o mistério do cinco estrelas
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Capa e Ilustraes: Jaime Leo
Projeto Grfico: Ary Normanha
Suplemento de Trabalho: Marina Appenzeller
CIP-Brasil. Catalogao-na-Fonte
Cmara Brasileira do Livro, SP
Rey, Marcos, 1925
%351m O mistrio do cinco estrelas / Marcos Rey.
2.ed. 2. ed. - So Paulo : tica, 1981.
(Vaga-lume)
1. Romance brasileiro 1. Ttulo.
81-0115 CDD-
869.935
ndices para catlogo sistemtico:
I. Romances : Sculo 20 : Literatura brasileira
869.935
2. Sculo 20 : Romances : Literatura brasileira
869.935
1981
Todos os direitos reservados pela Editora tica S.A.
R. Baro de Iguape, 110 - Tel.: PBX 278-9322 (50 Ramais) C.
Postal 8656 - End. Telegrfico "Bomlivro" - S. Paulo
Formatao:
LAVRo - Luis Antonio Vergara Rojas
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Dados Biogrficos
Marcos Rey, pseudnimo de Edmundo Donato, nasceu na
capital de So Paulo, em 1925. Seu pai, Lus Donato, grfico
que trabalhara na Editora Monteiro Lobato, pioneira no ramo
editorial no pas, era um constante devorador de livros de
fico, hbito que transmitiu aos filhos. Seu irmo mais
velho, o escritor Mrio Donato, recebendo o estmulo
paterno, escreveu romances de sucesso alcanando xito
tambm na literatura infanto-juvenil.
O autor de O Mistrio do Cinco Estrelas publicou aos
dezesseis anos os primeiros contos. E desde sua novela de
estria, Um Gato no Tringulo, que apareceu em 1953, j
lanou cinco romances, trs livros de contos, dois de
divulgao e um de fico infantil. Em todos eles o cenrio
a cidade de So Paulo com sua agitao de metrpole, mistura
de raas, problemas e enigmas.
Redator de programas de televiso, adaptou para a
juventude, em forma de telenovela, os clssicos O Prncipe e
o Mendigo, de Mark Twain, e A Moreninha, de Joaquim
Manuel de Macedo. Foi um dos autores de "scripts" de Vila
Ssamo e desde 1978 incorporou-se equipe de redao de O
Stio do Picapau Amarelo.
Seu primeiro contato com a literatura infantil foi como
tradutor de livros do ingls, em parceria com seu irmo Mrio
Donato. Em 1961, para a coleo juvenil Conquistas
Humanas escreveu o volume Habitao, que conta a histria
da residncia do homem desde os tempos das cavernas.
No gnero fico infantil estreou recentemente com No
Era Uma Vez, o drama de um menino procura de sua
cadelinha perdida nas ruas da cidade. Neste, O Mistrio do
Cinco Estrelas, com humor, suspense e um pouco de lirismo,
Marcos Rey volta a focar a cidade de So Paulo como
fascinante cenrio de um enredo de grande impacto.
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a histria dum Davi contra um Golias. O
pequeno Davi da Bblia venceu o gigante Golias
apenas com uma pedra e uma funda. Mas h
outros meios de se derrubar grandes
obstculos. A persistncia no o mais prtico
mas talvez seja de todos o mais eficiente.
O autor
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O 222
Leo apertou a campainha do 222, recebera um chamado.
Logo se abria um palmo de porta mostrando a cara e o sorriso
largo do Baro. Embrulhado num robe azulo, ele parecia
ainda mais gordo, mole e displicente.
Me traga os jornais de sempre pediu o hspede
passando ao bellboy uma nota amassada.
Esse dinheiro no vai dar, senhor.
Tem razo. Um momento.
Quando abriu o guarda-roupa para apanhar a carteira,
Leo viu pelo espelho interno do mvel que o Baro tinha
companhia: um homem pequeno, com pinta de ndio vestindo
roupas civilizadas, lavava concentradamente as mos na pia
do banheiro. Devia ser uma daquelas muitas pessoas que o
Baro ajudava, pensou o rapaz.
O volumoso hspede do 222 demorava para encontrar a
carteira nos bolsos de seus palets, enquanto o bellboy
aspirava vrios cheiros do apartamento: o de charutos j
fumados e amanhecidos, um mais agradvel de lavanda e
ainda outro de ma, sempre vendo pelo espelho o tal
homenzinho a lavar as mos e a enxug-las em toalhas de
papel que ia jogando numa cesta. Depois, com o sbito receio
de ser visto pelo espelho do guarda-roupa, fechou a porta do
banheiro com uma cotovelada.
Afinal o Baro reapareceu com mais dinheiro e um novo
sorriso.
O troco seu, meu filho.
Leo disparou pelos corredores acarpetados do Emperor
Park Hotel, esperou e apanhou o elevador e passou pela
portaria. Novato ainda no emprego provava com a velocidade
das pernas seu interesse pelo trabalho. entrada do edifcio,
em seu belo uniforme branco com debruns dourados, viu o
Guima (Guimares), o porteiro, antigo amigo de sua famlia, a
quem devia o salrio, aquelas gorjetas todas e a nova
profisso.
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Ao entrar pela primeira vez com o Guima, h dois meses,
no imenso e rico saguo do Park, como o chamavam
simplesmente os funcionrios, Leo ficou deslumbrado. No
seu mundo da Bela Vista, o bairro do Bexiga, onde nascera e
morava, jamais pisara num ambiente to bonito, moderno e
fofo. "Isso que um cinco estrelas", explicou o porteiro com
orgulho de proprietrio. "Mas o que um cinco estrelas?"
Guima olhou-o como se sua ignorncia lhe fizesse pena e
disse que a qualidade dos hotis medida pela quantidade de
estrelas que ostenta. Cinco o mximo, s para
estabelecimentos de nvel internacional.
Era uma sexta-feira; na segunda, j fardado e registrado,
Leo comeava a trabalhar no Emperor Park Hotel como
bellboy, mensageiro, das 8 s 18 horas, quando voltava para
casa, jantava s pressas e corria para a escola noturna. O
horrio era puxado e o servio de cansar as pernas, mas as
gratificaes compensavam. Recebia gorjetas inclusive em
dinheiro estrangeiro. Logo conheceu a cor do dlar, da libra,
do peso, do franco, da peseta, que trocava por cruzeiros l
mesmo na casa de cmbio do Park.
Leo precisou de um ms para percorrer os vinte e tantos
andares do hotel, sem contar os subterrneos destinados s
garagens, lavanderia, depsito de gneros alimentcios,
adega, almoxarifados, um labirinto frio e deserto em muitas
horas do dia.
No era, porm, no proletrio subsolo que o rapaz da
Bela Vista encontrava satisfaes e interesses. Gostava de
vagar pelo saguo, sempre cheio de hspedes que chegavam
ou partiam, numa confuso de malas, rtulos e idiomas, de
espiar a piscina, no quarto andar, com suas guas muito
cloradas, dum verde para ricos, o restaurante, com seus
odores caprichados, a luxuosa boate, o imponente salo de
convenes, o tropical garden, pequena floresta onde serviam
gelados e sanduches, a sauna, que vendia calor e fumaa, a
quadra de shopping, com suas lojas sofisticadas, e no alto, l
em cima, o belo bar-terrao, coisa de cinema, com pista de
dana, solrio e um mirante envidraado para se ver So
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Paulo inteira, luz do sol, eltrica ou de vela em jantares ou
ocasies especiais.
A maioria dos hspedes do Park tambm parecia ter
cinco estrelas estampadas na testa: gente importante,
preocupada com telefonemas internacionais, polticos,
desportistas e artistas famosos que recebiam jornalistas ou
deles fugiam, evitando fotos e entrevistas. Logo na primeira
quinzena de Park Leo esteve a dois metros de distncia de
Vera Stuart, atriz do cinema norte-americano, carregou as
malas dum automobilista francs de Frmula 1, e levou uma
garrafa de mineral ao apartamento de um dos reis do
petrleo do Oriente Mdio, vestido em trajes tpicos.
Havia, ainda, hspedes que moravam no hotel: dona
Balbina, viva rica e solitria, Mister O'Hara, que embora
muito idoso e doente dirigia uma grande empresa quase sem
sair do apartamento, o ano Jujuba, dolo infantil da
televiso, e o Baro. Certamente Baro era apenas apelido do
homem gordo que mandou Leo comprar jornais, conhecido
benemrito, protetor de inmeras instituies assistenciais.
Leo voltou com os jornais e tocou a campainha do 222.
Desta vez o hspede no abriu de imediato a porta. Antes que
o fizesse, o bellboy ouviu rudos.
Quem ? perguntou o Baro, o que nunca fazia.
Sou eu, o bellboy. Trouxe os jornais.
A porta abriu pouco e lentamente, o suficiente apenas
para mostrar o rosto do hspede. O Baro muito plido, como
um doente, teimava em sorrir, mas no devia estar bem
porque suas mos, trmulas, deixaram cair os jornais. Leo
abaixou-se para apanh-los quando viu, sob a cama, dois ps
calados, apontando para a porta. Pegou os jornais e ao
levantar-se notou que havia uma mancha vermelha,
provavelmente de sangue, no robe do gordo do 222.
Obrigado disse o Baro, segurando confusamente os
jornais e apressando-se em fechar a porta.
Mesmo diante da porta fechada, Leo deteve-se ainda um
momento para relembrar e fixar na memria a cena que
acabara de ver. Da por diante comeariam seus problemas.
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GUIMA, SABE O QUE EU VI?
Leo desceu para o saguo desejando que ningum o
chamasse. Precisava contar ao Guima o que vira no 222. O
porteiro, na rua, parava um txi para um casal de hspedes
estrangeiros. Ele era bastante considerado pela gerncia
porque falava um pouco diversos idiomas, at japons.
Guima, assim que o viu, aproximou-se:
Diga a dona Iolanda que domingo passo l pra filar
macarronada.
Leo estava agora mais assustado do que no momento em
que vira os ps debaixo da cama.
Guima, sabe o que eu vi?
O porteiro sentiu que o rapaz estava sob forte tenso e
ficou muito preocupado. Para um bellboy no era interessante
ver certas coisas. Alis, o perfeito mensageiro no tem olhos
nem ouvidos: apenas pernas e cortesia.
Alguma mulher sem roupa?
No, acho que vi um cadver.
Em que programa de televiso?
No brincadeira, Guima. Vi um cadver debaixo
duma cama. Sabe onde? No apartamento 222, o do Baro.
Mas como viu esse cadver?
Leo foi contando tudo a partir do chamado para comprar
jornais quando pelo espelho do guarda-roupa embutido vira o
tal homenzinho com cara de ndio que lavava as mos. Embora
sorrindo aos hspedes que entravam e saam, Guima prestava
toda a ateno e ia se contagiando pela mesma ansiedade. Mas
precisava fazer perguntas para eliminar a hiptese de iluso.
Acalme-se, Leo, respire fundo e depois me diga se viu
mesmo uma pessoa debaixo da cama.
Vi, juro.
A mesma pessoa que j tinha visto?
No sei, s vi dois ps, desta vez.
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Guima abriu os braos sem saber o que dizer e muito
menos o que fazer.
Se h um cadver no 222, logo saberemos.
Chegou a vez de Leo fazer perguntas:
Voc viu entrar um homem como descrevi? Baixinho,
cara de ndio? Usava um terno azul metlico.
A resposta veio logo:
Se vi, no notei.
Voc est sozinho aqui na porta?
Desde o meio-dia. O outro porteiro foi ao mdico.
Leo continuava atnito, querendo orientao.
O que fao, Guima?
A resposta foi seca mas pensada:
Nada.
Isso direito?
O importante seu emprego, Leo. O que ganha aqui
no ganhar noutro lugar. Fique bem quieto e aguarde. Se h
um cadver, ele vai aparecer.
O bellboy voltou ao saguo e aproximou-se dos
elevadores. Precisava conversar com os dois ascensoristas em
servio. A ambos perguntou se haviam levado um homem
baixinho, com cara de ndio, para o segundo andar. Um
garantiu que no e o outro no lembrava. Leo subiu ento
para o andar do gordo e foi procurar a camareira, uma mulata
chamada Jandira.
Voc viu algum entrar no 222?
No vi.
J arrumou o apartamento?
No, ele ps o "No perturbe" na porta. Deve estar
dormindo.
O rapaz dirigiu-se sala onde os mensageiros se reuniam
espera dos chamados. Ningum vira o homem de cara de
ndio entrar nos elevadores ou no 222. Com o saguo, to
movimentado, dificilmente uma pessoa insignificante como
aquela seria notada. E talvez tivesse subido pelas escadas, j
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que o Baro morava logo no segundo andar. Lembrou-se do
homem empurrando a porta do banheiro com uma cotovelada
para no ser visto. Que motivo teria para temer sua imagem
no espelho?
Aquela tarde Leo trabalhou como sempre. Subia e descia
os andares atendendo a constantes chamados. Mas a
movimentao no impedia que pensasse no que vira e
sempre que cruzava com Percival, o gerente, sentia vontade
de contar-lhe tudo.
Quando seu horrio se esgotava, viu o Guima no saguo.
Guima, vamos falar com o gerente?
Ainda acho que no devemos nos meter.
Estive pensando, Guima. Se h um cadver no 222
tenho que comunicar gerncia. O Manual dos mensageiros
diz que devemos relatar aos superiores toda e qualquer
irregularidade.
Bem, j passaram algumas horas ponderou Guima.
Queria que tivesse tempo para pensar. J teve esse tempo.
Vamos ento.
Se no quiser, no precisa. Vou s.
Guima olhou na direo dos elevadores:
Veja quem vem vindo.
Leo olhou: era o Baro, com a chave, que se dirigia
portaria, muito calmo, e com aquele sorriso to gordo como
seu rosto.
Por favor pediu no balco. Mandem a camareira
arrumar meu quarto.
Assim que o Baro saiu do hotel, Leo e Guima subiram.
Encontraram Jandira no corredor.
Arrume o 222 disse-lhe o rapaz.
A moa abriu a porta do apartamento. Leo espiou debaixo
da cama. Guima procurou vestgios de sangue no cho do
banheiro e nas toalhas. Intil.
Vamos ver no guarda-roupa.
Bom lugar para se esconder um cadver disse
Guima.
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A porta do guarda-roupa estava apenas encostada.
Ser que Jandira no vai dizer que estivemos aqui?
Ela pensa que estamos procurando alguma coisa para
ele. Vamos embora.
No corredor, Leo perguntou ao Guima:
Acha que menti?
Mentiroso, voc? O filho do Rafa?
Ento que foi uma iluso. Isso?
No estou pensando nada, meu chapa. Mas aquele
homem que ns vimos l embaixo, com aquela calma, no
estava com jeito de quem acabou de matar uma pessoa,
estava?
Leo curvou a cabea, concordando:
No estava.
UM VELRIO SEM CADVER
Leo foi a p do Park Bela Vista. No tinha pressa, eram
as frias de fim de ano e precisava de tempo e espao para
pensar. Teria sido vtima duma iluso? H pessoas assim,
basta olharem para o cu e vem discos-voadores. Gente que
vive mais de fantasia que de realidade, doentes da cuca que
imaginam coisas que no viram nem aconteceram. Sofreria
dessa enfermidade? Ou andava intoxicado pelo excesso de
leituras policiais e de filmes seriados da televiso? Ou, ainda,
quem sabe, o ambiente cinematogrfico do Emperor Park
Hotel, com seu variadssimo elenco de personagens, to
diferente do seu mundo, tinha lhe afetado a mente?
Voc no viu nada, Leo disse a si mesmo j na rua
onde morava. Tudo imaginao. Amanh, no Park, vou dar
at risada. E com apetite!
A famlia de Leo vivia numa casa muito velha como eram
quase todas do bairro. Seus pais, Rafael e Iolanda, haviam
nascido l, no Bexiga, um dos ncleos italianos da cidade;
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conheceram-se na infncia, mas s se casaram depois de um
dos noivados mais longos do quarteiro. Rafael, que todos
chamavam de Rafa, era ento marceneiro e Iolanda trabalhava
numa cantina de parentes. Casaram e alugaram aquela casa,
j desbotada por dentro e por fora, precisando duma urgente
reforma, sempre adiada por falta de dinheiro. O pai de Rafa,
seu Pascoal, vivo, comilo e contador de histrias, foi morar
com o casal, como inquilino, mas s pagou o primeiro ms.
Depois, perdendo o emprego numa vidraria, no trabalhou
mais e no se falou mais em pagamento. Ao contrrio da
maioria das famlias italianas, Rafa e Iolanda tiveram apenas
dois filhos, Leonardo, agora com dezesseis anos, e Diogo,
com doze. Mas a casa, principalmente nos fins de semana,
estava sempre lotada de parentes e amigos, quando dona
Iolanda fazia na cozinha tudo que aprendera na cantina.
O Guima disse que vem aqui domingo disse Leo
sua me.
Ento vou preparar algum prato especial. Ser que ele
gosta de aspargo? Mas se no gosta, ficar gostando, do jeito
que eu fao. Precisamos agradar bastante esse homem.
Arranjou um emprego para voc.
verdade concordou Leo. O ordenado pequeno
mas as gorjetas so boas. O Guima comprou um Fusca e um
apartamento com elas.
Por isso cuidado, filho. No v perder esse emprego.
Outro assim voc no arranja mais.
No vou perder, me. L todos gostam de mim.
Em seguida Leo foi para a oficina, como chamavam o
quarto dos fundos, onde Rafa fazia esculturas em madeira.
Cansado de trabalhar como marceneiro, descobrira que era
artista e passou a tornear lindas peas que vendia nas
cantinas do Bexiga e principalmente na feira hippie da Praa
da Repblica. Pascoal, o nono, ajudava-o a produzir as peas
e Leo a vend-las. Quem no gostava muito da arte era dona
Iolanda que preferia o operrio ao escultor porque o primeiro
ganhava mais que o segundo. Mas Rafa, artista, detestava
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submeter-se a horrios e obrigaes, e acreditava que seu
talento um dia seria reconhecido.
Eh, filhote, como vai o hotel?
Tudo bem, pai. Guima vem almoar aqui domingo.
Bom mesmo. Quem sabe ele consiga vender minhas
esttuas aos hspedes do Park. Bom papo o que no lhe
falta.
Ento vamos jantar. A me fez polpetas.
Sempre se comeu muito bem na casa dos Fantini; mesmo
quando o dinheiro desaparecia. Dona Iolanda no precisava
ter a despensa e a geladeira cheias para preparar os pratos
mais saborosos. Rafa dizia que ela fazia mgica na cozinha, e
era verdade.
Leo jantava com os olhos no prato, doido para dar um
passeio no Morro dos Ingleses. Numa cabeceira da mesa
estava seu pai e noutra o nono, com seus quase oitenta anos,
uma das figuras mais conhecidas do Bexiga, onde sempre
morara e exercera as mais variadas profisses: linguiceiro,
pedreiro, vidraceiro, pintor de paredes, consertador de tudo
que quebrasse e cabo eleitoral.
Ao lado de Leo, espera de elogios pelas polpetas, comia
dona Iolanda, mulher bonitona e forte, e diante dele, Diogo, o
caula, um dos moleques mais barulhentos e rebeldes do
Bexiga. Mas perto dos pais dava uma de santo, convencendo-
os de que era inocente de todas as acusaes que a
vizinhana lhe fazia.
Leo terminou o jantar e nem esperou o caf.
Onde vai? perguntou a me.
Dar umas bandas por a.
Vai atrs daquela menina outra vez?
A famlia toda sabia da gamao de Leo por ngela. Mas
Rafa e Iolanda, Iolanda mais que Rafa, condenavam esse
quase namoro porque os moradores do Morro dos Ingleses
pertenciam a outra classe social, eram mais gr-finos, e
quando h essa diferena entre namorados, nunca d certo.
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Vou espiar os teatros disse Leo. s vezes consigo
entrar sem pagar, quando h alguma estria.
O alegre bairro do Bexiga, alm de ser o das antigas casas
paulistanas, do po italiano e das cantinas, tambm o dos
teatros, que s vezes Leo freqentava se os espetculos no
eram proibidos para menos de dezoito anos. Mas, aquela noite,
sua inteno era a que sua me adivinhara: dar um passeio pelo
Morro dos Ingleses, l perto, na esperana de ver ngela.
Leo e ngela no eram namorados e jamais haviam
marcado encontro. Estes eram casuais ou disfaradamente
provocados pelo rapaz. Se ela saa porta do edifcio, ou ia
confeitaria, Leo materializava-se diante dela, com cara de
quem no queria nada, e puxava conversa. ngela nem sempre
lhe dava ateno, apressada ou indiferente, mas outras vezes
se portava como uma quase-namorada, e ficavam esquina ou
davam voltas ao quarteiro conversando sobre mil assuntos.
Juntos, em ambiente fechado, s haviam estado uma vez, na
grande discoteca do bairro, esse sim um encontro casual,
quando Leo viveu uma de suas noites mais maravilhosas.
Embora ela estivesse com um grupo, foi com ele que ngela
preferiu danar horas inteiras. Leo imaginou que dessa noite
em diante ficariam namorados, e as coisas melhorariam,
porm se enganou. A garota logo em seguida voltou a v-lo
apenas como um conhecido, entre os muitos que possua, e a
esnob-lo discretamente. Ele ento decidiu no procur-la
mais. Essa deciso no entanto durou apenas uma semana,
abandonada ao concluir que ngela era de fato, e sem dvida,
feliz ou infelizmente, seu primeiro amor.
Aquela noite Leo precisava ver e conversar com ngela
mais do que nunca. Tinha a impresso de que s um papo
com ela poderia fazer com que esquecesse o cadver visto ou
imaginado no apartamento do Baro. Mas ela no estava na
porta. Deu uma longa volta no quarteiro, parou diante do
Teatro Galpo, tomou um refrigerante num bar, sem ter
vontade, e voltou ao endereo de ngela. Outra vez no a
encontrou e j retornava para casa quando uma voz
inconfundvel o chamou.
Leo! Leo!
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Ele parou e viu ngela, linda como um bolo de noiva, vir
vindo, ligeira, em sua direo.
Como vai, ngela? Eu ia passando.
Da minha janela vi voc passar duas vezes. Estou
dando umas voltas. isso a.
Leo tentava mostrar-se indiferente ou natural, nem
sempre conseguia. Principalmente quando ngela estava
muito bonita como naquela noite. Usava um vestido branco e
inventara um penteado que a tornava mais alta e atraente.
Sabia que tinha quinze anos incompletos porm parecia uns
dezoito. E seu maior receio era ter que disput-la com rapazes
mais velhos, em idade que j se fala em noivado e casamento.
Vamos dar um passeio sugeriu Leo.
Lamento mas no posso. Meus pais saram e estou s
com a empregada.
No faz mal. A gente conversa aqui mesmo.
S quis lhe dar um al.
Voc no vai entrar agora, vai?
Quero assistir televiso antes de dormir.
Que programa?
No sei, qualquer um.
Mas a gente no tem se visto.
Outro dia ns conversamos. S quis saber como estava
passando.
ngela aproximava-se e pelo motivo mais banal recuava.
Para ela tudo ficava para outro dia e vez. Leo no entendia
muito de moas, porm imaginava que costumavam agir
assim quando no tinham nenhum interesse ou quando o
tinham demais. Mas no queria voltar cedo para casa nem
sofrer o vazio que ngela deixava ao ir embora. Para tentar
ret-la, disse:
Houve um crime no hotel.
Houve? J saiu nos jornais?
Ainda no. E talvez nem saia. Eu entrei num
apartamento e vi o corpo dum homem debaixo da cama.
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E o que voc fez? perguntou ngela com reduzido
interesse.
Bem, eu falei com o Guima, o porteiro, e mais tarde
ns dois fomos ao apartamento, quando a camareira fazia a
arrumao, mas j no encontramos nada.
Voc tem certeza de que era um homem?
Tinha, at que voltei l e no o vi mais.
E o que o Guima diz?
Ele acha que foi iluso porque quem mora nesse
apartamento, um tal de Baro, uma boa pessoa e no
cometeria um crime.
ngela olhou Leo com muita seriedade e disse uma coisa
que permaneceria a noite toda em sua cabea.
Voc no desses que vem o que no existe. Se viu um
homem debaixo da cama, havia um homem debaixo da cama.
Como sabe que no sou desses? Posso ser um tanto
maluco e voc no sabe.
Voc no maluco garantiu ngela.
Ento, o que acha que devo fazer?
Isso no sei. Mas penso que deve ficar quieto em seu
canto. Meu pai advogado e sempre diz que um pobre
dificilmente consegue pr um rico na cadeia.
Leo reconheceu que era conselho de gente madura, o
mesmo que seus pais dariam, e aceitou-o como fim de
conversa. Mas a confidncia, apesar de sua dramaticidade,
no prolongou mais o encontro. ngela queria mesmo ver
televiso. Como novidade, deu-lhe um beijo rpido no rosto e
correu para o edifcio sem olhar para trs.
UM MERGULHO NOS PORES DO HOTEL
Na manh seguinte, enquanto tomava caf na cozinha, e
ouvia o nono cantar no banheiro "Sappore di Mare", Leo
virava as pginas dum matutino na esperana de encontrar
notcia sobre algum crime misterioso ou desaparecimento de
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algum com cara de ndio. No encontrando nada assim, com
os olhos no relgio, deu um beijo estalado em dona Iolanda e
disparou para a rua.
Menos duma hora depois, fardado, Leo j era o veloz e
solcito bellboy do Emperor Park Hotel, subindo e descendo
pelos elevadores, carregando malas, sorrindo para os
hspedes e recebendo gorjetas. S muito tempo depois teve
oportunidade de aproximar-se do Guima, na porta.
Guima, me diga uma coisa: o Baro amigo de algum
hspede aqui no hotel?
Ainda no esqueceu aquela histria?
Vamos, diga.
Ele muito chegado Balbina, a viva.
Leo desanimou.
Mas ela mora no dcimo-segundo.
O que tem isso?
O Baro no poderia levar um cadver do segundo
para o dcimo-segundo.
Mais uma prova de que voc teve uma viso ontem
tarde.
Leo voltou para o saguo e dirigiu-se aos elevadores. Mas
no subiu, desceu. Precisava percorrer o subsolo e meter o
nariz em todos os cantos possveis. Aquela hora da manh o
movimento ainda no era intenso. Como se executasse
ordens, e tentando agir com naturalidade, embora sempre
atento a tudo, entrou na adega e no imenso depsito de
gneros alimentcios. O almoxarifado ainda estava com as
portas cerradas. Deu uma olhada na oficina de consertos de
aparelhos de rdio e televiso. Entrou em diversas salas e
saletas com apenas alguns mveis, sem utilidade definida.
Subitamente pareceu-lhe absurdo vagar por aqueles
corredores frios como se fosse um inspetor sanitrio. Se o
corpo tivesse sido levado para o poro, por quem quer que
fosse, no o deixariam l at o dia seguinte. A noite seria
quase com certeza o melhor perodo para se livrarem dele.
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Como ltima etapa da procura, Leo foi at a lavanderia,
ainda deserta, porque l o trabalho ainda no comeara.
Passando entre montanhas de fronhas e lenis, ocorreu-lhe
que no poderia haver no hotel lugar melhor para se
esconder um corpo durante algumas horas. Lembrou-se que
seu horrio de servio era das 10 s 17. E fora pouco antes
das 5 que levara os jornais ao Baro. Quem transportou o
corpo no teve problemas com os funcionrios da lavanderia.
Mas um enigma persistia: como fora feito o transporte?
Descer com um cadver pelas escadas ou elevadores era
impossvel. Principalmente num fim de tarde quando havia
desfile interminvel de hspedes e mensageiros.
J encaminhava-se aos elevadores, voltando ao trabalho,
quando viu um carrinho metlico usado para carga de roupa
suja. E aquele no era o nico, o hotel possua dezenas. As
camareiras estavam sempre os empurrando pelos corredores
e descendo com eles pelos elevadores. No precisou andar
muito para ver outros estacionados junto s paredes. Leo
decidiu examinar todos que sob as roupas pudessem ocultar
um cadver. No salo principal da lavanderia a um simples
exame nada encontrou. No corredor que ligava a lavanderia
ao almoxarifado viu outros carrinhos, todos descarregados.
Se o cadver est num deles, pensou Leo, quem o trouxe no
o deixaria to vista. Lembrou-se das inmeras saletas sem
uso freqente. E todas tinham um amplo visor. Bastaria
espiar do corredor para ver o que havia dentro delas. Foi o
que fez, com a impresso de que ficava quente, como nas
brincadeiras da infncia. Justamente na ltima saleta do
corredor, entre um mundo de caixotes, viu um carrinho cheio
de fronhas e lenis. Quis entrar, estava fechada. Verificou
outras saletas, todas abertas. Por que passaram a chave
naquela? O cadver est aqui, concluiu Leo, por algum motivo
que ignoro no o levaram para fora do hotel ontem noite.
Hesitava entre chamar o Guima ou correr gerncia. E se
houvesse no carrinho apenas roupa? Como saber? S havia
um jeito: abrir a porta na marra. Mesmo assim a ao no foi
imediata deciso. Respirou forte, levando sua convico aos
pulmes, antes da primeira ombrada. A porta no cedeu.
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22
Apenas uma rangida. No terceiro impacto o ombro
comeou a doer, porm no desistiu. Agora era verdadeira
luta contra a porta com sons surdos e ecos prolongados. s
vezes trocava de ombro mas a vontade de entrar na saleta
continuava a mesma.
Afinal Leo ouviu um forte estalo e a porta cedeu com o
chiado dum esparadrapo que se rasgasse em tiras. Com a
sensao desagradvel de quem causa prejuzo
involuntrio, pisou a saleta, onde alm do carrinho s havia
um par de cadeiras velhas. Sentiu um arrepio de piscina no
inverno. Desejou no encontrar nada sob os lenis. Assim
toda tenso terminaria. Tentou remexer as roupas, mas
suas mos no obedeceram ao comando. Teve de vencer a
paralisia de pesadelo para erguer os lenis sobre o
carrinho. Logo encontrou alguma resistncia e viu uma
mancha de sangue.
Como um boneco de cera, as pernas dobradas, Leo viu o
cadver, o mesmo homem de cara de ndio do apartamento
do Baro. Devido ao seu pequeno porte coubera no carrinho e
coberto por lenis pudera ser transportado sem chamar
ateno. Seu palet de tecido aluminizado tambm estava
manchado de sangue. Observou sua boca entreaberta, a morte
o surpreendendo no meio de um grito. Os olhos muito
abertos, aps a exibio da ltima cena de sua vida.
Vou sair daqui e chamar o gerente, decidiu Leo;
aterrorizado, e comeou a afastar-se, andando de costas, a
tatear a porta. Sua mo tocou algo e no mesmo instante com
uma velocidade sideral qualquer coisa o atingiu na cabea.
Perdeu os sentidos.
O CADVER DESAPARECE MAIS UMA VEZ
Leo acordou. Estava no cho, junto parede, coberto por
um lenol. Sua primeira preocupao foi descobrir se
sangrava. No. Apalpou o corpo todo: estava inteiro. Ps-se
de p, ao lado do carrinho que s tinha duas fronhas. O corpo
-
23
do homem de cara de ndio desaparecera. Procurou manchas
de sangue nas fronhas porque ia precisar de provas: no
encontrou. Saiu da saleta s pressas, seguindo pelo corredor.
No corredor Leo viu um funcionrio da lavanderia mas
no lhe disse nada. Aquele era caso para a gerncia. Subindo
pelas escadas, sem pacincia para esperar pelo elevador, foi
para o saguo. Percival, o gerente, na portaria, telefonava.
Fez um sinal descontrolado para o Guima e foi ao seu
encontro.
O porteiro notou que algo estranho se passava.
Guima, encontrei o corpo.
Que corpo? ele perguntou com a mesma descrena
da vspera.
L embaixo, numa das saletas. Estava num dos
carrinhos da lavanderia coberto por lenis.
Vamos l.
Mas ele desapareceu.
Desapareceu, como?
Algum me deu uma pancada na cabea, ca
desmaiado, e quando acordei o corpo tinha sumido.
Quem lhe deu a pancada?
No vi. Ponha a mo na minha cabea. Deve ter um
galo.
Guima apalpou a cabea de Leo.
No h nenhum galo.
Guima, vamos falar com o Percival.
A ausncia do galo esfriara o porteiro.
Pensou bem no que vai fazer?
Guima, tem um cadver l embaixo, escondido em
algum lugar. A gente precisa achar ele.
No posso sair daqui agora.
Pea ao Percival.
Venha comigo. Mas me deixe falar com o gerente.
Fique calado, voc.
-
24
Percival, que j desligara o telefone, viu Guima e o
bellboy aproximarem-se, ambos hesitantes e nervosos. Por
que Guima no estava na porta e o mensageiro atendendo aos
chamados?
Aconteceu alguma coisa?
Sim disse o porteiro. Leonardo julga ter visto
alguma irregularidade na lavanderia. Queria lhe pedir licena
para acompanh-lo at l.
Que irregularidade?
Pode ter sido engano ...
Mas o que ele viu l?
Bem, ele no viu, ele supe...
O telefone tocou, era para o gerente, que atendeu e
comeou a falar ingls. Como o telefonema parecia
importante, despachou o porteiro e o bellboy com um
movimento de mo.
Leo e Guima desceram em seguida para a lavanderia, o
primeiro apressado, o segundo mais lento e com receio de se
envolver em encrencas. Logo chegaram saleta onde o rapaz
vira o cadver do homem de cara de ndio.
Foi aqui que encontrei o corpo.
A porta est arrombada.
Eu arrombei.
Por qu?
Estava fechada a chave.
Onde viu o corpo?
Neste carrinho.
Um homem cabe nisso a? Era pequeno, mais baixo
que eu, e muito magro.
Mas ele no est aqui. Deve estar noutra parte.
Vamos procurar.
Leo e Guima foram espiando todas as saletas sem nada
encontrar de suspeito. Ao porteiro era incrvel que algum
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25
largasse um cadver no grande salo da lavanderia e por isso
deixava a procura mais para o bellboy. Este, sempre que via
uma montanha de roupa, dividia-a em pequenos montes, num
trabalho nervoso e intil. A esta altura alguns funcionrios j
chegavam, viam a confuso que Leo fazia com as fronhas e
lenis, e no entendiam.
Perdeu alguma coisa, moo? perguntou um deles.
Estou procurando respondeu Leo.
Posso ajudar? O que est procurando?
Um cadver disse Leo sem interromper sua tarefa.
O funcionrio riu e juntou-se a outros.
Guima dirigiu-se a eles.
Vocs viram alguma coisa que podia se parecer com
um corpo humano?
O funcionrio que rira puxou uma risada geral.
Que palhaada essa, Guima?
Ento ningum viu nada?
S na televiso. Alis, tem sempre, para todos os
gostos. Ontem vi um seriado, "Crime no Hotel", tinha gente
morta at nos armrios.
Guima olhou, desanimado, para Leo.
Vamos subir.
Ainda no revistamos tudo.
Leo, ningum pode esconder um cadver no bolso. E
deixe por minha conta. Digo ao Percival que voc sofreu uma
iluso de tica, ou coisa assim, e nem toco na porta
arrombada. E, por favor, esquea o assunto.
No ser fcil, Guima.
Faa fora, garoto.
Est certo, mas que vi um cadver naquela sala, vi. E
era o mesmo homem que estava no apartamento do Baro.
No mencione o Baro para o Percival. Isso complica
tudo.
Guima, para voc no importa se houve assassinato
aqui no hotel?
Guima parou para dizer exatamente o que pensava:
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26
H muitos anos que me importo s comigo mesmo. E
com as gorjetas. Para mim um assassino que d boas gorjetas
quando chamo um txi um timo camarada. Vamos subir. E
boca fechada.
Ao voltar ao saguo Leo j decidira definitivamente pr
uma pedra naquela histria. Guima, experiente, dera-lhe o
melhor conselho. O importante era continuar trabalhando no
Park, numa boa, sem complicaes.
Guima, cumprindo com o prometido, foi falar com o
Percival.
O rapazinho se enganou... Estava escuro e ele teve a
impresso de ver qualquer coisa estranha na lavanderia. Nem
soube explicar o qu.
Por favor, mande ele ir ao meu escritrio.
Mas era s isso. Tudo certo agora.
Percival, muito srio, insistiu:
Talvez no, Guima. Chame o moo.
O porteiro, amigo de Leo e de todos os Fantini, ficou
preocupado. O que queria o gerente, que por sinal no estava
com boa cara?
Algo errado com ele?
V, Guima, no tenho muito tempo a perder.
Guima foi encontrar o bellboy no saguo, carregando
malas dum hspede recm-chegado.
O Percival quer falar com voc.
Sobre?
No sei.
Falou do cadver?
Nenhuma palavra. V, cuido das malas.
Leo, imaginando que o gerente j soubesse de alguma
coisa sobre o assassinato, dirigiu-se ao escritrio
esperanoso.
Sentado, diante duma escrivaninha, Percival o aguardava
fumando.
Feche a porta ordenou. O rapaz obedeceu,
subitamente nervoso.
-
27
s ordens.
Tudo parecia se resumir numa pergunta:
Voc esteve ontem tarde no 222?
Fui levar jornais.
Quero saber depois, quando o hspede estava no
apartamento.
Estive, sim, com o Guima. A camareira fazia a
arrumao.
Pode me dizer o que foi fazer l?
Leo no pretendia mais abordar o assunto. A pergunta,
porm, to direta, obrigava-o a contar tudo. Chegou a pensar
em retardar a resposta mas o olhar firme e insistente de
Percival no permitiu.
Eu fui... fui...
Pare de gaguejar e fale duma vez.
Bem, quando fui levar os jornais para o Baro, vi os
ps duma pessoa debaixo da cama.
Que histria essa, garoto?
Isso mesmo: vi os ps dum homem e o Baro estava
com uma mancha de sangue no robe. A desci e falei com o
Guima. Depois que ele saiu do apartamento ns dois voltamos.
Mas no encontraram ningum debaixo da cama.
No encontramos, mas agora cedo, fui lavanderia e
encontrei um cadver numa das saletas.
Interessante!
Mas me deram uma pancada na cabea e eu desmaiei.
Ento voc chamou o Guima outra vez.
Chamei.
Desceram para a lavanderia e no viram mais o
cadver.
verdade. Tinha desaparecido.
E agora pensa que vou acreditar nisso?
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28
Leo j sentira que o caso, contado, parecia falso. Nenhum
cadver desaparece duas vezes. Ele prprio no acreditaria se
lhe contassem aquela histria.
Seu Percival, tudo verdade.
Pois eu vou lhe dizer o que voc foi fazer no
apartamento do Baro. Voltou para pegar uma coisa que
realmente viu debaixo da cama. E usou o pobre Guima apenas
para acobertar o seu roubo.
Leo estremeceu.
Roubo? No roubei nada.
E deve ter roubado outras vezes. Sabamos que havia
algum larpio entre os funcionrios e agora sabemos quem
ele .
Eu no sou ladro. Voltei ao apartamento procura do
cadver.
Essa uma inveno ridcula. Posso at descrever
esse homem para o senhor. Eu o vi no apartamento do Baro
e agora na lavanderia. Houve um crime aqui no hotel. No 222.
Nesse instante a porta abriu-se e entrou o Baro com um
ar de amargura e decepo. Olhou o mensageiro como se lhe
tivesse uma profunda pena.
Por favor, Percival, no despea o rapaz por causa
disso. D-lhe outra oportunidade.
Eu no fiz nada replicou Leo.
Devolva o objeto pediu o gerente.
Que objeto? perguntou o mensageiro indignado.
O Baro com uma voz paternal explicou-lhe:
Se no fosse algo de estimao eu permitiria que
ficasse com ele. No pelo seu valor, pelo que representa
sentimentalmente.
Mas no sei do que esto falando.
Sabe, sim garantiu Percival falamos do isqueiro.
Isqueiro. O que ia fazer com um isqueiro se no fumo?
-
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Era de ouro e prata.
A falsa acusao causou um alvio no bellboy, que chegou
a esboar um sorriso.
No vi isqueiro algum em seu apartamento.
Deixei cair embaixo da cama disse o Baro.
Nada tenho a ver com isso protestou Leo, tentando
pr fim conversa.
Percival levantou-se:
Posso revist-lo?
No necessrio ops-se o Gordo. Vamos
acreditar na palavra dele.
O mensageiro repeliu a generosidade do Baro:
Pode me revistar, sim bradou, em desafio. Quem
no deve no teme.
O gerente foi enfiando as mos nos bolsos de Leo at que
o rapaz observou uma reao em seu rosto, logo transmitida
afirmativamente ao Baro.
este? perguntou Percival exibindo um belssimo
isqueiro ao hspede.
O Baro confirmou com um curto movimento de cabea
como se sentisse o maior pesar em incriminar o bellboy.
O PRIMEIRO DIA DE UM DESEMPREGADO
Eu no roubei esse isqueiro afirmou Leo, aflito.
Nunca o tinha visto.
Ento como foi parar em seu bolso? Voando?
gracejou maldosamente o gerente.
Algum o enfiou enquanto estive desmaiado na
lavanderia asseverou o rapaz. S pode ter sido assim.
O Baro moveu-se em direo porta, dizendo a
Percival:
-
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Seja benevolente com o moo e saiu em seguida.
Leo sentiu vontade de cuspir na porta que o hspede
fechava, mas precisava defender-se doutra forma.
Aproximou-se mais de Percival falando alto, com raiva, e
gesticulando um tanto descontroladamente.
Esse homem um assassino! Ele matou uma pessoa. Vi
o cadver na lavanderia, quase toquei nele. Acredite em mim.
Talvez o corpo ainda esteja l embaixo.
Voc est caluniando um homem que pratica a
caridade, que d muito dinheiro aos pobres, aos velhos, s
crianas e aos doentes. Tem um grande corao. Todos o
admiram nesta cidade. A calnia ainda pior que o roubo.
Mas no serei benevolente como seu Oto pediu: vou despedi-
lo agora mesmo e no espere que lhe d carta de
recomendao. V tirar o uniforme enquanto mando redigir a
demisso.
Atordoado, Leo saiu do escritrio. No saguo, tendo
abandonado a porta do hotel, Guima o esperava, nervoso.
Vi o Baro entrar no escritrio. O que aconteceu?
Fui despedido.
Voc no devia ter acusado o Baro. No foi por
isso. Acusaram-me de roubar um isqueiro que lhe pertencia. E
ele foi encontrado no meu bolso.
No seu bolso?
Sim, algum o colocou enquanto estava desmaiado.
Vou falar com o Percival.
No se meta, Guima. a minha palavra contra a do
Baro. E a prova contra mim.
Mas no pode ser acusado de roubo sem ter
roubado.
Tenho de agentar isso, Guima. Serei um ladro, sim,
at que se descubra que o Baro um homicida. Vou tirar o
uniforme. No trabalho mais no Emperor Park Hotel. E eu que
gostava tanto disto aqui!
-
31
Guima apertou-lhe o brao, imprimindo-lhe na carne sua
solidariedade.
O que posso fazer por voc?
Apenas uma coisa.
O qu, garoto?
Acreditar que vi mesmo um cadver no 222 e na
lavanderia.
Guima comprimiu um sorriso entre os lbios, dando-lhe
todo o crdito. Leo no era visionrio nem ladro de
isqueiros. J no duvidava: realmente vira aquele corpo. S
no entendia como desaparecera duas vezes.
O ex-bellboy foi sala dos mensageiros e trocou o
uniforme pelo blue jeans e camiseta. Olhou-se num espelho
com tristeza. S no chorou com receio de que algum
entrasse. Ia sentir falta do hotel, das gordas gorjetas e dos
papos com o Guima. Retornou ao saguo, esperou alguns
minutos at que o chamaram ao escritrio.
No foi o Percival, mas um de seus assistentes, que
entregou a Leo um cheque, relativo a seus direitos, e alguns
papis para assinar.
Por que est sendo despedido? perguntou. Porque
encontrei um cadver na lavanderia respondeu pondo o
cheque e os papis no bolso.
O jovem Fantini ia deixando o Park pela porta principal,
mas mudou de idia e resolveu fazer mais uma visita ao
subsolo. O trabalho l j era intenso e as montanhas de
roupas iam sendo removidas para as mquinas de lavar. Os
carrinhos, carregados ou no, circulavam dum lado e outro
empurrados por funcionrios homens e mulheres. O corpo
no pode estar mais aqui, pensou Leo. Com certeza j foi
levado para fora do hotel. No tenho mais o que fazer. Adeus!
A volta para a Bela Vista foi lenta e cheia de
pensamentos. Leo sabia que no seria fcil arranjar emprego
melhor que o de mensageiro do Park, principalmente antes de
ter um diploma na mo.
-
32
Ao chegar em casa foi direto oficina. Seu pai lixava uma
estatueta de madeira.
Pai disse recebi o bilhete azul.
Por qu?
Fui acusado de roubar um isqueiro.
Rafa largou a estatueta, revoltado. Depois, fez meno de
vestir o palet.
Vou dar uma surra em quem o acusou disso.
Esquea, pai.
Conte como a coisa aconteceu.
Leo sentou-se num banquinho, pegou a estatueta que o
pai lixava, e contou tudo a partir do chamado do Baro
quando vira o homem de cara de ndio pelo espelho at a
ltima vistoria no subsolo. O pai ouvia, atento, acreditando e
sofrendo a cada lance da narrativa. Querendo consertar tudo
com um simples sorriso, disse ao filho:
No faz mal, fique trabalhando comigo. Preciso muito
de voc principalmente na feira.
Aquelas gorjetas vo fazer falta.
Leo, o que a gente perdeu est perdido. Parta pra
outra. Voc ainda est no comeo da vida.
Mas eu gostava do Park. Era quase como trabalhar no
cinema.
Rafa retomou a estatueta, voltando a lix-la:
Talvez ainda volte para l. Esse cadver vai ter que
aparecer. E mesmo de boca fechada um morto pode falar.
Quer que o ajude a lixar alguma pea?
No, filho. Voc est aborrecido. V passear, distrair-
se. Mas, se quiser, vamos feira, domingo. Voc tem um jeito
especial para vender estatuetas.
No almoo, todos os Fantini j sabiam o que acontecera a
Leo mas no se fez nenhum comentrio. Apenas Diogo, o
caula, no mantinha a naturalidade, olhando o irmo como
se invejasse a aventura que o envolvera.
-
33
tarde, Leo foi descontar o cheque do Park e deu quase
todo dinheiro a Rafa. Depois passeou pelo Morro dos Ingleses
mas no viu ngela. Melhor assim, no devia estar bom de
papo.
Aps o jantar os Fantini receberam uma visita sempre
agradvel, Guima, que, na oficina de Rafa, tomando cerveja,
confirmou toda a histria de Leo. Rafa ouviu com a mesma
indignao da manh, declarando seu desejo de dar uma
surra no Baro e no gerente. Dona Iolanda, imediatamente,
abriu outra cerveja, que era a forma mais simples de acalm-
lo. O velho Pascoal esfregava as mos e mais nada. H muitos
anos andava de briga com o mundo.
No entendo por que no sumiram com o corpo ontem
noite disse Leo.
Acho que tenho uma resposta para isso.
Qual, Guima? quis saber o rapaz, interessado.
H vigias noturnos no subsolo. Seria difcil retirar o
cadver, por isso deixaram para hoje cedo.
Para Leo a explicao satisfez.
S queria saber quem o ajudou.
Realmente o Baro no podia fazer tudo sozinho.
Ele deve ter algum comparsa no hotel.
Voc diz, morando no hotel?
No, Guima, algum que trabalhe l. Nenhum hspede
andaria com liberdade pelo subsolo.
Pode ser.
Voc lembra de algum funcionrio que seja amigo do
Baro?
Ele mora no Park h dois anos e deve conhecer muitos
empregados, mas no sei de nenhum mais ntimo.
Dona Iolanda interveio com firmeza:
No se preocupe com isso, Guima. E voc, Leo,
esquea. assunto para a polcia. Poderia ter acontecido
coisa muito pior no poro do hotel. Perder o emprego, foi o
menos grave de tudo.
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34
Quando Guima se despediu dos Fantini, Leo
acompanhou-o at o Fusca. Ainda conversaram por alguns
momentos.
Sua me tem razo disse Guima.
Eu sei.
Mesmo assim vou manter os olhos bem abertos.
Tambm gostaria de saber quem o scio do Baro no Park
Hotel.
Leo sorriu, grato. Tinha esperanas de provar ao
gerente que no era ladro de isqueiro e que merecia ser
um bellboy.
UM CADVER BIA NO RIO
No domingo bem cedo Leo foi feira hippie com o pai e
o nono. Era da Praa da Repblica, com a venda de estatuetas,
que Rafa tirava o sustento da famlia. No se dizia que era um
grande artista mas vender tambm uma questo de simpatia
e lbia, duas coisas que no faltavam ao ex-marceneiro. A
estatueta de So Genaro, por exemplo, sempre tinha boa
procura, como tambm as de Cosme e Damio.
Quando Rafa e Pascoal iam para o bar, beber cerveja, Leo
se incumbia das vendas, sempre bem sucedidas porque ele
apregoava alto e insistia quando algum demonstrava
interesse.
Naquele domingo, depois de vender alguns-So Genaro,
um JK e um bandeirante, Leo sentou-se numa cadeira de
armar, sob a barraca, abriu um jornal e comeou a ler. Desde
a vspera procurava notcia sobre um cadver desconhecido.
E l estava ela na seo de ocorrncias policiais: fora
encontrado o corpo dum homem boiando no Rio Tiet. E mais
que isso: no havia morrido afogado e sim levara um tiro no
corao, provavelmente a curta distncia. O morto no trazia
identidade, mas a julgar pelos seus traos, supunha-se tratar
de um estrangeiro.
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35
Deve ser o homem, pensou Leo. Mas estrangeiro, com
aquela cara de ndio? A estava a dvida, pois sempre que se
falava de estrangeiros pensava-se em pessoas altas e louras.
A notcia, porm, no descrevia o corpo. Gostaria de v-lo,
disse o rapaz com uma angstia que lhe doeria o resto do
dia.
No almoo, como havia prometido, Guima apareceu nos
Fantini.
O vinho, o macarro e as polpetas no permitiram que
tocassem no caso desagradvel do hotel. Todos pareciam
estar com muita sede e apetite, menos Leo, que s pensava
naquilo.
Depois do almoo, o rapaz conseguiu ficar a ss com o
Guima.
Acharam um corpo boiando no rio, pode ser o
homem.
Sempre h corpos boiando nos rios.
Mas esse no morreu afogado, levou um tiro.
O que o jornal diz?
Ele no foi identificado, mas parece estrangeiro.
No trouxe retrato?
No.
Ento no tem jeito de saber.
H, sim, Guima. Basta ir ao Instituto Mdico Legal.
Mas voc no vai fazer isso.
No quer ir comigo?
Leo, seus pais no querem que se meta. E eles esto
certos. O Baro rico, forte afaste-se dele.
Gostaria de ir ao Instituto.
Eu tambm. Mas no vou nem voc.
Rafa voltava com outra garrafa de vinho e o tema foi
posto de lado.
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36
Ao anoitecer, Guima e os Fantini, de barriga cheia,
sentaram-se diante da televiso. Havia um programa
humorstico e todos riam muito com exceo de Leo.
Quando foi para a cama, quase meia-noite, Leo j
tomara uma deciso.
AS COISAS FICAM PRETAS
Assim que Leo disse que queria ver o corpo encontrado
no Tiet foi levado sem problemas por um homem de avental
e outro com jeito de detetive geladeira do Instituto.
Supe que seja algum parente? perguntou o do
avental.
No respondeu o rapaz com um tremor na voz.
Bastava um monosslabo para evidenciar seu nervosismo.
Algum amigo? insistiu o de jeito de detetive.
Tambm no.
Mesmo antes de abrirem a gaveta Leo j se arrependera
do passo e desejava ardentemente que o homem do rio no
fosse o do 222 e da lavanderia. Estava desobedecendo o
conselho do Guima e dos pais e isso o inquietava.
O do avental puxou a gaveta.
D uma espiada, rapaz. No foi pra isso que veio?
Leo olhou como se filasse as cartas dum baralho
observado com ateno pelos dois homens. A gaveta estava
puxada mas no via nada, apenas sentia as batidas de seu
corao. Quando um cheiro forte, talvez formol, lhe atingiu
as narinas arregalou os olhos e fotografou.
Sim, era o homem, o de cara de ndio, o homem do 222 e
da lavanderia, o que o Baro matara.
Conhece ele? perguntou o do avental.
Pode fechar respondeu Leo.
A gaveta foi fechada mas a pergunta continuou no ar.
Se conhece, diga logo.
Leo no sabia se afirmava ou negava. Para negar teria que
fingir, representar; e ele no era artista.
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37
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Acho que conheo disse.
O do avental fez um gesto largo para o detetive, como se
dissesse: o caso agora com voc.
Voc acha ou conhece mesmo? perguntou o policial.
Conheo.
Como o nome dele?
No sei.
Ele era estrangeiro?
Nada sei a respeito dele.
A polcia acha que deve ser boliviano ou peruano. Que
idioma ele falava?
Leo sacudiu a cabea.
Nunca o ouvi falar.
Lidava com txicos?
Como disse, nada sei sobre esse homem. S o vi vivo
uma vez, e por uns segundos. E depois quando j estava
morto.
Onde foi isso?
No Emperor Park Hotel.
Vamos delegacia. Mas espero que no v fazer o
delegado perder tempo.
O detetive, que o homem do avental chamava de Lima,
levou Leo para a rua onde apanharam um txi. O trajeto foi
curto e reduzido a poucas palavras, sem novos esclare-
cimentos. Mas o rapaz ficou sabendo que fora a nica pessoa
que comparecera para reconhecer ou identificar o corpo.
Na delegacia Leo teve que esperar uns dez minutos numa
sala enquanto Lima conversava com o delegado. Depois, a
prpria autoridade abriu a porta e pediu que entrasse. Lima j
no estava l. Uma espcie de secretrio ou escrivo apontou
uma cadeira para Leo. Antes de mais nada, o delegado fez-lhe
algumas perguntas cujas respostas iam sendo anotadas numa
ficha: nome, idade, residncia e nomes dos pais.
Ento voc conhecia aquele homem?
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39
Sim, eu o vi quinta-feira no Emperor Park Hotel, onde
era mensageiro.
Estava hospedado l?
No, eu o vi no apartamento 222, do senhor Oto, um
hspede permanente. Mas ele no me viu. Nem o senhor Oto
percebeu que o tinha visto.
Como foi isso possvel?
Eu o vi pelo espelho interno do guarda-roupa.
O que tinha ido fazer no apartamento?
Atender a um pedido desse senhor, queria jornais.
Continue.
Quando voltei o hspede deixou cair os jornais, eu me
abaixei e ento vi os ps debaixo da cama. Quando levantei
percebi que havia uma mancha de sangue, pelo menos me
pareceu que fosse, no robe de seu Oto. Tambm achei que
estava muito nervoso.
Prossiga.
Contei o que vira ao seu Guimares, o porteiro, e umas
duas horas depois, quando o hspede j sara, voltamos ao
apartamento, mas no encontramos o cadver.
Quer dizer que sumira do apartamento?
Sim.
Esse senhor saiu com alguma mala ou coisa assim?
No.
O delegado fez um ar descrente.
O tal de Guimares acreditou que voc tinha visto um
corpo sob a cama do hspede?
No muito.
Acreditou ou no acreditou?
Acho que no.
E o que aconteceu depois?
A visvel descrena do delegado dificultou a narrao de
Leo, que passou a engolir saliva, gaguejar e elevar o tom de
voz, como se pretendesse dar-lhe mais convico.
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40
No dia seguinte cedo decidi procurar o corpo no
subsolo e fui lavanderia. Achei que o corpo estava
escondido l.
Por que achou?
No sei. Talvez porque os empregados da lavanderia
ainda no estavam trabalhando. Havia os carrinhos para
transporte de roupa suja. Imaginei que o corpo estaria num
deles. Mexi na roupa de todos at que vi um desses carrinhos
com um monte de lenis numa saleta fechada. Ento
arrombei a porta da saleta.
Ningum viu voc fazer isso?
Ningum. No seria mais fcil chamar um dos
responsveis?
Pensei que s acreditariam em mim se aparecesse com
o corpo dentro do carrinho.
Ento arrombou a porta?
Arrombei e fui logo tirando os lenis do carrinho. E o
cadver estava l, o mesmo da geladeira.
E depois?
Quando ia sair, algum me deu uma pancada na
cabea. Ca, sem sentidos.
Essa pancada deixou algum ferimento ou calombo?
Doeu muito mas no deixou nada.
Continue.
Quando acordei o corpo no estava mais l.
O delegado e o secretrio ou escrivo trocaram olhares
que significavam descrena ou gozao. O segundo
desaparecimento do cadver acentuava a impresso de
histria inventada.
E o que voc fez, moo?
Ainda com mais dificuldade para falar, Leo prosseguiu:
Fui contar tudo a seu Percival, o gerente.
E ele?
Ele me demitiu.
Depois de nova troca de olhares com o outro homem:
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41
Por qu?
Porque Oto, o hspede, do 222, me acusara de ter
roubado seu isqueiro. Um isqueiro muito caro, de ouro e
prata.
Leo sentiu que embora o delegado ainda no conhecesse
o Baro j lhe dava mais crdito que a seu acusador. Ento
teve uma idia: no relatar ainda que o isqueiro aparecera em
seu bolso. Se o fizesse, poderia ser detido para averiguaes.
Afinal o Baro tinha uma testemunha do destino de seu
isqueiro: o gerente do hotel.
Mas quem esse homem? perguntou o delegado.
O tal Oto.
um homem muito conhecido.
No vai me dizer que Oto Barcelos?
Parece que sim.
Mas esse homem um santo! No h uma criana, um
doente ou velho nesta cidade que no lhe deva alguma coisa.
Eu tambm gostava dele. Me dava muita gorjeta.
Mesmo assim vem aqui acus-lo?
Ele matou um homem, doutor.
O delegado ficou pensativo e sem pressa para tomar uma
resoluo. At levantou-se e deu um passeio pela delegacia.
Se o homem mesmo Barcelos o caso mais delicado.
No posso intim-lo como se fosse um criminoso comum. E
disse a seu secretrio: Telefone ao Park Hotel, fale com Oto
Barcelos, e diga que vou visit-lo hoje s trs horas.
Avisando, ele fugir opinou Leo, precipitado.
Se estamos falando da mesma pessoa, ela no fugir.
Alm do mais, conversei com Barcelos, mais de uma vez,
sobre assuntos assistenciais. Ele me conhece bem. Oto
Barcelos! Sua esposa morreu num desastre de avio. Desde
ento passou a dedicar-se filantropia. Tem certeza de que
esse o homem?
Oto, do 222, um senhor gordo que faz caridade.
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Bem, vou cuidar do caso pessoalmente. Agora v para
casa. Provavelmente ainda ser chamado. Quem sabe ainda
hoje.
Leo levantou-se, despediu-se com um movimento de
cabea e saiu da sala com a certeza de que no fora
acreditado. Sua sorte seria se o Baro fugisse. Era a esperana
de sair-se bem de tudo.
Com muita pressa, Leo apanhou um txi:
Me leve ao Emperor Park Hotel.
Foi uma viagem curta mas angustiada. Leo parou perto
do Park e ficou espera. Quando viu Guima porta, chamou-
o fazendo sinais. O porteiro levou um susto e aproximou-se
adivinhando novas encrencas.
O que foi, garoto?
Fui reconhecer o corpo do homem encontrado no rio.
Era ele mesmo, o que o Baro matou.
Bem, o que quer que eu faa?
O resto fui eu mesmo que fiz. Um detetive me levou
delegacia e acusei o Baro.
Voc fez isso?
Fiz, o delegado vir aqui s trs da tarde. Mas tem
uma coisa: no acreditou muito em mim.
J esperava, garoto.
Eu contei tudo direito, menos que o isqueiro foi
encontrado em meu bolso.
Disso o Baro vai se incumbir.
Estou com medo, Guima.
Eu tambm estou. Conhece aquela histria do feitio
que vira contra o feiticeiro, no?
Conheo, sim.
O importante, garoto, que no se deixe prender, se
no ainda ser acusado de matar o tal homem. Vou lhe dar a
chave de meu apartamento. Passe a tarde l e no saia antes
que eu aparea ou mande algum recado. Entendeu bem?
Entendi, Guima.
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Seus pais sabem que foi reconhecer o corpo?
No, fiz essa besteira sem dizer pra ningum.
Ento no diga. No v preocup-los antes do tempo.
Depois do almoo, esconda-se. Aqui est a chave.
Leo enfiou a chave no bolso e afastou-se. Voltou para
casa. Tentando agir naturalmente, almoou o suficiente para
no demonstrar inquietao, e dirigiu-se ao apartamento de
duas peas do Guima, que era l mesmo num pequeno
edifcio da Bela Vista.
A HISTRIA ACONTECEU ASSIM
Guima trabalhava at as seis. Leo calculou que s seis e
meia j estaria de volta. Meia hora do Park Bela Vista. Mas
nada do Guima s seis e meia, sete, sete e meia. S apareceria
s oito horas, muito alm do costume.
Ao ouvir a campainha, Leo abriu a porta. Guima havia
trazido comida enlatada.
Est com fome?
No.
Dona Iolanda disse que comeu pouco. Deve estar, sim.
Voc esteve em minha casa?
Vim de l agora.
Guima, me conte o que aconteceu?
Claro que vou contar. Mas vai ter que jantar.
O delegado esteve no hotel?
Esteve, s trs em ponto, ele e um tira chamado Lima.
Eu o reconheci pelos retratos nos jornais. Chama-se doutor
Arruda.
Por favor, Guima, comece. Estou aqui desde as duas
horas.
Vamos para a cozinha. Conto enquanto preparo a
comida. Aqui no o Park, a comida em lata. E eu no tenho
nada contra ela. Apenas meu estmago.
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Guima rodeou mas contou tudo com detalhes e
continuidade. Desde que Leo aparecera no hotel ficou muito
atento. Viu quando o Baro chegou e apanhou o recado
telefnico na portaria. Devia ser do delegado. Em seguida,
dirigiu-se com suas banhas, apressado, aos elevadores.
Guima acreditou que fugiria mas isso no aconteceu. Uma
hora depois, almoava tranqilamente no restaurante do
hotel. Depois, foi at a portaria e conversou com um dos
funcionrios em servio. As duas e meia um grupo de
mulheres da sociedade apareceu sua procura. Eram
benemritas que sempre o visitavam para pedir donativos ou
apoio s suas campanhas assistenciais. Foram conduzidas a
um salo anexo ao das convenes. Guima, embora nada
tivesse a fazer por l, viu quando o Baro chegou, vestido
esportiva, e beijou cortesmente as mos das senhoras, coisa
que sabia fazer muito bem.
Ao passar novamente pela portaria Guima recebeu uma
ordem do prprio gerente: quando chegasse o doutor Arruda
deveria lev-lo ao salo onde o Baro recebia as senhoras.
Guima viu quando o doutor Arruda entrou no hotel com
outro homem e foi ao encontro deles.
" Vieram falar com seu Oto?
Viemos.
Ele est recebendo umas senhoras. Me acompanhem".
Guima levou o delegado e o tira ao salo. O hspede do
222, de p, diante das senhoras sentadas, hipotecava seu
apoio a uma campanha em prol do Natal das crianas pobres.
O Baro mostrava-se entusiasmado pela idia, dizendo que
participaria no apenas com donativos mas tambm com sua
experincia. Afinal j dirigira muitas campanhas de fim de
ano.
" Agora tudo deve ser planificado disse at as
atividades do corao. Fazer o bem, por mero impulso, s
vezes resulta apenas em desperdcio".
As senhoras com sorrisos, manifestaram sua gratido.
" Mas isso vai lhe tomar tempo, Baro.
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O meu j doei todo aos necessitados. Foi meu maior
donativo."
Agradecidas, as mulheres despediram-se de Barcelos e
deixaram o salo quando o delegado e o detetive se
aproximaram.
" Sou o delegado Arruda, Baro".
O hspede do 222 sorriu.
" Baro apelido, devido minha gordura.
E nobreza de seu corao acrescentou o delegado.
Recebi seu recado, mas no precisava vir. Eu iria
delegacia com todo o prazer. Mas o que fez o gerente do
hotel, deu parte do garoto?"
Guima afastou-se alguns passos mas ainda podia ouvir.
Seria esta a inteno do Baro?
" No, ele apareceu espontaneamente.
Confessou outros roubos?
Por que, ele roubou alguma coisa?"
O Baro tirou o isqueiro do bolso.
" Roubou o meu isqueiro, e seu Percival, desconfia que
tenha roubado outros objetos. Mas no quero apresentar
reclamao alguma. Por mim nem teria sido demitido.
Isso ele no me contou disse o delegado olhando
para o Lima. Disse apenas que o tinham acusado de
roubo.
Mas ento o que ele foi fazer na polcia?
Foi reconhecer um cadver encontrado boiando no
Tiet. Disse que conhecia o homem.
J sei dessa histria lembrou o Baro com um
sorriso. Esse rapazinho mesmo um ficcionista. Mas no
precisava ir to longe para se inocentar. A no ser que lhe
falte um parafuso.
Ele de fato viu algum no seu apartamento? Eu
estava com um amigo, o Anbal.
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O garoto contou que ao voltar, com os jornais, havia
um corpo debaixo da cama."
O Baro tornou a sorrir, expondo mais os lbios.
" Que bons olhos tem o garoto! Realmente havia algum
debaixo da cama, o Anbal, que estava apanhando uma
abotoadura. Ainda sou do tempo das abotoaduras. E com esse
corpo de elefante no dava para pegar. Para o Anbal, magro e
pequeno, foi fcil."
O delegado e o Lima quase gargalharam desta vez.
" E a mancha de sangue no robe?
Ketchup. No dispenso Ketchup.
Depois ele disse que encontrou o tal homem num
carrinho de roupa suja na lavanderia.
Pode ser, mas no era o meu amigo. Ele est bem vivo
e posso lhe dar o endereo. Anbal Tibiri meu contador.
No preciso disse o delegado, convencido. Est
tudo muito claro. Agora vou conversar com o gerente.
Desculpe-nos pelo aborrecimento, Baro.
Aborrecimento nenhum.
E felicidades em sua nova campanha."
Guima contou, em seguida, que acompanhou o delegado
e o detetive at a gerncia onde Percival fez uma lista de
objetos desaparecidos. Alguns pertenciam aos hspedes,
outros ao prprio hotel.
sada, o porteiro perguntou ao doutor Arruda:
" O que vai acontecer ao garoto?
Vamos sua casa, agora. Alm de caluniador saiu-se
um belo ladrozinho".
Assim que terminou o horrio de trabalho, Guima tirou o
uniforme, o que o deixava mais magro e menos imponente, e
correu para a casa dos Fantini. Encontrou toda a famlia
sobressaltada com a visita do delegado. Guima tranqilizou
Rafa e Iolanda informando que Leo estava em seu
apartamento.
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" Mas no vai poder ficar l muito tempo. No hotel
todos sabem que somos amigos.
Ele deve ir para a casa da tia Zula disse dona
Iolanda.
A que cozinheira da cantina?
Essa, l ele poder ter a companhia do Gino, seu
primo".
Guima comeou abrir as latas.
Voc deve ficar l at que as coisas se esclaream.
Agora vamos comer, depois voc v televiso, dorme e
amanh bem cedo eu o levo casa de sua tia.
Guima, obrigado por tudo.
Dizem que no se pode confiar em ningum com mais
de trinta anos mas j tenho cinqenta.
S mais uma pergunta.
Duas, se quiser.
O que achou do comportamento do Baro nisso tudo?
um homem muito seguro de si e esperto. Mas,
embora no seja detetive, no tenho a menor dvida: ele
matou o homem que voc viu no 222.
ESCONDIDO NA CASA DE TIA ZULA
Tia Zula morava numa das menores e mais antigas casas
da Bela Vista, dessas de porta e janela, baixinha, h muitos
anos ameaada pelo progresso. A fachada da casa j fora
pintada muitas vezes, desde sua construo, no comeo do
sculo, e ainda mostrava vestgios de muitas cores. O mesmo
acontecia com a porta e a janela. Mas no interior tudo era
muito limpo, e os mveis, pesados e escuros, muito bem
conservados.
Tia Zula, irm de sua me, era viva h muitos anos,
trabalhava como cozinheira numa das cantinas do Bexiga, e
tinha um filho de vinte anos, chamado Gino, paraltico,
sempre numa cadeira de rodas. Zula era uma mulher muito
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ativa, e Gino, apesar da doena, puxara seu temperamento.
Ele se movimentava bastante na cadeira, ajudava a arrumar a
casa, atendia porta, fazia diversos cursos por
correspondncia, era apaixonado por futebol e ganhava
algum dinheiro traduzindo livros infantis do ingls.
Leo foi levado casa de Zula por Guima em seu Fusca.
No sabia se devia ou no contar tia sua complicada
aventura. Mas no teve esse trabalho. Assim que ela abriu a
porta, foi dizendo:
Seus pais estiveram aqui ontem noite. Que homem
maldito, esse Baro!
Titia, vou dar muito trabalho pra senhora.
Eu j dei trabalho aos seus pais quando Gino era
pequeno. O que no quero que abra a porta. Deixe o Gino
abrir. Voc vai dormir no quarto dele. Pus outra cama l.
Leo despediu-se de Guima, que lhe prometeu continuar
bem atento no hotel.
Leo foi cumprimentar seu primo Gino. Sabia que ele ia
ser o seu amigo naqueles dias amargos. Gino abraou-o
alegremente e tentou deix-lo bem vontade. Quando Zula
foi para a cantina, l pelas dez horas, o primo quis que
contasse com detalhes tudo que acontecera. Em nenhum
momento mostrou dvida ou a menor descrena.
Fiz mal em querer reconhecer o corpo do homem
disse Leo.
Acho que no. Fez muito bem.
Mas veja em que situao estou agora!
Leo, a verdade como a fumaa, sempre aparece.
uma boa frase.
Li num livro, se no me engano, policial.
Ento acha mesmo que fiz bem?
J imaginou o susto que voc deu nesse tal gordo?
Um susto nem sempre basta.
Mas s vezes desorienta. Aposto que ele no est
dormindo muito tranqilo.
Mais cedo ou mais tarde ele some disse Leo.
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No, ele no vai sumir. No disse que vai colaborar na
campanha de Natal daquelas senhoras? Se desaparecesse
estaria levantando suspeitas. E muito esperto para isso.
Voc tem razo.
Sabe jogar xadrez?
Um pouco.
Ento vamos jogar. Dificilmente consigo parceiro. O
pessoal do Bexiga prefere damas e domin.
Mesmo se conseguisse fixar a ateno, Leo seria derrotado
nas trs partidas que jogou com Gino. Numa delas seu rei caiu
em quinze lances. Noutra perdeu a rainha logo no incio.
J vi que muito bom nisso.
Voc deve ser melhor que eu em corrida de duzentos
metros com barreira replicou Gino, que sempre fazia
aluses engraadas paralisia de suas pernas.
Voc daria um campeo nesse jogo.
Eu s no perteno ao Clube de Xadrez porque l no
h rampas. Para quem teve paralisia infantil as escadas so
piores que o Baro do 222. Creio que a nica coisa que me
derrota. O resto moleza.
Leo sentiu que a companhia de Gino era a melhor que
poderia ter em momentos como aqueles. Em troca das
pormenorizadas descries que fazia do Emperor Park Hotel,
estimulantes imaginao do primo, recebia aulas prticas
de ingls. Gino costumava dizer que se algum dia faltassem
as tradues dos livros infantis, tentaria viver como
telefonista poliglota dum grande hotel. E Leo, agora que o
conhecia melhor, com aqueles olhos apertados e vivos, no
duvidava que chegasse Presidncia da Repblica, com sua
cadeira de rodas, pois havia rampa no Palcio da Alvorada,
em Braslia.
Gino, assduo leitor de jornais, foi quem encontrou num
vespertino uma notcia quente para Leo, ilustrada com a foto
dum homem. Um detento reconhecera o desconhecido
encontrado boiando no rio. Chamava-se Ramon Vargas,
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boliviano. A polcia em seguida confirmou a identidade, pois
Ramon j estivera preso uma vez, implicado em trfico de
txicos. O jornal informava ainda que ele morava no Hotel
Acapulco, de terceira categoria, na Rua Vitria.
ele, primo?
Claro! Mas no era ndio.
Na Bolvia espanhis e ndios se misturaram muito.
Acha que isso vai me ajudar?
Gino no se mostrou otimista.
No vejo em qu, primo.
O chato, Gino, ficar aqui, com os braos cruzados,
sem poder fazer nada.
Tem razo, isso chato.
Algum deve ter ajudado o Baro a remover o corpo
para a lavanderia e depois para o rio.
Quem sabe o tal amigo, Anbal, que disse estar com ele
no apartamento.
No, Gino, a pessoa que o ajudou trabalha no hotel.
Um estranho no desceria o elevador com o carrinho de
roupas sujas.
Por que no descobre quem foi essa pessoa?
Descobrir como, se no trabalho mais l?
O Guima pode fazer isso.
O Guima conhece todos os funcionrios do hotel.
veterano l.
Vamos falar com ele?
Como?
Logo adiante tem um orelho. Vou telefonar pra ele,
dizer do que se trata e pedir que venha aqui hoje noite com
uma lista de suspeitos.
Voc pode sair com a cadeira?
Por que no? No h escadas na rua. Me d o nmero
do telefone. Vou j.
Num minuto Gino saiu com sua cadeira de rodas como se
estivesse dirigindo um veculo feito apenas para economizar
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gasolina. Na sua ausncia Leo entusiasmou-se com a idia de
contra-atacar. Afinal j fizera loucura em procurar o cadver
na lavanderia e em identific-lo no Instituto Mdico Legal. E
estava sendo procurado pela polcia como ladro. Piores as
coisas no ficariam. O Baro que se cuidasse. Ia levar um
novo susto. Ou xeque, pensou, olhando o tabuleiro de xadrez
de Gino.
O primo voltou bem depressa:
Guima vem s oito com a lista.
A LISTA
Guima compareceu pontualmente, mas a p para que
ningum identificasse seu carro. Como tia Zula, aquela hora,
ainda trabalhava na cantina, os trs puderam ficar bem
vontade na sala.
A lista no muito grande porque j fiz alguns cortes
disse o porteiro. A no tem, por exemplo, nenhum
nome de mulher, pois dar uma pancada na cabea me parece
coisa de homem. Eliminei tambm o pessoal da cozinha e do
restaurante: nunca entram em contato com os hspedes.
Cortei os que s funcionam no perodo noturno, j que tudo
aconteceu de dia.
Mesmo assim a lista ainda est grande observou
Gino. Talvez possamos fazer mais cortes.
Eu cortaria os empregados mais novos sugeriu Leo.
Boa idia! exclamou Guima, entendendo o motivo.
O Baro no se arriscaria aliciando algum que mal
conhecesse. E imediatamente passou o lpis em quatro
nomes da lista.
Gino enrugava a testa para extrair da cabea nova
sugesto. Era como fazia quando jogava xadrez.
Tenho outro corte anunciou.
Qual? Leo e Guima quiseram saber.
Ouam bem. O Baro no precisaria, no hotel, de um
colaborador intelectual. Cabea ele tem. Convocaria um
homem de ao e provavelmente muito forte.
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Guima e Leo entreolharam-se examinando a idia. Leo foi
o primeiro a aprov-la.
Parabns, Gino! Essa uma boa! O que diz, Guima?
De acordo, Gino disse o dono da lista de lpis em
punho. Agora, sim, d para cortar muita gente. Os mais
fracos e os muito idosos.
como se estivssemos fazendo um retrato-falado!
entusiasmou-se Leo.
Guima ia eliminando nomes.
Vamos pensar mais um pouco disse Gino, lcido e
calmo. O ideal reduzir a lista a uns trs ou quatro.
Concentraram-se num nico pensamento; Guima
tamborilava os dedos na mesa.
Sabe duma coisa? lembrou Gino. Estamos
precisando dum caf. Volto logo. E rumou com a cadeira
para a cozinha.
Logo mais, tomando caf, os trs se sentiam mais
prximos duma nova sugesto eliminatria.
Achei! bradou Leo.
Vamos. Qual ?
Leo no agentou, teve de ficar de p.
Essa genial!
Deixemos os elogios para depois exigiu Gino. O
que voc bolou?
A pessoa que me agrediu enfiou um isqueiro no meu
bolso. Isso significa o qu? Significa que ela fumante.
Guima, tire da lista os empregados que no fumam.
Um momento atalhou Gino. Acha que um
modesto funcionrio do hotel teria um isqueiro to valioso?
Poderia ser presente do Baro!
Os dois admitiram que sim.
Bem disse Guima no sei exatamente quais os que
no fumam, mas uns trs recordo com toda a certeza. Ris-
cou os nomes. De qualquer forma a lista est diminuindo.
J vejo o perfil do homem! exclamou Leo.
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Mas o trabalho da por diante tornou-se mais difcil.
Restavam na lista dez nomes, dez enigmas.
Agora s adivinhao concluiu Guima.
Nada de adivinhao reprovou Gino. Tudo deve
ser lgico como no xadrez. Restam dez nomes? Voc que
conhece todos, examine um a um. Comece. Qual o primeiro
desses dez eliminaria da lista?
Guima concentrou-se, tomou mais um gole de caf.
Este, por exemplo, Rubens da Silva, est no hotel
desde a inaugurao e sempre trabalhou em hotis. Tem
inclusive um cargo no sindicato.
Risque ordenou Leo. Conheo o Rubens. Homem
muito direito.
Isso me d outra idia falou Gino. Eu eliminaria
da lista todos os que j trabalhavam antes da chegada do
Baro e os que sempre exerceram a profisso. Pensem bem.
Acho que o Baro no se arriscaria envolvendo um estranho
nessa trama toda. Seu comparsa deve ser um de seus homens
e no parceiro de ltima hora.
medida em que Gino falava, Guima ia sacudindo a
cabea, concordando. E apanhou o lpis.
Posso cortar o Gustavo, tambm empregado desde a
inaugurao, com mais de vinte anos de hotel. uma dessas
pessoas que morreriam se tivessem de mudar de profisso.
Por outro lado, no nada ambicioso.
Oito disse Leo. Corte mais.
Cortaria tambm o Bris. uma espcie de chefe dos
camareiros. J foi gerente de pequenos hotis. Toda sua
famlia se dedica ao ramo.
Leo e Gino ficaram bem calados para que o silncio
ajudasse o Guima a pensar.
O porteiro riscou mais um nome.
Quem riscou? perguntou Leo.
Renato, outro tpico funcionrio de hotel. Acho que
jamais ganhou um centavo noutra profisso. E da turma da
inaugurao.
Restam sete. Corte mais, Guima.
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No corte apenas para diminuir a lista. Se tiver alguma
dvida sobre a pessoa, mantenha advertiu Gino.
Guima riscou mais um nome: Aderaldo.
Este corto somente porque meu amigo e sei que no
se meteria em coisas desonestas e perigosas.
Os trs ficaram olhando para os seis nomes que haviam
sobrado como se formassem um jogo de palavras cruzadas.
Leo tinha mais uma sugesto a fazer embora timidamente:
Dos seis, quantos trabalham na lavanderia?
Trs respondeu Guima imediatamente.
Vamos nos concentrar nesses disse Gino. Afinal o
corpo foi para a lavanderia. Sua idia tem bastante lgica,
Leo. A presena de algum que trabalhasse noutro
departamento chamaria muito a ateno.
Nem tanto atalhou Guima os camareiros vo
freqentemente ao subsolo.
Quem so os trs? indagou Leo.
Guima foi lendo os nomes e fazendo comentrios.
Maneco, um portugus muito forte. Trabalha h mais
de um ano na lavanderia; Luizo, um crioulo que no gosta de
falar muito. E Hans, Hans o chefe ou encarregado como
dizem.
Ser que eles ou algum deles conhece o Baro?
No sei, Gino respondeu Guima.
Voc conhece bem os trs?
Apenas o Alemo, o apelido de Hans.
Gino fez uma pergunta direta:
Qual desses tem mais cara de delinqente?
Guima balanou a cabea, incapaz de dar uma resposta.
Para mim so unicamente lavadores de roupa.
Houve uma longa pausa de desnimo total. A lista fora
reduzida a trs nomes mas a grande incgnita persistia. E
nada induzia a desconfiarem mais de um do que dos outros.
Leo e Guima olharam para Gino, o jogador de xadrez, de
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quem esperavam um lance superinteligente, mais um xeque
no ao rei mas ao Baro.
O que esses homens faziam antes de trabalharem no
Park?
Guima tornou a balanar negativamente a cabea:
No sei.
Era o que gostaria de saber disse Gino.
Voc pode descobrir?
Posso, no Departamento de Pessoal.
Acha que dariam a informao?
Claro que no informam, mas um dos rapazes que
trabalham l, o Danilo, uma espcie de afilhado meu. E deve
o emprego a mim. Se ele for legal, como espero, poder dar
uma olhada na ficha dos trs. Cr que vai ser til?
Gino no estava convicto mas apegava-se a uma teoria.
O presente de um homem narrado pelo seu passado
disse. Isso mais do que simples intuio.
Guima levantou-se, decidido.
Amanh, s mesmas horas, volto. Ciau.
Leo foi para a cama mais esperanoso que nas noites
anteriores. Mas no dormiu logo a pensar na lista do Guima,
nos trs nomes que restaram e em ngela. A impossibilidade
de v-la multiplicava seu sentimento por ela. Outro mal que o
Baro lhe causara.
O NOME QUE RESTOU NA LISTA
No dia seguinte, logo pela manh, Leo recebeu uma
visita: dona Iolanda. Ela no estava nada tranqila. A polcia
tornara a aparecer na casa dos Fantini, exigindo a presena
de Leo na delegacia. Seus pais diziam que ignoravam seu
paradeiro quando o nono entrou em cena, cheirando a vinho,
e berrou aos policiais que seu neto no era ladro e que
mesmo se soubesse onde ele estava, no revelaria. Houve
um bate-boca entre os policiais e os Fantini que comeou na
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sala-de-visitas e foi at a porta da rua. Alguns vizinhos, que
conheciam a famlia h vrias dcadas, boa gente do Bexiga,
entraram na discusso atestando em altos brados a excelente
conduta de Leo, no dizer deles um dos melhores rapazes do
bairro. Os policiais, sempre a exigir a presena de Leo na
delegacia, e sob uma chuva de argumentos e insultos,
entraram numa RP e desapareceram.
Por isso no bom pr o nariz pra fora de casa
implorou dona Iolanda.
Fique sossegada, me. No saio at que tudo se
esclarea.
Voc tem comido bem?
Acha que se come mal na casa de tia Zula?
Com muitas lgrimas, dona Iolanda despediu-se de Gino
e do filho, afirmando que fizera promessa ao Menino Jesus de
Praga para que aquela complicao logo tivesse fim.
tarde, enquanto jogava xadrez com Gino, Leo, j bem
ntimo do primo, contou-lhe tudo sobre ngela. Gino ouviu
com o maior interesse mas logo demonstrou que nesse
terreno no sabia dar conselhos. Mesmo assim opinou:
Pode ser mais fcil pr o Baro na cadeia do que
convencer os pais dessa moa a aceitar o namoro.
Leo riu, porm sentiu que aquilo era mais que uma
pilhria e mudou de assunto.
noite Guima apareceu. Gino j fizera o caf para
receb-lo. Ele estava com boa cara, quase alegre.
Falou com o Danilo? foi perguntando Leo.
Assim que cheguei respondeu Guima. E depois do
almoo j tinha a resposta escritinha num papel.
Vamos l! disse Gino, inquieto.
Maneco, o portugus, de Santos, onde trabalhou oito
anos num hotel, tambm na lavanderia. Luizo, o mulato,
veio do Sul de Minas. Trabalhava em postos de gasolina. E
Hans era lutador de jud e luta-livre. Essas marmeladas da
televiso. A est o currculo dos trs.
Gino voltou-se para Leo com um brilho nos olhos.
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Leo, voc tem idia do que usaram quando o puseram
a nocaute?
No tenho a menor idia.
Teria sido um golpe a mo livre? Qualquer pedao de
pau ou instrumento deixaria um galo na cabea, no
verdade? E, depois, o agressor no estaria sua espera.
Provavelmente foi surpreendido com voc na tal saleta.
Leo e Guima concordavam a cada palavra que Gino dizia.
O raciocnio do jogador de xadrez funcionara. O desmaio fora
obra dum faixa preta. Quem sabe um profissional do jud ou
de luta-livre.
Acho que o homem disse Leo em voz baixa.
Hans Franz Mller.
Gino, voc fabuloso! exclamou Leo, abraando o
primo.
Obrigado! Hans o parceiro ou assecla do Baro. E
agora?
Guima, que evidentemente no era jogador de xadrez,
disse a primeira coisa que lhe surgiu cabea:
Vamos avisar a polcia.
Mas que provas ns temos contra Hans? replicou
Gino. Ter feito lutas de marmelada em circos e na televiso
no crime. Pode ser at que tenha um passado limpo. Avisar
a polcia seria mover errado uma pea do tabuleiro.
Ento vamos continuar com os braos cruzados?