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Lucas Cerviño* – [email protected] A s duas características da nova realidade são a pluriculturalidade e a secularidade. A primei- ra revela o surgimento da diversidade cultu- ral; a segunda estabelece uma recolocação da Igreja no tecido social de matriz não religiosa. Da pluriculturalidade para a interculturalidade Na América Latina, pluralidade significa investigar a diversidade cultural até então submersa, escondida, ne- gada durante séculos e que, agora, surge com força nos mais variados âmbitos. A cultura não se atrela ao elitismo ou ao folclore. Algumas atitudes artísticas ou intelectuais tornam culta uma pessoa. Falar de culturas não é só pen- sar nas culturas autóctones ou indígenas, mas também nas culturas urbanas, juvenis, nacionais ou regionais, etc. Novas mestiçagens surgem no continente, sobretudo nas periferias urbanas, e fazem um grande entrelaçamento cultural . Quando se encontram pessoas ou grupos de cul- turas diferentes, os aspectos visíveis entram logo em con- tato, enquanto os invisíveis, apesar de determinar grande parte da comunicação, não demonstram que as pessoas estejam conscientes disso. Aproximar-se da diversidade cultural é evidenciar esta situação e buscar critérios para facilitar o diálogo intercultural para que a interação não seja um entrave, mas uma chance de autêntico encontro e crescimento mútuos.  A diversid ade cultural latino-americana A diversidade cultural é anterior à conquista espanho- la (1492) e à colonização da América. A partir dos anos 70, e, sobretudo em 1992, as vozes silenciadas e os rostos invisíveis dos nativos e dos afrodescendentes adquiriram relevância publica. As culturas indígenas assumiram o projeto pluricultural para, inclusive, questionar até o ter- mo Latino-Americano. Os povos originários e indígenas não se reconhecem mais nos termos da “latinidade” e “mestiçagem”, mas no do Aby aY ala  (na língua Ku na, sig- MUNDO E MISSÃO 22 atitudes, ingredientes e chaves para um olha r de fé sobre a realidade (2 a  parte) Esta é a segunda parte da palestra proferida no CAM4 COMLA9, em Maracaibo, Venezuela. A primeira par te foi publicada na edição de março.    A   r   q   u    i   v   o    P   e   s   s   o   a    l Lucas Cerviño O mundo de hoje,  pl ur icu l tu ra l e secular i zad o

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Lucas Cerviño* – [email protected]

As duas características da nova realidade são a

pluriculturalidade e a secularidade. A primei-ra revela o surgimento da diversidade cultu-ral; a segunda estabelece uma recolocação daIgreja no tecido social de matriz não religiosa.

Da pluriculturalidade para a interculturalidadeNa América Latina, pluralidade significa investigar a

diversidade cultural até então submersa, escondida, ne-gada durante séculos e que, agora, surge com força nosmais variados âmbitos. A cultura não se atrela ao elitismoou ao folclore. Algumas atitudes artísticas ou intelectuaistornam culta uma pessoa. Falar de culturas não é só pen-sar nas culturas autóctones ou indígenas, mas tambémnas culturas urbanas, juvenis, nacionais ou regionais, etc.Novas mestiçagens surgem no continente, sobretudo nasperiferias urbanas, e fazem um grande entrelaçamentocultural. Quando se encontram pessoas ou grupos de cul-turas diferentes, os aspectos visíveis entram logo em con-tato, enquanto os invisíveis, apesar de determinar grandeparte da comunicação, não demonstram que as pessoasestejam conscientes disso. Aproximar-se da diversidadecultural é evidenciar esta situação e buscar critérios parafacilitar o diálogo intercultural para que a interação não

seja um entrave, mas uma chance de autêntico encontro ecrescimento mútuos.

 A diversidade cultural latino-americana

A diversidade cultural é anterior à conquista espanho-la (1492) e à colonização da América. A partir dos anos70, e, sobretudo em 1992, as vozes silenciadas e os rostosinvisíveis dos nativos e dos afrodescendentes adquiriramrelevância publica. As culturas indígenas assumiram oprojeto pluricultural para, inclusive, questionar até o ter-mo Latino-Americano. Os povos originários e indígenas

não se reconhecem mais nos termos da “latinidade” e“mestiçagem”, mas no do AbyaYala (na língua Kuna, sig-

MUNDO E MISSÃO22

atitudes, ingredientes e chaves para um olhar de fé sobre a realidade (2a parte)

Esta é a segunda parte da palestra proferida no CAM4 COMLA9, em Maracaibo, Venezuela.

A primeira parte foi publicada na edição de março.

   A  r  q  u   i  v  o

   P  e  s  s  o  a   l

Lucas Cerviño

O mundo de hoje,

 pluricultural e secularizado

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agir segundo esta dialéticadialógica: somos diferentes,mas também iguais. Se ig-norarmos a diferença, che-garemos a uma espécie deuniformização cultural, ét-nica, política e econômica.É o que foi feito, com maiorou menor sucesso, a partirda migração européia e doextermínio das populaçõesindígenas. Mas, se não le- varmos a sério a igualdade,seremos tentados a apoiare praticar algum tipo dediscriminação racista oureligiosa.

Com um paradigma tri-bal ou expansionista, comoocorria antes, é impossí- vel gerar alternativas reaisa este desafio central dofenômeno do pluralismocultural. Portanto, somentea partir de um paradigmapluralista e de reciproci-dade é possível encontraruma resposta.

A interculturalidade,caminho deconvivência

A interculturalidade de-safia o pluralismo atual poisoferece a possibilidade deum intercambio autênticoe um diálogo entre cultu-ras e universos simbólicosdiferentes. É uma tentativade raciocínio e ação que vai

além do ético e espiritual,e que procura avançar nocaminho da dialética re-ligiosa: somos diferentes,mas iguais. A intercultu-ralidade critica parte dosgrupos mais desfavorecidose vulneráveis da sociedade.Sublinha a relação existenteentre diversidade e nega-tividade da “carência” em

que vivem os sujeitos cultu-rais. É um problema com-

“assumir a diversidade cul-tural é o imperativo do mo-mento”, bem como superaros colonialismos mentaise simbólicos. É um desafioporque, na América Latina,a visibilidade desta diversi-dade cultural e civilizadoraexige deixar que cidadãospossam ser consideradosde segunda categoria. Háuma mobilização para queas instituições sejam re-configuradas, para que suasculturas sejam respeitadas, valorizadas e promovidaspor estruturas sociais real-mente inclusivas.

Sinal dos tempos paraa comunidade cristã

A irrupção da diversidadecultural é um claro sinal dostempos. O alicerce pode serformulado da seguinte for-ma: é possível pensar e ge-rar mecanismos institucio-nais que permitam manteruma tensão criativa entre a

diferença e, ao mesmo tem-po, a igualdade. Temos que

nifica Terra Madura, TerraViva ou Terra em flores-cimento, e é sinônimo deAmérica). Exigiram res-peito às suas diversidadese afirmaram serem atorese sujeitos do processo deconstrução sociopolíticaem seus respectivos países,onde estão iniciando refor-mas constitucionais, a fimde que se reconheça estadiversidade, permitindo aentrada de conceitos comopluricultural, diversidadecultural, multicultural.

Um problema e um

desafioA diversidade cultural se

torna um problema porqueas velhas receitas que im-põem uma hegemonia cul-tural e religiosa (a famosa“cristandade”) sobre outrasculturas ou a erradicaçãoforçada delas através dosprocessos de miscigenaçãoe migração estrangeira, não

são mais viáveis. Como citao documento de Aparecida,

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O mundo de hoje, pluricultural e secularizado

plexo porque se trata dedesigualdade econômica ede oportunidade, de dife-rença racial e, portanto, da

discriminação e do racis-mo, até com a exclusão dosistema educativo, infor-mático e do conhecimentoque penaliza grande par-cela da população.

A proposta interculturaldeve partir desta diversi-dade “mal assumida e não vivenciada”, carregada denegatividade, que desafiacada um de nós, as políti-cas econômicas e sociais,a democracia, o universoeducativo e religioso. Semdúvida, existem muitas“estruturas caducas” (DAp365) que precisam mudar,a partir deste sinal dos tem-pos, para uma reconfigura-ção da missão.

 Um continente

católico? Entresecularização epluralismo religioso

No campo religioso, duascorrentes sociológicas pro-curam interpretar a me-tamorfose do sagrado: ado pós-secularismo e a dopluralismo religioso. A pri-meira rompe com a máxi-ma do secularismo (maior

modernização, maior se-cularização), limitando-a

a uma chave de análise emalguns âmbitos, e retomao debate sobre a presençapública das religiões emEstados leigos. A do plura-lismo religioso realça a con- vivência sempre maior dasdiferentes religiões, da reli-giosidade e espiritualidadeno mesmo espaço, do bair-ro ao Estado. Um convivermais ou menos harmonio-so em que o Estado tem opapel de permitir e facilitarmanifestações públicas.

Segundo o sociólogochileno José Casanova, o

fenômeno religioso atualassume três característicasbásicas:

uma grande diversidadede sujeitos, práticas, cren-ças, instituições e vivênciareligiosa, e a quase incapa-cidade de definir o órgãoregulador global sobre a validade de tais fenômenosreligiosos;

uma enorme força criati- va, mas também destrutiva,presente no fato religioso;

portanto, é urgente reco-nhecer esta irrupção do es-piritual e criar um diálogo,em todos os níveis, para fa-cilitar a convivência global.

Vendaval espiritualUm símbolo sugestivo

do pluralismo religioso é o

do vendaval espiritual. Elemanifesta o anseio por umcontato direto, a céu aber-to, com o Mistério inefável,sempre presente. Sugerea crescente consciênciapessoal da autodetermina-ção na busca do Absoluto,compreendido como algotranscendente ou imanen-te, religioso ou secular. A

este respeito, os bispos emAparecida viram e avalia-

ram positivamente a rique-za intrínseca do pluralismocultural, mas não disseramo mesmo em relação aofenômeno religioso. Ora,a vivência religiosa latino-americana também está emtransformação, e os fenô-menos centrais são: a secu-larização de certos grupossociais e a nova diversidadereligiosa dentro e fora docristianismo.

Estatísticas comprovamque o continente não émais católico compacto.Em vários países, o fenô-

meno pentecostal reconfi-gura o panorama religio-so: comunidades católicasse sentem ameaçadas; hácerta pentecostalização docatolicismo popular; sur-gem novos fundamentalis-mos cristãos, etc.

A indiferença religiosa éoutro elemento fundamen-tal da nova reconfiguraçãoreligiosa. Trata-se de umaruptura com crenças ins-titucionalizadas, mas nãocom a fé e a crença em umser absoluto.

Causas do pluralismoPara o sociólogo Casano-

 va, as causas deste pluralis-mo religioso são quatro:

• a influência da culturado consumismo que con-

sidera também o religiosocomo um bem de consumo;

• os meios de comunica-ção social que mostram ou-tras práticas religiosas;

• o maior acesso à educa-ção que promove uma cres-cente autonomia da cons-ciência;

• o surgir dos movimen-tos sociais e indígenas que

revalorizam práticas ecrenças religiosas próprias. 

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   P  e   d  r  o

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favorece o pluralismo”. Emnossos países, e, sobretudonas grandes cidades latino-americanas, ocorre umamodernização que faz cres-cer a secularização. O plu-ralismo não muda necessa-riamente o que a gente crê,mas como crê. Em definiti- vo, “estamos diante de umarealidade marcada por umatendência de crescimentoconstante do pluralismo re-ligioso, frente a uma Igrejacatólica ainda majoritária”(Parker 2005).

Desafios à Igrejae à missão

Eis algumas intuições depossíveis caminhos a serempercorridos para uma re-colocação e renovação denossa comunidade cristãdiante do mundo em trans-formação:

• A mudança para umapersonalização da fé con- vida a centrar a vida cris-tã na experiência da fé egerar condições para queisso aconteça. Será precisorevalorizar uma mística deolhos abertos e com com-promisso sociocultural.

• Somente com uma re-novada experiência de fé,baseada na dimensão bíbli-ca, será possível reconstruira linguagem cristã.

• A missão deverá arti-cular-se e recuperar o tes-

temunho cristão, que é um verdadeiro anúncio: “Distoreconhecerão que sois meusdiscípulos, se se amaremuns aos outros” (Jo 13,35).

• O diálogo deve se tor-nar um elemento essencialda missão. Um autênticoexercício de diálogo é umanúncio de Jesus, o Deus-Homem, modelo de diálo-go num mundo plural.

• A pluralidade é umapossibilidade histórica paraaprofundar, tanto em nívelde experiência bem comona reflexão, o especifico

cristão de Deus: a unitrin-dade, o um e o múltiplo,onde a comunhão não éuniformidade e nem diver-sidade fragmentada.

• A diversidade, em to-dos os níveis, interpela acomunidade cristã, e prin-cipalmente a organizaçãohierárquica da Igreja, parauma autêntica eclesiologiade comunhão com o pro-tagonismo dos leigos. Umfuncionamento mais sino-dal e colegial.

• Chegou a hora de umnovo Pentecostes, mas queseja intercultural e interre-ligioso, no qual, graças aopoder do Espírito, a fon-te originante do Pai, sejapossível se manifestar emmúltiplas e diferentes ex-

pressões e concretizaçõesda encarnação do Filho.

Religião: uma escolhapessoal

A religião está deixandode ser transmitida espon-taneamente pela família,ou ensinada na escola ousocializada na vida pública.O secularismo leva o fiel auma espiritualidade de es-colha pessoal,  free lance.Também provoca o noma-dismo do catolicismo tra-dicional a um cristianismoevangélico ou à indiferençareligiosa. Neste clima, pro-liferam sincretismos, dadaa superficialidade e a mer-

cantilização da fé. Alémdisso, a espiritualidadetorna-se light , pouco com-prometida com a transfor-mação da realidade.

RaízesTais atitudes religiosas

“resistem às hierarquias etecem uma malha de rede,desenvolvendo crenças erituais num tecido mais ho-rizontal e descentralizado, virtual e real“ (Parker 2005).“Assistimos a um desloca-mento da instituição para oindivíduo. Estamos diantede uma ocasião para per-sonalizar a fé” (Mardones).Isto tem aspectos positivos,pois podem levar o crente arecuperar o fundamento daexperiência da fé, que ante-

cede qualquer ensino dou-trinal ou moral, e sua con-sequente prática ritual. Umsinal que nos leva a afirmara centralidade de uma au-têntica experiência de fé eque redescobre outras desuas dimensões.

Peter Berger dizia quea fórmula “modernidadeigual à secularização” não

se sustenta. O que vale é aequação: “a modernidade

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