o sim.

    paul celan

    na densidade da terra

    A dana entre o sim e o no

    A que numa torrente foi talhadae era negra e ardente,os instrumentos sobre os rins, o dorsofascinante.A que tendo vivido beira do desastrereconstruiu a danaentre o sim e o no.A que se desmorona e se dissipae elctrica na lentido dos cemitrios,quando o vento negro sobre o trigo,os signos da opresso distende

    superfcie prolixa.A que, fracturada, ainda fulguraquando diz a pedra e o frmito das ervase o sentido se subleva entre lacunas.A que outrora foi delta e foi cavalo,argila alegre e rosa de metal, a metade de si mesma sob o musgomas ela dilacera ela iluminaum rosto inanimado sobre as pedras.

  • 7/24/2019 O-NO-E-O-SIM---Antnio-Ramos-Rosa.txt

    2/38

    Na densidade da terra

    Basta um s corpoum tronco erectoum s pedao de terra trabalhadade sulcos paralelos.

    um despojo extremo.Onde um n se desfaz,uma amarra se rompe, um novo elemento.

    Tenacidade lentade densidadeextrema.

    Podem seguir-se as fases,podem-se ler as frases,contar-se os instrumentos.

    o que por trs estde tudo o que aparece:a relao do fundo,a lmpada obscura,

    a que ilumina o fundo.Despertam as razes,imperceptveis,imperceptveisfundos.

    a terra e s a terraque no obscuro esperava.Nenhuma iluso pticaou jogo de aparncias.

    Silenciosa rotao.

    A face iluminada a face da sombra.

    Atravs da noite atravs da brancura

    Com minuciosa febrealgum traa na folhaa sibilina tramae um meticuloso desastre.

    Secreta sob a pedraescrevesem encontrar a nascente

    atravs da noite.

    Nas tmporasum turbilho de abelhas,na bocaa cal que ainda desejo.

    Escrevecom o gume dos dedosdilacerando

  • 7/24/2019 O-NO-E-O-SIM---Antnio-Ramos-Rosa.txt

    3/38

    a dvidapara desaparecercomo um gro entre os gros.

    longo o abandonode inesgotveis foras.Uma ilegvel momultiplica a rodado inaltervel.

    Os sulcos so unnimes,traos, portas, templosatravs da brancura.

    Entre os ciprestese os instrumentoso silncio pronunciaa permanncia.

    Alma amante

    Algo se recolhe porta atrs de porta.Algo procura o centro.

    No busca o mundo. S quer absorver-seperceber-se a si mesmasoberanamente.

    Quer estar imvelna lenta plenitudesem paixes.Quer perpetuar-se abandonada isentaatenuada e serenamente deslumbrante.Quer secretamente ser sempre encantadasem pedir mais que o oiro do seu sossego.

    Longe, longe est do mundo, sem instrumentos,

    mas o seu peito tem mil portas abertas.Ela ascendeu vagarosa por impondervel adesoe sem desejos, o seu Desejo consumandona chama intemporal que o seu corpo amante.

    Ningum poder chamar o seu nome ardente.A sua certeza ningum e o seu cio vazio.J no se ope a si mesma no seu nico arcoem que reuniu os dois plos num inviolvel nascer.

    Est com todo o intacto remotssima e presente.Sabe e tudo o que sabe area plenitudeque transparece nos meandros do silncio.

    Ouve-se a frescura atravs da distncia. uma deusa branca.

    Luz e obscuridade

    No sendo seno sopro ou murmriode uma subtil riqueza, um voo imvelsobre altos fundos, elptica vozbranca, e que s fala

  • 7/24/2019 O-NO-E-O-SIM---Antnio-Ramos-Rosa.txt

    4/38

    quando, relmpago, na sombra se retiraa flor velada do silncio.Ainda outra vez, mas a primeira vez, rosto abolido, rvore deslumbrante!De to pura leveza tu me ligasao centro mais obscuro de mimonde se irisa o espao e vibra a dor.Ritmo, o grande embalo, a escuta nua.Ritmo, que de nada nasce, pouco a poucoe que sem ser figura perfeio nativa,fbula e risos, vegetao liberta.Em plena luz a grande flor secretaainda velada no seu fragrante vu.o breve o aberto, o instante azul,em que as sementes e as suas lgrimas se confundem,infortnio e felicidade conjugadosna opulenta ligeireza do jardim.Cego ainda na sua luz submersoo olhar da palavra em seus meandrose hesitante, mas soberano jnos cintilantes signos.A cadeia frgil, mas subtil a engrenagemque o fogo irriga abrindo a clara esfera.E ainda que desvio, a sequncia respira

    nas pausas em que a noite j cintilae nas altas margens de um desejo ardenteque em sombras desiguais uma secreta risordena, fluindo, em paralelas linhas.

    O desejo

    No h outro desgnioque a glria de no pensarindestrutvel.No h outro desejodo que ir ao encontro da inatacvel realidade.

    Verticalobliquamenteseguro com os seus olhos cerradosque vem atravs de tudo a substncia amanteliberta-se de todas as escamasnu para a beleza e para a verdade.

    vidomas de uma avidez que quer outra avideze se equivale a ela sem argcias de poderpleno e despojado para a colheita ardentede um s corpo em dois. Nupcial.

    Na verdade do seu incndioque lavra entre nocturnas brisaso desejo o campons da origemque na sua nudez celebra o todo intacto.

    Num torpor que leveza num sono de acordado o luminoso veleiro que vai abrindo os diquessem estrpito e dando incio aos voosque no so sonhos

  • 7/24/2019 O-NO-E-O-SIM---Antnio-Ramos-Rosa.txt

    5/38

    mas onde a terra sonhana mais secreta exalaona mais silenciosa exalao.

    Cada um feito dos silncios que o outro amae o nome que no disse e que se vai dizerrespira j mulher e homeme sol e rio e folhas mos dadas ao solterra e corpo num nico corpo pronto a morrerporque est na fonte como uma serpente enroladaporque o amor tem o odor da terraporque a primavera uma palavra e um ser.

    De sbito dentro

    De sbito entrei. Erauma msicade um barco imvel no encantode ser toda a atmosfera, no descansoda mais ntima sombra adormecido,como na essncia de um sonho.Um mbito sem nome, em total olvido,o universo completo no jardim.

    E a montanha em silncio, a solido de estrelas,um dorso longnquo e sobre ele as ondascaladas, majestosas.Era a imortal maturidade de um s instante,a verdadeira vida aqui, plena, revelada,o gozo sem af da formosura imensa,toda a verdade presente e sem histria,msica absoluta de humana divindade.

    O centro vulnervel

    Um escoro sinuoso,

    um rudo iluminado.

    Centro. Talvezum centro,vulnervel, mvel,onde no tocamformas.

    Distante no sossegode ser e de no ser.Ignoto e levesob as nossas vozes.

    Flui, fluinum errante frescorde quieta claridade.

    Fundo sem fantasmasfugacssimo comoum pulso horizontal.

    Sempre em reservasob longas distncias,

  • 7/24/2019 O-NO-E-O-SIM---Antnio-Ramos-Rosa.txt

    6/38

    quem poder sonh-loou dar-lhe a mo amiga?No seu domnio estcomo verdade inteiracomo evidncia ltima.

    Inexpugnvel, sim,mas s vezes prodgiode profundo sossegono mbito completo.A alma ento consuma-selcida no presente,ondulao supremade imvel plenitude.

    Com a pedra na garganta

    o que est com a pedrana gargantabebeu da prpria pedra.

    Ele quer pousarno sopro subterrneo

    da palavraentre as espinhas.

    Para alm das silhuetasele quer palparos sulcosde um rosto de ningum

    Haver ainda um templo ou uma estrelade ar ou de guaou sangue. Haver sanguehaver solna pedra?

    Ele explora aindapara fluir para florescercom as tranquilas garrasnos escombrosou que talvez na pedrase abra o olho da sombra.

    coroao solitria

    Impregnada de grandes certezas que trespassammas vegetal e incerta ainda

    quanto a um percurso incandescente pela noitee plcida de estrelas luzes indelveisque so na solido inflexvela resoluo que no vibra e finamentecristalizam numa nocturna primaverae exactas sem gozo frigidssimasdizem a distncia e a intangvel glria,na imensidade unida jamais nossa, enamorado tesouro, essencial realidade,em que o desejo um tranquilo marulho

  • 7/24/2019 O-NO-E-O-SIM---Antnio-Ramos-Rosa.txt

    7/38

    ptria sem ptria, incgnita evidnciae caudal congelado de extrema amplitude, navios sem memria, revelao no revelada, fatal indolncia de um universo estticoque nunca ser nosso, profundamente suaveno silncio coroado pela solido estrelada!

    Concavidade area

    Concavidadepalmasveias de ventodentes e papilasvolantes calcanharesprofunda; fibras talhadas e abertaspara as clareiras do cucintura fundamentalvirilhas entre o fogo e o arrepouso do silncio no some do som no silnciolivre tumulto de profunda harmoniapura paixo das plpebraserguida com a mesa e alta como um cimo

    sabor de estbulo entre nuvens divinaslcida sonmbula de sandlias de argilapreguiosa elegncia entre as esquinas do fogoincandescncia de um manancialsuave ardor longnquo sobre a peleptria volante.

    As palavras

    H palavras que so sombras de rvoresou um blsamo da terra,um pressentimento de espuma,

    um incndio do tacto,uma reverncia ao desconhecido.Amo as palavras que so s vezes sonmbulos cavalos,satlites de granito,raparigas cegas no fundo das casas,veias de uma estrela submarina.Como no am-las pela brisase so ptalas de um clamor silenciosoou anjos sossegados dormindo sobre a terraou lcidas e brias, majestosas e puras,magnficas como um dorso recamado de estrelas,intacta revelao de invioladas luas?Desconfio das palavras, mas s vezes so leves musicais,

    aves que planam sobre uma cidade branca,ilhas mgicas, selados vasos, cordeiros recm-nascidos,caravanas vermelhas, armadilhas de cristal,amoroso tremor da matria terrestre.Como um boi nocturno das guas eu procuroessas guitarras plantadas nas plantasque atravs de eclipses e da distnciaerguem uma rvore de msica ou uma pirmideou as lianas vivas que me defendem dos abismos.Como esttuas de ar as palavras levantam-se

  • 7/24/2019 O-NO-E-O-SIM---Antnio-Ramos-Rosa.txt

    8/38

    na harmonia delirante do nmada do deserto.Quer sejam suspiros entre arbustos ou sonmbulas melodias esto sempre altura dos seus prprios desejos.Quer o crebro sangre ou a terra estremeao seu cerimonial inesgotvel, as suas relquias vivas.So abelhas ou astros que buscam alimentonos ninhos de amndoa ou nos espelhos da lua?Amo as palavras, acredito nos seus cristais secretos,nos seus cavalos subterrneos, nos seus densos diamantes.Escrevo-as com minucioso ardor entre nascentes e sombras,sei que so anjos de argila, antiqussimos arqueirosque disparam as flechas de erva sobre estrelas vivas.

    Vozes da Terra

    Uma voz

    Sou eu, sou eu ainda,diz uma voz no deserto.Sou eu, que vos conheo,eu, que fui folha e agora sou aragem.Uma palavra sou, entre cinzas e cinzas,

    e atravs da noitequeria brilhar para vs,para vs, ainda.

    Sou eu, que atravessei o turbilhoe pulso ou spaladeportadasou um sinal verde que respira ainda.Sou ainda uma vozpara dar o alarmeatravs de...?Outrora, ou talvez no,fomos a frescura do sol

    a abbada vegetala cintilante escrita o mesmo sopro.Como poderei ser ainda o livro abertosobre o mare todas as coisas nuas, os segredosinacabados e toda a dor da terra?Sim, eu sou ainda,a desaparecida, a errante, a sem caminho,jamais no centroe que dorme ainda e esquecemas se confunde com o sobressaltode algo que acaba de nascer, que nasce.

    No ltimo lugar da luz

    Vem. Aqui o ltimo lugar da luz,o som fresco, o sossego ardente.Fala e habita sob as escuras folhas.H uma linguagem neste murmrio longnquodo fundo do arvoredo entre minsculas luzes.Os pssaros calaram-se. Vejo ainda os eloendros.Se adormeceres o teu sono ser verde

  • 7/24/2019 O-NO-E-O-SIM---Antnio-Ramos-Rosa.txt

    9/38

    entre as hortnsias.O barco do vento passa na tranquila hora.

    Voz matinal

    Cantando defendo a minha sombraadolescente. Que amante ouvir esta cano?Eu amo tudo o que vivoe a minha nudez renova-me e inebria-me.Movo-me como uma semente em silenciosos gestose o meu desejo confunde-se com o vagar das nuvens.Ser a minha primeira alegria e sou tudo o que respiro.

    Voz do solo

    Quem sou eu entre o solo e o sonho?Dano sozinha ao rumor da folhagem.Minha pequena vida uma paixo.Vejo o fulgor do que no tem nome nem sentido.Os insectos pulsam sobre a minha pele.Por vezes uma cobra levanta a sua cabea.Sou sensual e subtil, amo o insignificante.

    Conheo a solido das coisas e enlao-a do meu pensamento e sou area.

    Voz das plpebras

    Adormecendo na pedra e sem figuraeu sou a voz das plpebras.Tenho o fogo vegetal na minha pelee no desperto entre as lagartas e os pssaros.A gua corre sobre mim, eu sou um sonhoque demora na leve nudeze o que digo o meu flego verde.

    As minhas palavras no so palavras, so talvez sombra,talvez msica. No me retenhas mas guarda o meu aromae faz dele uma palavra amanteem que o sentido se condense anoitecendo.

    Anjos de terra

    Anjos, existem anjos? Volveis seresque so um instante de voluptuosa brisaem que o tempo a forma do desejoe do sono das folhas e das guas.Anjos, sim, de terra, que segredam

    a argila dos nomes, o movimento azuldo ar. Na sua companhia eu sou o ventoe o meu hlito confunde-se com as suas vozes.

    A casa

    A tua voz vegetal e eleva-se com o vento.Quero demor-la, fazer dela uma casaou um tronco. Que seja a minha noite

  • 7/24/2019 O-NO-E-O-SIM---Antnio-Ramos-Rosa.txt

    10/38

    com um ardor de eternidade. E a sabedoriade estar entre plantas tranquilas.Tudo estar comigo perto de uma nascentee eu mover-me-ei entre nocturnas veiase sobre as pedras lisas.Vejo os barcos da sombra entre as constelaese estou perto, estou perto. A minha casa aqui.

    Voz entre as ervas

    Eu tambm sou entre sombra e chamaum leve som de luz evanescente.Chama-me e entre as pedras eu serei um hlitoe o prprio nome que aos teus lbios sobe.Faz de mim a tua viso, a tua redonda porta.Eu digo o que o vento diz e as ondas mnimas.A noite no responde, mas as plpebras resplandecem.Eu no estou s: sou uma multido minsculaque respira entre folhas flutuantes.Eu no sou ningum.Eu nada espero, eu espero, eu esperoque acendas o meu nomeneste puro repouso apaixonado.

    Voz entre rvores

    Ouo a tua voz de mil murmrios e de um s espaode uma s viso silenciosa.Tu j comeaste h muito com o sol e com os pssaros.A tua luz ilumina as folhas e as pedras.Eu sou o que comea, o que quer comearpara estar contigo entre as rvores e a gua.Aspiro a luz com o hlito de uma criana.Estou enraizado numa pedra junto a um ribeiro.Tu cantas e o espao que canta, um s desejo

    que principia e adormece e no sono principia.

    Voz silenciosa

    o que ser uma figura do silncio?o que ser apenas o hlito de uma folha?Algum me descobrir no meu crculo minsculo?Quem falar s pedras? Quem dir a palavra?Inclino-me sobre a gua com um suave desejoe quase canto no silncio, adormecendo.Amo a luz tranquila e o meu pequeno corpoleve como uma clara chama. O mistrio meu.

    Mas se algum vier acariciar as pedraseu cantarei na sua boca, descerei ao fundoda garganta e serei nas suas veiaso frmito feliz de uma pedra harmoniosa.

    Memria cia origem

    Quando teria sido? Mas o aroma o paraso de um momento, o cimo vegetal.

  • 7/24/2019 O-NO-E-O-SIM---Antnio-Ramos-Rosa.txt

    11/38

    Se algum fala a boca da folhagemou o ouvido da pedra. Quem est flutuando?Aguda e esquiva a glria da pungncia.A mais profunda delcia pulsa na gargantae o ouro do pranto concentrado e profuso.Consuma-se a essncia de montanhas interiores. mais que uma viso, um profundo barcocarregado de aromas e de sombras fresqussimas.Que mais dizer? A luz canta um momento.Estamos to longe de tudo que talvez seja o princpio.

    O deus adormecido

    Ningum me pode ensinar o que a aragem diz.Eu vi um deus em repouso sob a sombra das nuvens.A viso era to calma e luminosa sob as rvoresque eu prprio era parte da divindade revelada.Magnfico era o ser que eu olhava extasiadomas sem distancia alguma, na clara plenitude.No era de outro mundo, mas o mundo suspendia-seno hlito divino E eu no estava a mais,porque o meu corpo ondulava leve como uma chamaem unssono com os haustos do deus adormecido.

    Um deus adormecido num jardim

    eu vi o seu sorriso sob a sombra das folhase vi-o adormecer. Senti que mergulhavaem plcidas guas. Um tesourofulgurava entre as pedras e os limos.Que tranquila a paixo, toda silncio e luz!Como um grande barco verde a folhagem navegava.o corao do estio pulsava nas cigarras.o sorriso do deus era um comeo infinito.o desejo no sono abria-se completo

    numa corola de gua, fogo e ar.Os smbolo desfizeram-se em imediatas evidncias.Estvamos no seio da realidade ardente.

    O deus do vero

    Chamar-te-ei deus porque s o meu desejoe o meu desejo o sol do ar, o sol do sol.Sinto a febre fresca do teu hlitona densa conscincia deste vero.Atravs da madeira oio as vozes imveis,veladas, ao nvel do silncio.

    Atravs de ti respiro na violncia do calorem que o sangue do tempo bate nas paredes.Todas as figuras adormeceram no vazio.Mas os teus mil ecos ressoam no sossegoe so eles que aprofundam esta cmara do estio.Como tu concilias a solido e a harmoniae na vacuidade unificas as ntimas estrelascom a surda veemncia de um mundo submerso! transparente deus que sem estar estsno sossego luminoso deste pequeno quarto

  • 7/24/2019 O-NO-E-O-SIM---Antnio-Ramos-Rosa.txt

    12/38

    em que serena pulsa a verdade do ser vivo!

    A deusa do ar

    Quem ela? Apenas um tremorde slabas dispersas, um sopro de cores,um lucilante sono. Eu quero sera sua frescura annima, a sua lngua solar.O vento a respiraoe a conscincia de uma leveza nupcial,verde e lcida interior a uma matria adolescente.Entre a espessura das rvores perpassa a sua msica.No h identidade mais gil nem inquietao mais pura.No seu incerto znite ela transcende a solido.A vida uma fuga sobre runas verdes.O tempo abolido por mecanismos tnues.Oio o latir dos troncos, os horizontes sossegados.Chegam os altos cavalos do vento com as suas lnguas de sal.Tudo o que eu no fui ou o que sou se erige para a celebrar.Sem certezas ou sonhos sigo um fluxo azule mais do que na esperana do mundo navego no silncio liso.

    O deus que transparnciaNingum me sada nas esquinas do papel.Nenhum deus me acompanha pelas ruas desertas.Mas nos dedos sinto o rumor de um segredo vegetal. como se procurasse alargar a mo dos deuses. como arder com a gua na brancura ofuscanteda ressaca. E as palavras da casa se levantama janela a porta a cama e a cadeira.So presenas espessas e ntidas no perfil.Assim se forma um crculo com energia erguidanas slabas preenchidas pela coerncia do mundo.Maternas so as sombras em torno de um centro verde

    que foi talvez um deus antigo que se esqueceue o esquecimento o seu signo: a transparncia.

    Metamorfose do vazio

    Nem hostil nem secreto,nem sequer indiferente,aqui ests como o branco no brancopara seres talvez o mar ou o horizonteum deserto ou um osis,exploso de um anelo ou conscincia azul.

    Os teus raios esto suspensos, imersos no vazioe no emitem mensagens para o sole as tuas mandbulas mordem as silabas de areia.No h nenhum anjo prisioneiro na tua ilha cinzentaporque tu s a ausncia sem msica e sem mundo.

    Nada em ti cresce como um desejo ou como um cantomas por ti que os animais do vento,que buscam a fonte oculta,renem os vestgios do silncio

  • 7/24/2019 O-NO-E-O-SIM---Antnio-Ramos-Rosa.txt

    13/38

    e no teu peito neutrotalham as arestas da terrae as palavras que se acendem como rvores.

    As razes

    As razes no falam. No esto atrs. Nem no fundo.As raizes vo frente. Puxam-nos para a frente.Por vezes engrossam nos sapatos. Cheias de suor e cobertas de bocas.Trazem os olhos cheios de noite e de formigase tm o peso de sculos de po e morte, de me e cal. Projectam-se para o sol em latidode sanguemas caem num fundo de chumbo ou numa imvel sombra.Crescem, crescem sempre com as cabeas feridas,rfs de um horizonte soterrado em escamas.Ascendem garganta com os dentes da terramas sustm o grito como se fosse um osso.Que querem elas dizer? Alegria, rvores,astros? Ou a intensa sombra do silncio?Elas impelem-nos para a frente, para um futuro antigode lgrimas adolescentes e marinhas,de rios juvenis, de grandes luase o corao late em guas vivas.

    Mas quando a noite chega,que obscuro tropel dentro da garganta,que pssaros cegos dentro das plpebras,que montanhas e montanhas de sangue,que navios de pedra sobre a sua rede inextricvel!Quando se acalmam nas clareiras do sono,quando os gritos se transformam nas vozes brancas do silncioento as suas linhas se harmonizam altas e tranquilasem abbadas vegetais, em arcos e ogivasque ondulam iluminadas por uma luz subterrnea.

    A garganta

    Garganta, astro de agonia e de volpia,em que passam as profundas guas,corredor do abismo e cascata da sede,veemncia vertical de plenitude e sombra,a luz se levanta com um marulho azule a noite despe-se com diamantes secretos.Substncia que ascende para a amorosa conscinciaque funde a energia e o xtasee o rio do desejo com a manh do mar.Fragrante gesto em liquida vigilncia,tnel veloz e lento girassol,archote do clamor das nuvens,

    queda e ascenso de um pssaro fulgurante,a profunda, a silenciosa palavracompletaque ainda no ascendeu aos lbios,tesouro e chama e pedra e asa,msicade uma nascente mgica,rosa anelantedo silncio,bosque de sombra

  • 7/24/2019 O-NO-E-O-SIM---Antnio-Ramos-Rosa.txt

    14/38

    que a luz aspira,delcia e chama,cristal vertiginoso.

    A tarde

    Quase no vemos os prodgios fiis,a parede solar, o torso unnime,o fulgor da cabeleira sobre o mar,o palcio de todos, de ningum.Evidente mas subtrado evidncia quanto vemos sem ver pelo excessode estar em profuso imediata.Qualidade lisa, ondulao silenteque rene a plenitude e o longnquo,plana ecloso de um insondvel fundoque no alvor da superfcie se consuma.Todo o sossego se nivela, ondeando em sombrae sol. A tarde em sua integridadefatalmente suave.

    A torrente

    A torrente oferece-seem pressentimentosde flexvel alegriaem ondas de mosem emanaes felizes.

    A torrente estende-seem nuvens e clareirasem unidade presenteem graa magnfica.

    Oferece-se estende-se

    em facilidade leveem arroios frescosem ilhas e acasos.

    Resvala refulgeem troncos e em mesasnos arados do tempoem profusas e cmplicesnuvens ascendentes.

    Prdiga futuraflui entre os tumultosem feliz equilbrio

    demorando suave.

    Reconhece recebeno seu subtil encantoas mquinas e os corposo frenesim das buzinas.

    Tal uma deusa ligeiranum luminoso sononum desgnio de graa

  • 7/24/2019 O-NO-E-O-SIM---Antnio-Ramos-Rosa.txt

    15/38

    absorve a dor e a nsiae no mais do que o ar.

    cntico

    Outrora agora

    Outrora eram as cordilheiras incandescentese todos os lbios de outono fresco e de verduraOh porque no vem a primeira forma, a verde lucidezdo dom maravilhoso da feminina festa?Na magnfica e mgica perfeio do silncioh um olho negro, o veludo de um pbisem que as palavras se aventuram em frmitos nostlgicos.Ondulante e translcida no imutvel vaziomove-se a mo da deusa area como num vaso sagradoe tudo o que ela toca imortal tranquilidade.

    a mo que escreve

    o que eu procuro ou no procuro

    um toque de palavras pelas rvores,um misterioso vagar entre as estrelas brancasdo vazio ou as imagens purasdo primeiro olhar.

    Quantas pedras e navios, quantos desenhosno abandono magnfico das salas!E os diadema de pedra e o longo desesperodos animais entre as rendas e as pratas.

    Neste momento a minha mo no tem autore tudo o que ela escreve atravs de um seiodesconhecido. Como se despreocupada ela soubesse

    a dissonncia negra na consonncia do oiro.

    Eu vejo sobre a mo o meu retrato de anmonasangrenta. E os pequenos cavalos nos bosques e jardins.Tudo o que a mo escreve a minha juventude erranteque nunca existiu e que aqui perpassa na sua misria deslumbrante.

    A coisa amada

    D-me o sangue das tuas ancas, d-me o sanguedos teus seios e o jardim do teu sexo.Eu quero nascer

    pela forma errante da respirao igual,pelas bocas que atravs das nuvens comunicam.Um desejo absoluto circula em todo o espao.Eu quero-te porque tu s a coisa amadaem que me transformo no flanco das palavras.De uma odorfera fenda avermelhada,em linhas irisadas, entre verdes cristais,sobes, soberanamente escandalosa.

    A palavra e o silncio

  • 7/24/2019 O-NO-E-O-SIM---Antnio-Ramos-Rosa.txt

    16/38

    No s ningum, eu sei, nem mesmo o ecoou a espuma longnqua do horizonte.Sinto o suar da terra, a fragrncia sem nomede uma rvore de campos silenciosos.Sem pulso, sem voz e sem o rostooio as palavras que saem do silncio.Lbios e dedos, artrias e razes,tecidos flutuantes e secretos rumores,uma escura mar, naufrgio de cabelos.Em tudo isto cresce a fora lentado mar silencioso sobre a fronte.E os vocbulos com nervos e tendesconcentram em estreitos corredoresos cavalos mutilados e rebeldesque se levantam entre o olvido e o desejo.

    Ignorncia no azul

    Lentamente, eis o que a mo, lentamente,lentamente sobre o mistrio e o repouso.Estas primeiras silabas so o rumor dos olhose a lentido clara das suas longas ancas.

    Lentamente, lentamente, devora as rvores verdes,desenha as linhas negras. Vai modelandopensamentos e rios, animais e cidades,vesturios e destinos. Ligeireza da matriaem silenciosos halos e murmrios verdes.No azul da ignorncia a nudez completae ela diz aquilo que ns no conhecemos.

    Beleza negra

    Era lancinante aquela beleza negracom uma fenda verde entre os sobrolhos.

    Mais delicada que um clice, mais trmula que um ramo.Adorvel amante que uma nuvem circundade sangue e de lgrimas deslumbrantes.Ela dissipou a noite com a clara glandee na nudez apaziguaram-se as montanhas.Nas ancas esguias h um tesouro de gua.Como se fosse de orvalho a sua frescura refulge.O peito abre-se como um leque sob as rvores.

    Nascente

    Perene o repouso da nascente

    e a sua desordem voluptuosa.Ela suscita as sensaes suavesque so, mais que verdade, simpatia.As clidas gargantas se refrescammesmo nas montanhas calcinadas.Sem destino. num translcido abandonoos pensamentos exalam-se no are dele recebem os frutos nupciais.A eternidade um lbio abertoque em suave abundncia mata a sede

  • 7/24/2019 O-NO-E-O-SIM---Antnio-Ramos-Rosa.txt

    17/38

    e faz do ser um frmito de volpiaque acende a nostalgia e a consuma.

    A miraculosa coisa

    A miraculosa coisa que se esperavae que era to diferente e semelhanteem graciosa dignidade de repouso(o oiro e a sombra sobre o verde)o hlito inicial, as flexveis muralhas,a nudez das formas em movimentos magnficos,os caminhos que ascendem segundo a respirao,o vocabulrio das nascentes e os segredos entre nuvens.

    A letra errante

    Ele ser o que diz e sobretudo o que no diznas pginas de relmpagos imveis.Dos poros escoa-se o rumorde um mar longnquo ou de um touro encarcerado.Precipita-se a nudez nos espelhos onde h poose tudo o que ele escreve a rebentao da terra

    e as sombras marejadas por um mar que larga a pele.Do corao aos rins sente pulsar a vagaque traz o sabor do basalto ao coraoe o desfralda entre os destroos e a cinza.Assim se desfaz e refaz a letra erranteque se extravia e num rasgo revelaa lngua do intacto, o corpo soberano.

    Uma nuvem

    Uma clareira negra e a respirao da pelemais lenta. Cpula sem cpula e sem o movimento.

    Louvor do ignorado que no transparece mas fluisob as carcias imponderveis do amante. quase atroz o corpo extremo, a lmpida torturano meio da nuvem inviolvel sem beijos e sem sonhos, flor nocturna, flor sem flor, montanha lcida!

    Rebentao

    Vem sempre dar pele o sabor das imagense a coroa lisa, sem espuma, dessas vagasque, rebentando, abrem um abismo verdeque, aps a nusea, revolteia em nebulosa

    de espelhos e cabelos e arrebatados dedosem que se multiplica o corpo encapelado. pela matria que se engendra a matriaquando as cristas se incendeiam de oiro azule o puro mistrio repousa no movimento das ondas.

    As palavras no teatro

    Porque no so lmpadas, as palavras sangram

  • 7/24/2019 O-NO-E-O-SIM---Antnio-Ramos-Rosa.txt

    18/38

    mas como num teatro ou no convs de um navio.Elas envolvem-se nos braos do acasoe incendeiam-se para alm das portasdespenhando-se como as ondas das montanhas.E h versos que das mais longnquas galeriaslanam tranquilos caminhos de guaou num patamar, luz da claraboia,estendem a sossegada seda que sem pssaros ou nuvensconsumasse a imobilidade de um suavssimo segredo.Por vezes como se tivessem pobres lenos nas mos trmulasarqueiam os dentes para a misria das suas rvores.Mas quando magnficas em substncia solarlevantam a potncia da terra e as indstrias vegetaiscondensam nas vozes a noite os homens e o dia.

    Escrevendo

    escrevendo esperava que um misterioso entusiasmoproduzisse na pgina o cristal do mundoe as suas rvores, os seus amantes, os seus rioscomo figuras mgicas de um canto.E que a gua imvel entre brancas runasno reflectisse as imagens nem os sonhos

    e violncia dos flancos das figurastrouxesse o xtase da beleza que no flui.

    Figura

    A tua figura desperta a minha energia subtile ascende primeira forma sublime e simples.Primavera do mundo e aromtico barcoe na palma da mo a delicada inicial.Neste instante as luzes so passagens transparentese eu coloco o teu ventre novamente na paisagem.Venho de ti e vou para ti antes do primeiro jacto

    num cncavo seio na cpula do segredo,que to fechado como a no respiraoe que se abre no rosto dos meus membros.

    Presena total

    Aderncia area ao oiro do infinitodas infindveis esferas, sem vertigem,igualdade e confiana, nmero, amor, inteligncia,o puro tempo da infinita majestade,o hlito sem sopro, o mar sem movimento.

    A minha sombra

    A minha sombra revela-me ningum,fortuita folha sem animal viveza,instante nulo ou lmpada vaziado fugaz viver, sombra de nada.

    Rosa submersa

  • 7/24/2019 O-NO-E-O-SIM---Antnio-Ramos-Rosa.txt

    19/38

    Est submersa como uma rosa verde sob as vagas.o poema que ela espera a paisagem desejada.Flancos e cabelos, todo o mistrio animale o suor e o sangue nos seus membros de esttua.Sorri porque a semente entrou no seu sexo vermelho.o cu j se inclina sobre o talento das pernas.Que maravilhoso olhar! Nuvens e rios areos,ventos, suspiros, deuses. deslumbrada pedraque libertas o sorriso da adorao iniciale salvas o mundo na espuma do teu sangue!

    A sombra

    No procuro saber donde vem a sombranem ver o seu rosto que eu adoroporque ela a substncia do incioe a elstica consolao da inocncia.o deserto findou no ventre da montanha.Um volvel palcio ergue-se sobre as ondas.As mquinas de guerra afundam-se na areia.A terra completa em contnuas confluncias.Perderam-se os olhos falsos e as mos frias.No se toca nenhuma forma, no se beija nenhum lbio.

    o silncio ascende, uma toalha de silncio,o silncio desce, uma esfera de silncio.A sombra no tem barco nem lmpada nem vozes.o nascimento comeou e sem cessar comeae quer mais sombra e sombra pela fora da origem.

    Espao

    Comeo pela linha mais vagarosa e negrade esplendor e misria, de obsceno paraso.Onde o azul selvagem, onde a terra longe.o amoroso ser toca os demnios brancos

    e as matrias brias dos amantes felizes. terras, terras inocentes, templos, terraos, nebulosas e montanhas, sossego imortal!Espao, espao, imobilidade imersa.

    Aventura

    Aproximo-me. Apenas me aproximo. como se uma bocaou uma plcida espdua de volpiano perturbasse as armas e os lbiosda nostalgia liberta de uns nocturnos cabelos.

    No se abriram as clareiras da sombranem os anis das cavernas radiosas.Mas nas constelaes e no fulgor das lmpadasbrilham os segredos que ningum conhece. imaculados frutos nas axilas do tempo! ardente sexo que perfumas a noiteenquanto algum pronuncia o vocabulrio do vento!A aventura sacode a sua cabeleira.Este o mundo do desejo na sua nocturna transparncia.

  • 7/24/2019 O-NO-E-O-SIM---Antnio-Ramos-Rosa.txt

    20/38

    Libertao

    Escrevo atravs da nudez iminentede amantes que atravessam grandes nuvens de vidroe no espao sublevam os armrios de insectos.Com eles construo a casa rsea, ocre e verdee perpetuo o orgasmo nas paisagens abolidas.Suspensa a linguagem no flanco do abismo um naufrgio ardente, uma constelaode dedos, uma aliana branca.Da sua urna verde um grito de veludoliberta a ave negra da separao.

    A chama de fenosa

    A sede desperta, vejo a orqudea de um ventre,a neve de uma nuca. A sede despertacom as slabas brancas entre umbigos e pssaros,luas e violinos. As slabas desmoronam-semas a chama ascendena frgil crepitao da primavera.Vejo a sombra de um cisne, a silenciosa msica,

    os delicados ps que pisaram as nuvens.Vejo a cintura da chama no perfume das formase a gua e o fogo nos ramos de uma lmpada.As mos ascendem para um rosto altssimoem que intacta a ausncia da glria do desejo.

    Memria da adolescncia

    adolescncia dos dias, espirais do desejoquando viver era viagem nas vrtebras da primavera!Tanta sombra, tantas armas, tantas rvores,no vigor verde um mar maravilhoso!

    O estrpito das cabeleiras despertava as narinase o sexo das palavras ardia sob a argila.Os poemas eram gargantas de vinho no veludo da lnguae que felicidade ouvir o canto das plantas e o minsculomartelar dos dentes da melancolia!Afundavam-se os corpos em matrias magnficase as montanhas sonhadas tinham rumores de abelhas negras.

    Sono

    Adormeci no seio da terra: dilvio e osis.O rosto era uma planta vermelha entre sombras elsticas.

    Entre abelhas e montanhas, a fora do silncioe o sexo uma colmeia ardente e o esplendor dos dentes.Num flanco um lbio abriu-se e perfumava as sombras.Toda a terra era carne exalao primeirae nas espduas um tremor irisadoe a pirmide das nuvens, adorao suprema.

    A palavra inicial

  • 7/24/2019 O-NO-E-O-SIM---Antnio-Ramos-Rosa.txt

    21/38

    Majestade negra, a soberana palavrasuspensa sobre o poema, com um odor a sexoe a animal sem espao.As sensaes agitam lentamente as tuas plpebrase sublevam os campos, o asfalto e o ar.Quem no ouve o amoroso clamor das tuas rvorese as estrelas presas na garganta?Tu desejas envolver os deuses com os teus joelhosnas nuvens. Mesmo nas partes mais sombriasdo teu corpo, mesmo nos teus tmulos desertos,o teu afecto o triunfo de um cnticocom as altas guas e as tmidas lianase o olho negro do sol e as matrias da sombra.

    No repouso do princpio

    Adormeo sem viso quando a sombra se condensae tudo se suspende sem rosto e sem figura.o eterno esta lentido, esta ascenso sem armas.Os meus olhos esto vazios, os meus lbios tranquilos.Na mgica anulao o desejo s silncio.Ondulam dentro do crebro harmoniosos cabeloscomo uma cascata imvel.

    As formas no se distinguem. o princpiosem paixo, sem memria, sem os rumores do sangue. Dir-se-ia que se dorme, mas a alta adolescnciadestas tranquilas guas como um barco acesopela nupcial ternura. Toda a cincia se transcendena igualdade que vive a diagonal do ser.

    Na plenitude da sombra

    Estarmos na sombra tranquilos e vaziosquando ela desce num lento apocalipsee o sossego inclina os seus ribeiros

    sem seios nem cabelos e sem formas vibrantes.E aniquilados adoramos o vazio da plenitude.A fora tanquila descansa em nossos msculose cada vez mais a pobreza uma rvore.No ouvimos, no vemos, no sabemos.A sombra aglomera-se sem desenhos nem lbios.Sem morrer, sem nascer e nascendo e morrendono sossego sem formas, na igualdade da sombra.

    O uno duplo

    Os secretos ornamentos do pudor, adorao

    de ntimas rvores e de um dorso sem estrelas,aliana soberba de dois seres numa rvore,deus semelhante ao sossego do mar e das montanhas,as mos na obscena fenda da terra incendiada,a lngua na glande e nos cabelos verdes,o rio nas ancas, silencioso ciclone,a volpia da mo sobre as pernas de vespa,o palcio do pbis, a negra arquitectura,argila e ar e luz de uma floresta natal,o xtase de ser duplo sobre a lngua da terra.

  • 7/24/2019 O-NO-E-O-SIM---Antnio-Ramos-Rosa.txt

    22/38

    Madonna

    Mais forte do que uma religio e mais elctricacanta e despe-se entre drages e pssaros.Levantam-se as montanhas vermelhas e os cavalos.Ela canta entre as mquinas e as urtigase na ligeireza da sua fora verdedissipa as muralhas negras e os obtusos negcios.o seu corao um girassol de slex.Rapariga ou andorinha, fabulosa lmpadaque soltas as tuas vestes e te salvas!Danas como uma area anmonae com a potncia do desejo, transparente amante,tocas obliquamente os divinos flancos.

    BREVES FULGORES

    Descida area

    o que desce pelo fumoazul no fundo de uma cinzae decanta os dedosno adgio dos muros.

    o que que ondula na penumbrado declive?o rumor do tempo,a erva ferida?

    Os contornos, as fibras,os lentos aglomeradosverdes e negros ou azuis e rosa,

    desagregam-se,engendram a profusa semelhana.

    J no tenho idade. Atravessoa danarina desenhadapelas nuvens da ausncia.Na lngua area e slidasou o corpo da ignorncia vegetal.

    Os signos materiais

    Estou atento

    como um animal selvagemApalpo os signos

    araucriaslagartixasaranhas e laranjasas formigas do vento

    Sinto a pele do espaosobre as veias

  • 7/24/2019 O-NO-E-O-SIM---Antnio-Ramos-Rosa.txt

    23/38

    Bichos nocturnos e teias de luzSabores espessos

    centelhas de pedracintilantes dedosslabas sob a chuva

    algaravia verdea disperso no centro

    Sonmbulas construesde uma energia branca

    Leveza

    Vi-te subir.As guas separaram-se das guas.o meu alento era um puro elixir.Tu davas-me os passos com que caminhava para ti.Ligeiro, to ligeiro entre os trepidantes cascosde obscuros navios. Slabas de linfano vento sonmbulo.Tenho a garganta cheia

    de abelhas verdes e o corpobalana-secomo um frutogrvido de magnificncia.Vertical nadadorsustento a pulso as vermelhas corolasque ligam a lua e o sol.Arredonda-se a inocncia no centro da voragem.o ar incendeia os nervos dos segredos.o sopro da serpente fertilizaos alvolos brancosat que as espduas toquem o fundoe o sangue se incline

    transformando o destino em puro incio.

    Uma viso

    No mais profundo verdeonde est atravessado o braoe a proa rodaSilenciosa com os escaravelhos brancos

    talvez uma viso da morteou antes o navio do sonocom as veias arrancadas

    volta da cintura

    Ou talvez uma plpebra verdefinalmente mortalmenteto longe de tudoto perto de ti

    Irm obscura

  • 7/24/2019 O-NO-E-O-SIM---Antnio-Ramos-Rosa.txt

    24/38

    Sabemos que j no vem- as plpebras dizem sim?gargantagarganta onde o soldeixou as espduas violetas

    E aindaaindaum rumor de cintura desatadapelos teus dedos irma obscurana crislida

    (imageme no imagem)estes so os teus membrose o teu soproestes os gros de luze o teu hmus negro

    Ser um nomeopalaos membros de uma ave

    o rebanho translcido(infinitesimal na imensidade)terra que germinana ausncia

    Num crculo denso

    Ressoaria talveznum crculode densidade crescentecomo uma espduacomo um touro de gua

    voando sobre as rvores

    Oferta que se teceda brancura dos signos a terra os seus nmerosa membrana sonoraas minsculas mosdas rvores

    Um brao nadapara a lmpadadas folhaslimitando os seus limites

    Um ombroascende abbada negraonde cintila o oiro

    A cavalgada serenaatravs da fora errantepara alm dos ltimos pomaresbrancos

  • 7/24/2019 O-NO-E-O-SIM---Antnio-Ramos-Rosa.txt

    25/38

    onde o corpo tocaas suas prprias slabasincestuosas

    Quase

    Obscurece-se de um ladopara ticomo uma ptala de sombra

    Reina nos detritosentre aranhasnos minsculos torvelinhosdo instante

    Quase ruminana sua cripta quase uma folha permevelquase uma estrelaem forma de boca

    Regresso

    Perguntas? Viajona liberdade clarade um sossegado marsem sombras nem relmpagos

    Nada mais do que estarem natural potnciacomo num esquecido ninhode um incessante regresso

    Sem nostalgia nem esperanaentro na boca da terra

    onde encontro a nascentee o movimento nico o sossego presente

    Para ver

    No te chamo desesperana,terra branca,pedrado meu silncio.

    Uma palavra fornece ainda a argila

    uma vez maise a mo escreveos olhos que ho-de veras verticais palavras do deserto.

    Porque

    porque as tuas mos conhecemos redondos insectos

  • 7/24/2019 O-NO-E-O-SIM---Antnio-Ramos-Rosa.txt

    26/38

    das razes, os poros de fogodos animais rupestres,porque no s promessamas o repousoda pedra que delira,porque te quero fundarna viso vaziada superfcie nua.

    A juventude

    Era um troncode cavalos e serpentese o sal sobre as vrtebras da escrita.A roda passou pelo cipreste branco.Foi ento que eles viram com um olho na palmauma deusa de argila.Os campos cobriram-se de nascentese na origem brilhava a lua das palavrasenquanto os rios de pedra trepavam as montanhas.

    A contemplada

    Vi-te, desejada, contemplada, ouvi-tena rvore em que nadavas.Mais pobre. Mais nua. Inicial.Ouvi-te numa cratera de silncio.Com a pedra. Contigo. E a palavraera um lbio do ar ou uma tmporaque se abria:

    cercava-tecom uma s mo clara,eram caminhos

    em crculo, eram palavrascomo martelos na folhagem,era o peso da lua sobre o rosto,era o dilogo com a pedra,era contigo,raiz e sombra,com o teu olho de argila,com o teu membro de fmea como um dardo.

    Atravs da noite

    Era a noite errante,

    uma fora amontoadae o vento negroentre as estrelas.As torres de granitojunto a um mar de fogo,as espirais da nvoa.

    Moviam-se os montes?os muros e as pginas.As veredas extinguiam-se

  • 7/24/2019 O-NO-E-O-SIM---Antnio-Ramos-Rosa.txt

    27/38

    sob alucinadas guas.Ajoelharam-seos cavalos de ferroentre o clamor dos corpos.

    Os espelhos negrosdesuniam-see ardiamnuma fogueira silenciosa.As orquestras cegasda ausnciadispersaram os signos.Ouviam-se latidose soluos.

    As portas da montanha resistiam.

    As palavras

    Palavras cegas, palavrasmudas, mas com olhosde pedra.No silncio vazio, ainda

    esperam?Se viesse um homem,leve como um anel,fluindo como uma rvore,talvez com o seu peso de slabaretivesse o vaziodo centro.

    Sobe,sobe, com a sua rvore,at nudez do no escrito,para tocar as tmporas

    da palavra cega. Sobeat raiz do lbioque nunca disse o nomeque iniciasempre.

    Nocturno

    Silvos entre silnciossobre a pausadaelegia dos passos.Noite pressentida na placidez

    das sombrase das lmpadasque, quase frgidas, prometemuma confiana de lbios e de plpebras.o arteso da noite o ntimo forasteirovai ordenando o tumultuoso veludodas sombras e recolhe-asentre parnteses de pedra.Acordes nas invisveis redesdo ar, tesouros obscuros,

  • 7/24/2019 O-NO-E-O-SIM---Antnio-Ramos-Rosa.txt

    28/38

    to ntimos e remotoscomo se cada um de nsfosse o centro da ausncia.

    A voz nua

    Onde a voz nuana obscura maresiadas slabassubmersas?Uma idade de sombra reclama uma imagem,um odorinaudvel,um lriona glande, no quadrantesolar.Entre mirades de insectose nubladas bocassurgem imagens verdescomo a sombra de uma rosaou um cavalo negrosobre as cinzas da lua.A voz nua perdeu o seu suave tacto

    de arbusto de guae a inicial pureza do vazio.

    Ausncia iluminada

    Queremos viverna frescura da folhagemiluminadospor uma arma de gua viva.

    E as palavras sero antigassero novas

    como presenas redondasna lucidez das horas.

    Que nas mais suaves slabasse possa diluirtoda a violncia

    e s os frutos reineme os rios acendamos meandrosde uma terra lavradapela respiraoda ausncia.

    Sopro a sopro

    Uma cabea sonha nuvenspara o mundo real.A mo constri um barcode folhas para o espao.o corpo perfaz o mundoem acordes nupciais.

  • 7/24/2019 O-NO-E-O-SIM---Antnio-Ramos-Rosa.txt

    29/38

    A fragrncia derrama-seem reverncias cintilantes.Sopro a sopro, os tesourospassam no ar ligeiro.Que evidentes delciasde musicais relevos!ntimo dentro do espao,agora sou quem sou,(o que respira e recebe).Tudo culmina aquiem leve plenitude(to fcil que de todos),unnime confidncia.

    Cratera branca

    Na cratera branca coroam-sede sombra as alianasde filamentos. transparnciavem-se as serpentesvermelhas, os martelosde uma elegncia fatal.

    Estamos vendo o verde e o douradoda perfeio nascente e da alturaimvel. Todas as palavrasso instrumentos ardentes que se inclinampara o alvor da ateno e dos seus nmeros.

    Ela

    Ela alba atravessando as rvores.Nela h uma colina e com seu flancov um sopro da terra, o rumor sob a lngua,o equilbrio das margens, o silncio,

    areias, bosques, solides.Se enegrece ilumina os campos negros.Desce ou ascende, sempre alba e sempre sombra.Ela o caminho que nos guarda.

    Primeira residncia

    Na primeira residncia,talvez gua, no pulsotransparente do olvido,o que outrora era a beleza o remanso

    que restaura na sede a claridade.Pureza bria de msica,de quietude,negrura aberta, primavera da matria,um corpo de plpebras solares.

    Revelao da noite

    Era a sombra do fogo. E a lua azul.

  • 7/24/2019 O-NO-E-O-SIM---Antnio-Ramos-Rosa.txt

    30/38

    Raiz a raiz, gema a gema,constru um murmrio, a estrela de um jardim.Era uma ordem da amplitude, a transparente corolaque revelava a noite, as areias infinitas.Era e no era um sonho entre o desejo e aconsumao incandescente. As espadasnubladas ardiam sobre as praias.

    consumao

    Nem mesmo a pedra.E muito menos o azul da terra,o cio das colinas.o sopro vem da inabitvelnoite qual damoso sangue das palavras.Talvez nada se percase o informulado crescecomo quem se abre ao vento,essoutronome,que foi outrora firmamentoe hoje a medula

    em que se consuma a lnguado desejo.

    A silenciosa

    Onde est a pedraque habita uma nuvem?Onde a sombra da chuva?Onde a silenciosa,a verdadeira?

    Estrela de nada, vegetal

    vertigem, soprodo vazio.

    No fulgor da moonde est a mesa?

    O inquilino deslocado

    Coroado pela febre azulsem a indolncia da gua do poema.

    Intermedirio de uma cloga

    sem estrelas.

    Provisrio inquilino deslocadoem carris enferrujadosde uma ansiedade vivasem halos de lamentos.

    Nenhuma

  • 7/24/2019 O-NO-E-O-SIM---Antnio-Ramos-Rosa.txt

    31/38

    De si to esquecidano murmrio inexaurveldo alvoroo da brisa,gazela do vazio,de transparentes msculose de sonmbulos raios.Ser uma figuraaquela que nenhuma?

    O crculo vazio

    Eu sei, tu sabes, no sabemos.A palavra o ouvido do deserto.Ovo, vazio, sombra.Um olho sibila dentro do crculo.Eu vejo, ns vemos o sossegode uma terra clara sem figuras,escrita de uma asa indecifrvel.Ningum aqui? Aqui reina ningumem solido de inteligncia limpa.

    Alianas

    Alianas, ondeas alianas?Ao fundo da lacunao dedo descee escava o calcanharincandescenteda deusade ningum.

    Atravs de uma nuvem negra

    Como se o dedo tocasse uma chama glidacomo se tu nadassesdentro da lmpada negraou nos negros clices da tua ferida,como se a palavra de sbito se abrissepara o centrode ouro e sombra.como se a gua ardesse e a pedra flusse,bebe, bebe essa lama ardentede sedentas slabas,que todo o teu alento e a tua terra,saboreia esse poo onde ainda ardem estrelase onde flutua a mo branca minscula

    que move o corpo que entre nuvens navega.

    Na casa

    Um fio de msica vai desenhando o silncio.Queremos habitar o sossego da penumbra.Estas slabas conheceram a violncia das craterase o sangue das imagens. Estamos vazios,quase serenos. Estamos j dentro do pndulo,

  • 7/24/2019 O-NO-E-O-SIM---Antnio-Ramos-Rosa.txt

    32/38

    presos luz de uma espessa antiguidade.Nada, nada. Como se estivssemos num cntarorodamos no repousocom as plpebras fendidas.Assim, na ondeao flor da casaconhecemos as clareiras e os recantos,vamos subindo, vamos descendo pureza antigaque d uma nova flexo nossa voz.

    Ode propiciatria

    Abrir o pulso das rvores, alcanar espao,caminhar desprendendo, concentrando abrir,ordenar os campos, demarcar as fronteiras.Ainda no sabemos, ainda no samos, ainda no comemos.Vamos para o cerne, para a raiz do dia.Olhar agora para a nascente branca. Olharpara ver sem olhar. Receber a pura forada fora, irrigar os campos,acariciar o sopro, respirar pelos olhos. deuses vivos e amados, configuraesque s esperam o reconhecimento da palavra!O brancura area, mbito contemplado!

    Que o exerccio desperte a lucidez dos lbiose os animais do corpo ondulem soltos e transparentes.Abrir os vasos do tempo, libertar as essncias subtis,rodar, rodar a esfera, abrir a terra,acender a rotao, pousar na aura com os nomes,limpar, limpar as razes da lua,penetrar na espessura onde o mundo se arredonda,mover os opacos membros da deusa da montanha,estar, estar no indolente ofcio da sabedoria,ir at ao fundo mais ntimo da pedra,avivar os veios das mquinas vegetais,gravar a ascenso dos gros na gravidez silenciosa,consagrar a lentido que culmina nas abbadas,

    manter a herana do fogo na deriva,contemplar o fulgor do sono na penumbra dos arbustose regressar ao desejo, coroa do repouso.Agora sustentar a trave, alargar a esfera,contemplar o estremecimento dos volumes,aderir superfcie densa, purificar as guas,estar atento distraco da transparncia,pesar as formas inteiras nos msculos repousados,crescer animalmente na liberdade do espao.

    Corpo de aroma

    Se foste corola ou barco,mas quando?minha irm,minha leve amante, minha rvore,que o mundo levantavana inocncia absolutado instante.Alta estavas no amplo e recolhidacomo uma lmpada,alta estavas na varanda branca.

  • 7/24/2019 O-NO-E-O-SIM---Antnio-Ramos-Rosa.txt

    33/38

    Se acaso ainda podes ser aromados meus olhos,corpo no corpo,retiro e substncia, linha altada delcia,nada te pedirei na minha nsiade puro espao,de azul imediato,de luz para o olvido e o deserto.

    Antimensagem

    Quem poder dizerpalmas, dentes, vida?

    Um pulso desenrolauma caligrafiade sangue e cinza.

    Os planetas, os palciosesto vazios. As moscase as ervasproliferam

    no labirinto.Runas, imundcies, latas e retratosvelhos, eis o que restada sonora pompa.

    Aqui, alm, ainda a moque se prolongaem busca de uma casa.

    h talvez aindatraos indelveisque so asas numa ferida branca,

    mas as mandbulas do poetamordem as slabas de areia.

    Esto ali

    Esto ali abertos, esto vazios.Sangraram. Foram imagens. Derramaram-se.Um deles inclina-se como um cntaronuma cratera.Outro tem suspenso o dedo desoladosobre a fendade uma plpebra.

    Erraram de estria em estria,semelhantes, estranhos,rodando sem repouso.Ningum os formar de novo.Ningum fixou as suas palavras de sanguequando o tempo lhes beijava a boca.

    Que longnquo arvoredosopra para ns

  • 7/24/2019 O-NO-E-O-SIM---Antnio-Ramos-Rosa.txt

    34/38

    o hlito de um olho embriagado?

    Esto ali abertos, esto vazios.Ensurdeceram sobre espinhassem caminho. Emudeceramsem razes. Como podemflorescer,como podem ser aindaa translucidezda pgina?

    A ondulao do afogado

    O afogado magnfico, ondulado.

    Ter ele atingido a pedra intacta,a delicada e longnquaadolescente submersa?

    o que que ele escava? Escava o ventocom as fibras do p que ningum sopra.o que que ele encontrou sobre as escadasde olvido, essas escadas de algas?

    No, no possui garraspara alcanar o cntaro fecundoou a cratera vazia.

    Talvez ele encontre a madeira harmoniosade um bero errante.Com as suas pernas ainda nervosas e elsticastalvez ele encontre.

    O afogado magnfico, ondulado.

    Depois de ler a Perfeio das Coisas de jaime Rocha

    Como se faz um livro?Livro que eu no sou, que no meu filhonem a sombra do meu filho.Vou faz-lo sombra da luacom o vento e a terracom uma solitria aranhae um pedao de hidra.Um voluptuoso enxamecorre para os esgotos do sol.H um odor a enxofrenum sepulcro de pedra

    e ouve-se a serpente metlicanas runas da guia.o que desejamos ser, o que ns somos agora cavalo e salmo, peixe e lua.Estamos na garganta dos vocbuloscom a sede imensa da montanha.Que sabemos ns do que sabemos?Buscamos um deus nalguma rvore?Toda a matria tempo e silnciona sua contnua, profunda, suavidade.

  • 7/24/2019 O-NO-E-O-SIM---Antnio-Ramos-Rosa.txt

    35/38

    Na imensidade

    Comigo estou de repente numa ilhaescarpada, inacessvel e segura.A luz culmina e ilumina a sombra.E como atenta ave estou pousadono cimo de uma rocha fulgurantena maior transparncia do silncio.Insondvel prodgio, indomvel prodgio.Dir-se-ia que sorri o universo.Todo o ser em concordncia com o serno seu centro de energia em glria imediata.Despojado e inteiro ergo-me de vere dilato-me luminosa imensidade.Toda a matria cintila cristalinaem cpula no seu presente eternoe to fundo e to por dentro que dir-se-iapoder esquecer-se assim nesta viso vazia.Estar assim o alvor na roda altada transparncia em que o azul prolongao antiqussimo sossego da materna idade.Aquela paz e nitidez de nascimento

    vai lavrando os campos visuaise entrando nas delicadas zonasonde tudo vulnervel e agora msicae perfume de um animal do mar.Mudo o amor de tudo contempladomas em que ondeia a densa melodiaperene da altitude e o ardorabsoluto da mais pura aridez.Luz sem fim de clarssima frescura,central repouso de um pas de sono,delicada simplicidade de palcio,um tesouro de chamas clidas que no queimem,um horizonte de fragrncia tranquila.

    Fundao do corpo

    Fundar-tecom os instrumentos da gua,e com a efervescnciadas mos. Estender-tepalmo a palmo,como se a origem fosse coisa.Recolher-te,dilatando a viso de voo indecifrvel,deslumbrar as slabas

    com a evidncia dos despojos,aprender dormindoa conivncia do unnime,ordenar os enigmas do teu corpona serenidade do nome.Desenhar o olhar animalsobre as superfcies nuas.Unir todas as vozes que caminham para a noite.Concentrar o fulgor do vazionum vaso transparente.

  • 7/24/2019 O-NO-E-O-SIM---Antnio-Ramos-Rosa.txt

    36/38

    Escrever sobre a gua os jardins do teu corpo.Fazer de cada verso o movimento de um dardo.Tocar-te os olhoscomo minsculas nascentes.Descobrir entre as folhas um palcio branco.Atingir um ponto de aroma e de sabore ver o ar visvel na umbilical vidncia.Num insondvel abrao adormecer em tiat ao maravilhoso abandono das tuas veias.

    Invocao de Laura atravs de Eusbio Lorenzo (1.a verso)

    Quero inteirar-me sobre um outeiro perdidodo que Laura deixou, sua carga azuladade desejo e sombra, de matinais fervorese as ilhas submersas da sua estranha lngua.Espero o seu regresso ou seja o seu princpioque um canto da nvoa sobre alcantis vermelhose o dia em que ela ouviu os imensos exrcitose com os cavalos entrou na manso azul do mar.

    Laura, eu te celebro luz obstinadade um vero intenso de abelhas e cigarras.

    Tu sabes que a hora das cidades de pedrae de sangue. Os ciprestes desejam-te.Corres pelos campos azuis mas ests imvelouvindo as folhas mortas, o bater das ondasnas pedras. Contemplas as esfinges brancasno leito do rio. E tudo diz olvido e ausncia,mas Laura um corpo noutro corpoe na sua morada fria ela recebe o sol.

    Laura, como uma palavra branca ou um aromade girassol numa obscura barca.Sem espelhos ou mscaras ouves o latido vegetalque uma antiga ferida no sono do silncio.

    Mas tu regressas sentindo o perfume do alvore a msica e a gua, a rosa verde do fogo.

    o teu corao, Laura, acalenta a nostalgiae como se ao longe houvesse sempre um barco.Tu foges, mas a tua fuga o teu lugare sentes no teu peito a ligeireza das rvores.

    Desenho-te em linhas negras e tu s brancamas tambm como um arbusto tecido de espuma marinha.Quando tocas as palavras tocas a lngua das ondase o azul alegre, a ignorante negrura da terra.

    Bela no perfume da forma e do silncio,bela na cripta do seu desejo branco,bela como uma grande ave sobre um lago,bela como a terra musical,bela com o negro e o verde das suas ancas.

    As palavras imprevistas e negras que ela disseforam de paixo e fria e ardor e sabedoriae todas foram coroar um animal mistriocom uma nuvem azul de tranquila energia.

  • 7/24/2019 O-NO-E-O-SIM---Antnio-Ramos-Rosa.txt

    37/38

    Dos acordes do tempo e do segredo da luzela criou um novo corpo entre nuvens e rvores.Ela percorre agora os planos azuis do tempoe a fulgurante brancura das palavras vazias.

    Laura,a conscincia abandonada,canta entre runas brancas,os desejos da terra.

    Invocao de Laura atravs de Eusbio Lorenzo (2.a verso)

    Quero inteirar-medo que Laura deixousua carga azulada

    de desejo e sombraEspero o seu regressoou seja o seu princpioque um canto da nvoa

    sobre alcantis vermelhos

    no dia em que ela ouviuos imensos exrcitose com os cavalos entrou

    na casa azul do marLaura eu te celebro hora das cidadesde pedra e sangue

    Em ti tudo olvidoausncia e nostalgiaMas tu regressas semprecomo uma antiga ferida

    ou um astro de oiro negro

    Sempre bela na criptado teu desejo brancosempre que foges sentesa ligeireza das rvores

    Se tocas as palavrastocas a lngua das ondasnum mistrio animal

    Todos os segredos da luz

    se enlaam no teu corpoe o azul alegrenos teus flancos azuis

    Sobre as guas dos cimosj ests perto do solimpondervel cisnenum turbilho de oiro

  • 7/24/2019 O-NO-E-O-SIM---Antnio-Ramos-Rosa.txt

    38/38

    Bibliografia de Antnio Ramos Rosa

    Poesia

    O Grito Claro, 1958, Viagem atravs duma Nebulosa, 1960, Voz inicial, 1960, Sobreo Rosto da terra, 1961, Ocupao do Espao, 1963, terrear, 1964, estou Vivo e EscrevoSo1, 1966, A Construo do Corpo, 1969, Nos seus Olhos de Silncio, 1970, A Pedra Nua,1972, horizonte Imediato (Antologia), 1974, No Posso Adiar o Corao (Vol. 1 da obrapotica), 1974, Animal Olhar (Vol. 2 da obra potica), 1975, Respirar a Sombra Viva(Vol. 3 da obra potica), 1975, Ciclo do Cavalo, 1975, Boca Incompleta, 1977, A Imagem, 1977, A Palavra e o Lugar (Antologia), 1977, As Marcas no Deserto, 1978,A Nuvem sobre a Pgina, 1978, Figuraces, 1979, Crculo Aberto, 1979, O Incndio dos Asectos, 1980, Declives, 1980, Le Domaine enchant, 1980, As Marcas no Deserto (Edio bilingue portugus francs), 1980, Figura: Fragmento, 1980, O Centro na Distncia, 1981, O Incerto Exacto, 1982, Matria de Amor (Antologia), 1983, Quando o Inexorvel, 1983, Gravitaes, 1984, Dinmica Subtil, 1984, Mediadores, 1985, Fico, 1985, Volante Ve, 1986, Vinte Poemas para Albano Martins, 1986, Clareiras, 1986, No calcanhar do Vento, 1987, A Mo de gua e a Mo de Fogo (Antologia), 1987, A Livro da Ignorncia, 988 (Prmio Pessoa), O deus nu(lo), 1988, Trs Lies Materiais, 1989, Acordes, 1989

    Ensaio

    Poesia, Liberdade Livre, 1962 (2. a edio, 1985), A Poesia Moderna e a Interrogao doReal, 2 volumes, 1979, Incises Oblquas, 1987

    Antologia

    Lricas Portuguesas, 1969