o mistério do cinco estrelas

130

Upload: marcelo-lemos

Post on 26-Nov-2015

423 views

Category:

Documents


156 download

TRANSCRIPT

  • Capa e Ilustraes: Jaime Leo

    Projeto Grfico: Ary Normanha

    Suplemento de Trabalho: Marina Appenzeller

    CIP-Brasil. Catalogao-na-Fonte

    Cmara Brasileira do Livro, SP

    Rey, Marcos, 1925

    %351m O mistrio do cinco estrelas / Marcos Rey.

    2.ed. 2. ed. - So Paulo : tica, 1981.

    (Vaga-lume)

    1. Romance brasileiro 1. Ttulo.

    81-0115 CDD-

    869.935

    ndices para catlogo sistemtico:

    I. Romances : Sculo 20 : Literatura brasileira

    869.935

    2. Sculo 20 : Romances : Literatura brasileira

    869.935

    1981

    Todos os direitos reservados pela Editora tica S.A.

    R. Baro de Iguape, 110 - Tel.: PBX 278-9322 (50 Ramais) C.

    Postal 8656 - End. Telegrfico "Bomlivro" - S. Paulo

    Formatao:

    LAVRo - Luis Antonio Vergara Rojas

  • 4

    Dados Biogrficos

    Marcos Rey, pseudnimo de Edmundo Donato, nasceu na

    capital de So Paulo, em 1925. Seu pai, Lus Donato, grfico

    que trabalhara na Editora Monteiro Lobato, pioneira no ramo

    editorial no pas, era um constante devorador de livros de

    fico, hbito que transmitiu aos filhos. Seu irmo mais

    velho, o escritor Mrio Donato, recebendo o estmulo

    paterno, escreveu romances de sucesso alcanando xito

    tambm na literatura infanto-juvenil.

    O autor de O Mistrio do Cinco Estrelas publicou aos

    dezesseis anos os primeiros contos. E desde sua novela de

    estria, Um Gato no Tringulo, que apareceu em 1953, j

    lanou cinco romances, trs livros de contos, dois de

    divulgao e um de fico infantil. Em todos eles o cenrio

    a cidade de So Paulo com sua agitao de metrpole, mistura

    de raas, problemas e enigmas.

    Redator de programas de televiso, adaptou para a

    juventude, em forma de telenovela, os clssicos O Prncipe e

    o Mendigo, de Mark Twain, e A Moreninha, de Joaquim

    Manuel de Macedo. Foi um dos autores de "scripts" de Vila

    Ssamo e desde 1978 incorporou-se equipe de redao de O

    Stio do Picapau Amarelo.

    Seu primeiro contato com a literatura infantil foi como

    tradutor de livros do ingls, em parceria com seu irmo Mrio

    Donato. Em 1961, para a coleo juvenil Conquistas

    Humanas escreveu o volume Habitao, que conta a histria

    da residncia do homem desde os tempos das cavernas.

    No gnero fico infantil estreou recentemente com No

    Era Uma Vez, o drama de um menino procura de sua

    cadelinha perdida nas ruas da cidade. Neste, O Mistrio do

    Cinco Estrelas, com humor, suspense e um pouco de lirismo,

    Marcos Rey volta a focar a cidade de So Paulo como

    fascinante cenrio de um enredo de grande impacto.

  • 5

    a histria dum Davi contra um Golias. O

    pequeno Davi da Bblia venceu o gigante Golias

    apenas com uma pedra e uma funda. Mas h

    outros meios de se derrubar grandes

    obstculos. A persistncia no o mais prtico

    mas talvez seja de todos o mais eficiente.

    O autor

  • 6

  • 7

    O 222

    Leo apertou a campainha do 222, recebera um chamado.

    Logo se abria um palmo de porta mostrando a cara e o sorriso

    largo do Baro. Embrulhado num robe azulo, ele parecia

    ainda mais gordo, mole e displicente.

    Me traga os jornais de sempre pediu o hspede

    passando ao bellboy uma nota amassada.

    Esse dinheiro no vai dar, senhor.

    Tem razo. Um momento.

    Quando abriu o guarda-roupa para apanhar a carteira,

    Leo viu pelo espelho interno do mvel que o Baro tinha

    companhia: um homem pequeno, com pinta de ndio vestindo

    roupas civilizadas, lavava concentradamente as mos na pia

    do banheiro. Devia ser uma daquelas muitas pessoas que o

    Baro ajudava, pensou o rapaz.

    O volumoso hspede do 222 demorava para encontrar a

    carteira nos bolsos de seus palets, enquanto o bellboy

    aspirava vrios cheiros do apartamento: o de charutos j

    fumados e amanhecidos, um mais agradvel de lavanda e

    ainda outro de ma, sempre vendo pelo espelho o tal

    homenzinho a lavar as mos e a enxug-las em toalhas de

    papel que ia jogando numa cesta. Depois, com o sbito receio

    de ser visto pelo espelho do guarda-roupa, fechou a porta do

    banheiro com uma cotovelada.

    Afinal o Baro reapareceu com mais dinheiro e um novo

    sorriso.

    O troco seu, meu filho.

    Leo disparou pelos corredores acarpetados do Emperor

    Park Hotel, esperou e apanhou o elevador e passou pela

    portaria. Novato ainda no emprego provava com a velocidade

    das pernas seu interesse pelo trabalho. entrada do edifcio,

    em seu belo uniforme branco com debruns dourados, viu o

    Guima (Guimares), o porteiro, antigo amigo de sua famlia, a

    quem devia o salrio, aquelas gorjetas todas e a nova

    profisso.

  • 8

    Ao entrar pela primeira vez com o Guima, h dois meses,

    no imenso e rico saguo do Park, como o chamavam

    simplesmente os funcionrios, Leo ficou deslumbrado. No

    seu mundo da Bela Vista, o bairro do Bexiga, onde nascera e

    morava, jamais pisara num ambiente to bonito, moderno e

    fofo. "Isso que um cinco estrelas", explicou o porteiro com

    orgulho de proprietrio. "Mas o que um cinco estrelas?"

    Guima olhou-o como se sua ignorncia lhe fizesse pena e

    disse que a qualidade dos hotis medida pela quantidade de

    estrelas que ostenta. Cinco o mximo, s para

    estabelecimentos de nvel internacional.

    Era uma sexta-feira; na segunda, j fardado e registrado,

    Leo comeava a trabalhar no Emperor Park Hotel como

    bellboy, mensageiro, das 8 s 18 horas, quando voltava para

    casa, jantava s pressas e corria para a escola noturna. O

    horrio era puxado e o servio de cansar as pernas, mas as

    gratificaes compensavam. Recebia gorjetas inclusive em

    dinheiro estrangeiro. Logo conheceu a cor do dlar, da libra,

    do peso, do franco, da peseta, que trocava por cruzeiros l

    mesmo na casa de cmbio do Park.

    Leo precisou de um ms para percorrer os vinte e tantos

    andares do hotel, sem contar os subterrneos destinados s

    garagens, lavanderia, depsito de gneros alimentcios,

    adega, almoxarifados, um labirinto frio e deserto em muitas

    horas do dia.

    No era, porm, no proletrio subsolo que o rapaz da

    Bela Vista encontrava satisfaes e interesses. Gostava de

    vagar pelo saguo, sempre cheio de hspedes que chegavam

    ou partiam, numa confuso de malas, rtulos e idiomas, de

    espiar a piscina, no quarto andar, com suas guas muito

    cloradas, dum verde para ricos, o restaurante, com seus

    odores caprichados, a luxuosa boate, o imponente salo de

    convenes, o tropical garden, pequena floresta onde serviam

    gelados e sanduches, a sauna, que vendia calor e fumaa, a

    quadra de shopping, com suas lojas sofisticadas, e no alto, l

    em cima, o belo bar-terrao, coisa de cinema, com pista de

    dana, solrio e um mirante envidraado para se ver So

  • 9

    Paulo inteira, luz do sol, eltrica ou de vela em jantares ou

    ocasies especiais.

    A maioria dos hspedes do Park tambm parecia ter

    cinco estrelas estampadas na testa: gente importante,

    preocupada com telefonemas internacionais, polticos,

    desportistas e artistas famosos que recebiam jornalistas ou

    deles fugiam, evitando fotos e entrevistas. Logo na primeira

    quinzena de Park Leo esteve a dois metros de distncia de

    Vera Stuart, atriz do cinema norte-americano, carregou as

    malas dum automobilista francs de Frmula 1, e levou uma

    garrafa de mineral ao apartamento de um dos reis do

    petrleo do Oriente Mdio, vestido em trajes tpicos.

    Havia, ainda, hspedes que moravam no hotel: dona

    Balbina, viva rica e solitria, Mister O'Hara, que embora

    muito idoso e doente dirigia uma grande empresa quase sem

    sair do apartamento, o ano Jujuba, dolo infantil da

    televiso, e o Baro. Certamente Baro era apenas apelido do

    homem gordo que mandou Leo comprar jornais, conhecido

    benemrito, protetor de inmeras instituies assistenciais.

    Leo voltou com os jornais e tocou a campainha do 222.

    Desta vez o hspede no abriu de imediato a porta. Antes que

    o fizesse, o bellboy ouviu rudos.

    Quem ? perguntou o Baro, o que nunca fazia.

    Sou eu, o bellboy. Trouxe os jornais.

    A porta abriu pouco e lentamente, o suficiente apenas

    para mostrar o rosto do hspede. O Baro muito plido, como

    um doente, teimava em sorrir, mas no devia estar bem

    porque suas mos, trmulas, deixaram cair os jornais. Leo

    abaixou-se para apanh-los quando viu, sob a cama, dois ps

    calados, apontando para a porta. Pegou os jornais e ao

    levantar-se notou que havia uma mancha vermelha,

    provavelmente de sangue, no robe do gordo do 222.

    Obrigado disse o Baro, segurando confusamente os

    jornais e apressando-se em fechar a porta.

    Mesmo diante da porta fechada, Leo deteve-se ainda um

    momento para relembrar e fixar na memria a cena que

    acabara de ver. Da por diante comeariam seus problemas.

  • 10

    GUIMA, SABE O QUE EU VI?

    Leo desceu para o saguo desejando que ningum o

    chamasse. Precisava contar ao Guima o que vira no 222. O

    porteiro, na rua, parava um txi para um casal de hspedes

    estrangeiros. Ele era bastante considerado pela gerncia

    porque falava um pouco diversos idiomas, at japons.

    Guima, assim que o viu, aproximou-se:

    Diga a dona Iolanda que domingo passo l pra filar

    macarronada.

    Leo estava agora mais assustado do que no momento em

    que vira os ps debaixo da cama.

    Guima, sabe o que eu vi?

    O porteiro sentiu que o rapaz estava sob forte tenso e

    ficou muito preocupado. Para um bellboy no era interessante

    ver certas coisas. Alis, o perfeito mensageiro no tem olhos

    nem ouvidos: apenas pernas e cortesia.

    Alguma mulher sem roupa?

    No, acho que vi um cadver.

    Em que programa de televiso?

    No brincadeira, Guima. Vi um cadver debaixo

    duma cama. Sabe onde? No apartamento 222, o do Baro.

    Mas como viu esse cadver?

    Leo foi contando tudo a partir do chamado para comprar

    jornais quando pelo espelho do guarda-roupa embutido vira o

    tal homenzinho com cara de ndio que lavava as mos. Embora

    sorrindo aos hspedes que entravam e saam, Guima prestava

    toda a ateno e ia se contagiando pela mesma ansiedade. Mas

    precisava fazer perguntas para eliminar a hiptese de iluso.

    Acalme-se, Leo, respire fundo e depois me diga se viu

    mesmo uma pessoa debaixo da cama.

    Vi, juro.

    A mesma pessoa que j tinha visto?

    No sei, s vi dois ps, desta vez.

  • 11

    Guima abriu os braos sem saber o que dizer e muito

    menos o que fazer.

    Se h um cadver no 222, logo saberemos.

    Chegou a vez de Leo fazer perguntas:

    Voc viu entrar um homem como descrevi? Baixinho,

    cara de ndio? Usava um terno azul metlico.

    A resposta veio logo:

    Se vi, no notei.

    Voc est sozinho aqui na porta?

    Desde o meio-dia. O outro porteiro foi ao mdico.

    Leo continuava atnito, querendo orientao.

    O que fao, Guima?

    A resposta foi seca mas pensada:

    Nada.

    Isso direito?

    O importante seu emprego, Leo. O que ganha aqui

    no ganhar noutro lugar. Fique bem quieto e aguarde. Se h

    um cadver, ele vai aparecer.

    O bellboy voltou ao saguo e aproximou-se dos

    elevadores. Precisava conversar com os dois ascensoristas em

    servio. A ambos perguntou se haviam levado um homem

    baixinho, com cara de ndio, para o segundo andar. Um

    garantiu que no e o outro no lembrava. Leo subiu ento

    para o andar do gordo e foi procurar a camareira, uma mulata

    chamada Jandira.

    Voc viu algum entrar no 222?

    No vi.

    J arrumou o apartamento?

    No, ele ps o "No perturbe" na porta. Deve estar

    dormindo.

    O rapaz dirigiu-se sala onde os mensageiros se reuniam

    espera dos chamados. Ningum vira o homem de cara de

    ndio entrar nos elevadores ou no 222. Com o saguo, to

    movimentado, dificilmente uma pessoa insignificante como

    aquela seria notada. E talvez tivesse subido pelas escadas, j

  • 12

    que o Baro morava logo no segundo andar. Lembrou-se do

    homem empurrando a porta do banheiro com uma cotovelada

    para no ser visto. Que motivo teria para temer sua imagem

    no espelho?

    Aquela tarde Leo trabalhou como sempre. Subia e descia

    os andares atendendo a constantes chamados. Mas a

    movimentao no impedia que pensasse no que vira e

    sempre que cruzava com Percival, o gerente, sentia vontade

    de contar-lhe tudo.

    Quando seu horrio se esgotava, viu o Guima no saguo.

    Guima, vamos falar com o gerente?

    Ainda acho que no devemos nos meter.

    Estive pensando, Guima. Se h um cadver no 222

    tenho que comunicar gerncia. O Manual dos mensageiros

    diz que devemos relatar aos superiores toda e qualquer

    irregularidade.

    Bem, j passaram algumas horas ponderou Guima.

    Queria que tivesse tempo para pensar. J teve esse tempo.

    Vamos ento.

    Se no quiser, no precisa. Vou s.

    Guima olhou na direo dos elevadores:

    Veja quem vem vindo.

    Leo olhou: era o Baro, com a chave, que se dirigia

    portaria, muito calmo, e com aquele sorriso to gordo como

    seu rosto.

    Por favor pediu no balco. Mandem a camareira

    arrumar meu quarto.

    Assim que o Baro saiu do hotel, Leo e Guima subiram.

    Encontraram Jandira no corredor.

    Arrume o 222 disse-lhe o rapaz.

    A moa abriu a porta do apartamento. Leo espiou debaixo

    da cama. Guima procurou vestgios de sangue no cho do

    banheiro e nas toalhas. Intil.

    Vamos ver no guarda-roupa.

    Bom lugar para se esconder um cadver disse

    Guima.

  • 13

    A porta do guarda-roupa estava apenas encostada.

    Ser que Jandira no vai dizer que estivemos aqui?

    Ela pensa que estamos procurando alguma coisa para

    ele. Vamos embora.

    No corredor, Leo perguntou ao Guima:

    Acha que menti?

    Mentiroso, voc? O filho do Rafa?

    Ento que foi uma iluso. Isso?

    No estou pensando nada, meu chapa. Mas aquele

    homem que ns vimos l embaixo, com aquela calma, no

    estava com jeito de quem acabou de matar uma pessoa,

    estava?

    Leo curvou a cabea, concordando:

    No estava.

    UM VELRIO SEM CADVER

    Leo foi a p do Park Bela Vista. No tinha pressa, eram

    as frias de fim de ano e precisava de tempo e espao para

    pensar. Teria sido vtima duma iluso? H pessoas assim,

    basta olharem para o cu e vem discos-voadores. Gente que

    vive mais de fantasia que de realidade, doentes da cuca que

    imaginam coisas que no viram nem aconteceram. Sofreria

    dessa enfermidade? Ou andava intoxicado pelo excesso de

    leituras policiais e de filmes seriados da televiso? Ou, ainda,

    quem sabe, o ambiente cinematogrfico do Emperor Park

    Hotel, com seu variadssimo elenco de personagens, to

    diferente do seu mundo, tinha lhe afetado a mente?

    Voc no viu nada, Leo disse a si mesmo j na rua

    onde morava. Tudo imaginao. Amanh, no Park, vou dar

    at risada. E com apetite!

    A famlia de Leo vivia numa casa muito velha como eram

    quase todas do bairro. Seus pais, Rafael e Iolanda, haviam

    nascido l, no Bexiga, um dos ncleos italianos da cidade;

  • 14

    conheceram-se na infncia, mas s se casaram depois de um

    dos noivados mais longos do quarteiro. Rafael, que todos

    chamavam de Rafa, era ento marceneiro e Iolanda trabalhava

    numa cantina de parentes. Casaram e alugaram aquela casa,

    j desbotada por dentro e por fora, precisando duma urgente

    reforma, sempre adiada por falta de dinheiro. O pai de Rafa,

    seu Pascoal, vivo, comilo e contador de histrias, foi morar

    com o casal, como inquilino, mas s pagou o primeiro ms.

    Depois, perdendo o emprego numa vidraria, no trabalhou

    mais e no se falou mais em pagamento. Ao contrrio da

    maioria das famlias italianas, Rafa e Iolanda tiveram apenas

    dois filhos, Leonardo, agora com dezesseis anos, e Diogo,

    com doze. Mas a casa, principalmente nos fins de semana,

    estava sempre lotada de parentes e amigos, quando dona

    Iolanda fazia na cozinha tudo que aprendera na cantina.

    O Guima disse que vem aqui domingo disse Leo

    sua me.

    Ento vou preparar algum prato especial. Ser que ele

    gosta de aspargo? Mas se no gosta, ficar gostando, do jeito

    que eu fao. Precisamos agradar bastante esse homem.

    Arranjou um emprego para voc.

    verdade concordou Leo. O ordenado pequeno

    mas as gorjetas so boas. O Guima comprou um Fusca e um

    apartamento com elas.

    Por isso cuidado, filho. No v perder esse emprego.

    Outro assim voc no arranja mais.

    No vou perder, me. L todos gostam de mim.

    Em seguida Leo foi para a oficina, como chamavam o

    quarto dos fundos, onde Rafa fazia esculturas em madeira.

    Cansado de trabalhar como marceneiro, descobrira que era

    artista e passou a tornear lindas peas que vendia nas

    cantinas do Bexiga e principalmente na feira hippie da Praa

    da Repblica. Pascoal, o nono, ajudava-o a produzir as peas

    e Leo a vend-las. Quem no gostava muito da arte era dona

    Iolanda que preferia o operrio ao escultor porque o primeiro

    ganhava mais que o segundo. Mas Rafa, artista, detestava

  • 15

    submeter-se a horrios e obrigaes, e acreditava que seu

    talento um dia seria reconhecido.

    Eh, filhote, como vai o hotel?

    Tudo bem, pai. Guima vem almoar aqui domingo.

    Bom mesmo. Quem sabe ele consiga vender minhas

    esttuas aos hspedes do Park. Bom papo o que no lhe

    falta.

    Ento vamos jantar. A me fez polpetas.

    Sempre se comeu muito bem na casa dos Fantini; mesmo

    quando o dinheiro desaparecia. Dona Iolanda no precisava

    ter a despensa e a geladeira cheias para preparar os pratos

    mais saborosos. Rafa dizia que ela fazia mgica na cozinha, e

    era verdade.

    Leo jantava com os olhos no prato, doido para dar um

    passeio no Morro dos Ingleses. Numa cabeceira da mesa

    estava seu pai e noutra o nono, com seus quase oitenta anos,

    uma das figuras mais conhecidas do Bexiga, onde sempre

    morara e exercera as mais variadas profisses: linguiceiro,

    pedreiro, vidraceiro, pintor de paredes, consertador de tudo

    que quebrasse e cabo eleitoral.

    Ao lado de Leo, espera de elogios pelas polpetas, comia

    dona Iolanda, mulher bonitona e forte, e diante dele, Diogo, o

    caula, um dos moleques mais barulhentos e rebeldes do

    Bexiga. Mas perto dos pais dava uma de santo, convencendo-

    os de que era inocente de todas as acusaes que a

    vizinhana lhe fazia.

    Leo terminou o jantar e nem esperou o caf.

    Onde vai? perguntou a me.

    Dar umas bandas por a.

    Vai atrs daquela menina outra vez?

    A famlia toda sabia da gamao de Leo por ngela. Mas

    Rafa e Iolanda, Iolanda mais que Rafa, condenavam esse

    quase namoro porque os moradores do Morro dos Ingleses

    pertenciam a outra classe social, eram mais gr-finos, e

    quando h essa diferena entre namorados, nunca d certo.

  • 16

    Vou espiar os teatros disse Leo. s vezes consigo

    entrar sem pagar, quando h alguma estria.

    O alegre bairro do Bexiga, alm de ser o das antigas casas

    paulistanas, do po italiano e das cantinas, tambm o dos

    teatros, que s vezes Leo freqentava se os espetculos no

    eram proibidos para menos de dezoito anos. Mas, aquela noite,

    sua inteno era a que sua me adivinhara: dar um passeio pelo

    Morro dos Ingleses, l perto, na esperana de ver ngela.

    Leo e ngela no eram namorados e jamais haviam

    marcado encontro. Estes eram casuais ou disfaradamente

    provocados pelo rapaz. Se ela saa porta do edifcio, ou ia

    confeitaria, Leo materializava-se diante dela, com cara de

    quem no queria nada, e puxava conversa. ngela nem sempre

    lhe dava ateno, apressada ou indiferente, mas outras vezes

    se portava como uma quase-namorada, e ficavam esquina ou

    davam voltas ao quarteiro conversando sobre mil assuntos.

    Juntos, em ambiente fechado, s haviam estado uma vez, na

    grande discoteca do bairro, esse sim um encontro casual,

    quando Leo viveu uma de suas noites mais maravilhosas.

    Embora ela estivesse com um grupo, foi com ele que ngela

    preferiu danar horas inteiras. Leo imaginou que dessa noite

    em diante ficariam namorados, e as coisas melhorariam,

    porm se enganou. A garota logo em seguida voltou a v-lo

    apenas como um conhecido, entre os muitos que possua, e a

    esnob-lo discretamente. Ele ento decidiu no procur-la

    mais. Essa deciso no entanto durou apenas uma semana,

    abandonada ao concluir que ngela era de fato, e sem dvida,

    feliz ou infelizmente, seu primeiro amor.

    Aquela noite Leo precisava ver e conversar com ngela

    mais do que nunca. Tinha a impresso de que s um papo

    com ela poderia fazer com que esquecesse o cadver visto ou

    imaginado no apartamento do Baro. Mas ela no estava na

    porta. Deu uma longa volta no quarteiro, parou diante do

    Teatro Galpo, tomou um refrigerante num bar, sem ter

    vontade, e voltou ao endereo de ngela. Outra vez no a

    encontrou e j retornava para casa quando uma voz

    inconfundvel o chamou.

    Leo! Leo!

  • 17

    Ele parou e viu ngela, linda como um bolo de noiva, vir

    vindo, ligeira, em sua direo.

    Como vai, ngela? Eu ia passando.

    Da minha janela vi voc passar duas vezes. Estou

    dando umas voltas. isso a.

    Leo tentava mostrar-se indiferente ou natural, nem

    sempre conseguia. Principalmente quando ngela estava

    muito bonita como naquela noite. Usava um vestido branco e

    inventara um penteado que a tornava mais alta e atraente.

    Sabia que tinha quinze anos incompletos porm parecia uns

    dezoito. E seu maior receio era ter que disput-la com rapazes

    mais velhos, em idade que j se fala em noivado e casamento.

    Vamos dar um passeio sugeriu Leo.

    Lamento mas no posso. Meus pais saram e estou s

    com a empregada.

    No faz mal. A gente conversa aqui mesmo.

    S quis lhe dar um al.

    Voc no vai entrar agora, vai?

    Quero assistir televiso antes de dormir.

    Que programa?

    No sei, qualquer um.

    Mas a gente no tem se visto.

    Outro dia ns conversamos. S quis saber como estava

    passando.

    ngela aproximava-se e pelo motivo mais banal recuava.

    Para ela tudo ficava para outro dia e vez. Leo no entendia

    muito de moas, porm imaginava que costumavam agir

    assim quando no tinham nenhum interesse ou quando o

    tinham demais. Mas no queria voltar cedo para casa nem

    sofrer o vazio que ngela deixava ao ir embora. Para tentar

    ret-la, disse:

    Houve um crime no hotel.

    Houve? J saiu nos jornais?

    Ainda no. E talvez nem saia. Eu entrei num

    apartamento e vi o corpo dum homem debaixo da cama.

  • 18

    E o que voc fez? perguntou ngela com reduzido

    interesse.

    Bem, eu falei com o Guima, o porteiro, e mais tarde

    ns dois fomos ao apartamento, quando a camareira fazia a

    arrumao, mas j no encontramos nada.

    Voc tem certeza de que era um homem?

    Tinha, at que voltei l e no o vi mais.

    E o que o Guima diz?

    Ele acha que foi iluso porque quem mora nesse

    apartamento, um tal de Baro, uma boa pessoa e no

    cometeria um crime.

    ngela olhou Leo com muita seriedade e disse uma coisa

    que permaneceria a noite toda em sua cabea.

    Voc no desses que vem o que no existe. Se viu um

    homem debaixo da cama, havia um homem debaixo da cama.

    Como sabe que no sou desses? Posso ser um tanto

    maluco e voc no sabe.

    Voc no maluco garantiu ngela.

    Ento, o que acha que devo fazer?

    Isso no sei. Mas penso que deve ficar quieto em seu

    canto. Meu pai advogado e sempre diz que um pobre

    dificilmente consegue pr um rico na cadeia.

    Leo reconheceu que era conselho de gente madura, o

    mesmo que seus pais dariam, e aceitou-o como fim de

    conversa. Mas a confidncia, apesar de sua dramaticidade,

    no prolongou mais o encontro. ngela queria mesmo ver

    televiso. Como novidade, deu-lhe um beijo rpido no rosto e

    correu para o edifcio sem olhar para trs.

    UM MERGULHO NOS PORES DO HOTEL

    Na manh seguinte, enquanto tomava caf na cozinha, e

    ouvia o nono cantar no banheiro "Sappore di Mare", Leo

    virava as pginas dum matutino na esperana de encontrar

    notcia sobre algum crime misterioso ou desaparecimento de

  • 19

    algum com cara de ndio. No encontrando nada assim, com

    os olhos no relgio, deu um beijo estalado em dona Iolanda e

    disparou para a rua.

    Menos duma hora depois, fardado, Leo j era o veloz e

    solcito bellboy do Emperor Park Hotel, subindo e descendo

    pelos elevadores, carregando malas, sorrindo para os

    hspedes e recebendo gorjetas. S muito tempo depois teve

    oportunidade de aproximar-se do Guima, na porta.

    Guima, me diga uma coisa: o Baro amigo de algum

    hspede aqui no hotel?

    Ainda no esqueceu aquela histria?

    Vamos, diga.

    Ele muito chegado Balbina, a viva.

    Leo desanimou.

    Mas ela mora no dcimo-segundo.

    O que tem isso?

    O Baro no poderia levar um cadver do segundo

    para o dcimo-segundo.

    Mais uma prova de que voc teve uma viso ontem

    tarde.

    Leo voltou para o saguo e dirigiu-se aos elevadores. Mas

    no subiu, desceu. Precisava percorrer o subsolo e meter o

    nariz em todos os cantos possveis. Aquela hora da manh o

    movimento ainda no era intenso. Como se executasse

    ordens, e tentando agir com naturalidade, embora sempre

    atento a tudo, entrou na adega e no imenso depsito de

    gneros alimentcios. O almoxarifado ainda estava com as

    portas cerradas. Deu uma olhada na oficina de consertos de

    aparelhos de rdio e televiso. Entrou em diversas salas e

    saletas com apenas alguns mveis, sem utilidade definida.

    Subitamente pareceu-lhe absurdo vagar por aqueles

    corredores frios como se fosse um inspetor sanitrio. Se o

    corpo tivesse sido levado para o poro, por quem quer que

    fosse, no o deixariam l at o dia seguinte. A noite seria

    quase com certeza o melhor perodo para se livrarem dele.

  • 20

    Como ltima etapa da procura, Leo foi at a lavanderia,

    ainda deserta, porque l o trabalho ainda no comeara.

    Passando entre montanhas de fronhas e lenis, ocorreu-lhe

    que no poderia haver no hotel lugar melhor para se

    esconder um corpo durante algumas horas. Lembrou-se que

    seu horrio de servio era das 10 s 17. E fora pouco antes

    das 5 que levara os jornais ao Baro. Quem transportou o

    corpo no teve problemas com os funcionrios da lavanderia.

    Mas um enigma persistia: como fora feito o transporte?

    Descer com um cadver pelas escadas ou elevadores era

    impossvel. Principalmente num fim de tarde quando havia

    desfile interminvel de hspedes e mensageiros.

    J encaminhava-se aos elevadores, voltando ao trabalho,

    quando viu um carrinho metlico usado para carga de roupa

    suja. E aquele no era o nico, o hotel possua dezenas. As

    camareiras estavam sempre os empurrando pelos corredores

    e descendo com eles pelos elevadores. No precisou andar

    muito para ver outros estacionados junto s paredes. Leo

    decidiu examinar todos que sob as roupas pudessem ocultar

    um cadver. No salo principal da lavanderia a um simples

    exame nada encontrou. No corredor que ligava a lavanderia

    ao almoxarifado viu outros carrinhos, todos descarregados.

    Se o cadver est num deles, pensou Leo, quem o trouxe no

    o deixaria to vista. Lembrou-se das inmeras saletas sem

    uso freqente. E todas tinham um amplo visor. Bastaria

    espiar do corredor para ver o que havia dentro delas. Foi o

    que fez, com a impresso de que ficava quente, como nas

    brincadeiras da infncia. Justamente na ltima saleta do

    corredor, entre um mundo de caixotes, viu um carrinho cheio

    de fronhas e lenis. Quis entrar, estava fechada. Verificou

    outras saletas, todas abertas. Por que passaram a chave

    naquela? O cadver est aqui, concluiu Leo, por algum motivo

    que ignoro no o levaram para fora do hotel ontem noite.

    Hesitava entre chamar o Guima ou correr gerncia. E se

    houvesse no carrinho apenas roupa? Como saber? S havia

    um jeito: abrir a porta na marra. Mesmo assim a ao no foi

    imediata deciso. Respirou forte, levando sua convico aos

    pulmes, antes da primeira ombrada. A porta no cedeu.

  • 21

  • 22

    Apenas uma rangida. No terceiro impacto o ombro

    comeou a doer, porm no desistiu. Agora era verdadeira

    luta contra a porta com sons surdos e ecos prolongados. s

    vezes trocava de ombro mas a vontade de entrar na saleta

    continuava a mesma.

    Afinal Leo ouviu um forte estalo e a porta cedeu com o

    chiado dum esparadrapo que se rasgasse em tiras. Com a

    sensao desagradvel de quem causa prejuzo

    involuntrio, pisou a saleta, onde alm do carrinho s havia

    um par de cadeiras velhas. Sentiu um arrepio de piscina no

    inverno. Desejou no encontrar nada sob os lenis. Assim

    toda tenso terminaria. Tentou remexer as roupas, mas

    suas mos no obedeceram ao comando. Teve de vencer a

    paralisia de pesadelo para erguer os lenis sobre o

    carrinho. Logo encontrou alguma resistncia e viu uma

    mancha de sangue.

    Como um boneco de cera, as pernas dobradas, Leo viu o

    cadver, o mesmo homem de cara de ndio do apartamento

    do Baro. Devido ao seu pequeno porte coubera no carrinho e

    coberto por lenis pudera ser transportado sem chamar

    ateno. Seu palet de tecido aluminizado tambm estava

    manchado de sangue. Observou sua boca entreaberta, a morte

    o surpreendendo no meio de um grito. Os olhos muito

    abertos, aps a exibio da ltima cena de sua vida.

    Vou sair daqui e chamar o gerente, decidiu Leo;

    aterrorizado, e comeou a afastar-se, andando de costas, a

    tatear a porta. Sua mo tocou algo e no mesmo instante com

    uma velocidade sideral qualquer coisa o atingiu na cabea.

    Perdeu os sentidos.

    O CADVER DESAPARECE MAIS UMA VEZ

    Leo acordou. Estava no cho, junto parede, coberto por

    um lenol. Sua primeira preocupao foi descobrir se

    sangrava. No. Apalpou o corpo todo: estava inteiro. Ps-se

    de p, ao lado do carrinho que s tinha duas fronhas. O corpo

  • 23

    do homem de cara de ndio desaparecera. Procurou manchas

    de sangue nas fronhas porque ia precisar de provas: no

    encontrou. Saiu da saleta s pressas, seguindo pelo corredor.

    No corredor Leo viu um funcionrio da lavanderia mas

    no lhe disse nada. Aquele era caso para a gerncia. Subindo

    pelas escadas, sem pacincia para esperar pelo elevador, foi

    para o saguo. Percival, o gerente, na portaria, telefonava.

    Fez um sinal descontrolado para o Guima e foi ao seu

    encontro.

    O porteiro notou que algo estranho se passava.

    Guima, encontrei o corpo.

    Que corpo? ele perguntou com a mesma descrena

    da vspera.

    L embaixo, numa das saletas. Estava num dos

    carrinhos da lavanderia coberto por lenis.

    Vamos l.

    Mas ele desapareceu.

    Desapareceu, como?

    Algum me deu uma pancada na cabea, ca

    desmaiado, e quando acordei o corpo tinha sumido.

    Quem lhe deu a pancada?

    No vi. Ponha a mo na minha cabea. Deve ter um

    galo.

    Guima apalpou a cabea de Leo.

    No h nenhum galo.

    Guima, vamos falar com o Percival.

    A ausncia do galo esfriara o porteiro.

    Pensou bem no que vai fazer?

    Guima, tem um cadver l embaixo, escondido em

    algum lugar. A gente precisa achar ele.

    No posso sair daqui agora.

    Pea ao Percival.

    Venha comigo. Mas me deixe falar com o gerente.

    Fique calado, voc.

  • 24

    Percival, que j desligara o telefone, viu Guima e o

    bellboy aproximarem-se, ambos hesitantes e nervosos. Por

    que Guima no estava na porta e o mensageiro atendendo aos

    chamados?

    Aconteceu alguma coisa?

    Sim disse o porteiro. Leonardo julga ter visto

    alguma irregularidade na lavanderia. Queria lhe pedir licena

    para acompanh-lo at l.

    Que irregularidade?

    Pode ter sido engano ...

    Mas o que ele viu l?

    Bem, ele no viu, ele supe...

    O telefone tocou, era para o gerente, que atendeu e

    comeou a falar ingls. Como o telefonema parecia

    importante, despachou o porteiro e o bellboy com um

    movimento de mo.

    Leo e Guima desceram em seguida para a lavanderia, o

    primeiro apressado, o segundo mais lento e com receio de se

    envolver em encrencas. Logo chegaram saleta onde o rapaz

    vira o cadver do homem de cara de ndio.

    Foi aqui que encontrei o corpo.

    A porta est arrombada.

    Eu arrombei.

    Por qu?

    Estava fechada a chave.

    Onde viu o corpo?

    Neste carrinho.

    Um homem cabe nisso a? Era pequeno, mais baixo

    que eu, e muito magro.

    Mas ele no est aqui. Deve estar noutra parte.

    Vamos procurar.

    Leo e Guima foram espiando todas as saletas sem nada

    encontrar de suspeito. Ao porteiro era incrvel que algum

  • 25

    largasse um cadver no grande salo da lavanderia e por isso

    deixava a procura mais para o bellboy. Este, sempre que via

    uma montanha de roupa, dividia-a em pequenos montes, num

    trabalho nervoso e intil. A esta altura alguns funcionrios j

    chegavam, viam a confuso que Leo fazia com as fronhas e

    lenis, e no entendiam.

    Perdeu alguma coisa, moo? perguntou um deles.

    Estou procurando respondeu Leo.

    Posso ajudar? O que est procurando?

    Um cadver disse Leo sem interromper sua tarefa.

    O funcionrio riu e juntou-se a outros.

    Guima dirigiu-se a eles.

    Vocs viram alguma coisa que podia se parecer com

    um corpo humano?

    O funcionrio que rira puxou uma risada geral.

    Que palhaada essa, Guima?

    Ento ningum viu nada?

    S na televiso. Alis, tem sempre, para todos os

    gostos. Ontem vi um seriado, "Crime no Hotel", tinha gente

    morta at nos armrios.

    Guima olhou, desanimado, para Leo.

    Vamos subir.

    Ainda no revistamos tudo.

    Leo, ningum pode esconder um cadver no bolso. E

    deixe por minha conta. Digo ao Percival que voc sofreu uma

    iluso de tica, ou coisa assim, e nem toco na porta

    arrombada. E, por favor, esquea o assunto.

    No ser fcil, Guima.

    Faa fora, garoto.

    Est certo, mas que vi um cadver naquela sala, vi. E

    era o mesmo homem que estava no apartamento do Baro.

    No mencione o Baro para o Percival. Isso complica

    tudo.

    Guima, para voc no importa se houve assassinato

    aqui no hotel?

    Guima parou para dizer exatamente o que pensava:

  • 26

    H muitos anos que me importo s comigo mesmo. E

    com as gorjetas. Para mim um assassino que d boas gorjetas

    quando chamo um txi um timo camarada. Vamos subir. E

    boca fechada.

    Ao voltar ao saguo Leo j decidira definitivamente pr

    uma pedra naquela histria. Guima, experiente, dera-lhe o

    melhor conselho. O importante era continuar trabalhando no

    Park, numa boa, sem complicaes.

    Guima, cumprindo com o prometido, foi falar com o

    Percival.

    O rapazinho se enganou... Estava escuro e ele teve a

    impresso de ver qualquer coisa estranha na lavanderia. Nem

    soube explicar o qu.

    Por favor, mande ele ir ao meu escritrio.

    Mas era s isso. Tudo certo agora.

    Percival, muito srio, insistiu:

    Talvez no, Guima. Chame o moo.

    O porteiro, amigo de Leo e de todos os Fantini, ficou

    preocupado. O que queria o gerente, que por sinal no estava

    com boa cara?

    Algo errado com ele?

    V, Guima, no tenho muito tempo a perder.

    Guima foi encontrar o bellboy no saguo, carregando

    malas dum hspede recm-chegado.

    O Percival quer falar com voc.

    Sobre?

    No sei.

    Falou do cadver?

    Nenhuma palavra. V, cuido das malas.

    Leo, imaginando que o gerente j soubesse de alguma

    coisa sobre o assassinato, dirigiu-se ao escritrio

    esperanoso.

    Sentado, diante duma escrivaninha, Percival o aguardava

    fumando.

    Feche a porta ordenou. O rapaz obedeceu,

    subitamente nervoso.

  • 27

    s ordens.

    Tudo parecia se resumir numa pergunta:

    Voc esteve ontem tarde no 222?

    Fui levar jornais.

    Quero saber depois, quando o hspede estava no

    apartamento.

    Estive, sim, com o Guima. A camareira fazia a

    arrumao.

    Pode me dizer o que foi fazer l?

    Leo no pretendia mais abordar o assunto. A pergunta,

    porm, to direta, obrigava-o a contar tudo. Chegou a pensar

    em retardar a resposta mas o olhar firme e insistente de

    Percival no permitiu.

    Eu fui... fui...

    Pare de gaguejar e fale duma vez.

    Bem, quando fui levar os jornais para o Baro, vi os

    ps duma pessoa debaixo da cama.

    Que histria essa, garoto?

    Isso mesmo: vi os ps dum homem e o Baro estava

    com uma mancha de sangue no robe. A desci e falei com o

    Guima. Depois que ele saiu do apartamento ns dois voltamos.

    Mas no encontraram ningum debaixo da cama.

    No encontramos, mas agora cedo, fui lavanderia e

    encontrei um cadver numa das saletas.

    Interessante!

    Mas me deram uma pancada na cabea e eu desmaiei.

    Ento voc chamou o Guima outra vez.

    Chamei.

    Desceram para a lavanderia e no viram mais o

    cadver.

    verdade. Tinha desaparecido.

    E agora pensa que vou acreditar nisso?

  • 28

    Leo j sentira que o caso, contado, parecia falso. Nenhum

    cadver desaparece duas vezes. Ele prprio no acreditaria se

    lhe contassem aquela histria.

    Seu Percival, tudo verdade.

    Pois eu vou lhe dizer o que voc foi fazer no

    apartamento do Baro. Voltou para pegar uma coisa que

    realmente viu debaixo da cama. E usou o pobre Guima apenas

    para acobertar o seu roubo.

    Leo estremeceu.

    Roubo? No roubei nada.

    E deve ter roubado outras vezes. Sabamos que havia

    algum larpio entre os funcionrios e agora sabemos quem

    ele .

    Eu no sou ladro. Voltei ao apartamento procura do

    cadver.

    Essa uma inveno ridcula. Posso at descrever

    esse homem para o senhor. Eu o vi no apartamento do Baro

    e agora na lavanderia. Houve um crime aqui no hotel. No 222.

    Nesse instante a porta abriu-se e entrou o Baro com um

    ar de amargura e decepo. Olhou o mensageiro como se lhe

    tivesse uma profunda pena.

    Por favor, Percival, no despea o rapaz por causa

    disso. D-lhe outra oportunidade.

    Eu no fiz nada replicou Leo.

    Devolva o objeto pediu o gerente.

    Que objeto? perguntou o mensageiro indignado.

    O Baro com uma voz paternal explicou-lhe:

    Se no fosse algo de estimao eu permitiria que

    ficasse com ele. No pelo seu valor, pelo que representa

    sentimentalmente.

    Mas no sei do que esto falando.

    Sabe, sim garantiu Percival falamos do isqueiro.

    Isqueiro. O que ia fazer com um isqueiro se no fumo?

  • 29

    Era de ouro e prata.

    A falsa acusao causou um alvio no bellboy, que chegou

    a esboar um sorriso.

    No vi isqueiro algum em seu apartamento.

    Deixei cair embaixo da cama disse o Baro.

    Nada tenho a ver com isso protestou Leo, tentando

    pr fim conversa.

    Percival levantou-se:

    Posso revist-lo?

    No necessrio ops-se o Gordo. Vamos

    acreditar na palavra dele.

    O mensageiro repeliu a generosidade do Baro:

    Pode me revistar, sim bradou, em desafio. Quem

    no deve no teme.

    O gerente foi enfiando as mos nos bolsos de Leo at que

    o rapaz observou uma reao em seu rosto, logo transmitida

    afirmativamente ao Baro.

    este? perguntou Percival exibindo um belssimo

    isqueiro ao hspede.

    O Baro confirmou com um curto movimento de cabea

    como se sentisse o maior pesar em incriminar o bellboy.

    O PRIMEIRO DIA DE UM DESEMPREGADO

    Eu no roubei esse isqueiro afirmou Leo, aflito.

    Nunca o tinha visto.

    Ento como foi parar em seu bolso? Voando?

    gracejou maldosamente o gerente.

    Algum o enfiou enquanto estive desmaiado na

    lavanderia asseverou o rapaz. S pode ter sido assim.

    O Baro moveu-se em direo porta, dizendo a

    Percival:

  • 30

    Seja benevolente com o moo e saiu em seguida.

    Leo sentiu vontade de cuspir na porta que o hspede

    fechava, mas precisava defender-se doutra forma.

    Aproximou-se mais de Percival falando alto, com raiva, e

    gesticulando um tanto descontroladamente.

    Esse homem um assassino! Ele matou uma pessoa. Vi

    o cadver na lavanderia, quase toquei nele. Acredite em mim.

    Talvez o corpo ainda esteja l embaixo.

    Voc est caluniando um homem que pratica a

    caridade, que d muito dinheiro aos pobres, aos velhos, s

    crianas e aos doentes. Tem um grande corao. Todos o

    admiram nesta cidade. A calnia ainda pior que o roubo.

    Mas no serei benevolente como seu Oto pediu: vou despedi-

    lo agora mesmo e no espere que lhe d carta de

    recomendao. V tirar o uniforme enquanto mando redigir a

    demisso.

    Atordoado, Leo saiu do escritrio. No saguo, tendo

    abandonado a porta do hotel, Guima o esperava, nervoso.

    Vi o Baro entrar no escritrio. O que aconteceu?

    Fui despedido.

    Voc no devia ter acusado o Baro. No foi por

    isso. Acusaram-me de roubar um isqueiro que lhe pertencia. E

    ele foi encontrado no meu bolso.

    No seu bolso?

    Sim, algum o colocou enquanto estava desmaiado.

    Vou falar com o Percival.

    No se meta, Guima. a minha palavra contra a do

    Baro. E a prova contra mim.

    Mas no pode ser acusado de roubo sem ter

    roubado.

    Tenho de agentar isso, Guima. Serei um ladro, sim,

    at que se descubra que o Baro um homicida. Vou tirar o

    uniforme. No trabalho mais no Emperor Park Hotel. E eu que

    gostava tanto disto aqui!

  • 31

    Guima apertou-lhe o brao, imprimindo-lhe na carne sua

    solidariedade.

    O que posso fazer por voc?

    Apenas uma coisa.

    O qu, garoto?

    Acreditar que vi mesmo um cadver no 222 e na

    lavanderia.

    Guima comprimiu um sorriso entre os lbios, dando-lhe

    todo o crdito. Leo no era visionrio nem ladro de

    isqueiros. J no duvidava: realmente vira aquele corpo. S

    no entendia como desaparecera duas vezes.

    O ex-bellboy foi sala dos mensageiros e trocou o

    uniforme pelo blue jeans e camiseta. Olhou-se num espelho

    com tristeza. S no chorou com receio de que algum

    entrasse. Ia sentir falta do hotel, das gordas gorjetas e dos

    papos com o Guima. Retornou ao saguo, esperou alguns

    minutos at que o chamaram ao escritrio.

    No foi o Percival, mas um de seus assistentes, que

    entregou a Leo um cheque, relativo a seus direitos, e alguns

    papis para assinar.

    Por que est sendo despedido? perguntou. Porque

    encontrei um cadver na lavanderia respondeu pondo o

    cheque e os papis no bolso.

    O jovem Fantini ia deixando o Park pela porta principal,

    mas mudou de idia e resolveu fazer mais uma visita ao

    subsolo. O trabalho l j era intenso e as montanhas de

    roupas iam sendo removidas para as mquinas de lavar. Os

    carrinhos, carregados ou no, circulavam dum lado e outro

    empurrados por funcionrios homens e mulheres. O corpo

    no pode estar mais aqui, pensou Leo. Com certeza j foi

    levado para fora do hotel. No tenho mais o que fazer. Adeus!

    A volta para a Bela Vista foi lenta e cheia de

    pensamentos. Leo sabia que no seria fcil arranjar emprego

    melhor que o de mensageiro do Park, principalmente antes de

    ter um diploma na mo.

  • 32

    Ao chegar em casa foi direto oficina. Seu pai lixava uma

    estatueta de madeira.

    Pai disse recebi o bilhete azul.

    Por qu?

    Fui acusado de roubar um isqueiro.

    Rafa largou a estatueta, revoltado. Depois, fez meno de

    vestir o palet.

    Vou dar uma surra em quem o acusou disso.

    Esquea, pai.

    Conte como a coisa aconteceu.

    Leo sentou-se num banquinho, pegou a estatueta que o

    pai lixava, e contou tudo a partir do chamado do Baro

    quando vira o homem de cara de ndio pelo espelho at a

    ltima vistoria no subsolo. O pai ouvia, atento, acreditando e

    sofrendo a cada lance da narrativa. Querendo consertar tudo

    com um simples sorriso, disse ao filho:

    No faz mal, fique trabalhando comigo. Preciso muito

    de voc principalmente na feira.

    Aquelas gorjetas vo fazer falta.

    Leo, o que a gente perdeu est perdido. Parta pra

    outra. Voc ainda est no comeo da vida.

    Mas eu gostava do Park. Era quase como trabalhar no

    cinema.

    Rafa retomou a estatueta, voltando a lix-la:

    Talvez ainda volte para l. Esse cadver vai ter que

    aparecer. E mesmo de boca fechada um morto pode falar.

    Quer que o ajude a lixar alguma pea?

    No, filho. Voc est aborrecido. V passear, distrair-

    se. Mas, se quiser, vamos feira, domingo. Voc tem um jeito

    especial para vender estatuetas.

    No almoo, todos os Fantini j sabiam o que acontecera a

    Leo mas no se fez nenhum comentrio. Apenas Diogo, o

    caula, no mantinha a naturalidade, olhando o irmo como

    se invejasse a aventura que o envolvera.

  • 33

    tarde, Leo foi descontar o cheque do Park e deu quase

    todo dinheiro a Rafa. Depois passeou pelo Morro dos Ingleses

    mas no viu ngela. Melhor assim, no devia estar bom de

    papo.

    Aps o jantar os Fantini receberam uma visita sempre

    agradvel, Guima, que, na oficina de Rafa, tomando cerveja,

    confirmou toda a histria de Leo. Rafa ouviu com a mesma

    indignao da manh, declarando seu desejo de dar uma

    surra no Baro e no gerente. Dona Iolanda, imediatamente,

    abriu outra cerveja, que era a forma mais simples de acalm-

    lo. O velho Pascoal esfregava as mos e mais nada. H muitos

    anos andava de briga com o mundo.

    No entendo por que no sumiram com o corpo ontem

    noite disse Leo.

    Acho que tenho uma resposta para isso.

    Qual, Guima? quis saber o rapaz, interessado.

    H vigias noturnos no subsolo. Seria difcil retirar o

    cadver, por isso deixaram para hoje cedo.

    Para Leo a explicao satisfez.

    S queria saber quem o ajudou.

    Realmente o Baro no podia fazer tudo sozinho.

    Ele deve ter algum comparsa no hotel.

    Voc diz, morando no hotel?

    No, Guima, algum que trabalhe l. Nenhum hspede

    andaria com liberdade pelo subsolo.

    Pode ser.

    Voc lembra de algum funcionrio que seja amigo do

    Baro?

    Ele mora no Park h dois anos e deve conhecer muitos

    empregados, mas no sei de nenhum mais ntimo.

    Dona Iolanda interveio com firmeza:

    No se preocupe com isso, Guima. E voc, Leo,

    esquea. assunto para a polcia. Poderia ter acontecido

    coisa muito pior no poro do hotel. Perder o emprego, foi o

    menos grave de tudo.

  • 34

    Quando Guima se despediu dos Fantini, Leo

    acompanhou-o at o Fusca. Ainda conversaram por alguns

    momentos.

    Sua me tem razo disse Guima.

    Eu sei.

    Mesmo assim vou manter os olhos bem abertos.

    Tambm gostaria de saber quem o scio do Baro no Park

    Hotel.

    Leo sorriu, grato. Tinha esperanas de provar ao

    gerente que no era ladro de isqueiro e que merecia ser

    um bellboy.

    UM CADVER BIA NO RIO

    No domingo bem cedo Leo foi feira hippie com o pai e

    o nono. Era da Praa da Repblica, com a venda de estatuetas,

    que Rafa tirava o sustento da famlia. No se dizia que era um

    grande artista mas vender tambm uma questo de simpatia

    e lbia, duas coisas que no faltavam ao ex-marceneiro. A

    estatueta de So Genaro, por exemplo, sempre tinha boa

    procura, como tambm as de Cosme e Damio.

    Quando Rafa e Pascoal iam para o bar, beber cerveja, Leo

    se incumbia das vendas, sempre bem sucedidas porque ele

    apregoava alto e insistia quando algum demonstrava

    interesse.

    Naquele domingo, depois de vender alguns-So Genaro,

    um JK e um bandeirante, Leo sentou-se numa cadeira de

    armar, sob a barraca, abriu um jornal e comeou a ler. Desde

    a vspera procurava notcia sobre um cadver desconhecido.

    E l estava ela na seo de ocorrncias policiais: fora

    encontrado o corpo dum homem boiando no Rio Tiet. E mais

    que isso: no havia morrido afogado e sim levara um tiro no

    corao, provavelmente a curta distncia. O morto no trazia

    identidade, mas a julgar pelos seus traos, supunha-se tratar

    de um estrangeiro.

  • 35

    Deve ser o homem, pensou Leo. Mas estrangeiro, com

    aquela cara de ndio? A estava a dvida, pois sempre que se

    falava de estrangeiros pensava-se em pessoas altas e louras.

    A notcia, porm, no descrevia o corpo. Gostaria de v-lo,

    disse o rapaz com uma angstia que lhe doeria o resto do

    dia.

    No almoo, como havia prometido, Guima apareceu nos

    Fantini.

    O vinho, o macarro e as polpetas no permitiram que

    tocassem no caso desagradvel do hotel. Todos pareciam

    estar com muita sede e apetite, menos Leo, que s pensava

    naquilo.

    Depois do almoo, o rapaz conseguiu ficar a ss com o

    Guima.

    Acharam um corpo boiando no rio, pode ser o

    homem.

    Sempre h corpos boiando nos rios.

    Mas esse no morreu afogado, levou um tiro.

    O que o jornal diz?

    Ele no foi identificado, mas parece estrangeiro.

    No trouxe retrato?

    No.

    Ento no tem jeito de saber.

    H, sim, Guima. Basta ir ao Instituto Mdico Legal.

    Mas voc no vai fazer isso.

    No quer ir comigo?

    Leo, seus pais no querem que se meta. E eles esto

    certos. O Baro rico, forte afaste-se dele.

    Gostaria de ir ao Instituto.

    Eu tambm. Mas no vou nem voc.

    Rafa voltava com outra garrafa de vinho e o tema foi

    posto de lado.

  • 36

    Ao anoitecer, Guima e os Fantini, de barriga cheia,

    sentaram-se diante da televiso. Havia um programa

    humorstico e todos riam muito com exceo de Leo.

    Quando foi para a cama, quase meia-noite, Leo j

    tomara uma deciso.

    AS COISAS FICAM PRETAS

    Assim que Leo disse que queria ver o corpo encontrado

    no Tiet foi levado sem problemas por um homem de avental

    e outro com jeito de detetive geladeira do Instituto.

    Supe que seja algum parente? perguntou o do

    avental.

    No respondeu o rapaz com um tremor na voz.

    Bastava um monosslabo para evidenciar seu nervosismo.

    Algum amigo? insistiu o de jeito de detetive.

    Tambm no.

    Mesmo antes de abrirem a gaveta Leo j se arrependera

    do passo e desejava ardentemente que o homem do rio no

    fosse o do 222 e da lavanderia. Estava desobedecendo o

    conselho do Guima e dos pais e isso o inquietava.

    O do avental puxou a gaveta.

    D uma espiada, rapaz. No foi pra isso que veio?

    Leo olhou como se filasse as cartas dum baralho

    observado com ateno pelos dois homens. A gaveta estava

    puxada mas no via nada, apenas sentia as batidas de seu

    corao. Quando um cheiro forte, talvez formol, lhe atingiu

    as narinas arregalou os olhos e fotografou.

    Sim, era o homem, o de cara de ndio, o homem do 222 e

    da lavanderia, o que o Baro matara.

    Conhece ele? perguntou o do avental.

    Pode fechar respondeu Leo.

    A gaveta foi fechada mas a pergunta continuou no ar.

    Se conhece, diga logo.

    Leo no sabia se afirmava ou negava. Para negar teria que

    fingir, representar; e ele no era artista.

  • 37

  • 38

    Acho que conheo disse.

    O do avental fez um gesto largo para o detetive, como se

    dissesse: o caso agora com voc.

    Voc acha ou conhece mesmo? perguntou o policial.

    Conheo.

    Como o nome dele?

    No sei.

    Ele era estrangeiro?

    Nada sei a respeito dele.

    A polcia acha que deve ser boliviano ou peruano. Que

    idioma ele falava?

    Leo sacudiu a cabea.

    Nunca o ouvi falar.

    Lidava com txicos?

    Como disse, nada sei sobre esse homem. S o vi vivo

    uma vez, e por uns segundos. E depois quando j estava

    morto.

    Onde foi isso?

    No Emperor Park Hotel.

    Vamos delegacia. Mas espero que no v fazer o

    delegado perder tempo.

    O detetive, que o homem do avental chamava de Lima,

    levou Leo para a rua onde apanharam um txi. O trajeto foi

    curto e reduzido a poucas palavras, sem novos esclare-

    cimentos. Mas o rapaz ficou sabendo que fora a nica pessoa

    que comparecera para reconhecer ou identificar o corpo.

    Na delegacia Leo teve que esperar uns dez minutos numa

    sala enquanto Lima conversava com o delegado. Depois, a

    prpria autoridade abriu a porta e pediu que entrasse. Lima j

    no estava l. Uma espcie de secretrio ou escrivo apontou

    uma cadeira para Leo. Antes de mais nada, o delegado fez-lhe

    algumas perguntas cujas respostas iam sendo anotadas numa

    ficha: nome, idade, residncia e nomes dos pais.

    Ento voc conhecia aquele homem?

  • 39

    Sim, eu o vi quinta-feira no Emperor Park Hotel, onde

    era mensageiro.

    Estava hospedado l?

    No, eu o vi no apartamento 222, do senhor Oto, um

    hspede permanente. Mas ele no me viu. Nem o senhor Oto

    percebeu que o tinha visto.

    Como foi isso possvel?

    Eu o vi pelo espelho interno do guarda-roupa.

    O que tinha ido fazer no apartamento?

    Atender a um pedido desse senhor, queria jornais.

    Continue.

    Quando voltei o hspede deixou cair os jornais, eu me

    abaixei e ento vi os ps debaixo da cama. Quando levantei

    percebi que havia uma mancha de sangue, pelo menos me

    pareceu que fosse, no robe de seu Oto. Tambm achei que

    estava muito nervoso.

    Prossiga.

    Contei o que vira ao seu Guimares, o porteiro, e umas

    duas horas depois, quando o hspede j sara, voltamos ao

    apartamento, mas no encontramos o cadver.

    Quer dizer que sumira do apartamento?

    Sim.

    Esse senhor saiu com alguma mala ou coisa assim?

    No.

    O delegado fez um ar descrente.

    O tal de Guimares acreditou que voc tinha visto um

    corpo sob a cama do hspede?

    No muito.

    Acreditou ou no acreditou?

    Acho que no.

    E o que aconteceu depois?

    A visvel descrena do delegado dificultou a narrao de

    Leo, que passou a engolir saliva, gaguejar e elevar o tom de

    voz, como se pretendesse dar-lhe mais convico.

  • 40

    No dia seguinte cedo decidi procurar o corpo no

    subsolo e fui lavanderia. Achei que o corpo estava

    escondido l.

    Por que achou?

    No sei. Talvez porque os empregados da lavanderia

    ainda no estavam trabalhando. Havia os carrinhos para

    transporte de roupa suja. Imaginei que o corpo estaria num

    deles. Mexi na roupa de todos at que vi um desses carrinhos

    com um monte de lenis numa saleta fechada. Ento

    arrombei a porta da saleta.

    Ningum viu voc fazer isso?

    Ningum. No seria mais fcil chamar um dos

    responsveis?

    Pensei que s acreditariam em mim se aparecesse com

    o corpo dentro do carrinho.

    Ento arrombou a porta?

    Arrombei e fui logo tirando os lenis do carrinho. E o

    cadver estava l, o mesmo da geladeira.

    E depois?

    Quando ia sair, algum me deu uma pancada na

    cabea. Ca, sem sentidos.

    Essa pancada deixou algum ferimento ou calombo?

    Doeu muito mas no deixou nada.

    Continue.

    Quando acordei o corpo no estava mais l.

    O delegado e o secretrio ou escrivo trocaram olhares

    que significavam descrena ou gozao. O segundo

    desaparecimento do cadver acentuava a impresso de

    histria inventada.

    E o que voc fez, moo?

    Ainda com mais dificuldade para falar, Leo prosseguiu:

    Fui contar tudo a seu Percival, o gerente.

    E ele?

    Ele me demitiu.

    Depois de nova troca de olhares com o outro homem:

  • 41

    Por qu?

    Porque Oto, o hspede, do 222, me acusara de ter

    roubado seu isqueiro. Um isqueiro muito caro, de ouro e

    prata.

    Leo sentiu que embora o delegado ainda no conhecesse

    o Baro j lhe dava mais crdito que a seu acusador. Ento

    teve uma idia: no relatar ainda que o isqueiro aparecera em

    seu bolso. Se o fizesse, poderia ser detido para averiguaes.

    Afinal o Baro tinha uma testemunha do destino de seu

    isqueiro: o gerente do hotel.

    Mas quem esse homem? perguntou o delegado.

    O tal Oto.

    um homem muito conhecido.

    No vai me dizer que Oto Barcelos?

    Parece que sim.

    Mas esse homem um santo! No h uma criana, um

    doente ou velho nesta cidade que no lhe deva alguma coisa.

    Eu tambm gostava dele. Me dava muita gorjeta.

    Mesmo assim vem aqui acus-lo?

    Ele matou um homem, doutor.

    O delegado ficou pensativo e sem pressa para tomar uma

    resoluo. At levantou-se e deu um passeio pela delegacia.

    Se o homem mesmo Barcelos o caso mais delicado.

    No posso intim-lo como se fosse um criminoso comum. E

    disse a seu secretrio: Telefone ao Park Hotel, fale com Oto

    Barcelos, e diga que vou visit-lo hoje s trs horas.

    Avisando, ele fugir opinou Leo, precipitado.

    Se estamos falando da mesma pessoa, ela no fugir.

    Alm do mais, conversei com Barcelos, mais de uma vez,

    sobre assuntos assistenciais. Ele me conhece bem. Oto

    Barcelos! Sua esposa morreu num desastre de avio. Desde

    ento passou a dedicar-se filantropia. Tem certeza de que

    esse o homem?

    Oto, do 222, um senhor gordo que faz caridade.

  • 42

    Bem, vou cuidar do caso pessoalmente. Agora v para

    casa. Provavelmente ainda ser chamado. Quem sabe ainda

    hoje.

    Leo levantou-se, despediu-se com um movimento de

    cabea e saiu da sala com a certeza de que no fora

    acreditado. Sua sorte seria se o Baro fugisse. Era a esperana

    de sair-se bem de tudo.

    Com muita pressa, Leo apanhou um txi:

    Me leve ao Emperor Park Hotel.

    Foi uma viagem curta mas angustiada. Leo parou perto

    do Park e ficou espera. Quando viu Guima porta, chamou-

    o fazendo sinais. O porteiro levou um susto e aproximou-se

    adivinhando novas encrencas.

    O que foi, garoto?

    Fui reconhecer o corpo do homem encontrado no rio.

    Era ele mesmo, o que o Baro matou.

    Bem, o que quer que eu faa?

    O resto fui eu mesmo que fiz. Um detetive me levou

    delegacia e acusei o Baro.

    Voc fez isso?

    Fiz, o delegado vir aqui s trs da tarde. Mas tem

    uma coisa: no acreditou muito em mim.

    J esperava, garoto.

    Eu contei tudo direito, menos que o isqueiro foi

    encontrado em meu bolso.

    Disso o Baro vai se incumbir.

    Estou com medo, Guima.

    Eu tambm estou. Conhece aquela histria do feitio

    que vira contra o feiticeiro, no?

    Conheo, sim.

    O importante, garoto, que no se deixe prender, se

    no ainda ser acusado de matar o tal homem. Vou lhe dar a

    chave de meu apartamento. Passe a tarde l e no saia antes

    que eu aparea ou mande algum recado. Entendeu bem?

    Entendi, Guima.

  • 43

    Seus pais sabem que foi reconhecer o corpo?

    No, fiz essa besteira sem dizer pra ningum.

    Ento no diga. No v preocup-los antes do tempo.

    Depois do almoo, esconda-se. Aqui est a chave.

    Leo enfiou a chave no bolso e afastou-se. Voltou para

    casa. Tentando agir naturalmente, almoou o suficiente para

    no demonstrar inquietao, e dirigiu-se ao apartamento de

    duas peas do Guima, que era l mesmo num pequeno

    edifcio da Bela Vista.

    A HISTRIA ACONTECEU ASSIM

    Guima trabalhava at as seis. Leo calculou que s seis e

    meia j estaria de volta. Meia hora do Park Bela Vista. Mas

    nada do Guima s seis e meia, sete, sete e meia. S apareceria

    s oito horas, muito alm do costume.

    Ao ouvir a campainha, Leo abriu a porta. Guima havia

    trazido comida enlatada.

    Est com fome?

    No.

    Dona Iolanda disse que comeu pouco. Deve estar, sim.

    Voc esteve em minha casa?

    Vim de l agora.

    Guima, me conte o que aconteceu?

    Claro que vou contar. Mas vai ter que jantar.

    O delegado esteve no hotel?

    Esteve, s trs em ponto, ele e um tira chamado Lima.

    Eu o reconheci pelos retratos nos jornais. Chama-se doutor

    Arruda.

    Por favor, Guima, comece. Estou aqui desde as duas

    horas.

    Vamos para a cozinha. Conto enquanto preparo a

    comida. Aqui no o Park, a comida em lata. E eu no tenho

    nada contra ela. Apenas meu estmago.

  • 44

    Guima rodeou mas contou tudo com detalhes e

    continuidade. Desde que Leo aparecera no hotel ficou muito

    atento. Viu quando o Baro chegou e apanhou o recado

    telefnico na portaria. Devia ser do delegado. Em seguida,

    dirigiu-se com suas banhas, apressado, aos elevadores.

    Guima acreditou que fugiria mas isso no aconteceu. Uma

    hora depois, almoava tranqilamente no restaurante do

    hotel. Depois, foi at a portaria e conversou com um dos

    funcionrios em servio. As duas e meia um grupo de

    mulheres da sociedade apareceu sua procura. Eram

    benemritas que sempre o visitavam para pedir donativos ou

    apoio s suas campanhas assistenciais. Foram conduzidas a

    um salo anexo ao das convenes. Guima, embora nada

    tivesse a fazer por l, viu quando o Baro chegou, vestido

    esportiva, e beijou cortesmente as mos das senhoras, coisa

    que sabia fazer muito bem.

    Ao passar novamente pela portaria Guima recebeu uma

    ordem do prprio gerente: quando chegasse o doutor Arruda

    deveria lev-lo ao salo onde o Baro recebia as senhoras.

    Guima viu quando o doutor Arruda entrou no hotel com

    outro homem e foi ao encontro deles.

    " Vieram falar com seu Oto?

    Viemos.

    Ele est recebendo umas senhoras. Me acompanhem".

    Guima levou o delegado e o tira ao salo. O hspede do

    222, de p, diante das senhoras sentadas, hipotecava seu

    apoio a uma campanha em prol do Natal das crianas pobres.

    O Baro mostrava-se entusiasmado pela idia, dizendo que

    participaria no apenas com donativos mas tambm com sua

    experincia. Afinal j dirigira muitas campanhas de fim de

    ano.

    " Agora tudo deve ser planificado disse at as

    atividades do corao. Fazer o bem, por mero impulso, s

    vezes resulta apenas em desperdcio".

    As senhoras com sorrisos, manifestaram sua gratido.

    " Mas isso vai lhe tomar tempo, Baro.

  • 45

    O meu j doei todo aos necessitados. Foi meu maior

    donativo."

    Agradecidas, as mulheres despediram-se de Barcelos e

    deixaram o salo quando o delegado e o detetive se

    aproximaram.

    " Sou o delegado Arruda, Baro".

    O hspede do 222 sorriu.

    " Baro apelido, devido minha gordura.

    E nobreza de seu corao acrescentou o delegado.

    Recebi seu recado, mas no precisava vir. Eu iria

    delegacia com todo o prazer. Mas o que fez o gerente do

    hotel, deu parte do garoto?"

    Guima afastou-se alguns passos mas ainda podia ouvir.

    Seria esta a inteno do Baro?

    " No, ele apareceu espontaneamente.

    Confessou outros roubos?

    Por que, ele roubou alguma coisa?"

    O Baro tirou o isqueiro do bolso.

    " Roubou o meu isqueiro, e seu Percival, desconfia que

    tenha roubado outros objetos. Mas no quero apresentar

    reclamao alguma. Por mim nem teria sido demitido.

    Isso ele no me contou disse o delegado olhando

    para o Lima. Disse apenas que o tinham acusado de

    roubo.

    Mas ento o que ele foi fazer na polcia?

    Foi reconhecer um cadver encontrado boiando no

    Tiet. Disse que conhecia o homem.

    J sei dessa histria lembrou o Baro com um

    sorriso. Esse rapazinho mesmo um ficcionista. Mas no

    precisava ir to longe para se inocentar. A no ser que lhe

    falte um parafuso.

    Ele de fato viu algum no seu apartamento? Eu

    estava com um amigo, o Anbal.

  • 46

    O garoto contou que ao voltar, com os jornais, havia

    um corpo debaixo da cama."

    O Baro tornou a sorrir, expondo mais os lbios.

    " Que bons olhos tem o garoto! Realmente havia algum

    debaixo da cama, o Anbal, que estava apanhando uma

    abotoadura. Ainda sou do tempo das abotoaduras. E com esse

    corpo de elefante no dava para pegar. Para o Anbal, magro e

    pequeno, foi fcil."

    O delegado e o Lima quase gargalharam desta vez.

    " E a mancha de sangue no robe?

    Ketchup. No dispenso Ketchup.

    Depois ele disse que encontrou o tal homem num

    carrinho de roupa suja na lavanderia.

    Pode ser, mas no era o meu amigo. Ele est bem vivo

    e posso lhe dar o endereo. Anbal Tibiri meu contador.

    No preciso disse o delegado, convencido. Est

    tudo muito claro. Agora vou conversar com o gerente.

    Desculpe-nos pelo aborrecimento, Baro.

    Aborrecimento nenhum.

    E felicidades em sua nova campanha."

    Guima contou, em seguida, que acompanhou o delegado

    e o detetive at a gerncia onde Percival fez uma lista de

    objetos desaparecidos. Alguns pertenciam aos hspedes,

    outros ao prprio hotel.

    sada, o porteiro perguntou ao doutor Arruda:

    " O que vai acontecer ao garoto?

    Vamos sua casa, agora. Alm de caluniador saiu-se

    um belo ladrozinho".

    Assim que terminou o horrio de trabalho, Guima tirou o

    uniforme, o que o deixava mais magro e menos imponente, e

    correu para a casa dos Fantini. Encontrou toda a famlia

    sobressaltada com a visita do delegado. Guima tranqilizou

    Rafa e Iolanda informando que Leo estava em seu

    apartamento.

  • 47

    " Mas no vai poder ficar l muito tempo. No hotel

    todos sabem que somos amigos.

    Ele deve ir para a casa da tia Zula disse dona

    Iolanda.

    A que cozinheira da cantina?

    Essa, l ele poder ter a companhia do Gino, seu

    primo".

    Guima comeou abrir as latas.

    Voc deve ficar l at que as coisas se esclaream.

    Agora vamos comer, depois voc v televiso, dorme e

    amanh bem cedo eu o levo casa de sua tia.

    Guima, obrigado por tudo.

    Dizem que no se pode confiar em ningum com mais

    de trinta anos mas j tenho cinqenta.

    S mais uma pergunta.

    Duas, se quiser.

    O que achou do comportamento do Baro nisso tudo?

    um homem muito seguro de si e esperto. Mas,

    embora no seja detetive, no tenho a menor dvida: ele

    matou o homem que voc viu no 222.

    ESCONDIDO NA CASA DE TIA ZULA

    Tia Zula morava numa das menores e mais antigas casas

    da Bela Vista, dessas de porta e janela, baixinha, h muitos

    anos ameaada pelo progresso. A fachada da casa j fora

    pintada muitas vezes, desde sua construo, no comeo do

    sculo, e ainda mostrava vestgios de muitas cores. O mesmo

    acontecia com a porta e a janela. Mas no interior tudo era

    muito limpo, e os mveis, pesados e escuros, muito bem

    conservados.

    Tia Zula, irm de sua me, era viva h muitos anos,

    trabalhava como cozinheira numa das cantinas do Bexiga, e

    tinha um filho de vinte anos, chamado Gino, paraltico,

    sempre numa cadeira de rodas. Zula era uma mulher muito

  • 48

    ativa, e Gino, apesar da doena, puxara seu temperamento.

    Ele se movimentava bastante na cadeira, ajudava a arrumar a

    casa, atendia porta, fazia diversos cursos por

    correspondncia, era apaixonado por futebol e ganhava

    algum dinheiro traduzindo livros infantis do ingls.

    Leo foi levado casa de Zula por Guima em seu Fusca.

    No sabia se devia ou no contar tia sua complicada

    aventura. Mas no teve esse trabalho. Assim que ela abriu a

    porta, foi dizendo:

    Seus pais estiveram aqui ontem noite. Que homem

    maldito, esse Baro!

    Titia, vou dar muito trabalho pra senhora.

    Eu j dei trabalho aos seus pais quando Gino era

    pequeno. O que no quero que abra a porta. Deixe o Gino

    abrir. Voc vai dormir no quarto dele. Pus outra cama l.

    Leo despediu-se de Guima, que lhe prometeu continuar

    bem atento no hotel.

    Leo foi cumprimentar seu primo Gino. Sabia que ele ia

    ser o seu amigo naqueles dias amargos. Gino abraou-o

    alegremente e tentou deix-lo bem vontade. Quando Zula

    foi para a cantina, l pelas dez horas, o primo quis que

    contasse com detalhes tudo que acontecera. Em nenhum

    momento mostrou dvida ou a menor descrena.

    Fiz mal em querer reconhecer o corpo do homem

    disse Leo.

    Acho que no. Fez muito bem.

    Mas veja em que situao estou agora!

    Leo, a verdade como a fumaa, sempre aparece.

    uma boa frase.

    Li num livro, se no me engano, policial.

    Ento acha mesmo que fiz bem?

    J imaginou o susto que voc deu nesse tal gordo?

    Um susto nem sempre basta.

    Mas s vezes desorienta. Aposto que ele no est

    dormindo muito tranqilo.

    Mais cedo ou mais tarde ele some disse Leo.

  • 49

  • 50

    No, ele no vai sumir. No disse que vai colaborar na

    campanha de Natal daquelas senhoras? Se desaparecesse

    estaria levantando suspeitas. E muito esperto para isso.

    Voc tem razo.

    Sabe jogar xadrez?

    Um pouco.

    Ento vamos jogar. Dificilmente consigo parceiro. O

    pessoal do Bexiga prefere damas e domin.

    Mesmo se conseguisse fixar a ateno, Leo seria derrotado

    nas trs partidas que jogou com Gino. Numa delas seu rei caiu

    em quinze lances. Noutra perdeu a rainha logo no incio.

    J vi que muito bom nisso.

    Voc deve ser melhor que eu em corrida de duzentos

    metros com barreira replicou Gino, que sempre fazia

    aluses engraadas paralisia de suas pernas.

    Voc daria um campeo nesse jogo.

    Eu s no perteno ao Clube de Xadrez porque l no

    h rampas. Para quem teve paralisia infantil as escadas so

    piores que o Baro do 222. Creio que a nica coisa que me

    derrota. O resto moleza.

    Leo sentiu que a companhia de Gino era a melhor que

    poderia ter em momentos como aqueles. Em troca das

    pormenorizadas descries que fazia do Emperor Park Hotel,

    estimulantes imaginao do primo, recebia aulas prticas

    de ingls. Gino costumava dizer que se algum dia faltassem

    as tradues dos livros infantis, tentaria viver como

    telefonista poliglota dum grande hotel. E Leo, agora que o

    conhecia melhor, com aqueles olhos apertados e vivos, no

    duvidava que chegasse Presidncia da Repblica, com sua

    cadeira de rodas, pois havia rampa no Palcio da Alvorada,

    em Braslia.

    Gino, assduo leitor de jornais, foi quem encontrou num

    vespertino uma notcia quente para Leo, ilustrada com a foto

    dum homem. Um detento reconhecera o desconhecido

    encontrado boiando no rio. Chamava-se Ramon Vargas,

  • 51

    boliviano. A polcia em seguida confirmou a identidade, pois

    Ramon j estivera preso uma vez, implicado em trfico de

    txicos. O jornal informava ainda que ele morava no Hotel

    Acapulco, de terceira categoria, na Rua Vitria.

    ele, primo?

    Claro! Mas no era ndio.

    Na Bolvia espanhis e ndios se misturaram muito.

    Acha que isso vai me ajudar?

    Gino no se mostrou otimista.

    No vejo em qu, primo.

    O chato, Gino, ficar aqui, com os braos cruzados,

    sem poder fazer nada.

    Tem razo, isso chato.

    Algum deve ter ajudado o Baro a remover o corpo

    para a lavanderia e depois para o rio.

    Quem sabe o tal amigo, Anbal, que disse estar com ele

    no apartamento.

    No, Gino, a pessoa que o ajudou trabalha no hotel.

    Um estranho no desceria o elevador com o carrinho de

    roupas sujas.

    Por que no descobre quem foi essa pessoa?

    Descobrir como, se no trabalho mais l?

    O Guima pode fazer isso.

    O Guima conhece todos os funcionrios do hotel.

    veterano l.

    Vamos falar com ele?

    Como?

    Logo adiante tem um orelho. Vou telefonar pra ele,

    dizer do que se trata e pedir que venha aqui hoje noite com

    uma lista de suspeitos.

    Voc pode sair com a cadeira?

    Por que no? No h escadas na rua. Me d o nmero

    do telefone. Vou j.

    Num minuto Gino saiu com sua cadeira de rodas como se

    estivesse dirigindo um veculo feito apenas para economizar

  • 52

    gasolina. Na sua ausncia Leo entusiasmou-se com a idia de

    contra-atacar. Afinal j fizera loucura em procurar o cadver

    na lavanderia e em identific-lo no Instituto Mdico Legal. E

    estava sendo procurado pela polcia como ladro. Piores as

    coisas no ficariam. O Baro que se cuidasse. Ia levar um

    novo susto. Ou xeque, pensou, olhando o tabuleiro de xadrez

    de Gino.

    O primo voltou bem depressa:

    Guima vem s oito com a lista.

    A LISTA

    Guima compareceu pontualmente, mas a p para que

    ningum identificasse seu carro. Como tia Zula, aquela hora,

    ainda trabalhava na cantina, os trs puderam ficar bem

    vontade na sala.

    A lista no muito grande porque j fiz alguns cortes

    disse o porteiro. A no tem, por exemplo, nenhum

    nome de mulher, pois dar uma pancada na cabea me parece

    coisa de homem. Eliminei tambm o pessoal da cozinha e do

    restaurante: nunca entram em contato com os hspedes.

    Cortei os que s funcionam no perodo noturno, j que tudo

    aconteceu de dia.

    Mesmo assim a lista ainda est grande observou

    Gino. Talvez possamos fazer mais cortes.

    Eu cortaria os empregados mais novos sugeriu Leo.

    Boa idia! exclamou Guima, entendendo o motivo.

    O Baro no se arriscaria aliciando algum que mal

    conhecesse. E imediatamente passou o lpis em quatro

    nomes da lista.

    Gino enrugava a testa para extrair da cabea nova

    sugesto. Era como fazia quando jogava xadrez.

    Tenho outro corte anunciou.

    Qual? Leo e Guima quiseram saber.

    Ouam bem. O Baro no precisaria, no hotel, de um

    colaborador intelectual. Cabea ele tem. Convocaria um

    homem de ao e provavelmente muito forte.

  • 53

    Guima e Leo entreolharam-se examinando a idia. Leo foi

    o primeiro a aprov-la.

    Parabns, Gino! Essa uma boa! O que diz, Guima?

    De acordo, Gino disse o dono da lista de lpis em

    punho. Agora, sim, d para cortar muita gente. Os mais

    fracos e os muito idosos.

    como se estivssemos fazendo um retrato-falado!

    entusiasmou-se Leo.

    Guima ia eliminando nomes.

    Vamos pensar mais um pouco disse Gino, lcido e

    calmo. O ideal reduzir a lista a uns trs ou quatro.

    Concentraram-se num nico pensamento; Guima

    tamborilava os dedos na mesa.

    Sabe duma coisa? lembrou Gino. Estamos

    precisando dum caf. Volto logo. E rumou com a cadeira

    para a cozinha.

    Logo mais, tomando caf, os trs se sentiam mais

    prximos duma nova sugesto eliminatria.

    Achei! bradou Leo.

    Vamos. Qual ?

    Leo no agentou, teve de ficar de p.

    Essa genial!

    Deixemos os elogios para depois exigiu Gino. O

    que voc bolou?

    A pessoa que me agrediu enfiou um isqueiro no meu

    bolso. Isso significa o qu? Significa que ela fumante.

    Guima, tire da lista os empregados que no fumam.

    Um momento atalhou Gino. Acha que um

    modesto funcionrio do hotel teria um isqueiro to valioso?

    Poderia ser presente do Baro!

    Os dois admitiram que sim.

    Bem disse Guima no sei exatamente quais os que

    no fumam, mas uns trs recordo com toda a certeza. Ris-

    cou os nomes. De qualquer forma a lista est diminuindo.

    J vejo o perfil do homem! exclamou Leo.

  • 54

    Mas o trabalho da por diante tornou-se mais difcil.

    Restavam na lista dez nomes, dez enigmas.

    Agora s adivinhao concluiu Guima.

    Nada de adivinhao reprovou Gino. Tudo deve

    ser lgico como no xadrez. Restam dez nomes? Voc que

    conhece todos, examine um a um. Comece. Qual o primeiro

    desses dez eliminaria da lista?

    Guima concentrou-se, tomou mais um gole de caf.

    Este, por exemplo, Rubens da Silva, est no hotel

    desde a inaugurao e sempre trabalhou em hotis. Tem

    inclusive um cargo no sindicato.

    Risque ordenou Leo. Conheo o Rubens. Homem

    muito direito.

    Isso me d outra idia falou Gino. Eu eliminaria

    da lista todos os que j trabalhavam antes da chegada do

    Baro e os que sempre exerceram a profisso. Pensem bem.

    Acho que o Baro no se arriscaria envolvendo um estranho

    nessa trama toda. Seu comparsa deve ser um de seus homens

    e no parceiro de ltima hora.

    medida em que Gino falava, Guima ia sacudindo a

    cabea, concordando. E apanhou o lpis.

    Posso cortar o Gustavo, tambm empregado desde a

    inaugurao, com mais de vinte anos de hotel. uma dessas

    pessoas que morreriam se tivessem de mudar de profisso.

    Por outro lado, no nada ambicioso.

    Oito disse Leo. Corte mais.

    Cortaria tambm o Bris. uma espcie de chefe dos

    camareiros. J foi gerente de pequenos hotis. Toda sua

    famlia se dedica ao ramo.

    Leo e Gino ficaram bem calados para que o silncio

    ajudasse o Guima a pensar.

    O porteiro riscou mais um nome.

    Quem riscou? perguntou Leo.

    Renato, outro tpico funcionrio de hotel. Acho que

    jamais ganhou um centavo noutra profisso. E da turma da

    inaugurao.

    Restam sete. Corte mais, Guima.

  • 55

    No corte apenas para diminuir a lista. Se tiver alguma

    dvida sobre a pessoa, mantenha advertiu Gino.

    Guima riscou mais um nome: Aderaldo.

    Este corto somente porque meu amigo e sei que no

    se meteria em coisas desonestas e perigosas.

    Os trs ficaram olhando para os seis nomes que haviam

    sobrado como se formassem um jogo de palavras cruzadas.

    Leo tinha mais uma sugesto a fazer embora timidamente:

    Dos seis, quantos trabalham na lavanderia?

    Trs respondeu Guima imediatamente.

    Vamos nos concentrar nesses disse Gino. Afinal o

    corpo foi para a lavanderia. Sua idia tem bastante lgica,

    Leo. A presena de algum que trabalhasse noutro

    departamento chamaria muito a ateno.

    Nem tanto atalhou Guima os camareiros vo

    freqentemente ao subsolo.

    Quem so os trs? indagou Leo.

    Guima foi lendo os nomes e fazendo comentrios.

    Maneco, um portugus muito forte. Trabalha h mais

    de um ano na lavanderia; Luizo, um crioulo que no gosta de

    falar muito. E Hans, Hans o chefe ou encarregado como

    dizem.

    Ser que eles ou algum deles conhece o Baro?

    No sei, Gino respondeu Guima.

    Voc conhece bem os trs?

    Apenas o Alemo, o apelido de Hans.

    Gino fez uma pergunta direta:

    Qual desses tem mais cara de delinqente?

    Guima balanou a cabea, incapaz de dar uma resposta.

    Para mim so unicamente lavadores de roupa.

    Houve uma longa pausa de desnimo total. A lista fora

    reduzida a trs nomes mas a grande incgnita persistia. E

    nada induzia a desconfiarem mais de um do que dos outros.

    Leo e Guima olharam para Gino, o jogador de xadrez, de

  • 56

    quem esperavam um lance superinteligente, mais um xeque

    no ao rei mas ao Baro.

    O que esses homens faziam antes de trabalharem no

    Park?

    Guima tornou a balanar negativamente a cabea:

    No sei.

    Era o que gostaria de saber disse Gino.

    Voc pode descobrir?

    Posso, no Departamento de Pessoal.

    Acha que dariam a informao?

    Claro que no informam, mas um dos rapazes que

    trabalham l, o Danilo, uma espcie de afilhado meu. E deve

    o emprego a mim. Se ele for legal, como espero, poder dar

    uma olhada na ficha dos trs. Cr que vai ser til?

    Gino no estava convicto mas apegava-se a uma teoria.

    O presente de um homem narrado pelo seu passado

    disse. Isso mais do que simples intuio.

    Guima levantou-se, decidido.

    Amanh, s mesmas horas, volto. Ciau.

    Leo foi para a cama mais esperanoso que nas noites

    anteriores. Mas no dormiu logo a pensar na lista do Guima,

    nos trs nomes que restaram e em ngela. A impossibilidade

    de v-la multiplicava seu sentimento por ela. Outro mal que o

    Baro lhe causara.

    O NOME QUE RESTOU NA LISTA

    No dia seguinte, logo pela manh, Leo recebeu uma

    visita: dona Iolanda. Ela no estava nada tranqila. A polcia

    tornara a aparecer na casa dos Fantini, exigindo a presena

    de Leo na delegacia. Seus pais diziam que ignoravam seu

    paradeiro quando o nono entrou em cena, cheirando a vinho,

    e berrou aos policiais que seu neto no era ladro e que

    mesmo se soubesse onde ele estava, no revelaria. Houve

    um bate-boca entre os policiais e os Fantini que comeou na

  • 57

    sala-de-visitas e foi at a porta da rua. Alguns vizinhos, que

    conheciam a famlia h vrias dcadas, boa gente do Bexiga,

    entraram na discusso atestando em altos brados a excelente

    conduta de Leo, no dizer deles um dos melhores rapazes do

    bairro. Os policiais, sempre a exigir a presena de Leo na

    delegacia, e sob uma chuva de argumentos e insultos,

    entraram numa RP e desapareceram.

    Por isso no bom pr o nariz pra fora de casa

    implorou dona Iolanda.

    Fique sossegada, me. No saio at que tudo se

    esclarea.

    Voc tem comido bem?

    Acha que se come mal na casa de tia Zula?

    Com muitas lgrimas, dona Iolanda despediu-se de Gino

    e do filho, afirmando que fizera promessa ao Menino Jesus de

    Praga para que aquela complicao logo tivesse fim.

    tarde, enquanto jogava xadrez com Gino, Leo, j bem

    ntimo do primo, contou-lhe tudo sobre ngela. Gino ouviu

    com o maior interesse mas logo demonstrou que nesse

    terreno no sabia dar conselhos. Mesmo assim opinou:

    Pode ser mais fcil pr o Baro na cadeia do que

    convencer os pais dessa moa a aceitar o namoro.

    Leo riu, porm sentiu que aquilo era mais que uma

    pilhria e mudou de assunto.

    noite Guima apareceu. Gino j fizera o caf para

    receb-lo. Ele estava com boa cara, quase alegre.

    Falou com o Danilo? foi perguntando Leo.

    Assim que cheguei respondeu Guima. E depois do

    almoo j tinha a resposta escritinha num papel.

    Vamos l! disse Gino, inquieto.

    Maneco, o portugus, de Santos, onde trabalhou oito

    anos num hotel, tambm na lavanderia. Luizo, o mulato,

    veio do Sul de Minas. Trabalhava em postos de gasolina. E

    Hans era lutador de jud e luta-livre. Essas marmeladas da

    televiso. A est o currculo dos trs.

    Gino voltou-se para Leo com um brilho nos olhos.

  • 58

  • 59

    Leo, voc tem idia do que usaram quando o puseram

    a nocaute?

    No tenho a menor idia.

    Teria sido um golpe a mo livre? Qualquer pedao de

    pau ou instrumento deixaria um galo na cabea, no

    verdade? E, depois, o agressor no estaria sua espera.

    Provavelmente foi surpreendido com voc na tal saleta.

    Leo e Guima concordavam a cada palavra que Gino dizia.

    O raciocnio do jogador de xadrez funcionara. O desmaio fora

    obra dum faixa preta. Quem sabe um profissional do jud ou

    de luta-livre.

    Acho que o homem disse Leo em voz baixa.

    Hans Franz Mller.

    Gino, voc fabuloso! exclamou Leo, abraando o

    primo.

    Obrigado! Hans o parceiro ou assecla do Baro. E

    agora?

    Guima, que evidentemente no era jogador de xadrez,

    disse a primeira coisa que lhe surgiu cabea:

    Vamos avisar a polcia.

    Mas que provas ns temos contra Hans? replicou

    Gino. Ter feito lutas de marmelada em circos e na televiso

    no crime. Pode ser at que tenha um passado limpo. Avisar

    a polcia seria mover errado uma pea do tabuleiro.

    Ento vamos continuar com os braos cruzados?