o ministerio criancas -...

21

Upload: vandung

Post on 08-Dec-2018

213 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

O_Ministerio_Criancas.indd 1 05/05/2016 17:31:22

Copyright © Eduardo Sá, 2015 Copyright © Eduardo Sá e Edições ASA, 2014 Copyright © Casa da Palavra, 2016

Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610, de 19.2.1998. É proibida a reprodução total ou parcial sem a expressa anuência da editora.

Este livro foi revisado segundo o novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.

Título Original Hoje não vou à escola

Preparação Pedro Ayres

Revisão Pedro Staite

Revisão técnica Danielle Scaccio

Capa Leandro Dittz

Imagem de capa Getty Images / Brand New Images

Diagramação Abreu’s System

Casa da Palavra Produção Editorial Ltda. Av. Calógeras, 6, sala 701 – Centro Rio de Janeiro – RJ – 20030-070 21.2222-3167 21.2224-7461 [email protected] / www.casadapalavra.com.br

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Angélica Ilacqua CRB-8/7057

Sá, EduardoO Ministério das Crianças adverte: brincar faz bem à saúde –

A importância do tempo livre e do bem-estar na educação do seu �lho / Eduardo Sá. – São Paulo: Casa da Palavra 2016.

272 p.

ISBN 978-85-441-0375-3

1. Educação 2. Crianças – Comportamento 3. Escola 4. Estudo e ensino I. Título.

16-0184 CDD 370

Índices para catálogo sistemático:1. Educação

O_Ministerio_Criancas.indd 2 05/05/2016 17:31:23

O_Ministerio_Criancas.indd 3 05/05/2016 17:31:23

SUMÁRIO

Apresentação ....................................................................... 7Prefácio .............................................................................. 11

Capítulo 1 – De que são feitas as crianças, que a escola não entende? ............................................... 13

Capítulo 2 – Se o jardim de infância fosse uma escola, não se brincaria lá todos os dias .................. 25

Capítulo 3 – Pensar deveria ter regras e maneiras ............. 51Capítulo 4 – Por que os bons �lhos não tiram boas

notas? ......................................................... 61Capítulo 5 – Os professores são costureiros da luz ........... 91Capítulo 6 – É anormal fugir da escola? .......................... 141Capítulo 7 – A escola do passado ..................................... 163Capítulo 8 – A escola morreu. Viva a escola! .................... 177Capítulo 9 – Conversas sobre educação ........................... 225Capítulo 10 – Hoje não vou à escola! ................................ 265

Notas ................................................................................. 269

O_Ministerio_Criancas.indd 5 05/05/2016 17:31:24

Apresentação • 7

APRESENTAÇÃO

Este livro é resultado de muitos textos sobre educação que escrevi ao longo de trinta anos. Quase todos já foram publicados em outras obras, do primeiro ao último. Há algum tempo, resolvi agrupá-los em uma coletânea, que chamei de Textos com educação. Tempos depois, ainda debruçado sobre esse trabalho, percebi que o título e a capa não retratavam o que eu pretendia dizer de fato e que a distribuição talvez não tenha corrido como desejava. Em outro momento posterior, decidi acrescentar textos novos, mais recentes, que, em função do tempo e do contexto para os quais foram escritos, têm formas, conteúdos e estilos muito diferentes. E cheguei a um título – agora, sim! – mais instigante.

Escrever sobre a escola vale a pena? Não só vale, como é ur-gente e indispensável. Porque a escola ganhou mais importância do que talvez mereça. Ela se “estica” em horas de exigência, todos os dias, com deveres de casa – alguns explicitamente para os pais – e parece partir do pressuposto de que brincar e aprender são duas coisas que não estão associadas como

O_Ministerio_Criancas.indd 7 05/05/2016 17:31:24

8 • O Ministério das Crianças adverte: brincar faz bem à saúde

deveriam. No caso de Portugal, onde me debruço com maior proximidade e precisão, vê-se gritar um parodoxo. Hoje, temos as crianças mais saudáveis de todas as gerações, os pais mais empenhados e comprometidos com a educação, os professores mais capazes e generosos. Temos, também, uma atmosfera mais democrática nas escolas e alguns espaços escolares magní�cos e aconchegantes. E mesmo tudo isso não parece ser o su�ciente para evitar que as crianças queiram fugir da escola.*

O que falta, então, para que a escola se reabra para a vida, para o mundo e para o futuro? Uma política de educação. Mas, principalmente, uma ideia daquilo que queremos da família e das crianças, adequando a escola à revolução familiar. Uma política da educação que, à esquerda e à direita, se desenhe como uma comunhão de ideias, à margem de medidas avul-sas e demagógicas, à margem de rankings vaidosos e irreais, à margem de disputas entre pais e professores e entre todos contra o sistema.

É estranho que alunos, pais e professores tenham uma leitura arrojada, sensata e convergente do que pode ser a es-cola, e é estranho que estejam ávidos por mudanças sem que, contudo, pareçam desbravar os caminhos que fujam a uma ideologia que relacione a escola a uma “linha de produção” de tecnocratas de sucesso. Como se a escola não servisse para acariciar o erro e para estimular o modo de casar boa educação e boa instrução com o sonho, com os porquês, com a preguiça e, claro, com a distração. Como se, desde a Educação Infantil, a vida de uma criança não comportasse interação entre escola e família, corpo e cabeça, irmãos e amigos, escola da vida e

* No Brasil, embora algumas escolas e famílias já tenham uma expe riência semelhante à de Portugal, a maioria das escolas ainda apresenta um desa�o grande de preparar e envolver os pais com a escola e a educação dos �lhos. Os espaços escolares quase nunca são apropriados e aconchegantes. (N. da E.)

O_Ministerio_Criancas.indd 8 05/05/2016 17:31:24

Apresentação • 9

aquilo que se aprende nos livros, sonhos e ferramentas com que eles são garimpados.

A escola dos rankings, a escola dos meninos de porcelana – aqueles que começam juntos na Educação Infantil e termi-nam, ainda juntos, o Ensino Médio –, a escola que confunde a necessidade de relacionar pluralidade e singularidade com uma deriva de exclusividades que se vão sucedendo, sem critério, está morrendo. A escola do futuro tem de ser uma escola humana, onde não haja disciplinas mais ou menos importantes. Uma escola onde haja espaço e tempo para falar, para experimentar e para compreender, onde a esperança de vida não termine aos 18 anos, com a entrada no Ensino Superior, mas que acenda a chama da curiosidade, do orgulho, da ambição, do sonho e da paixão, da história e do futuro.

É por pensar que essa escola colhe tantas e tão diversas atitudes de ternura que os convido ao dever de recriá-la. Todos juntos! Ao contrário do que têm sido tantas reformas que todos conhecemos. E é em nome de tudo isso que, no essencial, mantenho os textos da coletânea Textos com educação. E, em nome de tudo isso, acredito que chegará o dia em que as crianças �carão felizes por fugirem para a escola.

O_Ministerio_Criancas.indd 9 05/05/2016 17:31:24

Prefácio • 11

PREFÁCIO

Quando Robinson Crusoé, formidável personagem �ctício de Daniel Defoe, naufragou na Ilha do Desespero e descobriu que naquele espaço, talvez, tivesse que viver o resto de seus dias, voltou aos destroços de sua embarcação e tratou de resgatar e levar para a terra algumas coisas úteis. Entre estas “coisas” Defoe menciona alguns alimentos, ferramentas, algumas poucas peças de roupa que sobraram e, ainda é o autor que nos fala, “coisas de menor valor” incluindo penas, papel, tinta e alguns livros.

A obra que relata a vida desse personagem, que encheu de sonhos e ilusões nossa infância e juventude, não volta por muito mais tempo a comentar sobre essas “coisas de menor valor” que Robinson Crusoé teria arrastado para terra, mas serve de retrato para destacar como os livros de maneira geral são ainda vistos por muita gente no Brasil, bem mais de tre-zentos anos após essa passagem. É certo que, por infortúnio e desgraça, se muitos fossem atirados a uma ilha igual à de Robinson Crusoé, pensariam depressa nas coisas que levariam

O_Ministerio_Criancas.indd 11 05/05/2016 17:31:24

12 • O Ministério das Crianças adverte: brincar faz bem à saúde

e, com generosidade, até seria lícita esperar a inclusão “dessas coisas de menor valor” que são os livros.

Mas, é claro, essa re�exão não vale para toda a gente.Para alguns poucos, talvez se esquecesse até de ferramentas,

posto que não soubesse usá-las, deixariam de lado suas roupas, uma vez que é relativo seu valor, sobretudo nos trópicos, mas jamais abandonariam a segurança e a ternura que os livros contêm. E, se no caso particular deste que prefacia, a inevi-tável Ilha do Desespero surgisse, entre os livros escolhidos certamente incluiria com orgulho e quase usura este belo livro de um psicólogo notável que é Eduardo Sá.

Obra imperdível para educadores, sejam pais, professores, tios e avós, é lindamente escrita por um especialista ímpar na educação do comportamento infantil e mostra que saber brincar é colocar a mente para se desenvolver e alcançar o in-�nito alcançável, bem distante de qualquer ilha do desespero.

CELSO ANTUNES Mestre em ciências humanas, especialista em inteligência e cognição e autor de diversas obras educacionais publicadas

no Brasil, na América do Sul e do Norte e na Europa

O_Ministerio_Criancas.indd 12 05/05/2016 17:31:24

De que são feitas as crianças, que a escola não entende? • 13

Capítulo 1

DE QUE SÃO FEITAS AS CRIANÇAS, QUE A ESCOLA NÃO ENTENDE?

O futuro aceita pessoas imperfeitas. Sejam pais desajeitados ou professores “à beira de um ataque de nervos”. Assim, uns e outros crescem com as imperfeições com que todas as crianças dialogam um dia atrás do outro.

Só quem não aceita as imperfeições humanas (começando pelas suas) é quem não cresce. Só quem não reconhece a sua necessidade de crescer não aceita o futuro.

O melhor do mundo não são as crianças!

Há pessoas que se resguardam na ideia de que o melhor do mundo são as crianças. E falam delas como se elogiassem a sua ingenuidade (mas, ao mesmo tempo, como se nunca mais pudessem ter – como elas – uma relação intensa, transparente e descontraída com a vida). Há pessoas para quem o melhor do mundo são as crianças porque, sentindo-se mal-amadas, resta a saudade de, ao menos quando crianças, terem sido o melhor do mundo para alguém.

O_Ministerio_Criancas.indd 13 05/05/2016 17:31:24

14 • O Ministério das Crianças adverte: brincar faz bem à saúde

Mas não há uma idade adequada para ser o melhor do mundo para alguém. Como não há uma idade certa para perguntar “por quê?”, depois da qual a curiosidade transforme todos nós em “produtos fora do prazo”.

É bom ser criança para sempre – ainda que por dentro. Ser curioso como se tivéssemos os olhos nas pontas dos de-dos, ver o “intestino das coisas” e perguntar “por quê?”. É bom aprender, com prazer e brincando. Aprender as ciências ou aprender com as qualidades humanas (mesmo as mais misteriosas). E brincar com os conhecimentos (mesmo com aqueles que, aparentemente, pareçam mais chatos). É bom crescer com os pés na Terra e com a cabeça na lua, com projetos e com sonhos. É bom crescer sendo criança, mais ou menos, para sempre. Talvez porque o pensamento das crianças não se faça de inocências ou com deslumbramentos fugazes; faça--se mágico sempre que, pela seriedade com que se dá, os pais correspondam com gestos empáticos. E, quando as crianças têm medos, eles as protegem tão bem que elas só podem se tornar despreocupadas.

O melhor do mundo não são as crianças, mas todos aqueles (pais, avós e professores, por exemplo) que, pela forma como amam, cuidam e protegem cada uma delas, deixam que sejam livres, unicamente, para serem crianças. Com direito de serem enfadonhas, medrosas, rabugentas, desatentas e atrapalhadas. Com direito de reclamarem, mesmo que não tenham motivos consideráveis para tanto; de testarem a paciência dos adultos, sempre que os percebam distraídos; de serem gulosas, logo que eles as queiram compenetradas e sossegadas; e de terem os olhos na ponta dos dedos, indagando “por quê?”, a torto e a direito, sobretudo quando são perspicazes.

O melhor do mundo são todos os adultos que não elogiam as crianças de forma carinhosa, como se o seus corações fossem feitos de algodão-doce; aqueles que lhes dão o direito de fazer

O_Ministerio_Criancas.indd 14 05/05/2016 17:31:24

De que são feitas as crianças, que a escola não entende? • 15

birras – estridentes, de preferência –; e os que as permitem chorar com alma, por motivo nenhum e sem que saibam o porquê, se for preciso. E aqueles adultos que as autorizam a acreditar em bruxas, em duendes, no Capitão Gancho ou no bicho-papão, e a considerar que todos esses seres vagueiem pelo quarto sempre que os pais forem insossos nas histórias que lhes contam. E aqueles, claro, que as deixam descobrir que uma família se faz com todos os que moram, de surpresa, no meio de nós.

O melhor do mundo não são as crianças. São todas as pes-soas – sejam pais, avós ou professores – que as ensinam que o melhor de tudo não é estar entre os melhores ou ser “o melhor do mundo”, mas, antes, ser o melhor do mundo para alguém.

Salvem o bicho-carpinteiro!

O bicho-carpinteiro é um animal generoso e incansável que, sem se dar conta, encontra dentro das crianças o seu refúgio predileto. Não é acompanhado de febre (como os vírus, por exemplo) nem necessita das campanhas de vacinação que tanto desagradam as crianças. Embora encontre a ira digna de um exterminador implacável em muitos pais, professores e até em pediatras, o bicho-carpinteiro revela uma determinação elogiável. E, em cada contrariedade, foge para as mãos das crianças, sendo responsável por aquele formigamento que lhes “apura a vista” na ponta dos dedos.

O bicho-carpinteiro tem se transformado na única espé-cie autossu�ciente e autóctone que merece a indiferença das organizações ecológicas. Não se transformou na mascote de nenhuma organização humanitária. Nem mereceu, como es-pécie ameaçada e em vias de extinção, campanhas planetárias de proteção, parecendo mesmo que o mundo inteiro se uniu para derrotá-lo.

O_Ministerio_Criancas.indd 15 05/05/2016 17:31:24

16 • O Ministério das Crianças adverte: brincar faz bem à saúde

Mas os bichos-carpinteiros também podem adoecer e �car desgovernados. Neste caso, são os responsáveis por aqueles comportamentos de trabalho compulsivo de muitos adultos (que desiludem os pobres bichos, porque de construtivo e de carpinteiro não têm nada) e, quando acuados, alojam-se nos dedos, embora – infelizmente – não os encaminhem ao “por quê?” nem os levem a explorar a existência das coisas. Simplesmente, os tornam fanáticos do esporte favorito dos adultos, que, a exemplo do jogging, também tem um nome so�sticado: zapping (o zapear canais na televisão).

Mal sabem esses adultos – que tentam exterminar os sim-páticos bichos-carpinteiros, querendo substituir o ruído vivo das crianças por uma ditadura de sossegadinhos – que, de tão crédulos, são eles próprios, sem saberem, seres sobrenaturais.

Os livros invisíveis

Gosto das crianças que se divertem quando um professor engasga com as perguntas delas, sobretudo quando se trata de alguém que elas adoram e que respeitam. E que, até na forma como se engana, é justo, atento e delicado.

E gosto daquelas crianças que perguntam “por quê?” e que são chatas e insistentes. E que não desistem até terem sua dúvida esclarecida. Nem que, para tanto, sejam atrapalhadas na forma como dizem: “Ah, professora?!” E se cansam tanto de levantar o dedo que com um braço agarram o outro para que nunca desistam de fazer mais uma pergunta.

E gosto das crianças que são “cabeças de vento” e que, sempre que um professor está em um dia enfadonho, se “retiram” das aulas e “falam com os botões” ou passeiam pela própria imaginação. E gosto das que são incisivas e, mal “um al�nete” cai e se estatela na sala de aula, param e espicaçam

O_Ministerio_Criancas.indd 16 05/05/2016 17:31:24

De que são feitas as crianças, que a escola não entende? • 17

quem parecer distraído com os pormenores com que o mundo mostra que palpita.

E gosto das crianças que cochicham, que olham para o lado e se divertem. E daquelas que precisam ser advertidas de vez em quando, porque estão na sala de aula com a mesma “alma aberta” com que brincam em casa, todos os dias. E das crianças que põem dúvidas e insistem nelas, muitas vezes. E que, a cada vez que as colocam, põem em dúvida a sabedo-ria do professor com quem querem se parecer. E gosto das crianças que distinguem ver de observar e ouvir de escutar. Daquelas que se dão por satisfeitas com as matérias só depois de as costurarem com tantas perguntas que parecem aprender quase sem memória.

E gosto das crianças que chegam à escola e falam da casa, dos pais e dos irmãos, e com as suas histórias fazem de uma turma uma mão cheia de pessoas da família. E das que não gostam de trabalhar, mas gostam de aprender. E das que, sempre que houver quem lhes desperte uma paixão, são insistentes nos comentários e determinadas na procura.

Gosto das crianças curiosas. Daquelas que têm “os olhos na ponta dos dedos” e, sendo “enxeridas” e “abelhudas”, são afoitas, engenhosas e leais no modo como aprendem. E das crianças que, de tão intuitivas, distinguem acumular conhecimentos e estimar a sabedoria. E exigem que a escola lhes dê “segredos” e “feitiços” para que liguem aquilo com que aprendem às pessoas com as quais se chega à felicidade.

Gosto das crianças que são mestres na arte de descobrir, para quem aprender é fazer com que o desconhecido se torne parte da família. Daquelas que cobiçam e que batalham. E, mesmo magoadas, têm garra e entusiasmo, e parecem indomáveis na forma como vão atrás de uma paixão.

E gosto das crianças que, lá no fundo, se perguntam onde �cam as suas “memórias de aluno” nas aulas de cada professor.

O_Ministerio_Criancas.indd 17 05/05/2016 17:31:24

18 • O Ministério das Crianças adverte: brincar faz bem à saúde

Das que se insubordinam contra todos aqueles que lhes va-ticinam não ter futuro. Gosto sobretudo daquelas crianças que não sabem como acreditar no futuro quando os pais, depois de inúmeras comparações, elogiam principalmente seus antigos professores, e as escolas, que sempre exageram ao falar do futuro dos alunos, acreditam que este pareça sempre longe demais.

E gosto das crianças que esperam que a escola as torne um tanto “ignorantes”, tal é a sabedoria com que as enche. Daquelas que não repetem, mas que recriam. E que já perceberam que por trás de cada aluno que a abandona está uma escola que, por distração, já terá abandonado demasiados alunos, muitas vezes.

E gosto das crianças que já não suportam todos aqueles que falam da sua “falta de bases” em vez de cuidarem da sua própria “falta de horizontes”. E daquelas que são contra as “orelhas de burro”, com que se humilhavam as crianças que supostamente não eram inteligentes. E que, por isso, talvez não amem o modo como, por vezes, se “condecoram” alguns alunos com “mérito” e com “excelência” – no meio das infeli-císsimas festas de “�nalistas”, onde se distinguem as boas notas, independentemente do modo como são conquistadas – e se premiam todos os outros meninos com a mágoa e a vergonha.

E gosto daquelas crianças que, em um mundo de pessoas que evitam pensar, parecem fugir à norma (pensando com a própria cabeça) quando aqueles que não pensam nos falam do progresso.

E gosto das crianças que nunca veem o caminho porque se interessam, unicamente, pelas pessoas que lhes esticam as mãos e as ajudam quando o percorrem.

E gosto de todos os meninos que são “apanhadores de histórias”. Daqueles que, quando o professor leva o coração nos olhos, se confessam a ele e acreditam naqueles que acre-ditam em si.

O_Ministerio_Criancas.indd 18 05/05/2016 17:31:24

De que são feitas as crianças, que a escola não entende? • 19

Mas quem não gosta das crianças que amam as escolas que as “desmancham”? Ninguém, seguramente! Essas, sim, são escolas especiais! Porque derrubam um “lado sabichão” que algumas crianças têm para as reinventarem, em seguida, a partir daquilo que elas nem sequer sabem que desconhecem. E são especiais quando tratam todos os meninos como viajantes e os acolhem como hóspedes preciosos, cujas histórias, todas juntas – em conjunto com o coração de um professor –, fazem longos livros invisíveis com os quais se aprende a ver e a sentir, a imaginar e a pensar. São escolas amigas dos livros invisíveis! Aquelas em que sempre se sabe quando as aulas começam, mas que, por causa deles, seguramente nunca mais têm �m!

“Terra do Sempre”

Reconheço que a ideia de um mundo onde a sensibilidade e o encantamento se unem, de forma comovente, me agrada. Nunca entendi por que essa convivência chamou-se Terra do Nunca, ou por que parece existir somente nas redondezas da infância – embora fosse percebendo, com o tempo, que as pessoas perdem o riso quando crescem, e talvez só ele limpe as nuvens que as separam da magia; e que, ao não conseguirem ser sérias com todas as vidas que há dentro delas, só possam ser sisudas. Aceito que seja um lugar em que cada transformação se dê, unicamente, quando se acredita. E que isso seja uma Terra… do Nunca. Sobretudo para as pessoas cujo coração guarda o mundo de si próprias. Acredito que quando as pes-soas choram para dentro nunca se comovem. Suspiram pela Terra do Nunca da qual se perderam. E sempre que choram no cinema, nunca se permitem acreditar nos movimentos das coisas extraordinárias que passam por elas, porque nunca saem de lá, na verdade.

O_Ministerio_Criancas.indd 19 05/05/2016 17:31:24

20 • O Ministério das Crianças adverte: brincar faz bem à saúde

Agrada-me que a Terra do Nunca nos chegue com as fadas, e que elas tenham nascido, segundo consta, com o primeiro sorriso do primeiro bebê, multiplicando-se de sorriso em sorriso. Mesmo que alguém, em algum lugar, não acredite nelas e que, quando isso acontece, uma fada acabe morrendo, acho que as fadas nascem sempre que um bebê sorri. Porque, ao sorrir, ele espanta os medos e, só assim, o coração se abre para o mundo e para si. Mas é, decerto, um detalhe – meti-culoso – que talvez não inter�ra na vida das fadas (que, como se sabe, são todas as pessoas que nos conhecem melhor do que nós próprios).

Apesar das fadas, a Terra do Nunca lembra-me o inalcan-çável. Parece um lugar sem os solavancos com que se constrói o crescimento. Sendo o “nunca” tão próximo da ideia do nada (e, ao mesmo tempo, sendo tão nostálgica a forma como a Terra do Nunca se opõe à vida e ao crescimento), receio que ele evoque um lugar ameno que, depois da infância, só se reencontre no paraíso com que, supostamente, a morte nos presenteia.

Assusta-me que a maioria das pessoas compreenda as outras vidas que há para além da vida só quando morre. Em todos nós há outras vidas, sem que seja preciso tomá-las como se fôssemos fadas. Outras vidas que são reveladas por meio das diferenças dos outros, que assim descobrem em nós uma serena pluralidade, com a qual se aprende a crescer do egoísmo para a compaixão. As outras vidas das pessoas que guardamos em nós, e cujos gestos nem sempre correspondem a tudo o que gostaríamos que nos dessem e as outras vidas que, quando nos dizem “Aproxime-se e seja você mesmo!”, resgatam aquilo em que faltava o sempre em quase tudo.

Quando a sensibilidade e o encantamento se casam, de forma comovente, chega-se à Terra… do Sempre. A “Terra do Sempre” se constrói com as outras vidas que há para além

O_Ministerio_Criancas.indd 20 05/05/2016 17:31:24

De que são feitas as crianças, que a escola não entende? • 21

da vida. Com quem se faz de fada, claro. Mas muito para lá das redondezas da infância. Faz-se das coisas extraordiná-rias, que nos transformam logo que acreditamos nelas. Põe riso, compaixão e “se deixa ser” dentro de nós. Chegados ao “sempre”, o coração “guarda o mundo em si”. E, só aí, começa o aprendizado.

A nossa pátria são todas as crianças

Todas as crianças têm o direito de serem crianças. E têm o direito de crescerem livres, mas com regras, em um país amigo das crianças.

Todas as crianças têm direito a um país cuja Lei do Trabalho preveja que as consultas de obstetrícia sejam, também, uma obrigação de todos os homens à espera de um bebê. Onde as crianças não tenham de sair cedo demais de casa. E onde as cre-ches e a Educação Infantil sejam gratuitas e para todos, sendo reconhecidas como uma condição essencial para que a educação seja melhor, mais plural e mais bonita.

Todas as crianças têm direito a uma escola que as eduque antes de instruir. Onde não passem tempo demais, todos os dias. Em que as aulas não sejam tão grandes como têm sido e que as poupem de deveres de casa. E em que os recreios sejam mais longos e melhores nas condições de segurança e nos recursos.

Todas as crianças têm, também, direito a livros escolares gratuitos, para todo o ensino obrigatório, que sejam, idealmen-te, propriedades de cada escola, sendo as crianças obrigadas a acarinhá-los todos os dias, porque só quando o conhecimento passa de uns para outros e é tratado com cuidado é que nos torna sábios.

Em uma escola amiga das crianças, os professores contam histórias e são acolhedores enquanto ensinam, incentivando

O_Ministerio_Criancas.indd 21 05/05/2016 17:31:24

22 • O Ministério das Crianças adverte: brincar faz bem à saúde

alunos comunicativos. Porque uma escola que não fala e não escuta vive assustada e isolada. E uma escola assim educa mal, não sendo uma escola, portanto. Em uma escola amiga das crianças, todas elas são obrigadas a ter atitudes. E a serem leais umas com as outras. Em uma escola amiga das crianças, as que fazem queixinhas a torto e a direito, os alunos exempla-res, os alunos solitários e mal-educados, os alunos violentos e aqueles que repetem sem pensar são crianças cujos pais têm necessidades educativas especiais e precisam, logo, de ajuda. Mas, se resistirem e não quiserem perceber que magoam os seus �lhos, talvez ainda não mereçam ser pais.

Em um país amigo das crianças, todas elas têm direito a tempo livre, e sem a supervisão permanente dos pais. Sem lugares especiais onde façam os deveres de casa, vejam televisão e tenham de �car quietas e caladas. Aliás, em um país assim, todas as crianças terão o direito de conversar. Porque só quando se pensa com os outros, conversando consigo mesmo e em voz alta, ao mesmo tempo, é que se aprende a crescer.

Em um país amigo delas, todas as crianças têm direito de brincar. Todos os dias, e não exclusivamente nas férias ou em tempos livres. E a brincar com cada um dos pais, por pelo menos trinta minutos, de segunda a domingo. Têm, também, o direito de serem �lhos únicos dos seus pais, uma vez por semana, por um tempinho. E a terem os pais, ao jantar e depois dele, só para a família, sem celulares e televisões.

Em um país amigo das crianças, todos os pais que acham os �lhos superdotados devem �car, de vez em quando, de castigo. Porque não percebem (sem querer, certamente) que todas as crianças, todas, mesmo, têm uma ou outra necessidade edu-cativa especial. E que, pior do que não corrigi-la, é disfarçá-la com tudo aquilo que, supostamente, se faz bem. E também não percebem que as crianças que eles acham “normais” só parecem mais adormecidas porque as pequenas maldades e os

O_Ministerio_Criancas.indd 22 05/05/2016 17:31:24

De que são feitas as crianças, que a escola não entende? • 23

desamparos, a zanga sem �m e a tristeza dos pais, quase todos os dias, lhes provoca – no coração e na cabeça – um ruído de fundo que atrapalha o pensamento.

Para além disso, todos os pais que – mesmo dizendo “posso estar enganado” – acham que os �lhos têm uma personali-dade muito forte devem �car de castigo duas vezes, porque confundem essa convicção com a teimosia que cria “braços de ferro”, por tudo e por nada, contra quem está fora. Mas se por infelicidade os pais insistirem em ser, simplesmente, bonzinhos e prestadores de serviços (em vez de pais), estão poupados a todos os castigos. Isso porque não há nada pior do que ver um principezinho se transformar em um pequeno ditador e, de imposição em imposição, chegar à adolescência como grande tirano.

Em um país com futuro, todas as crianças têm direito a uma família. E, por isso, não podem estar confinadas em centros de acolhimento tanto tempo como tantas estão. E têm o direito a uma Justiça amiga das crianças, que obrigue a Assistência Social a ser mais e�caz, sempre que se trate de protegê-las. E, se porventura houver quem queira transformar um tribunal em um tutor de pais zangados e indispostos, que nunca põem os interesses dos �lhos em primeiro lugar, em um país amigo das crianças eles serão advertidos e castigados, porque não merecem ser pais. Simplesmente porque todas as crianças têm direito ao direito e ao afeto, de braço dado e, como quem tagarela, muitas vezes, tornam o mundo mais clarividente e mais sensato.

Todas as crianças merecem um país amigo das crianças. E, sobretudo, é indispensável a elas o direito de ser criança. Do nascimento aos 18 anos, pelo menos. E têm o direito a ter pais. Daqueles que, sempre que desligam o “piloto automático” com que educam e dão colo, ligam uma espécie de atrapalhador com que dizem (gritando) “A partir de hoje!”, muitas vezes.

O_Ministerio_Criancas.indd 23 05/05/2016 17:31:24

24 • O Ministério das Crianças adverte: brincar faz bem à saúde

E têm, ainda, o direito a pais de coração grande e de cabeça quente, daqueles que fazem ao menos uma asneira todos os dias, sem a qual ninguém se torna amigo das crianças. E, muito menos, mãe ou pai.

E merecem, ainda, o direito de admirar os pais e os avós. Porque só quem admira se torna humilde. E só quem conhece a sua história e se orgulha dela conquista o direito a ter futuro.

Todas as crianças têm, �nalmente, direito à preguiça, a destrambelhar, a azucrinar e a bagunçar. Têm direito de ter uma ou outra indisposição. E de serem até extravagantes e esquisitas. Que são formas complicadas de falar sobre o direito de quem se engasga e de quem se engana, de quem exagera e de quem se atrapalha, e de quem erra.

Todas as crianças têm direito a um país amigo das crianças. Onde todas as pessoas, nem que seja aos pouquinhos, sejam atentas, serenas e sábias, bondosas e �rmes com elas. Um país onde todas as crianças se sintam �lhas dos pais e sobrinhas de todos. Um país que não as idolatre nem as endeuse, mas que as ame simplesmente (que é tudo aquilo que quem repete que “o melhor do mundo são as crianças” raramente faz). Porque, a�nal, a nossa pátria são todas as crianças.

O_Ministerio_Criancas.indd 24 05/05/2016 17:31:24