o misterio do samba

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lnclui bibliografia e anexos ISBN 85-7110-321-6 1. Samba. 2. Muska popular - Brasil- Historia e critica. 3. Muska afro-brasileira. 1. Titulo. Anexo 1. Nacional-Popular 159 Anexo 2. ''Melting Pot" 175 Bibliografia 185 SUMARIO Pref.kio de Sergio Cabral 9 13 Agradecimentos 17 1. 0 Encontro 19 2. Elite Brasileira e Muska Popular 37 3. A Unidade da Patria 55 4. 0 63 S. Gilberto Freyre 75 6. 0 Samba Moderno 95 7. 0 Samba da Minha Terra 109 8. Lugar Nenhum 129 Conclusoes 145 CDD - 784.500981 CDU - 784.4(81) o 1020004712 1""11111111111111"11"" 1IIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIi (JOO 12 "060 .. ComfJI\il :, .. Oou<;:oo Perrou!a Datu ".:..... 11 '2S CIP-Brasil. Cataloga<;ao-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ. Copyright © 1995, Hermano Vianna Todos os direitos reservados. A reprodw;ao nao-autorizada desta pUblica<;ao, no todo ou em parte, constitui viola<;ao do copyright. (Lei 5.988) 1999 Direitos para esta edi<;ao contratados com: Jorge Zahar Editor Uda. rua Mexico 31 sobreloja 20031-144 Rio de Janeiro, RJ tel.: (021) 240-0226 / fax: (021) 262-5123 e-mail: [email protected] A primeira edi<;ao deste livro foi feita em co-edi<;ao com a Editora UFRJ Edi<;6es anteriores: 1995 (duas ed.) Composi<;ao eletronica: TopTextos Edi<;6es Gnificas Uda. Vianna, Hermano V67m a rnisterio do samba / Hermano Vianna. - Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.:Ed. UFRJ, 1995. 196p. 95-0959

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Page 1: o Misterio Do Samba

lnclui bibliografia e anexosISBN 85-7110-321-6

1. Samba. 2. Muska popular - Brasil- Historia ecritica. 3. Muska afro-brasileira. 1. Titulo.

Anexo 1. Nacional-Popular 159

Anexo 2. ''Melting Pot" 175

Bibliografia 185

SUMARIO

Pref.kio de Sergio Cabral 9

Apresenta~ao 13

Agradecimentos 17

1. 0 Encontro 19

2. Elite Brasileira e Muska Popular 37

3. A Unidade da Patria 55

4. 0 Mesti~o 63

S. Gilberto Freyre 75

6. 0 Samba Moderno 95

7. 0 Samba da Minha Terra 109

8. Lugar Nenhum 129

Conclusoes 145

CDD - 784.500981CDU - 784.4(81)

o

1020004712

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CIP-Brasil. Cataloga<;ao-na-fonteSindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.

Copyright © 1995, Hermano Vianna

Todos os direitos reservados.A reprodw;ao nao-autorizada desta pUblica<;ao, no todoou em parte, constitui viola<;ao do copyright. (Lei 5.988)

1999Direitos para esta edi<;ao contratados com:

Jorge Zahar Editor Uda.rua Mexico 31 sobreloja

20031-144 Rio de Janeiro, RJtel.: (021) 240-0226 / fax: (021) 262-5123

e-mail: [email protected]

A primeira edi<;ao deste livro foi feitaem co-edi<;ao com a Editora UFRJ

Edi<;6es anteriores: 1995 (duas ed.)

Composi<;ao eletronica: TopTextos Edi<;6es Gnificas Uda.

Vianna, HermanoV67m a rnisterio do samba / Hermano Vianna. - Rio

de Janeiro: Jorge Zahar Ed.:Ed. UFRJ, 1995.196p.

95-0959

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sileira. Nunca me senti tao "brasileiro", e esse sentimento foiimediatamente transformado em material de pesquisa para 0desenvolvimento da tese.

Manifesto aqui minha gratidao (e grande admira~ao)peloprofessor Howard S. Becker, meu orientador em solo norte­americano, que muito influenciou minha maneira de pensaro Brasil e a antropologia. Howie, como exige ser chamado porseus alunos, transformou-se tambem num de meus melhoresamigos.

Outro guia importante no periodo em que passei na North­western foi 0 professor Paul Berliner, que me introduziu nosmisterios da etnomusicologia e da mbira, inebriante instru­mento de percussao africano. Tambem sou muito grato aosprofessores, alunos e funciomirios do Departamento de So­ciologia da Northwestern University, ao qual fiquei vinculadoinstitucionalmente.

Varios amigos fizeram todo 0 possivel para que me sentisseem casa nos Estados Unidos: Julian, Erik, Matthew, Arto,Doug, Tunji, Norman, Tete, G16ria, Esther, Dianne. Com elestambem debati muitas das ideias que depois se tornaramfundamentais para esta obra. '

Diversos outros amigos acompanharam de perto (muitasvezes sem ter consciencia disso) 0 desenvolvimento destetrabalho no Brasil, contribuindo para seu resultado: Luiz,Barrao, Serginho, Sandra, Silvia, Fausto, Caetano, Carlinhos,Branco, Britto, Lau (varios deles atuaram ate como meusinformantes durante 0 periodo em que eu ainda pensava estarfazendo uma tese sobre 0 rock brasileiro). Muito devo a Re­gina, que leu algumas das primeiras vers6es do texto e fezsugest6es que s6 poderao ser incorporadas integralmenteatraves de outras pesquisas.

Finalmente, sou grato a meu orientador, professor GilbertoVelho, pelo estimulo intelectual infalivel, pela amizade inque­brantavel, pelos prazos inevitavelmente rigidos, pelos telefo­nemas de madrugada (dez horas da manha para mim e ma­drugada) e, principalmente, pelo pioneirismo com que insti­tuiu os estudos da complexidade na antropologia. Ficariamuito honrado em ver meu trabalho considerado urn peque­no desenvolvimento de algumas das ideias originais que in­tegram sua obra.

18 o MISTERIO DO SAMBA

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OENCONTRO

Em 1926, a coluna social "Noticiario elegante" publicada naRevista da Semana registrou a primeira visita que urn jovemantrop610go pernambucano, 0 "Doutor" - com? fez ques~aode frisar 0 colunista - Gilberto Freyre, fez ao RlO de Janeiro.Ele conheceu a capital do Brasil aos 26 anos, depois de ja terrealizado seus estudos universitarios nos Estados Unidos ede ter visitado varios paises europeus. Tal fato, a possibilidadede conhecer 0 "Primeiro Mundo" antes da "principal" cidadede seu pais, e apontado varias vezes, e quase com orgulho,em varios trechos de seu diario "de adolescencia e primeiramocidade", publicados no livro Tempo morto e outros tempos.

'. Sua forma~ao intelectual nao dependeria em nada do "SuI"brasileiro.

No mesmo diario ficou registrado urn acontecimento sin-gular da passagem de Gilberto Freyre pelo Rio de Janeiro:

Sergio e Prudente conhecem de fato literatura inglesamodema, alem da francesa. 6timos. Com eles sai denoite boemiamente. Tambem com Villa-Lobos e Gallet.Fomos juntos a uma noitada de viola-o, com algumacachac;a e com os brasileirissimos Pixinguinha, Patricio,Donga (Freyre, 1975: 189).

o estilo e telegrafico. Epreciso esclarecer, para dar uma ideiada importancia hist6rica dessa pouco lem~r~da "noit~da.d:violao", quem sao as pesscias que dela partlC1param. SerglO eo historiador Sergio Buarque de Holanda. Prudente e 0 pro-

19

Page 3: o Misterio Do Samba

Essa "noitada de violao" pode servir como alegoria, no sen­.lido carnavalesco da palavra, da "inven~aode uma tradi~ao",

aquela do Brasil Mesti~o, onde a musica samba ocupa lugarde destaque como elemento definidor da nacionalidade. Anaturalidade do epis6dio nao nos deve enganar: seu aspectode fato corriqueiro foi obviamente construido, como tambemacontece com acontecimentos narrados em mitos fundadoresde todas as tradi~6es. 0 fato de tal encontro nao se ter trans-

motor Prudente de Moraes Neto, tambem conhecido comojornalista sob 0 pseudonimo (na verdade, seus dois primeirosnomes) de Pedro Dantas. Villa-Lobos eo compositor classicoHeitor Villa-Lobos. Gallet e 0 compositor classico e pianistaLuciano Gallet. Patricio e 0 sambista Patricio Teixeira. Dongae Pixinguinha ficaram imortalizados com esses apelidos nopanteao da musica popular brasileira.

o encontro juntava, portanto, dois grupos bastante distin­tos da sociedade brasileira da epoca. De urn lado, repre­sentantes da intelectualidade e da arte erudita, todos prove­nientes de 'boas familias brancas" (incluindo, para Prudentede Moraes Neto, urn avo presidente da Republica). Do outrolado, musicos negros ou mesti~os, saidos das camadas maispobres do Rio de Janeiro. De urn lado, dois jovens escritores,Gilberto Freyre e Sergio Buarque de Rolanda, que iniciavamas pesquisas que resultaram nos livros Casa-grande e senzala,em 1933, e Raizes do Brasil, em 1936, fundamentais na defini~ao

do que seria ,brasileiro no Brasil. Afrente deles, Pixinguinha,Donga e Patricio Teixeira definiam a musica que seria, tam­bern a partir dos anos 30, considerada como 0 que no Bra~il

existe de mais brasileiro. Ouvindo os depoimentos dos par­ticipantes, parecia natural, evidente, que tal encontro ocorres­se, que ambos os lados se sentissem "em casa" (0 cordial Brasilmesti~o) quando reunidos. Como falha, Pedro Dantas se lem­bra de que, "no final da noite, Patricio lamentava apenas aausencia de algumas cabrochas para a brincadeira ser com­pleta" (Dantas, 1962: 197).

21o ENCONTRO

formado em mito, e tampouco ser lembrado como algo ex­traordinario pelos participantes e seus bi6grafos, s6 mostraque se acreditava realmente que uma reuniao co~o aque~a

era algo banal, coisa de todo dia, indigna de urn reglstro malScuidadoso.

Se observarmos os bastidores dessa noitada, veremoscomo muitos outros acontecimentos e personagens (incluindoai grupos sociais) colaboraram para sua bem-sucedida e har­moniosa aparencia, e mesmo para a naturalidade demonstra­da pelos que dela participaram.

Comecemos por urn rapido panorama da cidade onde sedeu 0 epis6dio, 0 Rio de Janeiro, metr6pole que ja contavacom rnais de urn milhao de habitantes desde 0 final dos anos10. Em 1926, 0 mandato presidencial do mineiro Artur Ber­nardes, quase todo sustentado pela decreta~ao de estado desHio, chegava ao fim. Seguindo a tradi~ao oligarquica quedeterminou os rumos politicos da Republica Velha, 0 governopassaria, e passou, no dia 15 de novembro, as maos de urn"paulista" (que na verdade era do estado do Rio, mas fizeracarreira em Sao Paulo), Washington Luis. Sinais que prenun­ciavam a Revolu~ao de 30, mostrando 0 esgotamento dasmanobras da oligarquia cafeeira, que detinha 0 monop6lio dopoder, eram rnais que visiveis: dos levantes tenentistas no Rioe em Sao Paulo a Coluna Prestes que percorria 0 interior dopais.

Nos anos Artur Bernardes, 0 Rio de Janeiro VlVla umaespecie de ressaca das reformas urbanisticas que tiveraminicio com a prefeitura de Pereira Passos (1902-1906) e conti­nuaram ate, como sua ultima obra de monta, a destrui~ao domorro do Castelo para a constru~ao dos pavilh6es da expo­si~ao comemorativa do centenario da independencia brasilei­ra. Nesse meio tempo, foi tomando forma - rnais que isso:foi tornando-se possivel - a divisao entre uma Zona SuI euma Zona Norte, 0 que ainda hoje e determinante na vidasociocultural da cidade.

Ate Pereira Passos, 0 Centro do Rio de Janeiro misturavade tudo: comercio; industrias de pequeno porte; reparti~6es

publicas; residencias milionarias ao lado dos mais pobrescorti~os.A partir principalmente da abertura da Avenida Cen­tral, hoje Rio Branco, com a destrui~ao dos corti~os, 0 Centro

o MISTERIO DO SAMBA20

Page 4: o Misterio Do Samba

1 Outros filmes anunciados nos jomais da epoca: Em busca do aura, deCharles Chaplin; A viuva alegre, de Eric von Stroheim; e De Santa Cruz, urnfilme da Comissao Rondon, mostrando "os legitimos brasileiros", indiosdos "sertoes de Matto Grosso" que sao "extranhos na propria terra, forada civiliza\ao, elles vivem em pleno seculo do radium na edade da pedralascada". A propaganda de De Santa Cruz determinava: ''E dever de todobrasileiro conhecer 0 Brasil."

foi adquirindo a caracteristica atual de lugar de trabalho. Ospobres foram expulsos para novos bairros da Zona Norte oupara favelas espalhadas por toda a cidade. Os ricas, ja can­tando com 0 tunel novo ligando Botafogo a Copacabana,come<;am a povoar as praias da Zona Sul.

A Avenida Central se transformou na vitrina da cidade.Por urn tempo, la tambem ficaram situados os principaiscinemas e cafes cariocas. 0 jornais comentam que 0 Rio "ci­viliza-se". A no<;ao de civiliza<;ao, nessa epoca, ja se confundiacom uma ideia de conquista da modernidade. 0 Rio declara­va-se moderno ao mesmo tempo em que 0 modernismo ar­tistico invadia nossas praias. Quando Gilberto Freyre chegaao Rio, em 1926, quatro anos depois da Semana de 22 de SaoPaulo, 0 primeiro "levante" dos artistas modernistas brasilei­ros, 0 cinema carioca Trianon anunciava a .estreia de mais urnfilme da Paramount, intitulado A epidemia do jazz!, com aseguinte advertencia: "Nao se assustem. Pode ser que 0 en­contrem desconchavado. E0 futurismo. Mas garantimos quegostarao, e que the acharao de sabor todo especial." 0 anun­cio, publicado nos jornais, tambem dizia orgulhoso que 0

filme, dedicado a Marinetti, seria acompanhado por urn pr6­logo "tambem futurista" protagonizado pela atriz Iracema deAlencar, "estrella da Companhia de Comedia do Theatro Ca­sino", que abordava "0 absurdo, 0 il6gico e 0 irreverente". Apre-cultura de massa carioca nao demorou muito para carna­valizar os ensinamentos da vanguarda paulista.

Gilberto Freyre olha para todas essas transforma<;6es coma estranha nostalgia de urn Rio que nao conheceu. Suas criti­cas mordazes se dirigiam aos novos edificios, aos novos bu­levares e a destrui<;ao dos morros. Lemos em seu diario:"Diante de edificios como 0 do Elixir tem-se a impressao depilherias de arquitetos a zombarem dos novos ricos que lhes

encomendam as novidades. Urn horror." E ainda: "A novaCamara dos Deputados chega a ser ridicula. Aquele Deodoroaromana e de fazer rir urn frade de pedra" (Freyre, 1975: 183).Gilberto Freyre condenava a Avenida Central, elogiando ruasestreitas como a do Ouvidor, cheias de sombra e portantomais adequadas ao calor tropical. E fazia a apologia do morroda Favela como urn exemplo de "restos do Rio de antes dePassos, pendurados por cima do Rio novo" (Freyre, 1979, vol.II: 335).

Mas voltemos avida boemia de Gilberto Freyre nessa suaprimeira visita a urn Rio ja irremediavelmente novo. Vale a

lh d . L d "'t d "pena entrar nosdeta es a orgamza<;ao e sua nOl a a com"os brasileirissimos Pixinguinha, Donga e Patricio", mostran­do como uma extensa rede de rela<;6es entre grupos sociais eindividuos diversos -e de diversos pontos do Rio de Janeiro_ foi atualizada para que tal encontro pudesse ser realizado.

Em outro trecho de seu diario, Gilberto Freyre elogia Ser­gio Buarque de Holanda e Prudente de Moraes Neto, naquelaepoca editores da revista Estetica, pelo conhecimento da lite­ratura moderna inglesa e francesa.

Foi 0 paulista Sergio Buarque de Holanda quem apresen­tou, "antes da semana de 22", a arte moderna para 0 cariocaPrudente de Moraes Neto. Os dais se conheceram quandoestudavam na Faculdade de Direito do Rio de Janeiro. Essasinforma<;6es estao no livro de mem6rias A alma do tempo, deAfonso Arinos de Melo Franco, colega do Colegio Pedro II (ainstitui~ao secundarista rnais famosa da epoca, tambem fre­qiientada por filhos da elite carioca) de Prudente de MoraesNeto, em quem identificava desde cedo urn "gosto pelo raro"(Franco, 1979, vol. I: 65). Foi esse interesse pelo raro, maisespecificamente pela modernidade literaria europeia, queaproximou a dupla da revista Estetica daquele jovem e ~indadesconhecido, mas ja extremamente presun~oso,antropologopernambucano.

Prudente de Moraes Neto revela, no texto "Ato de presen­~a" (publicado na coletanea Gilberto Freyre: sua ciencia, suafilosofia, sua arte), que a primeira vez que ouvira falar. deGilberto Freyre foi atraves de uma carta do futuro folclonstaLuis da Camara Cascudo (0 qual iria se formar na Faculdadede Direito de Recife em 1928) para a reda~ao da Estetica que

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Page 5: o Misterio Do Samba

trazia 0 recorte de urn artigo sobre James Joyce, assinado porFreyre e publicado em jornal do Recife (ver Dantas, 1972).

A versao de Sergio Buarque de Holanda sobre esses acon­tecimentos, publicada em seu artigo "Depois da 'Semana"',inclui outros detalhes, alem de a autoria da carta nao serlembrada com certeza:

Algum tempo depois [de a revista Estetica ter anunciadoa futura publica~ao de um artigo sobre James Joyce],chega-me as maos com uma carta do norte, assinada porJose Lins do Rego (ou seria Luis da Camara Cascudo?),recorte de certo artigo publicado em Pernambuco sobre

. Ulisses. 0 nome do articulista era tao desconhecido demim, ou qualquer de nos, como 0 do proprio missivista.Nao guardo 0 artigo, mas tenho a nitida lembran~a dapassagem onde hei referencia a criticos que, "a sombradas bananeiras cariocas", jii se metem a anunciar artigosobre 0 dificilimo Joyce (Holanda, 1979: 277).

As palavras exatas de Gilberto Freyre, em artigo publicadono Diario de Pernambuco em 11/12/24, eram as seguintes: "Atesob as bananeiras do Rio ja se vai pronunciando 0 ingles facildo nome Joyce. 0 ingles de suas obras e que sera dificil desoletrar" (Freyre, 1994: 75). As palavras ironicas acabaramseduzindo os modernistas-sob-bananeiras. Sergio Buarque deHolanda conta que gostou tanto do artigo que decidiu repu­blica-Io na Estetica, desistindo de escrever sua critica de Joyce.o que acabou nao acontecendo por causa do fechamento darevista. .

Teve inicio assim, por motivos "joyceanos", uma amizadeinterestadual, intermodernismos. Os cariocas ficaram sur­preendidos em encontrar texto tao up-to-date na imprensaprovinciana e comec;aram imediatamente a se correspondercom 0 autor. Portanto, a relaC;ao de amizade nao foi produtode urn interesse pela cultura popular brasileira, muito menos .por sua vertente "regionalista".

Mas tal interesse logo veio a tona. Ao chegar no Rio deJaneiro em 1926, Gilberto Freyre, "entre as suas curiosidades,trazia a de urn contato direto com a musica popular carioca,seus autores e executantes, especialmente negros" (Dantas,1962: 195). Nessa epoca, os musicos do Rio ja excursionavam

pelo pais com grande sucesso. Embora tivesse perdido asapresenta<;6~s que 0 grupo carioca Oito Batutas realizara emRecife em 1921, pois estava estudando em Nova York, Freyrepode ter ouvido falar da influencia marcante que essa visitaexerceu entre os musicos pernambucanos.

Para comec;ar, Sergio Buarque de Holanda e Prudente deMoraes Neto levaram Gilberto Freyre ao espetaculo Tudo pre­to, apresentado pela Companhia Negra de Revista, a primeiraexperiencia teatral brasileira realizada s6 com artistas negros(0 unico branco era 0 empresario), incluindo 0 diretor DeChocolat e 0 maestro Pixinguinha. Tudo preto causou furornaquela temporada teatral carioca. Segundo 0 jornal Correioda Manhii (17/8/26), 0 espetaculo era "a rnais alta novidadetheatral do momento", assistida com "magnifico prazer espi­ritual". 0 jornal A Noite (2/8/26) usou 0 adjetivo "estrondoso"e comentava 0 atropelo da "multidao" na noite de estreia.Nenhum dos jornalistas e criticos se espantou com a presenc;aexclusiva de negros em cena, todos aplaudiram a iniciativa,como se nada de realmente extraordinario estivesse aconte­cendo. Mas a publicidade da Companhia Negra de Revistanao podia conter 0 orgulho: "a vit6ria da rac;a negra no theatroalegre". Uma vit6ria tambem de miss Mons - "excentricafranceza", segundo 0 Correio da Manhii - que executava "urnauthentico batuque africano".

Gilberto Freyre apreciou 0 batuque de miss Mons, masficou entusiasmado mesmo foi com a musica de Pixinguinhae quis conhecer 0 maestro do nascente samba carioca em outrasituac;ao, mais intima, sem 0 black-tie do palco de Tudo preto.Seu desejo foi satisfeito por caminhos tortuosos. Prudente deMoraes Neto, por sorte, conhecia Donga, companheiro dePixinguinha nos Oito Batutas, que lhe fora apresentado pelopoeta vanguardista frances Blaise Cendrars, em sua passagempelo Rio de Janeiro em 1924. Urn estrangeiro teria chamadoa atenc;ao de intelectuais cariocas para a musica popular desua cidade.

Em 1926, tentando organizar a noitada para Gilberto Frey­re, Prudente de Moraes Neto encontrou Donga acompanhan­do a banda Carlito Jazz, que tocava na temporada da compa­nhia de teatro de revista francesa Bataclan, "0 alegre e brejeirobando de mme. Rasimi", que no Rio apresentava os espeta-

25o ENCONTROo MISTERIO DO SAMBA24

Page 6: o Misterio Do Samba

2 Esse samba foi citado por Oswald de Andrade em seu Manifesto antro­pOftigico, publicado em 1928: ''Nunca fomos catequizados. Vivemos atravesde urn direito sonfunbulo. Fizemos Cristo nascer na Bahia. Ou em Belemdo Para" (Andrade, 1972: 14).

27o ENCONTRO

Vma outra referencia ao inusitado encontro aparece no artigo,publicado por Gilberto Freyre no Ditirio de Pernambuco ern19/09/1926, sugestivamente intitulado "Acerca da valoriza­<;ao do preto". 0 torn da narrativa jornalistica e urn poucodiferente daquele adotado no diario. Gilberto Freyre, ern seusartigos de jornal daquela epoca, nao perdia a oportunidadede criar uma polemica e de advogar ideias que s6 depoisseriam desenvolvidas ern livros como Casa-grande e senzala.Seu estilo e quase sempre rnilitante, disposto a comprar brigascorn os leitores, caso necessario. Aqui estao suas palavras:

Ontern, com alguns amigos - Prudente, Sergio - passeiuma noite que quase ficou de-manha a ouvir Pixingui­nha, urn mulato, tocar em flauta coisas suas de carnaval,com Donga, outro mulato, no violao, e 0 preto bem pretoPatricio a cantar. Grande noite cariocamente brasileira.

Ouvindo os tres sentinlos 0 grande Brasil que crescemeio-tapado pelo Brasil oficial e posti"o e ridiculo demulatos a quererem ser helenos (...) e de caboclos inte­ressados (...) em parecer europeus e norte-americanos; etodos bestamente a ver as coisas do Brasil (...) atraves dopince-nez de bachareis afrancesados (Freyre, 1979: 330).

De novidade, corn rela<;ao a narrativa do diario, temos umaclassifica<;ao racial dos musicos, de mulatos a pretos bernpretos, e 0 reaproveitamento da teoria dos "dois Brasis" an­tagonicos, popularizada principalmente por Euclides daCunha. Existiria entao, para Gilberto Freyre, urn Brasil "oficiale posti<;o e ridiculo" que "tapa" 0 outro Brasil, este real, a ser"valorizado" junto corn 0 preto.

o artigo, a prop6sito, come<;a corn a afirma<;ao: "Ha no Riourn movimento de valoriza<;ao do negro." As duas causasapontadas para 0 surgimento desse movimento sao muitointeressantes. A primeira seria a "influencia de Blaise Cen­drars, que vern agora passar no Rio todos os carnavais".Comentarei essa influencia de Cendrars (e as representa<;6esde intelectuais brasileiros sobre essa influencia) no capitulosobre a rela<;ao de musicos populares e intelectuais moder-

o MISTERIO DO SAMBA

Meu amigo Assis Chateaubriand iniciou-me em variosbrasileirismos cariocas e Estacio Coimbra, noutros. Ateque, com Prudente de Moraes Neto, Sergio Buarque deHolanda e Jaime Ovalle, me iniciei noutra especie dessesbrasileirismos: no Rio por assim dizer afro-carioca e no­turno. 0 Rio de Pixinguinha e Patricio. 0 Rio ainda devioloes, de serenatas, de mulatas quase coloniais que Iiautenticidade brasileira acrescentavam, como as iaiasbrancas de Botafogo e as sinhas de Santa Teresa, umagra"a que eu nao vira nunca nem nas mulatas nem nasiaias brancas do Norte. Era a gra"a carioca. Era 0 Rio deVilla-Lobos (citado em Carvalho, 1988: 94).

o regionalista Gilberto Freyre estava sendo seduzido pelacultura popular carioca. Nao s6 ele: todo 0 Brasil, principal­mente a partir dos anos 30, passa (ou e obrigado) a reconhecerno Rio de Janeiro os emblemas de sua identidade de povo"sambista".

culos Cest Paris, Au revoir, e Revue de la revue. Marcaram 0

encontro para urn cafe na Rua do Catete, "quase fronteiro aFaculdade de Direito", que fechou suas portas especialmentepara a ocasiao. Prudente de Moraes Neto diz que os musicosPixinguinha, Donga, Sebastiao Cirino (autor de Cristo nasceuna Bahia, 0 samba de' maior sucesso daquela temporada)/Patricio Teixeira e Nelson (nao menciona 0 sobrenome, masdevia ser Nelson Alves, que tocou cavaquinho corn os OitoBatutas) compareceram.

No relata de Prudente de Moraes Neto sobre 0 epis6dionao e mencionada a presen<;a de Villa-Lobos, como apareceno diario de Gilberto Freyre. Talvez tenha sido esquecimento.Talvez urn lapso do pernambucano, que gostava de identificara boemia afro-brasileira-carioca corn a figura nacionalista (etambem boemia e popular entre os sambistas da cidade) deVilla-Lobos, como demonstra este seu depoimento de deccidasdepois:

26

Page 7: o Misterio Do Samba

nistas brasileiros com 0 modernismo internacional, sobretudofrances. A segunda causa do "movimento de valoriza<;ao donegro" seria mais abstrata: a "tendencia para a sinceridade",apontada por Prudente de Moraes Neto em artigo para arevista Estetica, que "esta fazendo 0 brasileiro ser sincero numponto de reconhecer-se penetrado cia influencia negra" (Frey­re, 1979: 329).

No movimento de valoriza<;ao do negro, na conquista dasinceridade, a musica popular seria urn elemento fundamen­tal. Gilberto Freyre adota 0 estilo de manifesto: "pela valori­za<;ao das cantigas negras, das dan<;as negras, misturadas arestos de fados; e que sao talvez a melhor coisa do Brasil"(Freyre, 1979: 329).

A ideia, advogada tambem por Gilberto Freyre, de urn Brasilposti<;o que tapa 0 Brasil autentico tern uma semelhan<;a cu­riosa com 0 que pode ser visto como ponto de partida paraeste livro, levando-me a valorizar 0 encontro descrito acima:trata-se do grande misterio na hist6ria do samba.

Quando falo, talvez urn tanto for<;adamente, em grandemisterio, nao me refiro aos problemas que muitos pesquisa­dores da musica popular brasileira gostam de debater: a ori­gem etimol6gica da palavra samba; 0 local de nascimento dosamba; a identidade dos primeiros sambistas; ou mesmo alista completa dos compositores de Pdo telefone, tido como 0

"primeiro" samba. Penso especificamente na transforma<;aodo samba em ritmo nacional brasileiro, em elemento centralpara a defini<;ao da identidade nacional, da "brasilidade".

Hoje, em praticamente todas as tentativas de se escrever ahist6ria do samba, e reproduzida uma mesma narrativa dedescontinuidade, como se os sambistas tivessem passado pordois momentos distintos em sua rela<;ao com a elite socialbrasileira e com a sociedade brasileira de forma geral. Numprimeiro momento, 0 samba teria sido reprimido e enclausu­rado nos morros cariocas e nas "camadas populares". Numsegundo momento, os sambistas, conquistando 0 carnaval e

(...) na musica popular ocorreu um processo (...) de "ge­neraliza~ao"e "normaliza~ao", s6 que a partir das esferaspopulares, rumo as camadas medias e superiores. Nosanos 30 e 40, por exemplo, 0 samba e a marcha, antespraticamente confinados aos morros e suburbios do Rio,conquistaram 0 Pais e todas as classes, tornando-se umpao-nosso quotidiano de consumo cultural. Enquantonos anos 20 um mestre supremo como Sinha era deatua~ao restrita, a partir de 1930 ganharam escala nacio­nal nomes como Noel Rosa, Ismael Silva, Almirante,Lamartine Babo, Joao da Bahiana, Nassara, Joao de Barroe muitos outros. Eles foram 0 grande estimulo para 0

triunfo avassalador da musica popular nos anos 60, in­clusive de sua interpenetra~ao com a poesia erudita,numa quebra de barreiras que e dos fatos mais impor­tantes da nossa cultura contemporanea e come~ou a sedefinir nos anos 30, com 0 interesse pelas coisas brasilei­ras que sucedeu ao movimento revolucionario (Candido,1989: 198).

o ENCONTRO

as radios, passariam a simbolizar a cultura brasileira em suatotalidade, mantendo rela<;6es intensas com a maior parte dossegmentos sociais do Brasil e formando uma nova imagemdo pais "para estrangeiro (e para brasileiro) ver". Ai esta 0

grande mistE~rio da hist6ria do samba: nenhum autor tentaexplicar como se deu essa passagem (0 que a maioria faz eapenas constata-Ia), de ritmo maldito a musica nacional e decerta forma oficial. E em torno desse misterio, que esta nocerne do encontro da turma de Gilberto Freyre (repre­sentando aqui -problematicamente, como em toda represen­ta<;ao - a elite) com a turma de Pixinguinha (representandoo povo), que vai ser construido este livro.

Urn born resumo da hist6ria da transforma<;ao do sambaem musica nacional, de como essa passagem tern sido descritapor varios autores, e 0 seguinte trecho do "Post Scriptum" deAntonio Candido a seu artigo "A revolu<;ao de 1930 e a cul­tura":

Urn born exemplo de como os historiadores e cronistas dosamba abordam 0 assunto, e acabam concordando com An­tonio Candido, pode ser encontrado na imprescindivel e jaclassica coletanea de artigos de Jota Efege, Figuras e coisas da

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musica popular brasileira: "Naqueles idos de 1920 ate quase 30,o samba ainda era espurio. Era tido e havido como propriode malandros, como cantoria de vagabundos. E a policia, nasua finalidade precipua de zelar pela observancia da boaordem, perseguia-o, nao the dava tregua" (Efege, 1980, vol. 2:24). Ern outro artigo, vern 0 outro lado da moeda, a resisb~ncia:

"Era assim a epoca heroica, valente, nao se deixando intimi­dar. Sua gente espancada mas persistindo sempre", ignorando"0 desprezo da burguesia". Mas "0 samba mesmo assim ven­ceu. Formou suas escolas e deslumbrou patricios e estrangei­ros" (Efege, 1980, vol. 1: 122). Como sempre, nao e analisadaessa passagem misteriosa, da perseguic;ao da policia avit6ria.

Na antropologia, a hist6ria do samba e tambem freqiien­temente resumida a partir das mesmas ideias contidas naanalise de Antonio Candido ou nos comentarios de Jota Efege,sendo geralmente aceita a visao de que 0 samba ficou urn borntempo restrito aos "morros" (ou favelas), s6 depois conquis­tando 0 gosto musical de uma elite ate entao distante dacultura popular afro-brasileira. Peter Fry afirma que "origi­nalmente, quando 0 samba era produzido e consumido pelopovo do morro, era severamente reprimido pela policia' eforc;ado a se esconder no candomble, entao considerado ligei­ramente mais aceitavel. Corn 0 tempo, entretanto, a impor­tancia crescente do carnaval provocou a transformac;ao darepressao ern apoio manifesto" (Fry, 1982: 51). Ruben Olivenretoma as palavras de Peter Fry ern artigo de 1985: "0 samba,outro 'legitimo' simbolo da cultura brasileira era, no comec;o,produzido e consumido nos 'morros' do Rio de Janeiro ereprimido corn violencia pela policia. Foi corn a crescenteimportancia do camaval que 0 samba passou a ser consumidopelo resto da populac;ao brasileira e se transformou na musicabrasileira por excelencia" (Oliven, 1985: 12).

Como e possivel perceber a partir das citac;oes anteriores,o misterio do !iamba esta ligado a outros misterios brasileiros,tao centrais como 0 do proprio samba para 0 debate sobre adefinic;ao da identidade nacional no Brasil. Antonio Candidose refere ao "interesse pelas coisas brasileiras" que surgiu nosanos revolucionarios de 1930. 0 que eram essas coisas brasi­leiras? Quem definia 0 que era realmente brasileiro e, portan­to, digno de interesse? Como uma elite que ate entao ignorava

o brasileiro passa a se interessar e, mais do que se interessar,valorizar "coisas" como 0 samba, a feijoada (que pouco apouco se transforma ern prato nacional, apresentado cornorgulho para os estrangeiros que aqui aportam) e a mestic;a­gem (principalmente entre brancos e negros)?

o misterio da mestic;agem (incluindo a valorizac;ao dosamba como musica mestic;a) tern, para os estudos sobre 0

pensamento brasileiro, a mesma importancia e a mesma obs­curidade do misterio do samba para a hist6ria da musicapopular no Brasil. Como pode urn fenomeno, a mestic;agem,ate entao considerado a causa principal de todos os malesnacionais (via teoria da degenerac;ao), "de repente" aparecertransformado, sobretudo a partir do sucesso incontestavel ebombastico de Casa-grande e senzala, ern 1933, na garantia denossa originalidade cultural e mesmo de nossa superioridadede "civilizac;ao tropicalista"? Nao e arbitraria a tentativa deligar a "generalizac;ao" (para continuar citando Antonio Can­dido) do samba corn 0 exito de Gilberto Freyre no panoramaintelectual brasileiro. Tudo fazia parte desse interesse "repen­tino" pelas coisas brasileiras. Como veremos adiante, para 0

caso de Casa-grande e senzala, essa reviravolta vai ser descritaquase como uma iluminac;ao de seu autor. Gilberto Freyre falade "uma especie de cura psicanalitica" de todo 0 pais; GilbertoAmado fala ern "distabuzac;ao". Todas essas expressoes ten­dem a ressaltar 0 carater subito, descontinuo, de descobertae valorizac;ao daquilo que seria "verdadeiramente brasileiro",daquilo que antes estava "tapado" pelo Brasil postic;o. Todaselas so fazem aumentar 0 "misterio" do tema deste livro.

Para toma-Io ainda rnais dense, podemos nos perguntar,junto corn Peter Fry, "por que e que no Brasil os produtoresde simbolos nacionais e da cultura de massa escolheram itensculturais produzidos originalmente por grupos dominados?E por que isto nao ocorreu nos EVA e ern outras sociedadescapitalistas?" (Fry, 1982: 52). Essas perguntas ja receberamdiversas respostas. Vou citar apenas duas delas, propostaspela antropologia. 0 pr6prio Peter Fry lanc;ou a seguintehip6tese: "a conversao de simbolos etnicos ern simbolos na­cionais nao apenas oculta uma situac;ao de dominac;ao racialmas toma muito rnais dificil a tarefa de denuncia-Ia" (Fry,1982: 52/53). Roberto da Matta tern outra resposta: a descons-

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trw;ao do "mito" da mesti<;agem a partir da constata<;ao danatureza "fortemente hierarquizada" da sociedade brasileira.Nao haveria "necessidade de segregar 0 mesti<;o, 0 mulato, 0

indio e 0 negro, porque as hierarquias asseguram a supe­rioridade do branco como grupo dominante" (Oa Matta, 1981:75). Oai (e assim Oa Matta se aproxima de Peter Fry) umapreocupa<;ao com a intermedia<;ao e 0 sincretismo: a sinteseimpediria "a luta aberta ou 0 conflito pela percep<;ao nua ecrua dos mecanismos de explora<;ao social e politica" (OaMatta, 1981: 83).

Se os argumentos de Roberto da Matta podem sugerirexplica<;oes para a inexistencia de uma necessidade prementede segregar "0 mesti<;o, 0 mulato, 0 indio e 0 negro", eles naoelucidam totalmente 0 forte investimento sociocultural queleva a identificar as "coisas brasileiras" com as coisas mesti<;as,principalmente aquelas de origem afro-brasileira, ou que le­vou a turma de Gilberto Freyre a se encontrar com a turmade Pixinguinha num momenta tao importante para a forma­<;ao da ideia de urn Brasil "destapado", 0 "afloramento" doBrasil autentico. Vma coisa e a aceita<;ao - no meio dessaautenticidade - do samba, outra e 0 culto do saml;>a, valori­zado como simbolo de nossa originalidade cultural. MesmoThomas Skidmore, em artigo recente que tenta provar a ine­xistencia de grandes diferen<;as entre as atitudes raciais debrasileiros e americanos (com a apresenta<;ao de muitos dadosquantitativos que comprovam a existencia de urn violerttoracismo brasileiro), reconhece que "a persistente negrofobiados brancos norte-americanos" seria "urn tra<;o relativamenteausente na hist6ria brasileira" (Skidmore, 1992: 61). Alemdisso, "a continua realidade de miscigena<;ao na Americainglesa [foil transformada pelos homens brancos em umaamea<;a psiquica" (Skidmore, 1992: 61). No Brasil, sabemoscomo a "realidade da miscigena<;ao" virou tema de orgulhonacional para autores como Gilberto Freyre.

Essas hip6teses e compara<;oes serao discutidas, no decor­rer deste livro, a partir de uma amilise, a mais detalhadapossivel, do processo de transforma<;ao do samba de "simboloetnico" (se e que algum dia chegou a ser urn simbolo etnico)em simbolo nacional. Vma aten<;ao especial sera dedicada,como a descri<;ao do encontro de Gilberto Freyre e Pixingui-

nha ja deixou entrever, as rela<;oes entre, de urn lado, mem­bros da elite e de grupos intelectuais brasileiros e, de outro,a cultura popular, principalmente em seus aspectos musicais.

Nao e nosso objetivo aqui fazer uma antropologia do sam­ba; afinal, nao se trata de urn livro sobre 0 samba, tampoucode antropologia musical: a musica aparece aqui como urncampo privilegiado onde e possivel perceber determinadosaspectos do debate sobre a defini<;ao da identidade brasileirae suas sequelas. Este livro pode ser visto como urn estudo dasrela<;oes entre cultura popular (incluindo a defini<;ao do quee popular no Brasil) e constru<;ao da identidade nacional. Aescolha do samba como exemplo principal e campo de traba­lho e estrategica, mas deve ser considerada apenas uma es­colha entre dezenas de outras possiveis. Poderiamos usar ahist6ria do rock brasileiro como fonte principal de nossasreflexoes. Mas 0 samba, por sua caracteristica de "pao-nossocotidiano de consumo cultural" (discutirei que "nosso" e essenos pr6ximos capitulos) e de "musica brasileira por excelen­cia", ocupa lugar central em todo esse debate sobre a brasili-

dade.Sao muitos os intelectuais que reconhecem a importancia

da musica popular no debate sobre a cultura brasileira. Jeivimos como Antonio Candido se referiu ao "triunfo avassa­lador da musica popular nos anos 60" gerando urn dos "fatosmais importantes de nossa cultura contemporanea". a mo­dernista Mario de Andrade escreveu, em 1939, que a musicapopular tornava-se "a cria<;ao mais forte e a caracteriza<;aomais bela da nossa ra<;a" (Andrade, M., 1965). Gilberto Freyre

chegou a dizer que:

A rnusica vern sendo a arte por excelencia brasileira nosentido de ser, desde os cornec;os nacionais e ate coloniaisdo Brasil, aquela - dentre as belas-artes - em que depreferencia se tern rnanifestado 0 espirito pre-nacional enacional da gente luso-arnericana: da aristocnitica e bur­guesa tanto quanta plebeia ou rustica (Freyre, 1974: 104).

A musica, partanto, mais que as outras artes, e descrita comotendo essa capacidade de, como dizia Antonio Candido, rea­lizar uma "quebra de barreiras", servindo de elemento unifi­cador ou de canal de comunica<;ao para grupos bastante di-

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versos da sociedade brasileira. Nao interessa tanto, aqui, dis­cutir a veracidade dessa descri<;ao; basta apontar sua impor­tancia para varios intelectuais que discutem aspectos da nossaidentidade nacional. Elevando em conta essa importancia quea historia da musica popular, principalmente do samba, vaiser discutida nos proximos capitulos deste livro.

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livro esta construido em torno de urn unico acontecimento,encontro entre sambistas e intelectuais descrito acima. as

'apitulos seguintes serao desenvolvimentos dos varios aspec-

processo historico-antropologico a ser analisado priorita­riamente neste livro pode ser pensado como urn exemplo de"inven<;ao da tradi<;ao" ou de "fabrica<;ao da autenticidade"brasileiras, para usar express6es sustentadas, respectivamen­te, por Eric Hobsbawn e Richard Peterson (ver Hobsbawn,1990; Peterson, 1992). 0 significado dessas express6es seradiscutido adiante, mas devo adiantar alguns pontos.

Estou interessado no debate sobre a autenticidade do sam­ba, mas por motivos pouco "autenticos". Subscrevo as pala­vras de Richard Peterson sobre 0 assunto, pin<;adas de seurtigo sobre a inven<;ao da country music norte-americana: "autenticidade nao e urn tra<;o inerente ao objeto ou ao acon­

t cimento que se declara autentico; trata-se de fato de umaonstru<;ao social que deforma parcialmente 0 passado" (Pe­

t rson, 1992: 4). Portanto a transforma<;ao do samba em mu-ica nacional nunca sera entendida, aqui, como uma desco­

berta de nossas verdadeiras "raizes" antes escondidas, ou"tapadas", pela repressao, mas sim como 0 processo de in­v n<;ao e valoriza<;ao dessa autenticidade sambista.

Tambem nao considero a cultura popular como proprieda­e ou inven<;ao de urn unico grupo social. Concordo com as

, guintes palavras de Nestor Garcia Canclini: "0 popular seonstitui em processos hibridos e complexos, usando como

'ignos de identifica<;ao elementos procedentes de diversaslasses e na<;6es" (Canclini, 1992: 205). Levando isso em conta,

nao penso ser uma afirma<;ao arriscada dizer que 0 sambanao e apenas a cria<;ao de grupos de negros pobres moradores

os morros do Rio de Janeiro, mas que outros grupos, deutras classes e outrasra<;as e outras na<;6es, participaram

d sse processo, pelo menos como "ativos" espectadores eincentivadores das performances musicais. Por isso serao pri­vilegiadas, aqui, as "rela<;6es exteriores" ao mundo do samba.

o MISTERIO DO SAMBA

Este livro nao pretende desvendar 0 misterio do samba. Meuobjetivo seria mais bern descrito como urn deslocamento dessemisterio. Pretendo mostrar como a transforma<;ao do sambaem musica nacional nao foi urn acontecimento repentino, indoda repressao a louva<;ao em menos de uma decada, mas simo coroamento de uma tradi<;ao secular de contatos (0 encontrodescrito acima e apenas urn exemplo) entre varios grupossociais na tentativa de inventar a identidade e a cultura po­pular brasileiras. Nao e minha inten<;ao negar a existencia darepressao a determinados aspectos dessa cultura popular (oudessas culturas populares), mas apenas mostrar como a re­pressao convivia com outros tipos de intera<;ao social, algunsdeles ate mesmo contrarios a repressao. Vou tentar mapearas rela<;6es entre os primeiros sambistas cariocas e outrosgrupos sociais (brasileiros e estrangeiros), mostrando comoforam pavimentados os caminhos que levaram aaceita<;ao dosamba por grande parte da popula<;ao brasileira, ou pelomenos a sua defini<;ao (quase oficial, pois envolve tambemesfor<;os do Estado brasileiro) como a musica brasileira porexcelencia. Vou tentar tambem mapear alguns dos debatestravados entre intelectuais e membros da elite brasileira daepoca, principalmente aqueles (sobre a mesti<;agem, sobre 0

povo, sobre a unidade nacional, por exemplo) que levaram aaproxima<;ao de algumas de suas fac<;6es internas (pois a elite,como 0 povo, nao e considerada neste livro como urn grupohomogeneo) com os musicos populares que estavam inven­tando 0 samba.

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tos desse encontro, de como foi possivel e quais foram suas"consequencias" mais imediatas, ja que nao teve "grandes"consequencias, nem mesmo na obra de seus participantes.Talvez tenha sido isso 0 que mais me atraiu nessa esquecidanoitada de samba: 0 fato de poder ter sido esquecida, de serapenas urn encontro a mais, relegado a terrivel banalidade deurn acontecimento qualquer, desses que nunca passarao aHist6ria.

Apesar da 'banalidade", 0 epis6dio e urn 6timo ponto departida para se pensar a inven\ao da tradi\ao nacional-popu­lar brasileira, pois nele figuram os principais elementos aserem analisados: as rela\oes entre intelectuaislelite e "popu­lares"; a valoriza\ao do popular; a cria\ao de uma nova iden­tidade nacional; as teorias da mesti\agem racial e cultural; a"descoberta" do Brasil pelos modernistas; a "unidade" dapatria construida a partir do Rio de Janeiro e suas rela\oescom 0 "regionalismo"; as varias vertentes do discurso nacio­nalista; 0 samba como "a melhor coisa do Brasil". Comecemospela rela\ao entre a elite brasileira e a musica popular.

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LITE BRASILEIRA E MUSICA POPULAR

encontro descrito no capitulo anterior nao foi urn fato'xtraordinario, unico ou inedito na hist6ria da musica popu­I r no Brasil. Era apenas mais uma reuniao de intelectuais emusicos das camadas populares, dentro da longa tradi\ao der la\oes entre varios segmentos da elite brasileira (fazendei­r ,polfticos, aristocratas, escritores etc.) com as varias ma­nifestac;oes da musicalidade afro-brasileira.

Essa hist6ria e antiga. Seus primeiros registros mais clarosme\am com a inven\ao e populariza\ao da modinha e do

lundu, no final do seculo XVIII, quando 0 Brasil ainda eraIonia portuguesa. 0 viajante Thomas Lindley narra, em

Iivro lan\ado em 1802, como eram as festas em Salvadornaquela virada de seculo:

(...) em algumas casas de gente mais fina ocorriam reu­nioes elegantes, concertos familiares, bailes e jogos decartas. Durante os banquetes e depois da mesa bebia-sevinho de modo fora do comurn, e nas festas maioresapareciam guitarras e violinos, come<;ando a cantoria.Mas pouco durava a musica dos brancos, deixando lugara sedutora dan<;a dos negros, misto de coreografia afri­cana e fandangos espanh6is e portugueses (citado emPinho, 1959: 27).

Esse retrato nos mostra uma elite baiana impaciente com asregras da elegancia europeia e que basta Hcar urn poucombriagada para "cair na folia" negra. Negra, mas ja misci-

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