o menino a tartaruga e suas cascas
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Trata de bullying, perseguição na escola e apelidos desagradáveis.TRANSCRIPT
O MENINO, A TARTARUGA E SUAS CASCAS
1ª EdiçãoCampinas – SP
Edição da autora2011
ISBN 978-85-912113-1-9
FERNANDA OLIVEIRA CAMARGO HERREROS
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Pedro era um casca grossa. Briguento, encrenqueiro e mal-
educado, ninguém queria ficar perto daquele garoto. Seus coleguinhas
de escola viviam com medo dele e fugiam sempre que ele aparecia.
Mas Pedro nem sempre fora assim.
Na verdade, há um ano atrás, quando estudava em outro colégio,
ele era um menino bonzinho, educado e até um pouco tímido. Na sua
classe havia outro menino que era temido por todos, Artur. Artur
gritava e xingava muito, tirava sarro e colocava apelidos horríveis em
todas as outras crianças. Até com os professores ele era desse jeito.
Pedro até então tinha escapado das gracinhas do Artur. Porém,
um dia, Pedro foi ao médico e descobriu que precisava usar óculos. Na
primeira vez em que apareceu de óculos na escola, Artur apontou para
ele e gritou: “Olha o galo cego” e caiu na gargalhada. Desse dia em
diante Artur só chamou Pedro dessa forma.
1
Quando Pedro passava no pátio da escola, Artur gritava: “Galo
cego, galo cego”. Quando ele entrava na sala de aula, às vezes havia o
desenho na lousa de um galo usando óculos. Com isso, os outros
meninos passaram a chamá-lo por esse apelido e se ele errava algum
passe no futebol, logo berravam: “É um galo cego, mesmo.”
Pedro fingia que nem ligava e que nem ouvia estas gracinhas e até
ria com os meninos para disfarçar. Mas no fundo, no fundo, ia ficando
cada vez mais triste e não queria mais ter que passar por isso.
Pediu para mãe se podia não usar os óculos na escola, mas ela não
deixou porque os óculos eram importantes para que sua visão se
desenvolvesse bem. Continuou a usá-los e as gracinhas continuaram.
Sua tristeza foi aumentando e aumentando, ele foi ficando
envergonhado, cada vez mais tímido e começou a sentir medo dos
outros garotos. Medo de que o chamassem daquela forma e de que os
outros rissem dele.
Na classe ainda se sentia protegido porque com os professores
presentes ninguém zombava dele, mas seu grande receio era o de sair
para o pátio onde os meninos o perseguiam livremente.
O menino adotou uma estratégia: quando dava o sinal do recreio,
corria para o banheiro e ficava lá trancado por todo esse período. Com
isso, ficava longe dos encrenqueiros, mas também não podia brincar e
ficar com seu amigos.
2
Com o passar dos dias, na hora de ir para o colégio, Pedro sentia
como se estivesse doente. A cabeça e a barriga doíam, o estômago
embrulhava e o peito apertava. Era como se a tristeza e o medo
tivessem se depositado naqueles lugares de seu corpo, pesando e
sufocando. Então Pedro pedia para seus pais para não ir à escola,
para ficar em casa porque não se sentia bem.
Mas a mãe do Pedro, que era muito atenta, logo notou que algo
estava errado. O garoto andava muito quieto e triste. Chamou seu
filho de lado e perguntou o que estava acontecendo. Pedro sabia que
sempre podia confiar nos seus pais e contou tudo a ela:
- Eu quero parar de estudar. Eu não preciso mais ir à escola
porque eu já sei ler e escrever.
A mãe respondeu:
- Filho, se você parar agora você só vai saber isso, enquanto ele,
o Artur, vai aprender bem mais que você e ficar mais esperto. Você
acha certo que você, um menino bom e educado, se prejudique e o
outro, um menino mau, saia vencendo? Você vai continuar a
estudar, sim.
A mãe mandava Pedro para a escola todo dia. Pedro ia
chorando e a mãe sentia uma dor no coração ao fazê-lo ir, mas o
obrigava assim mesmo, porque sabia que tinha que ensinar seu filho
a enfrentar os problemas da vida.
A mãe queixou-se com a diretora do colégio e a diretora
chamou Artur na sua sala. Conversou seriamente com ele,
acompanhou o Pedro durante algum tempo e a situação se resolveu.
Artur parou de chamar Pedro pelo apelido. Pedro até pensou que
tinha sido bobo ao sofrer por tanto tempo. Se ele tivesse contado já
no começo o que estava acontecendo para seus pais, tudo teria se
arrumado antes.
3
No ano seguinte, o pai do Pedro foi transferido para outra cidade e
ele teve que mudar de escola. O garoto ficou muito nervoso por ir a um
novo colégio onde não conheceria ninguém e teve medo de passar por
todo aquele processo de novo. Achava que novamente ririam dos seus
óculos e então bolou um plano. Dessa vez, era ele quem já ia chegar
tirando sarro primeiro e colocando apelidos nos outros, para que todos
tivessem medo dele e o deixassem em paz.
Foi assim que ele se transformou no terror daquele colégio:
xingava bastante, zombava de tudo, fazia desenhos colocando defeito
nos professores, ria muito se alguém caía, colava chiclete nas cadeiras.
Passou a ser evitado por todos. Pedro sentia-se muito mal agindo desse
modo porque aquele não era seu jeito, mas foi a forma que encontrou
para enfrentar aquela situação.
4
A mãe do Pedro, que não era boba, notou a nova mudança do
menino e percebeu que ele se tornara mandão e mal-educado. A nova
escola a convocou e a diretora contou para ela como era Pedro que
agora apelidava e perseguia os outros alunos.
A mãe sabia que aquele não era o verdadeiro Pedro, que ele tinha
criado em torno de si um personagem, como se fosse uma casca para
se proteger dos outros. Ela queria ajudar seu filho a voltar a ser como
antes e superar aquele acontecimento do apelido. Percebeu que ele
andava muito sozinho, sem amigos e pensou que seria uma boa idéia
se ele tivesse um companheiro leal, que gostasse dele de verdade e que
não ligasse se ele usava óculos ou não. Decidiu arrumar-lhe um animal
de estimação.
Pedro e a mãe foram a uma loja de animais e o menino se
encantou por umas tartaruguinhas d'água:
-Quero aquela ali – disse o menino, apontando para uma das
tartarugas no aquário.
-Você tem certeza? - perguntou o vendedor, abismado.
É que o Pedro tinha escolhido logo a mais feia, a mais esquisita de
todas. Ela era pequena, tinha o casco todo irregular e bem mais grosso
que o das outras tartarugas.
5
-Gostei dela porque ela é como eu: diferente - respondeu o
garoto.
Pedro estava certo. Aquela tartaruga era de fato diferente, ela era
uma tartaruguinha muito sensível. Quando ainda era um filhotinho, foi
separada de sua mãe por um homem grande e grosseiro. Sentiu-se
muito só longe de sua família e teve muito medo quando foi colocada
numa caixa junto com outras tartarugas.
A vida na caixa era horrível. Além de estar longe de quem ela
conhecia a tartaruga tinha que dividir um espaço pequeno com vários
outros bichinhos. As tartarugas ficavam apertadas lá dentro, algumas
até subiam por cima das outras. A tartaruguinha era um filhote e como
seu casco ainda não estava todo formado, cada aperto ou empurrão
que ela levava a incomodava muito.
A caixa foi parar dentro de um caminhão e ela fez uma longa
viagem lá dentro. E ela, que estava habituada ao silêncio e à
tranquilidade da natureza, percebia o treme-treme dos pneus na
estrada, ouvia barulhos altos de buzina e se assustava cada vez que o
homem abria a caixa para espiá-la ou alimentá-la. Ele não tinha o
menor cuidado com os bichinhos. Pegava-os de qualquer modo e às
vezes os deixava cair.
A tartaruguinha sentiu muito medo e muita saudade de sua
família. Se ao menos sua mãe estivesse ali, pensava, ela a protegeria.
Mas a tartaruga sabia que estava sozinha para enfrentar aquele
desafio e então foi aí que um fenômeno interessante ocorreu. Ela
percebeu que, conforme os dias se passavam e conforme ela convivia
com aquele homem, seu casco ficava mais e mais grosso. Ela sabia,
porque a mãe havia ensinado, que o casco das tartarugas era como
uma armadura, servia para proteger dos perigos. Porém ela não
imaginava que seu casco ia engrossar tanto assim.
6
Com o casco mais espesso ela já nem sentia tanto quando aquele
homem pegava-a de mau jeito ou quando ele a maltratava. O problema
foi quando ela chegou na loja de animais. Lá ela notou que sua
carapaça estava grossa demais comparada com as das outras
tartarugas e descobriu que, se por um lado, a grossura de seu casco a
protegia dos maus-tratos, por outro lado não a deixava sentir quando
alguém a acariciava. Como já estava acostumada a nada sentir, a
tartaruguinha deixou isso para lá e continuou levando sua vidinha
solitária no aquário, sem se relacionar com os outros animais, porque
se achava muito diferente deles.
Foi aí que Pedro apareceu e a levou para casa. O menino logo
gostou dela e fazia de tudo para conquistá-la: ficava com ela na sua
mão, passava um bom tempo conversando com o animalzinho e até
comida na boca ele dava.
A tartaruguinha no início tinha muito medo. Quando Pedro
chegava perto do aquário ela tentava fugir, mas não havia jeito; ele
sempre conseguia pegá-la. O carinho e a dedicação do menino foram
pouco a pouco convencendo a tartaruga e uma relação de amizade e
confiança se estabeleceu entre eles.
7
O garoto tinha ficado curioso em saber por que o casco de sua
amiguinha era tão esquisito e resolveu fazer uma pesquisa na internet.
Descobriu muito sobre seu bichinho e aprendeu principalmente que
tinha sido um erro retirar a tartaruguinha de seu ambiente natural, ela
nunca poderia ter sido vendida. Ele percebeu que ela era um bichinho
muito frágil, indefeso e que, para suportar os maus-tratos do homem
do caminhão e toda a mudança de vida pela qual passara, tinha
engrossado seu casco para se proteger. Aí ele compreendeu o motivo
de ter gostado tanto dela: ele mesmo era muito parecido com a
tartaruguinha.
8
Ele também, assustado com a nova escola e tendo sido
machucado antes por outro coleguinha, tentara se defender tornando-
se um casca grossa. Ele também se achava diferente dos outros só
porque usava óculos.
Mas aquele comportamento não combinava com seu bom
coração, pois ele estava ficando cada vez mais triste e mais solitário.
Pedro decidiu mudar, queria ser o garoto educado e feliz de antes.
Então falou para a tartaruga, enquanto acariciava seu casco:
não somos assim. Nós vamos voltar a ser o que éramos antes. Eu tenho
você e você tem a mim. Não me importa a aparência do seu casco. Eu
gosto de você do jeito que você é.
A tartaruga passou a estimar seu dono, quando ele chegava perto
do aquário dava piruetas na água e fazia bolhinhas de ar para recebê-
lo. Deixava que ele acariciasse sua cabecinha e sentia-se muito feliz.
Um dia sentiu a mão do Pedro fazendo carinho no seu casco e então
percebeu que sua carapaça tinha voltado ao normal, já não era tão
grossa como antes. Sua aparência era agora como de qualquer outra
tartaruga.
Pedro ajudou aquele animalzinho a voltar a confiar nos humanos.
Mas logo chegaria a vez da tartaruga ajudar Pedro também.
- Nós vamos mudar isso. Eu e você, juntos, vamos conseguir. Nós
9
Pedro tinha um plano para reconquistar a confiança dos garotos do
colégio. Na escola em que ele estudava aconteceria uma feira de
ciências. Cada aluno tinha que levar algo para mostrar aos outros e
Pedro resolveu levar seu aquário com a tartaruga. Ele tinha certeza de
que os outros estudantes gostariam de ver seu animal e aquilo lhe daria
a chance de fazer amizade.
Várias crianças se juntaram ao redor do aquário para ver o bichinho
e estavam admiradas com ele. Pedro foi chegando perto, todo feliz, para
contar que aquela tartaruga era sua. Quando as crianças descobriram
que aquele aquário era dele, foram se afastando, com medo da reação
do garoto. Temiam que ele os expulsasse de lá ou os xingasse na frente
dos outros.
Pedro percebeu o que estava acontecendo e chamou as outras
crianças:
- Podem ver a minha tartaruga... Por que estão indo embora?
- Mas você vai me chamar de Baleia se eu for aí? – perguntou um
menino que tinha sido apelidado assim pelo Pedro.
Pedro sabia o quanto tinha errado. Tentando evitar o que lhe
acontecera no outro colégio, tinha decidido se isolar criando em torno de
si uma proteção como se fosse o casco da tartaruga. Mas o seu casco,
que tinha sido feito só para resguardar, foi ficando tão grosso que
começou a machucar qualquer um que chegasse perto. Sem perceber
ele escolheu o pior jeito de manter as pessoas ao longe: maltratando-as,
como o Artur um dia o maltratou. Ele tinha se tornado um menino mau e
ninguém mais queria sua companhia.
Naquele momento, Pedro lembrou como tinha sido difícil aguentar
as gracinhas dos outros sobre seus óculos, o quanto aquilo o machucara
e pensou que, no fim das contas, ele nem precisava ter agido daquela
maneira porque, neste colégio novo, ninguém tinha zombado dele. Ele
até tinha sido bem recebido. Ele entendeu que não era porque o Artur
um dia o tratara mal que os outros garotos o tratariam daquele modo
também.
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Então olhou a sua volta e viu que muitos dos meninos que ele
achava mais legais também tinham suas características próprias: um
era baixinho, outro usava aparelho nos dentes, outro era magrela... E
eles eram tão legais que ninguém reparava nestas coisas. Isso não
tinha importância. Ele entendeu que quando a gente tem um amigo, a
gente gosta dele do jeito que ele é, mesmo que ele seja diferente.
Pedro disse:
- Desculpe. Eu não vou mais ser assim. Por favor, venham ver meu
animal de estimação.
Várias crianças se aproximaram e Pedro pôde explicar sobre os
cuidados que tinha com sua tartaruguinha. Naquele dia ele fez novos
amigos e mudou sua maneira de agir.
Ele percebeu que não precisava mais se proteger dos outros
daquela maneira. Pedro ajudou a tartaruga a e a tartaruga ajudou
Pedro a diminuir a sua casca.
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