o movimento sindical brasileiro de 1958 a 1964

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1508 O MOVIMENTO SINDICAL BRASILEIRO DE 1958 A 1964: a luta dos trabalhadores nos tribunais trabalhistas e a conquista do direito de greve Alisson Droppa Doutorando em História Social do Trabalho pela Universidade Estadual de Campinas/UNICAMP Bolsista de Doutorado da Fundação de Amparo à Pesquisa de São Paulo/FAPESP Email: alissondroppa@yahoo. com.br Resumo: O artigo apresenta alguns resultados do projeto de doutorado em História Social do Trabalho “A conquista dos Direitos Trabalhistas”, sobre o funcionamento do poder normativo da Justiça do Trabalho no período de 1958 a 1964. A pesquisa utiliza como principal fonte de pesquisa dissídios coletivos ajuizados por sindicatos dos empregados e empregadores de Porto Alegre. O foco principal é discutir como a o Decreto-lei nº 9070 de 1946 transformou-se de um dispositivo anti- grevistas para um elemento facilitador dos movimentos paredistas. Primeiro gostaria de agradecer a oportunidade de apresentar no presente simpósio temático. O artigo “O movimento sindical brasileiro de 1958 a 1964: a luta dos trabalhadores nos tribunais trabalhistas e a conquista do direito de greve” que traz algumas análises preliminares de minha tese de doutorado intitulada: “A Conquista de Direitos Trabalhistas: Justiça do Trabalho no Rio Grande do Sul de 1958 a 1964”. O projeto tem como objeto entender o funcionamento do poder normativo da Justiça do Trabalho em um período de grande mobilidade politica na recente história brasileira. Parto da premissa de que as leis, o direito e a justiça trabalhistas são uma arena de disputas entre os diversos atores sociais que se apropriam e recriam os recursos institucionais disponíveis. 1 No centro das decisões, encontra-se o poder normativo da Justiça do Trabalho, questão imbricada na própria criação da instituição, tendo sido motivo de muitas divergências no momento em que Oliveira Viana 2 , objetivando regulamentar artigo da 1 SILVA, Fernando Teixeira da; CHALHOUB, Sidney. Sujeitos no imaginário acadêmico: escravos e trabalhadores na historiografia brasileira desde os anos 1980. Cadernos Arquivo Ed- gard Leuenroth (UNICAMP), v. 14, p. 13-57, 2009. 2 Importante jurista e pensador que atuou em diversos ramos do Direito, tendo formulado o

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O MOVIMENTO SINDICAL BRASILEIRO DE 1958 A 1964: a luta dos trabalhadores nos tribunais trabalhistas e a conquista do direito de greve

Alisson Droppa Doutorando em História Social do Trabalho pela

Universidade Estadual de Campinas/UNICAMP Bolsista de Doutorado da Fundação de Amparo à

Pesquisa de São Paulo/FAPESP Email: alissondroppa@yahoo.

com.br

Resumo: O artigo apresenta alguns resultados do projeto de doutorado em História Social do Trabalho “A conquista dos Direitos Trabalhistas”, sobre o funcionamento do poder normativo da Justiça do Trabalho no período de 1958 a 1964. A pesquisa utiliza como principal fonte de pesquisa dissídios coletivos ajuizados por sindicatos dos empregados e empregadores de Porto Alegre. O foco principal é discutir como a o Decreto-lei nº 9070 de 1946 transformou-se de um dispositivo anti- grevistas para um elemento facilitador dos movimentos paredistas.

Primeiro gostaria de agradecer a oportunidade de apresentar no presente simpósio temático. O artigo “O movimento sindical brasileiro de 1958 a 1964: a luta dos trabalhadores nos tribunais trabalhistas e a conquista do direito de greve” que traz algumas análises preliminares de minha tese de doutorado intitulada: “A Conquista de Direitos Trabalhistas: Justiça do Trabalho no Rio Grande do Sul de 1958 a 1964”. O projeto tem como objeto entender o funcionamento do poder normativo da Justiça do Trabalho em um período de grande mobilidade politica na recente história brasileira. Parto da premissa de que as leis, o direito e a justiça trabalhistas são uma arena de disputas entre os diversos atores sociais que se apropriam e recriam os recursos institucionais disponíveis.1

No centro das decisões, encontra-se o poder normativo da Justiça do Trabalho, questão imbricada na própria criação da instituição, tendo sido motivo de muitas divergências no momento em que Oliveira Viana2, objetivando regulamentar artigo da

1 SILVA, Fernando Teixeira da; CHALHOUB, Sidney. Sujeitos no imaginário acadêmico: escravos e trabalhadores na historiografia brasileira desde os anos 1980. Cadernos Arquivo Ed-gard Leuenroth (UNICAMP), v. 14, p. 13-57, 2009.2 Importante jurista e pensador que atuou em diversos ramos do Direito, tendo formulado o

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Constituição de 1934 que previa a criação da Justiça do Trabalho, elaborou um controvertido projeto encaminhado ao Congresso. O foco do debate teve como principais interlocutores Waldemar Ferreira3 e Oliveira Viana. A principal polêmica dizia respeito à possibilidade de a Justiça do Trabalho intervir no conflito coletivo do trabalho, quando malograda a negociação direta, podendo criar normas e condições de trabalho para as categorias. Em outros termos, com o poder normativo, as cortes trabalhistas podiam exercer funções legislativas.4 Este poder compõe a “lógica fundacional”5 da Justiça do Trabalho de decidir e modificar normas em matéria de dissídios coletivos.As discussões em relação a esse poder voltaram a ganhar força no processo de redemocratização, no contexto da emergência do chamado “novo sindicalismo”.6 Os sindicatos mais combativos, sobretudo do ABC paulista, reivindicavam a reformulação da legislação sindical e trabalhista com novos regramentos, visando o suposto fortalecimento da organização dos trabalhadores e da democratização das relações entre capital e trabalho. Parcela significativa do movimento sindical via no poder normativo, como ainda atribui, um obstáculo a esse fortalecimento. A Constituição Federal de 1988 manteve-o, incorporando o princípio da regra da condição mais favorável7 e, mesmo priorizando a via autônoma da composição dos conflitos coletivos, continuou assegurando às categorias a faculdade de ajuizar o dissídio por meio de seus sindicados, cabendo à Justiça do Trabalho estabelecer normas e condições de trabalho, respeitadas as disposições convencionais e o patamar mínimo legal de proteção.8 Em relação à aplicação do Poder normativo,

primeiro projeto de criação da Justiça do Trabalho encaminhado ao Congresso em 1934. 3 Waldemar Ferreira foi professor catedrático do curso de direito comercial da Universidade de São Paulo e atuou também como deputado federal. Esteve envolvido diretamente nas polêmicas em torno da criação da Justiça do Trabalho. Sobre o tema, consultar: FERREIRA, Waldemar. Princípios de Legislação Social e Direito Judiciário Trabalho. V.1, São Paulo: Editora Limi-tada, 1938.4 Segundo Oliveira Viana, o deputado Waldemar Ferreira entendia que a prerrogativa do poder normativo invadia as atividades privativas da União e acabava por subtrair competências do Legislativo. VIANA, Oliveira. Problemas de Direito Corporativo, Rio de Janeiro: José Olympio,1938. Também pode ser consultado: HORN, Carlos Henrique. Negociações coletivas e o poder normativo da Justiça do Trabalho. Dados - Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v. 49, n. 2, p. 417-445, 2006.5 O conceito de lógica fundacional é desenvolvido por Elina Pessanha a partir da pesquisa Justiça e Cidadania desenvolvida com financiamento do CNPQ/FAPERJ. PESSANHA, Elina. Labour Law and Justice in Brazil: Antiliberal Tradition and Neoliberal Recent Changes. Mimeo, 2002. 6 Sobre o novo sindicalismo consultar: SADER, Eder. Quando novos personagens entraram em cena. Experiências e lutas dos trabalhadores da Grande São Paulo (1970-1980). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.7 A Constituição Federal de 1988 determina que a lei não pode prejudicar o direito adquirido, ou seja, o trabalhador que já conquistou um direito não pode ter seu direito atingido, mesmo que sobrevenha uma norma nova que não lhe é favorável.8 Na Reforma do Judiciário de 2004, uma Emenda constitucional limitou esse poder, chegando-se a cogi-tar sobre o seu fim. Em recente livro sobre a trajetória dos juízes da Justiça do Trabalho, Ângela de Castro

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em circunstâncias envolvendo o Direito de Greve, o debate nos Tribunais demonstra os entendimentos judiciais foram e continuam apontando diferenças na interpretação deste Direito.

No meu projeto de doutorado busco entender como funciona essa função legisladora da Justiça do Trabalho, deparando-me com outras inquietações em perspectiva histórica. Perguntava-me como funcionou o poder normativo no período de 1958 a 1964, em que os trabalhadores mostraram a sua força de mobilização ampliando a polarização política. Como se organizaram as relações entre os trabalhadores, empregadores, seus sindicatos e a Justiça do Trabalho? Na medida em que esta tinha a possibilidade real de elaboração de normas legais para julgar os conflitos entre patrões e empregados, questão fundamental naquele contexto, a historiografia ainda avançou muito pouco na explicação dos desdobramentos e funcionamento desse poder.9

O Direito de Greve: diferenças na interpretação da greve O movimento grevista mostra-se presente nas ações dos trabalhadores há muito tempo, mas no âmbito da legislação brasileira como expressão de Direito é algo muito recente. Neste aspecto faço uma descrição dos dispositivos legais envolvendo a greve no ordenamento jurídico brasileiro: com o código penal de 1890, promulgado em 11 de outubro do mesmo ano, surge pela primeira vez no ordenamento jurídico brasileiro uma referencia a greve. O código trazia Capitulo VI – Dos Crimes Contra a Liberdade de Trabalho e classificava a greve como crime. Essa classificação teve um curto espaço de vida no código penal, sendo alterado em 12 de dezembro de 1890, cerca de 60 dias após a promulgação inicial. O Presidente Teodoro da Fonseca editou o Decreto nº1.162, que manteve o ato de organizar a greve como crime, mas omitiu-se em relação ao ato de praticar a greve. O simples fato de permitir dupla interpretação favoreceu aos setores conservadores e a repressão ao movimento dos trabalhadores durante a primeira República. Na constituição de 1932 a Greve deixou de ser classificada como crime e foi transformada

Gomes e Elina Gonçalves da Fonte Pessanha entrevistaram um conjunto de nove magistrados. Ao serem questionados sobre o poder normativo, demonstraram que a matéria ainda não foi pacificada, havendo divergências sobre a sua manutenção ou não. Por exemplo, ao questionar o juiz Mauricio José Godinho Delgado se era contra o Poder Normativo, ele respondeu que defendia a sua extinção, por considerar um excesso intervencionista do Estado. Entrevista com Mauricio José Godinho Delgado. In: Trajetórias de Juízes. Alegre Poa: Porto Alegre, 2010. Por outro lado, a vice-presidente do TRT 4, Maria Helena Mal-mann, afirmou durante o evento “Gestão Documental e Pesquisa Histórica nos acervos da Judiciário”, ocorrido nos dias 25 e 26 de novembro de 2010, que há um aumento considerável de dissídios coletivos julgados no Rio Grande do Sul. 9 Por exemplo, no acórdão 503/48 julgado pelo TRT4, o Sindicato dos Trabalhadores Meta-lúrgicos, Mecânicos e Material Elétrico de Porto Alegre questiona a competência da Justiça do Trabalho para apreciar dissídios coletivos e conceder aumento de salários. No referido caso, o relatório de acórdão afirma e destaca essa competência, consolidando o poder normativo da instituição. Disponível no acervo do Memorial/RS.

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em delito, para então na Constituição de 1937 ser considerada um movimento anti-social que “fazia mal do trabalho”. Esse tipo de enquadramento durou até a Constituição de 1946. Alteração que deve ser creditada a força que o movimento grevista demonstrou ao longo de 1945. A partir de então a greve passa a ser um Direito, incontestável, mas que deveria ser regulamentado por uma lei posterior. Mas como a legislação, o Direito, a Justiça do Trabalho não são monolíticas e a aplicação do Direito de Greve não aconteceria de forma instantânea e sem disputas, muito pelo contrário. As forças conservadoras “prevendo” que a Greve seria incorporada como um Direito pela nova Constituição articularam-se e em 15 de Março de 1946 aprovaram o Decreto-lei nº 9.070, impondo diversos limites ao novo Direito que seria reconhecido em setembro do mesmo ano. Nestas circunstâncias a Greve não poderia ser aplicada nas atividades consideradas essenciais e seu exercício dependia de uma grande burocracia.O movimento sindical desde o início mostrou-se contrário ao Decreto-lei nº 9.070 e após a promulgação da Constituição de 1946, o Supremo Tribunal Federal-STF recebeu diversos pedidos de sua inconstitucionalidade.

DECRETO-LEI Nº 9.070, DE 15 DE MARÇO DE 1946.Dispõe sôbre a suspensão ou abandono coletivo do trabalho e dá outras providências O Presidente da República, usando da atribuição que lhe confere o artigo 180 da Constituição (...) DECRETA: Art. 1º Os dissídios coletivos, oriundos das relações entre empregadores e empregados, serão obrigatoriamente submetidos à conciliação prévia, ou à decisão da Justiça do Trabalho. Art. 2º A cessação coletiva do trabalho por parte de empregados sòmente será permitida, observadas as normas prescritas nesta lei. § 1º Cessação coletiva do trabalho é a deliberada pela totalidade ou pela maioria dos trabalhadores de uma ou de várias empresas, acarretando a paralização de tôdas ou de algumas das respectivas atividades. § 2º As manifestações ou atos de solidariedade ou protesto, que importem em cessação coletiva do trabalho ou diminuição sensível e injustificada de seu ritmo, ficam sujeitos ao disposto nesta lei. Art. 3º São consideradas fundamentais, para os fins desta lei, as atividades profissionais desempenhadas nos serviços de água, energia, fontes de energia, iluminação, gás, esgotos, comunicações, transportes, carga e descarga; nos estabelecimentos de venda de utilidade ou gêneros essenciais à vida das populações; nos matadouros; na lavoura e na pecuária; nos colégios, escolas, bancos, farmácias, drogarias, hospitais e serviços funerários; nas

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indústrias básicas ou essenciais à defesa nacional. (...) Art. 4º Os trabalhadores e empregadores interessados, ou suas associações representativas, deverão notificar o Departamento Nacional do Trabalho ou as Delegacias Regionais, da ocorrência de dissídio capaz de determinar cessação coletiva de trabalho, indicando os seus motivos e as finalidades pleiteadas. (...) Art. 5º A autoridade notificada providenciará, dentro de 48 horas, a conciliação, ouvindo os interessados e formulando as propostas que julgar cabíveis. Art. 6º A conciliação, se houver, será submetida à homologação do Tribunal do Trabalho e produzirá os efeitos da sentença coletiva. Art. 7º Não havendo conciliação dentro de 10 dias e pertencendo os dissidentes ao grupo de atividades fundamentais, será o processo remetido nas 24 horas seguintes ao Tribunal competente, que deverá decidir dentro de 20 dias úteis, contados da data da entrada do processo na sua secretaria. Art. 8º Se os incidentes da execução forem protelados, por fato estranho à vontade dos exequentes, o juiz ou presidente do Tribunal poderão autorizar pagamentos parciais. Parágrafo único. Se a garantia oferecida no curso da execução não consistir em dinheiro, o juiz, ou presidente do Tribunal poderá mandar vendê-la em leilão, por leiloeiro público. Art. 12. Os recursos cabíveis dos julgamentos proferidos por Tribunais do Trabalho, em dissídio coletivo, não terão efeito suspensivo e deverão ser julgados dentro de 30 dias de sua apresentação ao Tribunal ad-quem. O provimento do recurso não importará em restituição de salários já pagos.(...)

O Decreto-Lei nº9070/46 seguiu sendo a única legislação específica sobre o Direito de Greve até 1953, ano que Getúlio Vargas promulgou a Lei nº1802/53, com o objetivo de definir os crimes contra o Estado e a Ordem Política Social, mas não desativou os efeitos das leis vigentes anteriormente. Recorta os principais pontos:

Art. 32. O sindicato, associação de grau superior ou associação profissional cujos dirigentes com apoio, aquiescência ou sem objeção da maioria dos seus associados, incorrerem em dispositivo desta lei, ou, por qualquer forma, exercerem ou deixarem exercer, dentro do âmbito sindical, atividade subversiva, terão cassadas suas cartas de reconhecimento ou cancelado o respectivo registro, observando sempre o disposto no artigo 141, § 12, da Constituição.(...)

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2º Não terá aplicação a medida prevista neste artigo se os dirigentes e associados culpados de práticas subversivas forem destituídos dos cargos ou eliminados do sindicato ou associação na forma dos respectivos estatutos.(...).10

A Lei nº1802 foi instituída com a clara intenção de interferir na organização dos trabalhadores, pois com o passar dos anos havia ficado mais difícil intervir nos sindicatos que estivessem em desacordo com o governo. E desta forma buscou-se a elaboração de um instrumento que facilitasse “a visita” governamental nos sindicatos. A lei instituía o Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio como o fórum de instalação do processo ex oficio, mas cabia a Justiça do Trabalho e ao STF, ou seja, ao poder Judiciário o enquadramento ou não na referida lei.

Os primeiros recursos encaminhados ao STF tratavam basicamente da inconstitucionalidade do Decreto-Lei nº9070. A tese principal era que a constituição de 1946 havia acolhido o Direito de Greve e não trazia nenhuma consideração em relação a restrição desse Direito e por esse motivo deveria ser considerado inconstitucional, ilegal, mas não foi esse o entendimento dos ministros do STF. No recurso extraordinário nº48207 relatado pelo Ministro Luiz Gallotti11, o Tribunal confirmou a legalidade do decreto:

A Constituição de 18 de setembro de 1946 reconheceu, é certo, o direito de greve, acrescentando, porém, que o seu exercício seria regulado por lei (art.158)É claro, assim, que, como decidiu muitas vezes o Supremo Tribunal, ela não revogou as leis anteriores que reprimem os abusos daquele direito e assim lhe regula o exercício. Revogadas estariam se a Constituição assegurasse de modo absoluto o direito de greve, sem admitir restrições ao seu exercício. Mas não é o que ocorre. Nem poderia ocorrer numa Constituição que, mesmo quando assegura direitos essenciais ao regime vigente, tem a cautela de condicionar o seu uso ao bem estar social (veja-se o art. 147).A Constituição deu competência à União para legislar sôbre as matérias que indica (art. 5º nºXV). Mas jamais pretendeu que não continuasse as leis anteriores promulgadas sobre tais matérias, desde que compatíveis com a Carta Magna.Claro que a lei nova, regulando o direito de greve, deve vir quanto antes, não só para que devidamente se proteja esse direito, mas para que igualmente se resguardem os interesses da coletividade brasileira, a fim de que não perdura o regime de greves sucessivas de todos os tipos,

10 http://www2.camara.gov.br/legin/fed/lei/1950-1959/lei-1802-5-janeiro-1953-367324-publi-cacaooriginal-1-pl.html acesso 09 de novembro de 2011 as 16:34.11 Nomeado Ministro do Supremo Tribunal Federal, por decreto de 12 de setembro de 1949, do Presidente Eurico Gaspar Dutra, após aprovação unânime do Senado Federal, para a vaga ocorrida com a aposentadoria do Ministro José de Castro Nunes, tomou posse no cargo em 22 do mesmo mês. Mais informações: www.stf.jus.br

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justas e injustas, em que temos vivido. A mesma Constituição que reconhece o direito de greve, conforme regulado em lei, institui um Justiça do Trabalho, em cujos órgãos garante a paridade de representação entre empregados e empregados (art. 122 SS 5º) e declara competir a essa justiça conciliar e julgar os dissídios coletivos e individuais e coletivos (art. 123)E os preceito constitucionais devem ser entendidos harmonicamente, de modo que um não destrua os outros.No caso em julgamento, não parece que o fato de exigir a lei uma prévia tentativa de conciliação ou entrada de dissídio coletivo no Tribunal Regional, antes da cessão do trabalho, importa proibir a greve ou negar o direito a ela, o que a lei não poderia fazer, sem violar a Constituição; é apenas regular o exercício desse direito, com respeito aos interesses do bem comum.12

A matéria da constitucionalidade do Decreto-Lei nº9070 apesar de polêmica do ponto de vista da sociedade, não gerou grande “rachas” nos debates do STF, entendia-se que a referida regulamentação era compatível com a Constituição de 1946 pelo fato da mesma referendar a necessidade de uma legislação ordinária para regulamentar a greve e pelo fato do Decreto-Lei não bloquear por completo o direito de greve e sim regulamentá-lo. Mas na prática, em especial por parte dos trabalhadores, havia sérias dificuldades em cumprir os critérios necessários para que o movimento grevista fosse considerado legal.

Ainda no âmbito do STF a questão da legalidade ou ilegalidade do movimento grevista certamente foi um dos pontos mais debatidos. A excessiva burocracia demandava uma estrutura que poucos sindicatos possuíam, aliado ao fato de poucos advogados se dedicavam exclusivamente a questões de Direito Coletivo, o que poderia causar, e possivelmente causou a impressão de que a legislação era apenas repressiva ao movimento dos trabalhadores e não poderia ser vencida, seria o “fim da várzea” como diriam os gaúchos.

Como já é de conhecimento da historiografia no período de 1945 a 1964, houveram a eclosão de diversos movimentos grevistas em todo o país, com as reivindicações das mais variadas: aumentos de salário, efetivação de direitos ou elaboração de novos, até greves de cunho solidário e político. Muitas greves foram julgadas justas e legais, estabelecendo o recurso de “via dupla da lei”, já analisado por Varussa para os casos julgados na Junta de Conciliação e Julgamento de Jundiaí no período de 1940 a 1960 e recentemente por Correa para o caso dos Têxteis de São Paulo o qual recorto parcialmente:

Um segundo aspecto refere-se ao uso da lei como “via de mão dupla”

12 Outros recursos vão no mesmo sentido. A Constituição em seu art.158 assegura o direito à greve, mas, remete a lei ordinária sua regulamentação. E a lei 9.070 de 1946, embora anterior à Consti-tuição contem regulamentação que com ela não é incompatível RE 34079É o de validade do Decreto n.9070, que temos aplicado fortemente. RE38721

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pelos trabalhadores. Ou seja, a lei representava um caminho para que pudessem atingir as suas reivindicações. Não obstante, o decreto de greve 9070, tão criticado pelos líderes sindicalistas e pelos advogados dos trabalhadores, passou também a ser utilizado pela classe como instrumento de cobrança de maior igualdade na interpretação da lei.13

As discussões que eram levadas ao STF, vistas a luz do Decreto-Lei nº9070 tinham o objetivo exatamente de verificar a legalidade ou não das greves. Muitas foram decretadas ilegais por não seguirem os tramites burocrático: falta de comunicação a DRT ou a Justiça do Trabalho. Mas tantas outras foram julgadas justas e legais. Por considerar que a via repressiva é a mais presente nos estudos acadêmicos, focalizo apenas as consideras legais e justas do ponto de vista jurídico.

Este Tribunal, conforme acórdão proferido no processo TST – 4388/54, decidiu pela legalidade do movimento grevista levado a efeito pelos marceneiros, porque entendeu cumprir as formalidades exigidas pelo Decreto-Lei nº9070, de 1946.14

Quanto à greve foi pela Justiça considerada justa “porque a empresa descumpria o acordo a que dera cumprimento apenas por dois ou três meses”.Só seria facultado ao Poder Judiciário deixar de aplicar esse dispositivo, se contrário á Constituição. Mas ofencivo da Constituição ele não é. Jamais se pretendeu violem o principio constitucional da igualdade perante a lei as disposições legais que, em certos processos, negam efeito suspensivo ao recurso, ainda quando orginario. 15

Marcelo Badaró de Mattos16 ao examinar as greves no Rio de Janeiro percebeu a existência de ciclos grevistas, em um primeiro momento entre o final do primeiro governo de Getúlio Vargas e Militar e 1946 seguida de dois anos de quase completa ausência de movimentos paredistas, o que se altera a um novo patamar na segunda metade da década de 1950 até os picos pré-golpe de 1964. Aqui a minha pesquisa aponta um novo dado que contribuiu para ampliar a complexidade da análise: o período de ampliação do movimento grevista coincide com o período do julgamento da legalidade do Decreto-Lei nº9070 pelo STF. Teria sido coincidência? No momento que estava fichando os processos do Tribunal Superior do Trabalho – TST e do STF e cheguei a essa conclusão, fiquei espantado, pois como poderia uma lei anti-greve que acabará de ser considerada legal, naquele momento, levar exatamente a ampliação do número de greves? Concomitante ao questionamento do Decreto Lei nº9070, os trabalhistas encaminharam um projeto de lei visando a regulamentação do dispositivo

13 Correa p.131...falar no que se baseia...lei negra de Thompson...14 RE 3575615 5185416 In: Revista Brasileira de História. Greves, sindicatos e repressão policial no Rio de Janeiro (1954-1964).

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constitucional que criava o Direito de Greve, o projeto levou o número de 1471. A tramitação do projeto 1471 iniciou em vinte e três de fevereiro de 1949, e o seu texto deixava claro, que a greve era um Direito e como tal deveria ser respeitado. Mesmo que mantendo tramites burocráticos do Decreto-Lei 9070, excluía definitivamente o conceito de atividades essenciais, ou seja, a greve poderia ser aplicada em todas as categorias de forma legal. Ocorre que o projeto, sofreu resistências em especial dos setores ligados ao empresariado que buscavam incluir emendas com o foco principal de limitar o Direito e a lei somente seria aprovada em 05 de junho de 1964, ou seja, após o golpe e com conteúdo muito diferente daquele encaminhado incialmente. É interessante acompanhar o debate parlamentar em torno da aprovação desta lei, o que será executado quando da apresentação da tese. É necessário considerar que o judiciário comum e a Justiça do Trabalho e mesmo o campo do Direito não compreendiam o significava a Greve em seu aspecto legal. A greve que até então era considerada algo ilegal, como uma forma de pressão não legitima dos trabalhadores, passou ter que ser analisada sob a “roupagem legal”. 17

O Decreto-Lei 9070 possibilitava uma séria de interpretações peculiares, primeiro agilizava o tramite ao imputar tempo máximo para que os processos fossem julgados pelos Tribunais regionais, ou seja, os trabalhadores passaram a pautar as reuniões dos próprios Tribunais e, além disso, não permitia efeitos suspensivos das decisões. Em outras palavras, naqueles processos ajuizados no tramite normal, fora do Decreto-Lei, os patrões tinham a possibilidade de postergar a execução de suas demandas por meio de recursos que adiavam a implementação do que fora decidido até o julgamento final pelo TST ou STF, com o ajuizamento via 9070 não havia essa possibilidade e o processo tinha tempo máximo para ser apreciado.Aos patrões permanecia o Direito de recorrer, mas a sentença deveria ser cumprida imediatamente e caso houvesse alguma reforma das instancias superiores em relação a decisão, os trabalhadores não precisavam devolver o que foi pago a mais. Em entrevista com o advogado Victor Nunes, que defendeu diversos sindicatos com base no Rio Grande do Sul, desde 1958 até os dias atuais, percebi que a possibilidade de utilizar o Decreto-Lei nº9070 a favor dos trabalhadores era uma novidade que começa a ser utilizada amplamente no final dos anos 1950:

(...) eles (os patrões) procuravam assustar os trabalhadores, mas daí a gente dizia, mas tá dentro da lei é um rito processual, por estar dentro da lei ajudava a convencer a categoria a declarar greve, porque eles não eram convidados para um ato de subversão, eles eram convidados

17 É neste período que diversos doutrinadores publicam livros e artigos explicando o que seria uma Greve.

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a vincular suas solicitações, seus sonhos através de um canal jurídico, legal, onde havia uma bifurcação, dizíamos então tá se vocês não quiserem apelar para greve vamos votar um rito de dissídio coletivo normal, mas os inconvenientes são tais e tais e vai demorar dois anos para voltar e vocês tem necessidade agora.18

A entrevista com Nunes permite compreender outro parâmetro, veja bem, as fontes disponíveis em relação aos movimentos operários na maioria das vezes diz respeito aos dirigentes sindicais, lideres, articulados em torno de uma luta pré-estabelecida. Quando deslocamos nosso olhar para os trabalhadores comuns, a realidade é outra, participar de algo ilegal pode ter um custo muito alto e muitas vezes os trabalhadores não estão dispostos a pagar por esse custo. Mas se tratando de um movimento legal que visava reparar uma injustiça, poderia acarretar a participação dessas pessoas que não queriam lutar pela “revolução”, queriam melhores condições de vida. Neste aspecto, o Decreto-Lei 9070 aparece com outra conotação, passa a ser um instrumento que possibilita os trabalhadores participarem do movimento, sem medo de ter que arcar com os custos pessoais e políticos de participar de algo ilegal. Ao estudar os dissídios coletivos ajuizados pelos sindicatos localizados em Porto Alegre no período de 1958 a 1964 pude verificar que a lógica da utilização do Decreto-Lei nº9070 passava a ser usada com outra finalidade ao que somente de reprimir as greves. As primeiras utilizações do novo entendimento tramitaram próximo ao ano de 1960, mesmo período que o STF já levantava o debate em torno da mesma discussão, possivelmente devido as diferença nas decisões prolatadas nos Tribunais de todo o Brasil. Como mostra o acórdão relatado pelo ministro Luiz Gallotti em um processo movido pela Sociedade Nacional do Calçado S.A contra um grupo de trabalhadores paulistas:

Decreto 9070 foi promulgado com o objetivo de evitar greves, permitindo aos empregadores, que obtiverem aumento de salário por decisão no Tribunal Regional, pleitear o respectivo cumprimento antes de ser julgado pelo Tribunal Superior o recurso dos empregadores. Fatos recentes mostram que os empregados já nem querem esperar o pronunciamento dos Tribunais Regionais e sim impor, por meio da greve, a aceitação de suas reivindicações. Assim, atribuir, contra o dispositivo na lei, o efeito suspensivo ao recurso das decisões dos Tribunais Regionais, seria dar motivo, já então legítimo, que os empregado ainda

18 Entrevista com o advogado Victor Nunes Leal em 21 de outubro de 2011, concedida ao autor. Disponível no Memorial da Justiça do Trabalho no Rio Grande do Sul

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menos quisessem aguardar a decisão da Justiça do Trabalho e ainda mais se inclinarem pelo recurso á greve, esta, sem dúvida prejudicial aos interesses da coletividade, nos quais, sobretudo, há de inspirar-se á lei. (STF – Tribunal Pleno 9-9-1953)19

As discussões se prolongaram durante os anos de 1960, em alguns processos os trabalhadores ganhavam em outros prevalecia uma forma conservadora de enquadrar os movimentos grevistas como algo subversivo, fora da lei. Como os patrões foram percebendo que a situação estava mudando e que havia necessidade de buscar novas estratégias para fazer frente ao avanço do efetivo cumprimento dos Direitos dos trabalhadores, o debate começava a mudar e passava para outras esferas. Apesar de não ter encontrado nenhum processo movido por patrões, ou recurso solicitando a ilegalidade do Decreto-Lei 9070, fica claro que a situação havia se alterado e a solução foi atacar em duas frentes: uma primeira buscando enquadrar todos os setores como de “atividades essenciais”, as quais segundo o Decreto não poderiam paralisar suas atividades e o outro fazer tramitar com mais rapidez um projeto de lei no Congresso Nacional que possibilitasse reverter o jogo novamente em favor dos patrões.Quando os trabalhadores passaram a usar a legislação a seu favor, ou seja, aprenderam a necessidade de seguir determinado rito para decretar a legalidade da greve, os empregadores tentaram buscar outro mecanismo, o da participação ilegal do trabalhador. Como isso? A greve era julgada legal pelos TRTs e pelo TST e o empregador recorrida, por meio de recurso extraordinário, pedindo a imediata demissão dos empregados envolvidos no movimento grevista. Os fundamentos jurídicos circulavam em torno da ocorrência de insubordinação e abandono do trabalho, o que era passível de punição pela CLT. A questão gerou muitas discussões no STF, algumas a favor e outras contrárias. Mas na pacificação na jurisprudência os ministros do STF decidiram que os trabalhadores que participassem de greves legais não poderiam ser demitidos com o argumento a insubordinação, devendo-se analisar o caso concreto. Ainda foi discutido a possiblidade de demitir aqueles trabalhadores que participassem de greves ilegais, mesmo que não soubesse da sua ilegalidade. O argumento conservador entendia que a participação em greves ilegais deveria ser tratada de forma uniforme, o trabalhador deveria ser suspenso ou demitido, conforme solicitação dos empregadores. Os ministros mais progressistas começaram a alterar esse entendimento: primeiro analisaram a participação direta, se determinado trabalhador participou ativamente da greve e se sabia que a mesma era ilegal. Posteriormente o grupo de ministros progressistas conseguiu ampliar o entendimento, afirmando que os trabalhadores que participassem de uma greve

19 Acórdão STF Nº 44321.

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ilegal e não fizessem parte da diretoria sindical não poderiam ser demitidos em virtude do movimento paredista, pois não poderiam saber dos tramites jurídicos aplicados naquele momento. O argumento era que os “trabalhadores normais” não precisavam entender dos tramites do Decreto-Lei nº9070 e seguiriam as diretrizes da direção sindical, não podendo ser demitidos desde que voltassem ao trabalho no momento que o judiciário decidisse pela ilegalidade. A discussão em torno da questão da participação em greves ilegais foi intensa ao ponto de haver muitas divisões entre os ministros do STF, situação que fica muito clara nos relatórios de acórdão do período. Verificar essa divisão permite entender que as sentenças do judiciário não caminham para um único norte pré-definido pela letra da lei, somente contrárias ou apenas a favor de um grupo ou classe, muito pelo contrário são dinâmicas e vivas, avançando diversos ângulos. A mesma corte que decidiu pela legalidade do Decreto-Lei nº9070, consagrado como a “lei anti-greve”, confirmou e pacificou que a simples participação no movimento grevista ilegal não imperava contravenção. São algumas questões que estão sendo amadurecidas e que compartilho com os colegas aqui presentes.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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VIANA, Oliveira. Problemas de Direito Corporativo, Rio de Janeiro: José Olympio,1938.

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FONTES: Entrevista com Mauricio José Godinho Delgado. In: Trajetórias de Juízes. Alegre Poa: Porto Alegre, 2010.

Entrevista com o advogado Victor Nunes Leal em 21 de outubro de 2011, concedida ao autor. Disponível no Memorial da Justiça do Trabalho no Rio Grande do Sul

Projeto de Lei 1471-49. Disponível em www.camara.gov.br.