o medo do sertão. a malária e a comissão rondon

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Analisa as relações entre doenças, conhecimento e ocupação do território na Comissão de Linhas Telegráficas Estratégicas de Mato Grosso ao Amazonas, mais conhecida como Comissão Rondon. A Comissão, entre 1907 e 1915, atravessou de sul a norte amplas regiões do que são hoje os estados de Mato Grosso, Rondônia e Amazonas, na faina de instalar linha telegráfica que seria responsável pela integração dessas regiões às principais cidades brasileiras. Ao longo do tempo, a malária, doença endêmica nas localidades percorridas, forçou a Comissão a abrir mão de alguns objetivos e a retardar a realização de outros. O impacto dessa doença nos trabalhos da Comissão, com destaque para a criação de um serviço sanitário primordialmente destinado a seu controle, é o foco deste artigo.

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  • v.18, n.2, abr.-jun. 2011, p.471-497 471

    O medo do serto

    O medo do serto: amalria e a ComissoRondon (1907-1915)*

    Fear of the serto: malariaand the Rondon Commission

    (1907-1915)

    Arthur Torres CaserMestre em Histria das Cincias e da Sade/

    Casa de Oswaldo Cruz/ Fundao Oswaldo Cruz.

    Rua Botucatu, 295, casa 1020541-340 Rio de Janeiro RJ Brasil

    [email protected]

    Dominichi Miranda de SPesquisadora e professora da Casa de Oswaldo Cruz/

    Fundao Oswaldo Cruz.

    Casa de Oswaldo Cruz/FiocruzAv. Brasil, 4036/404

    21040-361 Rio de Janeiro RJ [email protected]

    Recebido para publicao em janeiro de 2010.

    Aprovado para publicao em abril de 2010.

    CASER, Arthur Torres; S, DominichiMiranda de. O medo do serto: amalria e a Comisso Rondon (1907-1915). Histria, Cincias, Sade Manguinhos, Rio de Janeiro, v.18, n.2,abr.-jun. 2011, p.471-497.

    Resumo

    Analisa as relaes entre doenas,conhecimento e ocupao do territriona Comisso de Linhas TelegrficasEstratgicas de Mato Grosso aoAmazonas, mais conhecida comoComisso Rondon. A Comisso, entre1907 e 1915, atravessou de sul a norteamplas regies do que so hoje osestados de Mato Grosso, Rondnia eAmazonas, na faina de instalar linhatelegrfica que seria responsvel pelaintegrao dessas regies s principaiscidades brasileiras. Ao longo do tempo,a malria, doena endmica naslocalidades percorridas, forou aComisso a abrir mo de algunsobjetivos e a retardar a realizao deoutros. O impacto dessa doena nostrabalhos da Comisso, com destaquepara a criao de um servio sanitrioprimordialmente destinado a seucontrole, o foco deste artigo.

    Palavras-chave: Comisso Rondon;telgrafo; territrio; malria; Brasil.

    Abstract

    The article analyzes the relationshipsbetween disease, knowledge, and settlementof the Brazilian territory within the contextof the Strategic Telegraph Commission fromMato Grosso to Amazonas, more famouslyknown as the Rondon Commission. From1907 to 1915, the commission traversedbroad regions of what are now the states ofMato Grosso, Rondnia and Amazonas aspart of its endeavor to set up telegraph linesthat would link these regions to thecountrys main cities. Over time, themalaria, endemic to the places visited bythe commission, forced it to abandon someof its goals and delay achievement ofothers. The article focuses on how thedisease impacted the work of thecommission and highlights creation of asanitary service intended primarily tocontrol malaria.

    Keywords: Rondon Commission; telegraph;territory; malaria; Brazil.

  • 472 Histria, Cincias, Sade Manguinhos, Rio de Janeiro

    Arthur Torres Caser, Dominichi Miranda de S

    A partir de 19071, vastas regies dos atuais estados brasileiros de Mato Grosso, Rondniae Amazonas passaram a ser atravessadas por um grupo de oficiais e praas do Exrcitobrasileiro, que cumpria a misso de estender fios telegrficos at o extremo noroeste dopas. Esses militares somavam-se a telegrafistas e guarda-fios cedidos pela Repartio Geraldos Telgrafos (RGT), a civis contratados para trabalhos pesados e, eventualmente, a gruposde indgenas, totalizando trs a seis centenas de homens, que formavam a Comisso deLinhas Telegrficas Estratgicas de Mato Grosso ao Amazonas (CLTEMTA), tambm conhe-cida como Comisso Rondon.2 Criada no governo de Affonso Penna (1906-1909) e chefiadapelo coronel Cndido Mariano da Silva Rondon (1865-1958)3, essa Comisso foi um dosmaiores esforos realizados durante as primeiras dcadas da Repblica brasileira com o fitode incorporar os sertes do noroeste4 ao restante do pas. Ela tambm foi o ponto alto dalonga trajetria pblica de Rondon, sendo muitas vezes evocada por narrativas mticassobre a vida e os feitos desse to importante personagem da histria do Brasil republicano.5

    A linha telegrfica da qual se encarregaria a Comisso deveria partir de Cuiab em de-manda de Santo Antnio do Madeira, de onde seguiria para Manaus atravessando osterritrios do Acre (cedido ao Brasil pela Bolvia num tratado de 1903), do Alto Purus e doAlto Juru, em plena floresta amaznica. Subordinada concomitantemente aos ministriosda Guerra, da Viao e Obras Pblicas e da Agricultura, a CLTEMTA tinha por misses ex-pandir a infraestrutura de comunicaes do pas por meio do telgrafo, assegurar defini-tivamente a posse das regies a noroeste do pas, realizar contatos com sociedades indgenas,efetuar levantamentos cientficos (botnicos, zoolgicos, antropolgicos e geolgicos) einiciar o processo de ocupao produtiva da regio atravs do estabelecimento de pequenosncleos agropecurios em torno das estaes telegrficas (Maciel, 1998; Diacon, 2006; S,S, Lima, 2008).

    Por motivos que discutiremos adiante, com o passar dos anos a Comisso teve de diminuiro espectro de suas atribuies.6 Ainda assim, a descrio dos feitos da Comisso est pre-sente nos mais diversos textos elaborados por seus membros, sejam relatrios de atividades,cadernetas e dirios de campo, estudos cientficos ou conferncias pblicas. Nesses docu-mentos so ressaltadas as qualidades morais dos homens envolvidos no projeto, mas tambma grande complexidade dos trabalhos realizados. Exemplos nesse sentido no faltam. Emquase todos os relatrios pululam relatos a demonstrar as imensas distncias percorridasnas mais diversas expedies da Comisso e as dificuldades de todos os gneros enfrentadasdurante a realizao dos mais variados trabalhos. Problemas de transporte e embates dis-ciplinares com os praas, calor forte, chuvas constantes e ataques de grupos indgenas sorecorrentemente citados nos relatrios publicados e nas conferncias proferidas por Rondonno Rio de Janeiro (1910 e 1915) e em So Paulo (1910). Tais passagens nos permitem perce-ber que a CLTEMTA era frequentemente apresentada por seus membros como uma epopeia:a da integrao do Brasil. Tratava-se de garantir a interiorizao da presena do Estadobrasileiro, num movimento de conquista dos sertes do pas.7

    Os trabalhos realizados pela CLTEMTA no noroeste do Brasil foram examinados pelahistoriografia brasileira a partir de diferentes pontos de vista. Alguns estudos chamam aateno para a poltica indigenista desenvolvida por Rondon (Bigio, 2000); outros destacama fora da ideia de integrao nacional como orientadora das distintas atividades desem-

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    O medo do serto

    penhadas pela Comisso (Maciel, 1998); h, ainda, aqueles que, como prisma para compre-

    ender a Comisso, procuram examinar mais de perto a trajetria de Rondon, as controvr-

    sias nas quais ele se envolveu e as iniciativas que tomou em sua carreira (Diacon, 2006).

    Recentemente, os estudos dos naturalistas que acompanharam as atividades de construo

    de infraestrutura de comunicaes efetuadas pela CLTEMTA vm chamando a ateno de

    pesquisadores da rea de histria das cincias (S, S, Lima, 2008). Engenheiros e naturalistas

    escreveram muitos volumes sobre os resultados de seus trabalhos na regio, a includos

    catlogos de espcimes botnicos, geolgicos e zoolgicos, glossrios de termos utilizados

    por grupos indgenas, levantamentos de cursos de rios e correo de informaes presentes

    em mapas antigos. Pouco, no entanto, foi discutido sobre a maior dificuldade encontrada

    pelos membros da Comisso em sua tentativa de promover a ocupao dos sertes do

    noroeste: a alta incidncia de doenas na regio (Diacon, 2006; Caser, 2009); doenas que

    dificultavam e, no raras vezes, impediam o andamento das obras de instalao da linha

    telegrfica e que, simultaneamente, atacavam os homens que l estavam e afastavam aqueles

    que ainda deveriam chegar para a colonizao da poro noroeste do territrio do pas. Se

    Rondon e os demais membros da Comisso esforavam-se em chamar ateno para os

    benefcios oferecidos pela natureza da regio ao migrante, o medo das doenas trabalhava

    no sentido contrrio, lembrando que a morte era um possvel destino para aqueles que por

    l se aventurassem.

    Diante desse impasse que se colocava para a Comisso, os mdicos que a acompanharam

    em seus oito anos de trabalhos passaram a assumir papel de primeira grandeza. Afinal,

    cabia-lhes controlar as doenas na regio, diminuindo a mortandade dos membros da

    CLTEMTA e dissipando o medo dos sertes de modo que seu povoamento se tornasse

    efetivo. Cabia-lhes alterar o equilbrio entre o lado da balana formado por doenas,

    medo e fracasso, e aquele constitudo por instalao da linha, ocupao do territrio e

    sucesso da empreitada. A balana tinha, claro, de pender para este ltimo lado.

    Neste artigo, examinamos a atuao dos mdicos da Comisso e a criao de seu servio

    sanitrio, uma tentativa de controlar as doenas mais precisamente a malria presentes

    nos sertes do noroeste, com o intuito de permitir a boa marcha dos trabalhos ali efetuados,

    mas tambm sintoma claro de que essas doenas foram consideradas ameaas reais desejada

    ocupao daqueles sertes e prpria extenso da linha telegrfica da qual se encarregava

    a Comisso.

    O medo das doenas

    Desde o primeiro momento em que os trabalhadores da CLTEMTA chegaram aos sertes

    do noroeste para construir a linha telegrfica que garantiria a comunicao rpida entre

    aquelas regies do pas e seu principal centro poltico, o Rio de Janeiro, at o dia 1o de

    janeiro de 1915 quando a linha foi oficialmente inaugurada , diversas doenas amea-

    aram o sucesso do empreendimento, minando as energias de oficiais e trabalhadores, afe-

    tando cotidianamente a marcha dos trabalhos desempenhados e, muitas vezes, cobrando

    seu tributo em vidas.

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    Arthur Torres Caser, Dominichi Miranda de S

    Praticamente todos os oficiais da Comisso que redigiram relatrios sobre suas atividades e no foram poucos, tendo em vista a publicao de 104 volumes na srie da ComissoRondon, dos quais 86 se referem ao perodo da CLTEMTA mencionaram problemas comdoenas e fizeram suas prprias avaliaes sobre a gravidade da situao sanitria de algumasregies (Brasil, 1950). A centralidade dessas observaes de carter mdico, feitas em todasas etapas dos trabalhos da Comisso (do reconhecimento e explorao das reas percorridas instalao dos postes e linhas telegrficas, passando pela abertura das picadas e pelasexpedies de reconhecimento dos principais rios da regio) ficar mais clara a seguir. Osexemplos aqui elencados foram selecionados entre muitos outros presentes na documentaoexaminada. Eles tratam de diferentes fases da atuao da CLTEMTA e indicam as formaspelas quais as doenas atrapalharam e tornaram mais complexas todas as suas operaes,uma a uma, durante anos.

    Numa conferncia, ao tratar do perodo de estudos e reconhecimento do territrio queseria cortado pela linha, o prprio Rondon dedica alguns pargrafos interessantes a umalocalidade de fundamental importncia naquele momento, ponto final da linha telegrficae cidade que servia como base da construo da ferrovia MadeiraMamor, obra que se efe-tuava nas mesmas ocasio e regio (Hardman, 2005): Santo Antnio do Madeira. A seurespeito, ele afirma:

    No tenho lembrana de jamais ter visto outro povoado de aspecto to feio e tristonho.

    A populao, constituda de aventureiros vindos de todas as partes do mundo, cheia devcios, alcolatra, parece ter querido erigir em padro de glria o desprezo pela higienee pelo asseio. O lixo amontoa-se no meio das ruas; ali mesmo abatem-se, esfolam-se eesquartejam-se as rezes destinadas alimentao; de todos os lados levantam-se exalaesptridas. Os gneros de primeira necessidade, quase sempre deteriorados e imprestveis,custam preos exorbitantes, fabulosos. O principal ramo de comrcio o lcool.

    Em resumo, depois de se ter visto essa infeliz aldeia, despovoada de crianas, compreende-se que s por milagre no teria ela a assombrosa mortandade que a celebrizou e cuja famainjustamente generalizada traz desde muitos anos paralisado o movimento de conquistadas margens do Madeira por uma populao honesta e laboriosa, capaz de beneficiar asincalculveis riquezas deste solo (Rondon, 1919, p.75-76).

    Alm da pssima situao sanitria dessa e de outras cidades, vilas e povoados situadosno caminho ou nas proximidades da linha telegrfica, havia o problema do adoecimentodos membros da Comisso, que prejudicava no poucas vezes de forma dramtica oandamento dos trabalhos. Novamente o prprio Rondon quem nos d uma ideia dotamanho da questo, dessa vez durante o trabalho de abertura de picadas e instalao delinhas telegrficas, fazendo um alerta ao pas dos esforos necessrios para viabilizar aquelaempreitada. A importncia prtica e simblica do episdio narrado, somada apresentaode argumentos em defesa da abertura de estradas e linhas telegrficas pelos sertes donoroeste, justifica a longa citao:

    Aps a concluso do grande Reconhecimento de 1909, depois de sondar os recursos comque poderamos contar no Madeira e indagar da salubridade da regio, resolvi, paraacelerar a concluso dos nossos trabalhos, atacar simultaneamente o servio de SantoAntnio para baixo, em procura do Alto Jamari, ao encontro da construo matriz. Para

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    O medo do serto

    isso em abril de 1910 criei a seo que se incumbiria desses trabalhos, sob a denominaode Seo do Norte. Para dirigi-la foi nomeado o major Agostinho Raymundo Gomes deCastro, que escolheu seus auxiliares e com eles marchou em maio ao seu destino,demorando-se em Manaus o ms de julho em organizao administrativa; prosseguiupara Santo Antnio em julho, dando comeo aos trabalhos em agosto.

    Foi to infeliz, porm, que, no ms seguinte, estava com quase todo o pessoal fora doservio. Foram ele e o tenente Clementino Paran, comandante do contingente, osprimeiros a carem doentes, apesar da exemplar energia que desenvolveram na organizaoe execuo dos trabalhos.

    S em novembro foi possvel retomar os trabalhos de locao; os de construo,propriamente, continuaram parados por falta de praas. Foi preciso chamar concorrnciapblica para a empreitada da abertura do picado, que em seis quilmetros apenas forapelos praas do contingente iniciada, a partir do acampamento Henrique Dias, margemda estrada de ferro Madeira-Mamor.

    Apesar deste primeiro quase desastre, insisto em prosseguir com a construo por alidesde j. A exemplo da Madeira-Mamor no devemos desanimar diante da aparenteinclemncia do clima do alto Madeira; para venc-la, domando-a, ser preciso robustezcompleta, perseverana e muita energia. Sem estas qualidades fsicas e morais nadapoderemos conseguir naquela regio, que s com muita audcia e mais audcia poderser modificada, tornando-se adaptvel vida humana.

    Havemos de gastar algum dinheiro para vencer os embaraos naturais, mas, uma vezmodificada a regio, estar ela concorrendo grandemente para saldar essas despesaspblicas, facilitando aos seus habitantes ensaios e iniciativas mais profcuas atravs deterritrio mais adaptvel atividade industrial.

    As despesas que vamos fazendo para penetrao destas terras imensas representam umsaque contra o futuro, verdade; mas o pagamento do juro seguro e ser feito comusura.

    Para o nosso Brasil Central no temos outro processo a empregar na consecuo do seupovoamento ... porque constitui ele o futuro celeiro da Terra (Rondon, s.d.-b, p.17-18).

    O incidente aqui narrado possuiu importncia significativa para a Comisso. Afinal,toda uma seo de construo da linha telegrfica teve seus trabalhos interrompidos emsua fase mais decisiva devido ao elevado ndice de adoecimento entre seus oficiais etrabalhadores. Os homens da Seo do Norte de construo da linha tronco, lideradospelo major Agostinho Raymundo Gomes de Castro, s suportaram um ms no localdesignado por Rondon, construindo apenas seis quilmetros de linha telegrfica, quandodeveriam instalar quilmetros e quilmetros at o encontro com a Seo do Sul, em algumponto do itinerrio. O momento do encontro das duas sees seria o marco da conclusodos trabalhos de construo e do incio da comunicao telegrfica por toda a regioatravessada. As doenas tornaram esse encontro mais difcil do que Rondon pode terimaginado a princpio.

    O segundo-tenente Otvio Felix Ferreira e Silva, engenheiro militar e chefe da expedioencarregada da explorao e do levantamento do rio Jamari, da qual tambm participaramo fotgrafo Afonso Henrique de Magalhes, o farmacutico Luiz da Frana Souto Maior, odiarista Manfredo dos Reis Maciel e 12 praas de infantaria (Ferreira e Silva, 1920, p.6),tambm registrou, em seu relatrio, a presena de doenas nas regies que atravessou.

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    Arthur Torres Caser, Dominichi Miranda de S

    Segundo ele, na zona prxima ao vale do Jamari,

    As molstias mais dominantes pelos efeitos letais so de fundo palustre. H vrios casosde beribri, tuberculose e disenteria.

    Salientam-se, pela extensibilidade mrbida, as molstias do aparelho digestivo entre asquais a enterocolite, as enterites e as diarreias, so as que mais casos apresentam, mas debaixa cota percentual.

    O impaludismo8 o maior consumidor de vidas no Jamari e a forma mais frequente emque se manifesta a intermitente quotidiana, seguindo-se a retente e a larvada que no de consequncias fatais.

    Muitos casos de polinevrite palustre tm sido considerados de beribri. Diversos mdicosentre eles o sr. major Gouva Freire encontram afinidade entre o impaludismo e o beribri,alguns ainda pensam em filiar esta molstia epizootia de animais.

    Existem tambm em mnima percentagem as molstias de olhos, o crupe, ttanos, cnceres,meningites, congestes, hemorragias, alienao mental, epilepsia, arteriosclerose,aneurismas, nefrites, mal de Bright, reumatismo, erisipela, escrofulose, elefantase e gangrena.

    So ainda frequentes a ictercia, os eczemas, os dartros, a lepra seca e as lceras naspernas.

    Devemos distinguir no curso do Jamari entre as diversas causas intra e extralocais, quedeterminam a produo de molstias palustres, do reumatismo, dispepsias e dermatoses,as seguintes: a moradia na beira do rio sobre terrenos baixos que so facilmente invadidospelas guas nas enchentes, e na vazante com a ao do calor, expe fermentao ptridaas matrias orgnicas de origem vegetal e animal; a neblina e os nevoeiros constantes dasnoites com excesso de umidade e a gua que os moradores bebem apanhada em igarapsou lagos que contm muitos vegetais e vo baixando de nvel cada vez mais com aevaporao; a m qualidade, insuficincia e s vezes falta da indispensvel alimentaoque depauperam e predispem ao contraimento das molstias.

    Concorre para o mesmo fim o trabalho durante o dia inteiro dentro da gua e emterrenos encharcados ...

    As ms condies em que so transportados os que se destinam ao povoamento doJamari como de todos os rios da bacia do Amazonas so circunstncias acidentais,transitrias e, por isso, removveis, que concorrem, entretanto, para incrementar tanto oimpaludismo como o beribri.

    Acrescente-se a essa srie de circunstncias deprimentes e perniciosas a ausncia de mdicose de ambulncia e fcil ser imaginar a sorte da multido de homens, mulheres e crianasse no meio infecto em que viajam irrompe o paludismo ou beribri.

    A regio insalubre como o indicam as vrias causas citadas, alm das quais devemosainda nos referir ao desleixo, imprevidncia e falta de vigilncia dos que tmresponsabilidade por tantas vidas sacrificadas no povoamento do rio.

    difcil encontrarem-se no Jamari pessoas de avanada idade: apenas vimos nessascondies os velhos Bufo e Baslio.

    A expedio perdeu o diarista Manfredo dos Reis Maciel e o soldado Jos Ferreira doNascimento, ambos vtimas do impaludismo.

    Todo o pessoal sofreu febres intermitentes em parte combatidas, mas, regressoudepauperadssimo de Jatuarana, onde foi forada a suspenso do levantamento pelafalta absoluta de sade (p.21).

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    O medo do serto

    Otvio Felix faz aqui um levantamento das principais doenas nas zonas prximas aorio Jamari, chegando mesmo a apontar algumas de suas causas e ainda que de formatmida possveis solues. Chamam a ateno, em primeiro lugar, o amplo espectro dedoenas citadas e tambm seu forte impacto na expedio: todos os 16 expedicionriosforam contaminados pela malria, dois dos quais morreram, de modo que os trabalhostiveram de ser interrompidos antes de sua concluso pela absoluta falta de sade doshomens. Mais uma vez as doenas aparecem no caminho da Comisso interrompendoabruptamente trabalhos previamente planejados.

    Enquanto Santo Antnio do Madeira era uma cidade sem crianas, toda a regio pr-xima ao rio Jamari era zona sem idosos. De um ou outro modo, sem infncia ou semvelhice, era a vida dos homens que parecia no poder se desenvolver em sua plenitudenaquelas paragens. As doenas eram mais do que ameaa; pareciam representar impedimentoao povoamento dos sertes do noroeste.

    Como afirmamos, relatos como esses se multiplicam nos relatrios dos membros daComisso. Ainda que nem sempre as doenas se tenham manifestado de forma to dramticacomo nos trechos citados, elas eram invariavelmente mencionadas entre as dificuldadesenfrentadas nas mais diversas expedies, caso do relatrio do capito Manoel Tephiloda Costa Pinheiro (1910, p.24-25) a respeito da explorao do rio Jaci-Paran, no qualafirmou: O Jaci-Paran muito doentio e paludoso. Raro era o dia em que no tnhamosdois ou trs homens doentes. Felizmente o impaludismo manifestava-se sempre sob a formamais simples e benigna, conhecida pelos seringueiros pela denominao de maleita ousezo.

    O capito Costa Pinheiro recebeu ordem de explorar o Jaci-Paran e nele estabelecerbase de apoio para a terceira expedio de explorao e reconhecimento liderada por Rondon,que havia partido de Juruena em junho de 1909 em direo ao rio Madeira. As duas turmasno chegaram a se encontrar, pois, induzido por erro nos mapas daquela regio, Rondonconfundiu as bacias dos rios Jamari e Ji-Paran ou Machado. No entanto, o chefe daComisso afirmou que aquele oficial

    ali estabelecera o seu acampamento e estoicamente esperava os expedicionrios do Sul,resistindo, com o tenente Amlcar Botelho de Magalhes, aos acessos do impaludismo.

    Estas febres atacaram a totalidade da coluna expedicionria: os doentes muito graves, falta de mdicos recebiam ordem de retirar-se, de sorte que nesta ocasio s restava umtero do efetivo inicial (Rondon, 1919, p.76).

    As doenas apresentavam-se, desse modo, como constante desafio aos trabalhos daComisso e a seu projeto de ocupar os sertes do noroeste. Para levar a termo seus objetivos,a CLTEMTA no podia negligenciar esse problema. Pelo contrrio, deveria criar estratgiascapazes de controlar o impacto das doenas no andamento dos trabalhos.

    Ainda que os personagens diretamente envolvidos nessa tarefa tenham sido os mdicosda Comisso, no podemos perder de vista o fato de que as doenas se configuravamcomo problema que no interessava apenas a eles. Tratava-se, antes, de questo central queenvolvia toda a CLTEMTA, pois de sua resoluo dependia a prpria viabilidade do projetode integrao dos sertes do noroeste. Nenhum dos textos citados at aqui foi elaborado

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    Arthur Torres Caser, Dominichi Miranda de S

    por mdicos. Todos foram produzidos por engenheiros militares que ocupavam posiesde liderana na Comisso destacando-se o prprio Rondon e que mostravam preo-cupao com a presena constante de doenas atravancando os trabalhos de exploraode rios e construo da linha telegrfica.

    O problema era de todos, e os mdicos se debruaram sobre ele de maneira mais direta,refletindo a respeito de suas causas e apresentando propostas para enfrent-lo. Veremos aseguir as maneiras pelas quais esses personagens lidaram com as doenas que se apresentavamem todos os trabalhos da Comisso. Veremos como as doenas que ameaavam todosforam explicadas em suas causas, quais enfermidades apareceram com maior incidncia,com destaque para a malria, e quais foram as estratgias mobilizadas em seu controle.

    Malria: a doena dos sertes do noroeste

    Em Picturing tropical nature livro que investiga as modernas representaes da naturezatropical desde estudos do naturalista Alexander von Humboldt, em finais do sculo XVIII,at os jardins modernistas de Roberto Burle-Max, elaborados em meados do sculo XX ,Nancy Stepan (2001) destaca que a conformao da categoria natureza tropical, como aentendemos hoje, deveu-se, sobretudo, a trs reas do conhecimento: a histria natural, ascincias humanas (fundamentalmente a antropologia) e a medicina. Essas reas corres-ponderiam, grosso modo, aos trs elementos fundamentais nos quais os trpicos estariamdivididos: lugares tropicais (caracterizados pelo clima quente, mas, sobretudo, por seuestatuto de colnias ou de pases dependentes das principais metrpoles europeias), pessoastropicais (pessoas de pele escura, doentes e pobres) e doenas tropicais (fundamentalmenteaquelas transmitidas por vetores).

    A CLTEMTA assim como Humboldt, Alfred Russel Wallace, Louiz Agassiz, WilliamJames, Patrick Manson e Roberto Burle-Max, personagens focalizados por Nancy Stepanem seu livro tambm inventou sua prpria natureza tropical: os sertes do noroeste.Construindo associao entre o clima quente, a presena, ou melhor, a onipresena dedoenas tropicais e de seus vetores e uma populao semicivilizada, miservel e doente, osdiversos relatrios da Comisso moldaram aquilo que seria o carter tropical de uma reaque, segundo os mapas atuais, vai do noroeste do Mato Grosso ao sudoeste do Amazonas,cruzando todo o estado de Rondnia.

    Ao elaborar sua prpria viso do que conferia aos sertes do noroeste o carter detrpico, a CLTEMTA mobilizou as trs reas do conhecimento que Stepan (2001) identificana origem da ideia moderna de medicina tropical. Naturalistas enviados pelo MuseuNacional coletaram diversos espcimes botnicos, faunsticos e mineralgicos; antroplogosenviados pela mesma instituio estudaram a constituio fsica, o vocabulrio e os costumesdos indgenas; e, finalmente, mdicos estiveram atentos ao modo de vida dos seringueirose habitantes dos povoados da regio, bem como s principais doenas ali presentes. Oslugares, as pessoas e as doenas dos sertes do noroeste foram objetos de investigao daComisso, que, numa monumental obra de 86 volumes, inventou os seus sertes do noroeste,conferindo-lhes o epteto de trpico. Nesse panorama podem ser destacados os levan-tamentos mdicos, pois, como nos informa a prpria Stepan, antes mesmo da emergncia

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    O medo do serto

    da medicina tropical, aquela de climas quentes j havia consolidado o mdico no papel deum dos mais importantes investigadores dos trpicos.

    A propsito, a associao entre clima e doenas anterior medicina tropical. Nosestudos de climatologia mdica e geografia mdica do sculo XIX, por exemplo, clima egeografia eram apresentados como os determinantes fundamentais da causa de doenasem todo o planeta, de tal modo que avaliar suas particularidades locais era a nica maneirade compreender as doenas numa determinada regio.

    Os diversos mdicos partcipes da CLTEMTA no apresentaram explicaes monocausaissobre a incidncia de doenas nas regies que atravessaram. Pelo contrrio, uma de suasmaiores preocupaes foi desmitificar a ideia de que o clima funcionava como impedimentonico e definitivo ocupao produtiva dos sertes do noroeste. Ainda que no tivessesido simplesmente eliminado das explicaes acerca do quadro nosolgico das regies exa-minadas, ele no aparece como nico determinante da inviabilidade da ocupao humanadessas regies, mas sim como um dos fatores responsveis, de forma indireta, por suadificuldade, atribuda ocorrncia de determinadas doenas, como a malria, por exemplo.

    Essa postura diante do clima caracterstica da medicina tropical, disciplina mdicaque emergiu na virada do sculo XIX para o XX, institucionalizando-se com a fundaoda Liverpool School of Tropical Diseases, da London School of Tropical Medicine e doInstitut fr Shiffs- und Tropenkrankheiten (Instituto de Doenas Martimas e Tropicais)de Hamburgo, fundados em 1898, 1899 e 1900, respectivamente. Essa nova disciplina mdicafoi particularmente importante no Brasil, onde, desde os primeiros anos do sculo XX, oscientistas em especial aqueles do Instituto Oswaldo Cruz combinavam anlises micro-biolgicas com pesquisas das reas da histria natural e da entomologia em seus estudossobre a malria, a febre amarela, a peste e outras doenas (Caponi, 2002, 2003; Benchimol,S, 2005; S, 2005, 2008; Benchimol, Silva, 2008; Kropf, 2009).

    Trabalharam na CLTEMTA, como mdicos, Armando Calazans, de 11 de maro de 1907a 20 de julho de 1908 (Botelho de Magalhes, 1919); Manoel Antonio de Andrade, de 11de maro a dezembro de 1907 (CLTEMTA, s.d.-b, p.17); Joaquim Rabello, de 6 de julho a 31de dezembro de 1908 (Calazans, s.d.); Joaquim Tanajura, de abril de 1909 at a inauguraoda linha telegrfica (Botelho de Magalhes, 1919); Paulo Fernandes dos Santos, de 26 dejunho de 1909 a 31 de dezembro de 1910 (Botelho de Magalhes, 1919); Murillo de Campos,de maio a novembro de 1910 e de setembro a dezembro de 1911 (Campos, 1913, p.220);Jos Antonio Cajazeira, de 21 de janeiro de 1914 at a inaugurao da linha (Botelho deMagalhes, 1919); Joo Florentino Meira de Faria, por volta de 1914 (Meira de Faria, 1916);Fernando Soledade (Rondon, 1916); Esperidio Gabino; Serapio; Alberto Moore. Elesforam auxiliados por farmacuticos que, em algumas ocasies, chegaram a assumir funesmdicas. Foram farmacuticos da CLTEMTA o segundo-tenente Manoel Lopes Versosa,Benedicto Canavarro, Luiz de Frana Souto Maior e Antnio Pereira de Andrade.

    A maioria dos mdicos que serviram Comisso era formada por militares, ainda quede foras distintas. Armando Calazans era primeiro-tenente mdico do Exrcito, assimcomo Manoel Antonio de Andrade, Joaquim Rabello e Murillo de Campos; Joo FlorentinoMeira de Faria e Jos Antonio Cajazeira eram capites mdicos do Exrcito; Paulo Fernandesdos Santos era oficial mdico da Armada; e Joaquim Tanajura fazia parte do quadro sanitrio

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    Arthur Torres Caser, Dominichi Miranda de S

    da fora policial do Distrito Federal. Quanto aos outros mdicos (Fernando Soledade, Espe-ridio Gabino, Serapio e Alberto Moore), no conseguimos encontrar informaes sobresua trajetria.

    Vale ressaltar que esses mdicos da Comisso pareciam bastante familiarizados com amedicina tropical9, tendo em vista que citaram diversas vezes em seus relatrios os trabalhosdos mdicos brasileiros e estrangeiros relacionados nova disciplina, em especial aquelesreferentes malria, que foi simultaneamente a doena que mais prejuzos e preocupaescausou CLTEMTA e o modelo paradigmtico de enfermidade tropical. Os doutores Murillode Campos, Joaquim Tanajura e Antonio Cajazeira autores dos mais extensos e importan-tes relatrios mdicos da Comisso citam tanto os ingleses Patrick Manson e Ronald Rossquanto os italianos Amico Bignami, Giovanni Baptista Grassi e Giuseppe Bastianelli, quehaviam trabalhado na elucidao do mecanismo de transmisso da malria em aves e hu-manos, respectivamente, alm de mencionar as pesquisas sobre alguns aspectos da doenarealizadas por Arthur Neiva no Instituto Oswaldo Cruz.

    De forma genrica, o advento da medicina tropical representou a consolidao de umamaneira de entender determinadas doenas a partir de perspectiva ampla, diversificada,que combinava a histria natural, a zoologia, a entomologia e a clnica mdica com amicrobiologia pasteuriana (Caponi, 2002, 2003; Benchimol, S, 2005; S, 2005, 2008;Benchimol, Silva, 2008; Kropf, 2009). O olhar biogeogrfico da medicina tropical mostrava-se particularmente atento s relaes existentes entre os seres vivos (o que inclua, entreoutros, os microrganismos causadores de doenas, os vetores responsveis pela transmissodestes microrganismos e os homens que, mediante aes sanitrias e sociais, buscavamobter controle sobre essas relaes) e destes com o clima e a geografia dos espaos em queviviam, procurando compreender a dinmica presente em todos esses liames.

    A partir dos estudos da medicina tropical, os mdicos passaram a referir-se ao ambientecomo essa complexa cadeia de inter-relaes que envolveria diversos seres vivos (com des-taque para os vetores de doenas), a geografia, o clima, a umidade e a temperatura mdiade determinado espao. Trata-se de postura inteiramente distinta daquela presente nosestudos de climatologia mdica e geografia mdica citados, que entendiam o clima e ageografia como os determinantes da configurao nosolgica de qualquer regio. Neles, osseres vivos e suas inter-relaes no figuravam como parte do ambiente, entendido apenascomo o produto da simples adio de clima e geografia.

    Na tentativa de compreender a presena da malria nos sertes do noroeste, os mdicosda CLTEMTA se valeram desse ponto de vista biogeogrfico caracterstico da medicina tro-pical. Seu mpeto inicial foi negar que a geografia e o clima, sobretudo este ltimo, pudessem,por si, produzir a doena. Esses fatores seriam, entretanto, responsveis pelas condiesnecessrias existncia dos protozorios (Plasmodium falciparum ou Plasmodium vivax)causadores da doena e, sobretudo, reproduo de seus vetores principais, os mosquitosdo gnero Anopheles.

    A presena da malria foi atribuda, ento, s condies favorveis ao cumprimento dociclo do Plasmodium ali presentes. Naquela regio os mdicos identificaram a presena de umapopulao j contaminada pelo protozorio e vista como uma espcie de reservatrio dePlasmodium, alm de anofelinas tipo de mosquito que cumpre o papel de hospedeiro

  • v.18, n.2, abr.-jun. 2011, p.471-497 481

    O medo do serto

    intermedirio e transmissor desse parasito e homens recm-chegados para trabalhar nosseringais, na MadeiraMamor e na prpria CLTEMTA, dos quais alguns nunca haviamsido contaminados pelo protozorio e, portanto, no possuam qualquer resistncia doena. O ambiente, portanto, era extremamente favorvel malria, que, em suas formasmais ou menos letais, atacava praticamente todos os homens que se aventuravam poraquelas paragens.

    O diagnstico da malria era feito a partir do exame clnico do grau de esplenomegalia(aumento do tamanho do bao) dos pacientes e da anlise de seu sangue, esta ltima squando possvel, devido ausncia de microscpio na maior parte das expedies realizadas.Os mdicos da Comisso examinavam, alm de seus membros efetivos, os soldados eregionais10 que a ela se apresentavam aceitos ou recusados de acordo com a opinio dosmdicos sobre sua condio de sade e os seringueiros e moradores dos povoados dos ser-tes do noroeste.

    Na opinio desses mdicos, os principais responsveis pelo alto nmero de casos naregio eram exatamente os seringueiros e outros habitantes dos sertes do noroeste, poisfuncionavam, reiteramos, como reservatrios naturais do protozorio causador da doena.Vejamos o que Joaquim Tanajura (s.d., p.36) afirma sobre a figura do seringueiro:

    No que respeita higiene, faz por ali a vida ao acaso e, a muita ignorncia supersticiosa,ele junta o efeito da depresso moral que lhe abate o nimo ... Penetra a mata sem umaprvia medida de adaptao, isola-se em habitaes irregulares, usa alimentaoinadequada, abusa do lcool, excede-se no trabalho, permanece longamente nos brejos e,ao fim de algum tempo adoece, transmudando-se esse quadro s conjunturas de dores eaflies, sem o socorro da cincia e muita vez sem o recurso de um medicamento que lhevenha a servir de blsamo, aluindo aos poucos seu organismo at s provas da morte.Neste caso, no o clima que deprime, o homem que se suicida...

    A pobreza, a alimentao deficiente e as ms condies de trabalho tornavam esseshomens presas fceis para a doena e, em virtude de sua contaminao pelo Plasmodium,ameaas salubridade dos locais em que viviam. Somando isso e analisando a geografia eo clima (do qual eram examinados, sobretudo, as temperaturas, a umidade do ar e o regi-me das chuvas) das regies que atravessavam, os mdicos depararam com situao intei-ramente favorvel reproduo das anofelinas transmissoras do Plasmodium. A mdia dastemperaturas durante o ano era elevada, bem como a umidade do ar, e as chuvas, constantes(Cajazeira, 1914, p.131-133).

    Quanto geografia da regio, podemos dizer que os sertes do noroeste situam-se nadiviso entre as bacias do Prata e do Amazonas (as duas maiores da Amrica do Sul) e socompostos por terrenos mais elevados, prolongamento do Planalto Central brasileiro, eterrenos de menor altitude, que compem essas bacias fluviais. Toda a regio cortada pordiversos rios das duas bacias. Nas chapadas a vegetao era ento formada por campos oucerrados, ao passo que na bacia do Amazonas e nas cabeceiras dos rios que atravessam aregio a vegetao era composta por florestas ou matas (Campos, 1913).

    A combinao de constantes chuvas (que, apesar de mais fortes de novembro a abril,ocorriam durante todo o ano) e grande quantidade de rios causa a formao de poas degua parada ao longo de parte do trajeto da linha telegrfica. Desse modo, a prpria

  • 482 Histria, Cincias, Sade Manguinhos, Rio de Janeiro

    Arthur Torres Caser, Dominichi Miranda de S

    construo que empreendiam era tambm um espao propcio reproduo dos mosquitos

    transmissores da malria.

    A chegada de novos trabalhadores (muitos dos quais nunca haviam contrado a doena),

    encarregados de construir a linha e participar das expedies de reconhecimento do territrio

    e levantamento das coordenadas dos leitos dos principais rios da regio, deslocando-se

    continuamente pelos sertes do noroeste, foi outro fator que levou disseminao da

    enfermidade. Ainda que o papel dos mdicos fosse o de tentar controlar os ndices de

    contaminao desses homens, o que o exame dos relatrios da Comisso nos permite

    afirmar que grande parte deles contraiu a malria, transformando-se, dessa forma, em

    reservatrios mveis locais de Plasmodium vivax e de Plasmodium falciparum, responsveis

    pelas formas mais brandas e pela mais forte da doena, respectivamente. Quase todos os

    quadros que registram as doenas que afetaram os membros da CLTEMTA mostram que a

    malria foi a de maior incidncia, acometendo um grande nmero de praas, membros da

    RGT e oficiais do Exrcito brasileiro.11 No Mapa nosolgico dos doentes tratados na

    enfermaria da 1a Seo da Comisso de Linhas Telegrficas Estratgicas de Mato Grosso ao

    Amazonas, desde 13 de maio de 1907 a 27 de fevereiro de 1908, do mdico Armando

    Calazans (s.d., p.11), dos 372 pacientes que deram entrada na enfermaria com algum

    problema, 81 sofriam de malria. Na Relao das pessoas pertencentes turma de explo-

    rao do rio Machado, que foram examinadas e medicadas de 25 de outubro a 30 de

    novembro de 1909, elaborada pelo doutor Joaquim Tanajura (s.d., Anexo 2), dos 11

    examinados, oito tinham malria. E, por fim, na Relao dos doentes examinados e

    tratados no ms de janeiro, pertencentes turma dirigida pelo tenente-coronel Cndido

    Mariano da Silva Rondon e que explorou o rio Pardo via Jamari-Madeira, tambm realizada

    por Tanajura (Anexo 3), todos os 14 doentes examinados sofriam de malria.

    Alguns mdicos da CLTEMTA exerceram alm da investigao do quadro nosolgico

    da regio, da profilaxia da malria e de seu controle, bem como de outras doenas que

    afligiam os membros da Comisso e a populao local a atividade de coletores de insetos.

    Os doutores Antonio Cajazeira e Murillo de Campos formaram colees posteriormente

    examinadas por Adolpho Ducke, naturalista do Museu Paraense Emlio Goeldi, e, no Ins-

    tituto Oswaldo Cruz, pelos pesquisadores Henrique de Beaurepaire Arago e Adolpho Lutz,

    que publicaram volumes sobre zoologia na srie da Comisso Rondon (Arago, 1916;

    Lutz, 1912).

    O que os mdicos da CLTEMTA viam, ao olhar para os sertes do noroeste, era um

    ambiente mais favorvel vida e reproduo do Plasmodium e dos mosquitos Anopheles

    do que vida e reproduo dos seres humanos. Naquela regio o equilbrio entre esses

    trs grupos de seres vivos pendia a favor dos dois primeiros. Por isso, na perspectiva dos

    mdicos da Comisso, nos sertes do noroeste do Brasil o homem tanto se encontrava na

    condio de intruso em meio natural inspito, quanto era refm da malria, uma presa

    fcil para a doena.

  • v.18, n.2, abr.-jun. 2011, p.471-497 483

    O medo do serto

    A criao do Servio Sanitrio da Comisso de Linhas Telegrficas: tentativa decontrolar a malria

    J nas primeiras expedies de reconhecimento do territrio, preliminares ao assen-

    tamento dos fios telegrficos, a malria cobrava pesado tributo aos membros da Comisso.

    Novamente, o prprio Rondon quem afirma, em seu grande relatrio sobre as expedies

    de estudo e reconhecimento daquela poro do territrio nacional realizadas entre 1907 e

    1909:Afinal, desde 28 [de abril de 1908] que a febre no me deixa, reaparecendo todas as

    noites; j esgotei um vidro de exanofeles, dois de caf quinado sem resultado aprecivel.

    A aldeia de Mathias [Toloiry, ndio pareci que auxiliou a Comisso em algumasexpedies] era um foco de paludismo de todas as formas. Esta molstia assolou este anoo serto inteiro, desde Parecis onde foi intenso, at Juruena, onde reina desde novembrodo ano passado. Diversos soldados, o comandante tenente Ferreira e um civil, foram a assuas vtimas (Rondon, s.d.-a, p.186-187).

    Se alguns episdios de adoecimento de membros da Comisso foram especialmente

    dramticos, afetando profundamente a marcha dos trabalhos, outros revelam aspectos

    importantes do trabalho mdico no interior da CLTEMTA. Alm do adoecimento do chefe

    da Comisso, que o levou a estada forada de quase todo o ano de 1910 no Rio de Janeiro,

    merecem ser destacados os eventos da retirada da cidade de Mato Grosso e da viagem de 72

    quilmetros do mdico Joaquim Tanajura, em julho de 1909, para tratar de um ferimento

    causado por flecha num soldado conhecido como Pequeno.

    O primeiro desses episdios ocorreu em fevereiro de 1908, quando, aps a inaugurao

    da estao telegrfica da cidade de Mato Grosso, as chuvas naquela rea se intensificaram.

    Rondon, preocupado com a formao de reservatrios de gua parada na regio, propcios

    proliferao dos Anopheles transmissores da malria, ordenou imediatamente a retirada

    dos expedicionrios para So Lus de Cceres, na tentativa de impedir que a doena os

    atingisse. Segundo o chefe da Comisso, urgia a retirada do pessoal do foco paldico, no ms

    em que comum ouvir-se dos habitantes da cidade que no h um s pintado [o peixe]

    que entre nessa poca ali, que no caia doente de febre (Rondon, s.d.-b, p.22). No entanto,

    ele no alcanou xito em seu propsito. Das 228 pessoas que partiram da cidade de Mato

    Grosso, apenas 24 chegaram saudveis em Cceres, e dos 204 doentes, seis faleceram no

    trajeto (Rondon, s.d.-b; CLTEMTA, 2003, p.125-129).

    O outro episdio, envolvendo aquele que Todd Diacon (2006, p.65-66) chamou de o

    mdico mais atarefado de todo o Brasil durante o inverno e a primavera de 1909, Joaquim

    Tanajura, ocorreu aps um ataque dos Nambiquara a uma coluna que transportava

    suprimentos destinados ao grupo de expedicionrios comandado por Rondon. O ataque

    resultou no ferimento do soldado da Comisso chamado Rosendo, conhecido como

    Pequeno. Chegando ao local aps viajar 72 quilmetros a cavalo, Tanajura encontrou no

    soldado um grave ferimento altura do trax, agravado pelos tratamentos ministrados

    pelos homens que haviam prestado socorro ao ferido. O mdico conseguiu salvar o doente

    combinando frequentes lavagens antisspticas com injees de morfina para aliviar a dor

    (Rondon, 1919, p.51; Diacon, 2006, p.65-66).

  • 484 Histria, Cincias, Sade Manguinhos, Rio de Janeiro

    Arthur Torres Caser, Dominichi Miranda de S

    Esses dois eventos, quando examinados com ateno, nos fornecem elementos paracompreendermos melhor alguns aspectos da Comisso Rondon. A retirada da cidade doMato Grosso foi seu primeiro grande embate com a malria, que, a partir daquele ms defevereiro de 1908, mostrou ser o grande obstculo ocupao dos sertes do noroeste. digno de nota que o termo utilizado por Rondon e seus companheiros de misso paratratar do episdio seja exatamente retirada e no deslocamento. No jargo militar,deslocamento tem significado menos carregado, trazendo a ideia de reposicionamento dastropas; retirada, por sua vez, tem conotao de marcha forada diante de derrota iminente,com o objetivo de minimizar as perdas. A retirada da cidade de Mato Grosso trazia em seubojo o reconhecimento da derrota da CLTEMTA diante da malria. Podemos dizer, ainda,que essa operao falhou, tendo em vista o imenso nmero de doentes em relao ao dehomens saudveis ao final dela (90% do nmero total dos homens que participaram daoperao).

    O trauma da retirada evidenciou que a principal doena no caminho da CLTEMTAseria a malria, que ao longo dos anos infectaria grande parte dos homens envolvidos nasexpedies, a includos civis, oficiais e praas. Como ressaltamos, alm de causar mortesem alguns casos, a malria interditava os homens para o trabalho, ou, na melhor dashipteses, reduzia-lhes a produtividade, diminuindo desse modo a velocidade da marcha daconstruo da linha telegrfica. De qualquer forma, sua presena marcaria as atividadesda CLTEMTA. A retirada da cidade de Mato Grosso foi o momento a partir do qual a sen-sao de perigo, o medo dos sertes do noroeste passaram a ser parte fundamental da vidados membros da Comisso que cruzavam a regio.

    A longa viagem mdica realizada em 2 de julho de 1909 pelo doutor Tanajura tambm evento til para compreendermos um aspecto importante da CLTEMTA: o trabalho dosmdicos partcipes dessa empreitada. Ao menos at meados de 1909 ano da viagem deTanajura , os mdicos da Comisso tinham de desdobrar-se para atender aos homensenfermos das distintas turmas de trabalho. O decreto do Ministrio da Indstria, Viao eObras Pblicas que constituiu a CLTEMTA, do dia 4 de maro de 1907 (Instrues..., 1907),e que se encontra parcialmente reproduzido no grande relatrio de Rondon sobre os estudose reconhecimentos realizados pela Comisso nos informa que, num primeiro momento,apenas dois mdicos (primeiros-tenentes Armando Calazans e Manoel Antonio de Andrade)e dois farmacuticos (segundo-tenente Manoel Lopes Versosa e Benedicto Canavarro) seriamresponsveis pelo estado de sade de trezentos trabalhadores espalhados entre as distintasturmas da Comisso, nos sertes do noroeste (Rondon, s.d.-a). Para isso, eles contavamcom poucos auxiliares e instalaes precrias, tanto para o tratamento dos doentes quantopara depsito de material mdico-sanitrio. O doutor Manoel Antonio de Andrade, quefez parte da segunda seo de construo encarregada da linha tronco de Cuiab a SantoAntnio do Madeira , explicitou em seu relatrio que o servio de sade de sua seo eracomposto por um mdico, um farmacutico e um enfermeiro, e acrescentou: Serve-nos deenfermaria uma barraca tortoise com capacidade para 16 praas e a ambulncia mdico-cirrgica, fornecida pelo laboratrio qumico-farmacutico militar e pelo depsito de materialsanitrio do Exrcito; est instalada em uma barraca de dupla coberta (CLTEMTA, s.d.-b,p.18). Tanto a enfermaria quanto a ambulncia mdico-cirrgica unidade mvel equipada

  • v.18, n.2, abr.-jun. 2011, p.471-497 485

    O medo do serto

    com medicamentos e material cirrgico12 funcionavam em instalaes temporrias, e o

    mdico contava apenas com dois auxiliares para cumprir suas tarefas. Essa era a situao da

    segunda seo de construo da Comisso, que, apesar dos problemas mencionados, possua

    um mdico exclusivamente a ela dedicado.

    Se lembrarmos que, em 1907, ano do qual trata o relatrio de Manoel Antonio de

    Andrade, alm da segunda seo da construo a CLTEMTA ainda contava com duas

    grandes turmas de trabalhadores uma na primeira seo de construo, encarregada de

    construir um ramal da linha telegrfica de So Lus de Cceres cidade de Mato Grosso, e

    outra nas expedies de estudos e reconhecimentos comandadas por Rondon e com

    apenas mais um mdico, o doutor Armando Calazans, podemos constatar deficit no nmero

    de mdicos da Comisso em relao ao nmero de trabalhadores mal equipados e mal

    alimentados que fizeram parte de expedies que cruzaram vastas regies em que a malria

    era endmica.

    A viagem de Tanajura em 2 de julho de 1909 nos mostra que, at essa data, a situao

    no parece ter sofrido nenhuma grande alterao. Os mdicos da CLTEMTA continuavam

    se desdobrando para atender homens doentes e feridos em zonas distantes umas das outras,

    contando para isso apenas com alguns poucos auxiliares e instalaes mdicas precrias.

    Se somarmos a isso o forte impacto da malria sobre os trabalhos da Comisso, que ficou

    patente no episdio da retirada da cidade de Mato Grosso, podemos concluir que, desde o

    incio dos trabalhos at, pelo menos, setembro de 1909 data em que Tanajura teve de

    realizar outra longa viagem para tratar de um soldado que se havia ferido ao limpar sua

    Winchester e que acabou morrendo, apesar da cirurgia de emergncia realizada pelo mdico

    com a ajuda do zologo da Comisso, Alpio de Miranda Ribeiro (Rondon, 1919, p.59;

    Diacon, 2006, p.66) , a Comisso no esteve adequadamente aparelhada para lidar com

    os acidentes de trabalho que ocorriam com alguma frequncia nos diversos acampamentos

    e frentes de construo da linha, nem para controlar as principais enfermidades encontradas

    nos sertes do noroeste, sofrendo, em consequncia, srias perdas em vidas ou em trabalhos

    que no puderam ser levados a cabo no tempo previsto.

    Tal quadro ilustra a situao precria dos servios de sade do Exrcito no perodo,

    incapazes de garantir mnimas condies de funcionamento a uma importante comisso

    encarregada de levar as linhas telegrficas aos confins do territrio ptrio. Como vaticinara,

    no incio do sculo XX, Joo de Medeiros Mallet, ministro da Guerra entre 1898 e 1902 , a

    precariedade dos servios mdicos do Exrcito numa situao de campanha seria fatal (cf.

    McCann, 2007, p.105), e os membros da CLTEMTA sentiram isso em sua prpria pele. A

    associao do aspecto modesto da organizao prvia dos servios mdicos da CLTEMTA

    percepo da grande dimenso dos obstculos aos trabalhos provocados pela malria

    motivou a criao de um servio sanitrio exclusivo para a Comisso. Nas Instrues para

    o Servio Sanitrio das Sees do Norte e do Sul, publicadas em 22 de maio de 1910, so

    exatamente esses os dois pontos que aparecem em destaque, como as principais preocu-

    paes. De acordo com as Instrues, o Servio Sanitrio disporia de infraestrutura adequada

    para oferecer tratamento s enfermidades dos sertes do noroeste, em especial a malria,

    que deveria ser controlada por meio de medidas profilticas associadas cura dos enfermos.

  • 486 Histria, Cincias, Sade Manguinhos, Rio de Janeiro

    Arthur Torres Caser, Dominichi Miranda de S

    O documento traz, em suas primeiras linhas, instrues sumrias sobre a novaorganizao do servio:

    O servio sanitrio ficar a cargo de dois mdicos, que se revezaro na Enfermaria (emSanto Antnio do Madeira para a Seo do Norte e na Serra do Norte para a Seo doSul) e nos trabalhos de construo da linha telegrfica.

    Este revezamento ser feito de trs em trs meses de acordo com as presentes instrues,que devero ser rigorosamente observadas.

    Para este fim, o servio sanitrio compreender a profilaxia contra o paludismo e otratamento dos doentes na enfermaria (de Santo Antnio ou da Serra do Norte),funcionando cada qual autonomicamente sob a responsabilidade de um dos facultativos(CLTEMTA, s.d.-b, p.109).

    Esse pequeno trecho inicial das Instrues j nos permite mapear algumas das principaispreocupaes do Servio Sanitrio da CLTEMTA: o controle da malria por meio de medidasprofilticas e a otimizao do trabalho dos mdicos. Se acrescentarmos a ele a informaode que os ttulos das trs partes do documento so Da profilaxia contra o paludismo,Da enfermaria e Da instalao da enfermaria, podemos entrever mais uma das preo-cupaes fulcrais do documento, qual seja, o melhoramento da infraestrutura mdico-hospitalar da Comisso. Foi em torno desses trs pilares que se organizou, em 1910, o Ser-vio Sanitrio da CLTEMTA.

    O item Da profilaxia contra o paludismo enumerava seis recomendaes para o con-trole daquele flagelo: a fiscalizao severa da alimentao ingerida pelos expedicionrios;a proibio terminante do uso de bebidas alcolicas; o uso sistemtico do mosquiteiropor todo o pessoal da Comisso; a quininizao diria de todo o pessoal, na dose de 50ou 30 centigramas do sal de quinina adotado pelo facultativo e a juzo dele, distribuda srefeies, fiscalizado rigorosamente este processo, pelo facultativo ou auxiliar de sua imediataconfiana; a observncia severa das medidas de higiene no acampamento; a drenagemdo terreno, o aterro de poas dgua e a destruio de larvas de mosquito quando o mdicojulgasse tais procedimentos necessrios; por fim, a prerrogativa, concedida ao mdico emservio na construo, de fazer prelees sobre higiene aos trabalhadores, aos domingos(CLTEMTA, s.d.-b, p.109-110). Alm dessas medidas, eram recomendados o isolamento dosportadores da malria antes de sua remoo para a enfermaria da Comisso onde perma-neceriam isolados at segunda ordem e o recolhimento de amostras de sangue dos suspeitosde malria, para envio enfermaria, onde seriam submetidas a exame microscpico.

    Ao final do item Da profilaxia do paludismo estabelecida a organizao da equipeencarregada de controlar a malria, nas expedies da Comisso: um mdico, umfarmacutico responsvel pelo preparo do receiturio e sua distribuio, um soldadoenfermeiro incumbido da prescrio geral dos medicamentos receitados para os enfermos,um soldado enfermeiro auxiliar deste e cinco trabalhadores, dos quais um tropeiro,incumbido dos servios dessa seo, compreendidos o preparo da zona escolhida para oisolamento dos doentes no acampamento, drenagem do solo quando se fizer necessria,destruio de larvas, aterro de guas empoadas etc. Uma turma de nove pessoas cujolder era o mdico, auxiliado pelo farmacutico. Todo esse pessoal deveria acompanhar o

  • v.18, n.2, abr.-jun. 2011, p.471-497 487

    O medo do serto

    mdico em seu revezamento trimestral entre os acampamentos da construo e as enfer-

    marias (CLTEMTA, s.d.-b, p.110-111).

    O segundo item, Da enfermaria, versa sobre a organizao do trabalho mdico nas

    novas enfermarias da Comisso. O pessoal encarregado do trabalho, nas enfermarias,

    deveria ser o mesmo que acompanhava o mdico na profilaxia contra a malria realizada

    nas expedies, com pequena redistribuio de funes. Alm do mdico e do farmacutico,

    dois enfermeiros que se revezaro em servio, quatro serventes para o servio geral da

    enfermaria e um cozinheiro deveriam ser os componentes da equipe mdica das enfermarias

    (CLTEMTA, s.d.-b, p.112). Era tambm uma equipe de nove pessoas liderada pelo mdico e

    pelo farmacutico, como aquela que cuidava da profilaxia da malria nos acampamentos

    da construo, com a diferena de que, na enfermaria, o tropeiro tornar-se-ia cozinheiro, e

    os outros quatro homens que drenavam o solo, destruam larvas de mosquito etc. passariam

    a cuidar do servio geral da enfermaria.

    O item ainda especifica as funes a serem desempenhadas pelos mdicos enquanto

    estivessem nas enfermarias:

    a) direo-geral dos servios de profilaxia geral contra o paludismo e tratamento dosdoentes que forem remetidos ao acampamento da construo e quaisquer outrospertencentes Comisso, em servio ou em trnsito no ponto em que for instalada aEnfermaria;

    b) execuo severa das medidas de higiene no local da Enfermaria, tendo em vistaespecialmente as que se referirem profilaxia contra o paludismo;

    c) exame microscpico do sangue de todos os doentes, todas as vezes que for isto pos-svel, para esclarecimento diagnstico dos casos observados;

    d) aplicao de tratamento adequado, de acordo com seu critrio clnico, fazendo naspapeletas dos doentes as observaes indispensveis que sero registradas em livroespecial;

    e) fiscalizao severa das dietas distribudas aos doentes, de modo que sejam de primeiraqualidade;

    f) fiscalizao rigorosa da prescrio dos medicamentos receitados pessoalmente ou porintermdio de auxiliar de sua imediata confiana;

    g) exame sistemtico dirio de todos os doentes de paludismo em estado grave, prin-cipalmente naqueles que se apresentarem com leses para o fgado e o bao;

    h) cumprimento exato e fiel das instrues do servio sanitrio, fazendo-as executarterminante e rigorosamente por todos os seus auxiliares (CLTEMTA, s.d.-b, p.112).

    Saltam aos olhos, nessas recomendaes, dois aspectos importantes: o primeiro , mais

    uma vez, a preocupao com a malria, que aparece explicitamente em trs das reco-

    mendaes (a primeira, a segunda e a stima); o segundo, a inteno de regular o trabalho

    dos mdicos na Comisso, otimizando-o. Esses dois aspectos aparecem de forma combinada,

    ou seja, as instrues buscam otimizar o trabalho dos mdicos da Comisso direcionando-o

    ao controle da malria. A diretriz era simples: controlar a malria por meio da profilaxia e

    do tratamento dos doentes devia ser a funo precpua dos mdicos da CLTEMTA, quando

    eles acompanhavam as expedies pelos sertes ou nas enfermarias; o trabalho desses

  • 488 Histria, Cincias, Sade Manguinhos, Rio de Janeiro

    Arthur Torres Caser, Dominichi Miranda de S

    profissionais seria mais eficaz e produtivo para a Comisso se eles estivessem dedicados

    sobretudo ao controle dessa doena.

    Por fim, o terceiro item das Instrues, Da instalao da enfermaria, fornece orienta-

    es sobre a construo das enfermarias da Comisso. Feitas de alvenaria, elas deveriam

    situar-se em locais convenientemente escolhidos por um mdico, de preferncia em pontos

    mais elevados do terreno e afastadas de possveis reservatrios de mosquitos do gnero

    Anopheles, observando o mesmo feitio de suas congneres em zonas paludosas. E se deveriam

    compor de:

    a) um quarto destinado ao tratamento dos oficiais;

    b) uma sala para tratamento dos doentes paludados;

    c) uma sala pra tratamento dos doentes de molstias intercorrentes;

    d) um quarto para os doentes operados;

    e) um gabinete para o mdico;

    f) uma sala para operaes cirrgicas;

    g) uma sala para instalao da farmcia.

    Alm destes apartamentos existiro outros para cozinha, copa, banheiroe water-closets (CLTEMTA, s.d.-b, p.113).

    Dessa forma, a Comisso procurava criar espaos mais adequados ao tratamento dos

    doentes, o que inclua local especfico para isolar os indivduos com malria dos demais. Se

    compararmos tais instalaes com a barraca tortoise com capacidade para 16 praas, que

    servia de enfermaria da Comisso em 1907, de acordo com o doutor Manoel Antonio de

    Andrade (CLTEMTA, s.d.-b, p.18), e considerarmos, tambm, que o nmero de profissionais

    auxiliares dos mdicos aumentou de dois (um farmacutico e um enfermeiro) para oito,

    no fica difcil constatar uma preocupao maior da CLTEMTA com a infraestrutura mdico-

    hospitalar utilizada no tratamento dos doentes.

    No dispomos de dados comparativos precisos entre os casos de adoecimento antes e

    depois da criao do Servio Sanitrio da CLTEMTA, nem de nmeros que indiquem seu

    impacto no tratamento dos doentes que chegavam s mos dos mdicos; portanto, no

    podemos assegurar que essa maior preocupao resultou, de fato, em melhoria do estado

    sanitrio da Comisso. Na verdade, a julgar pelos nmeros apresentados na Tabela 1 epelos relatos presentes nos textos de mdicos e outros oficiais da Comisso, podemos concluir

    que at a inaugurao da linha entre Cuiab e Santo Antnio do Madeira as doenas

    continuaram a ter significativo impacto sobre os trabalhos realizados nos sertes do noroeste.

    Rondon, numa de suas conferncias sobre as aes da Expedio Roosevelt-Rondon em

    1914, afirmou:

    Havia 59 dias que partramos da ponte da Linha Telegrfica, com a nossa flotilha de setecanoas, sulcando as guas do rio cujo nome resumia todas as indecises resultantes domistrio do seu curso e da regio desconhecida por ele atravessada [tratava-se do rio daDvida]. Nesse tempo percorremos 686.360 metros, dos quais os primeiros 276.000 foramto speros e hostis que, para os vencer, tivemos de lutar durante 48 dias seguidos, sem nosdeixarmos abater por nenhuma fadiga, nem pelos transes dolorosos que amarguraram os

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    O medo do serto

    nossos coraes e por instantes abismaram as nossas almas na contemplao da insondvelFatalidade das coisas da nossa vida.

    Chegvamos ao fim dessa penosa travessia, quase todos doentes e esgotados de foras(Rondon, 1916, p.106-107).13

    Portanto, em 1914, quatro anos aps a organizao do Servio Sanitrio da CLTEMTA,as doenas ainda vitimavam muitos membros das expedies que atravessavam os sertesdo noroeste. Entre os doentes da Expedio Cientfica Roosevelt-Rondon, que, entre outrasrealizaes, fez o reconhecimento do rio da Dvida e mudou seu nome para rio Roosevelt,estavam o ex-presidente dos EUA Theodore Roosevelt e seu filho Kermit. Chegou-se a temerpela vida do ex-presidente, que, apesar do rigor com o qual se medicava preventivamentecom a quinina, contraiu malria e, bastante fragilizado pela doena, teve de ser transportadosob cuidados especiais pelos outros membros da expedio por longos trechos da travessia(Cajazeira, 1914).

    Mesmo antes, em seu relatrio acerca das expedies de explorao e reconhecimentorealizadas de 1907 a 1909, Rondon evidenciava toda a sua preocupao com o impacto dasdoenas sobre os trabalhos da Comisso. Como podemos ver na passagem a seguir, amalria e o beribri so considerados, pelo chefe da Comisso, problemas maiores do queas dificuldades de transporte e os contatos nem sempre amistosos com os indgenas.

    O beribri e o paludismo continuam a ser o principal obstculo nossa ao nos sertesem que agimos, porque, os dois outros empecilhos transporte e ndios temo-losconjurado: com dinheiro um, e com bondade, pacincia e sofrimento outro.

    At o fim de 1910, o nmero de mortos registrados na linha tronco ascendia a 86; e nalinha ramal da cidade de Mato Grosso a nove (Rondon, s.d.-b, p.91).

    Por falta de dados na documentao examinada, no sabemos em que medida os proce-dimentos previstos nas Instrues foram adotados pelos mdicos da Comisso, nem atque ponto sua rotina foi alterada a partir da publicao dessas normas para o ServioSanitrio. O nmero de mdicos em servio se manteve quase sempre o mesmo, tendo emvista a determinao, nas Instrues, de que o Servio Sanitrio estivesse a cargo de doismdicos, que se revezariam entre os acampamentos da construo e as enfermarias. Aocotejarmos as estatsticas de bitos dos anos anteriores e posteriores criao do ServioSanitrio, vemos que, em vez de diminuir, as mortes aumentaram aps 1910 (Tabela 1).

    Tabela 1: bitos por ano na CLTEMTA

    Fonte: CLTEMTA, s.d.-a.

    Ano Quantidade de bitos

    1907 71908 91909 151910 151911 241912 81913 391914 70

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    Arthur Torres Caser, Dominichi Miranda de S

    No podemos nem devemos confiar plenamente nesses nmeros, uma vez que a mera

    comparao entre a quantidade de mortes de membros da Comisso at 1910, de acordo

    com a Tabela 1, e os dados apresentados por Rondon no relatrio citado revela grande

    disparidade. A Tabela 1 aponta 46 mortes at 1910 e Rondon indica 95. De qualquer forma,

    o nmero ainda menor do que as 141 mortes registradas na mesma tabela entre 1911 e

    1914.

    Se levarmos em conta que a principal protagonista de todos os relatrios mdicos da

    CLTEMTA (anteriores e posteriores criao de seu servio sanitrio) continuou a ser a

    malria, podemos concluir que foi constante a preocupao com essa doena ao longo

    dos oito anos de trabalho da Comisso, mobilizando permanentemente a ateno dos

    mdicos que levavam adiante aquele empreendimento. Isso significa que, apesar dos esforos

    previstos nas Instrues que o regulavam, o Servio Sanitrio no conseguiu dar conta

    plenamente de suas atribuies, e a malria continuou a campear entre trabalhadores e

    Figura 1: Fases da construo da linha (Rondon, s.d.-b, estampa 12). Legendas dos quadros: esquerdo superior,Levantamento de postes. Aprumao. Alinhamento; esquerdo inferior, Esticamento do fio; direito superior,Emenda do fio, soldagem, pichamento; direito inferior: Dar a bala e encavilhar

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    O medo do serto

    oficiais da Comisso at o fim dos trabalhos de construo da linha telegrfica, no primeirodia de 1915. Nesse dia, naturalmente, a doena no deixou de existir, mas seria menos umempecilho aos trabalhos de construo afinal concludos e explorao, para se trans-formar em uma espcie de fantasma a assombrar permanentemente os funcionrios daRepartio Geral dos Telgrafos, instados a esperar por um surto de desenvolvimento queno veriam at o final de suas vidas.

    Consideraes finais

    A construo de linhas e estaes telegrficas pela CLTEMTA, entre 1907 e 1915, fezparte de ambicioso projeto republicano, que previa ainda a defesa das fronteiras brasileiras,contatos com sociedades indgenas, investigaes cientficas e, sobretudo, a ocupaoprodutiva de grande poro do territrio nacional, que seus membros denominavam sertesdo noroeste. No entanto, a Comisso encontrou um sem-nmero de dificuldades para ocumprimento desses objetivos, entre as quais o transporte numa regio bastante acidentadae praticamente inexplorada, as constantes chuvas somadas a perodos de calor inclemente e,finalmente, a malria o grande martrio dos expedicionrios , que retardou e at mesmointerrompeu os diversos trabalhos ento em curso.

    Figura 2: Abertura do picado na margem direita do rio Paraguai (Rondon, s.d.-b, estampa 6)

  • 492 Histria, Cincias, Sade Manguinhos, Rio de Janeiro

    Arthur Torres Caser, Dominichi Miranda de S

    A necessidade de controlar a malria, otimizar o trabalho mdico e melhorar a infraes-trutura mdico-hospitalar que servia expedio levou criao do Servio Sanitrio daComisso. Sua implantao marcou o momento a partir do qual os mdicos e suas ati-vidades passaram a ser considerados componentes centrais para o sucesso da empreitadaliderada por Rondon. Alm disso, na verdade em consequncia, os mdicos da CLTEMTAampliaram suas atividades e ingerncias, passando a contar com maior nmero de homens o que significava menor nmero de homens nas atividades de construo para pr emprtica, entre outras medidas, a quininizao diria e compulsria de todo o pessoal daComisso (quarta instruo para a profilaxia da malria), e o exame de todos os traba-lhadores que a ela se apresentassem, antes que fossem admitidos ao servio (CLTEMTA,s.d.-b, p.113).

    Figura 3: Trecho do picado atravs da mata, vendo-se ao centro a faixa destocada para estrada de rodagem(Rondon, s.d.-b, estampa 30)

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    O medo do serto

    Figura 4:Reproduo doesquema projetadodurante asconferncias docoronel Rondon eonde se v otraado da linhatelegrfica, aestrada deautomveis e osprincipais riosdescobertos ouexplorados(Rondon, 1916)

    Figura 5: Uma rua de Santo Antnio do Madeira (Ferreira e Silva, 1920)

  • 494 Histria, Cincias, Sade Manguinhos, Rio de Janeiro

    Arthur Torres Caser, Dominichi Miranda de S

    O reconhecimento da malria como obstculo de imenso porte realizao dostrabalhos da CLTEMTA converteu o projeto de povoamento e ocupao do noroeste doBrasil em problema mdico. Para solucion-lo buscou-se, acima de tudo, controlar a doenacom o direcionamento do trabalho dos mdicos para profilaxia e cuidado dos que delasofriam. O Servio Sanitrio foi organizado com a esperana de que pudesse reduzir aincidncia da malria entre os membros da Comisso, permitindo que ao menos seus tra-balhos fossem realizados sem mais contratempos.

    A malria, no entanto, ao longo do tempo acabou por forar a Comisso a abrir mo dealguns objetivos. A construo de ramais da linha telegrfica at as sedes das prefeiturasdo Alto Acre, Alto Purus e Alto Juru, previstas nas Instrues que deveriam guiar a Comisso,por exemplo, nunca chegou a ser realizada; e o povoamento dos sertes do noroeste, que aprincpio seria concomitante instalao das linhas e estaes telegrficas, teve de seradiado.

    Assim, os relatrios mdicos da Comisso, principal documentao utilizada neste artigo,nos permitem supor que as intempries enfrentadas na tarefa de promover a ocupao donoroeste do territrio brasileiro se deveram, em grande parte, ao obstculo representadopelas doenas, que, alm de afetar aqueles que estavam na regio, amedrontavam seuspossveis colonizadores, afastando-os. O resultado dessa combinao foi uma linha telegr-fica que, no correr dos anos, em vez de simbolizar a integrao da regio ao restante do pas,assumiu o significado de monumento memria do projeto encarnado pela CLTEMTA.

    Figura 6: Estao de Juruena. Foto, Jos Louro (Lasmar, 2008, p.80, fotografia 51)

    NOTAS

    * Este artigo uma verso modificada do segundo captulo da dissertao de mestrado de Arthur TorresCaser, orientada por Dominichi Miranda de S, intitulada O medo do serto: doenas e ocupao doterritrio na Comisso de Linhas Telegrficas Estratgicas de Mato Grosso ao Amazonas (1907-1915)(Caser, 2009).

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    O medo do serto

    1 No dia 4 de maro de 1907, uma portaria do ministro da Viao, Indstria e Obras Pblicas, MiguelCalmon Du Pin e Almeida, criou a Comisso de Linhas Telegrficas Estratgicas de Mato Grosso aoAmazonas e nomeou como seu chefe Cndido Rondon. No dia 11 do mesmo ms Rondon nomeou orestante do pessoal que deveria integrar a Comisso (Rondon, s.d.-a).2 Sob o nome de Comisso Rondon so comumente designados todos os trabalhos realizados porRondon no interior do Brasil durante sua longa carreira militar; perodo de cinquenta anos que vai de1889 a 1939. Esses trabalhos incluem, entre outras atividades, a construo da linha telegrfica do MatoGrosso a Gois, como auxiliar do major Gomes Carneiro (1892-1898); a construo de linhas telegrficasentre o Rio de Janeiro e Mato Grosso (1900-1906), que chefiou; as realizaes da CLTEMTA (1907-1915),que tambm chefiou includas a as atividades da Expedio Cientfica Roosevelt-Rondon (1913-1914);a elaborao da carta do estado de Mato Grosso (1918); a inspeo das fronteiras brasileiras (1927-1930).Neste artigo, tratamos apenas dos trabalhos da Comisso de Linhas Telegrficas Estratgicas de MatoGrosso ao Amazonas, ou CLTEMTA, (4.3.1907-1.1.1915). Para mais informaes sobre as comissestelegrficas anteriores a 1907, ver Maciel, 1998; Diacon, 2006; S, S, Lima, 2008.3 Quando a Comisso foi criada, Rondon ainda era major. Por merecimento, ele foi promovido atenente-coronel em 5 de agosto de 1908 e, em 3 de abril de 1912, a coronel (F de ofcio..., s.d.).4 Em diversos momentos Rondon e os outros membros da Comisso do esse nome ao noroeste do estadode Mato Grosso e ao sudoeste do Amazonas, regies que percorreram. Ver, como exemplo, o primeirovolume publicado pela CLTEMTA, no qual a expresso empregada repetidas vezes (Rondon, s.d.-a.).5 A respeito da construo da figura mitolgica de Rondon, ver Botelho de Magalhes, 1919.6 O telgrafo chegou apenas a Santo Antnio do Madeira; a Comisso notabilizou-se por seus contatoscom sociedades indgenas, e os levantamentos cientficos realizados por seus membros foram muitoimportantes para a valorizao do trabalho de naturalistas brasileiros e o enriquecimento das colees deinstituies cientficas nacionais, sobretudo, a do Museu Nacional. Para mais informaes, ver Maciel,1998; Diacon, 2006; S, S, Lima, 2008.7 No incio do sculo XX, o termo sertes integrava o campo semntico da expresso espaos vazios, bemcomo das palavras incorporao, progresso, civilizao e conquista (Lima, 1999).8 Nos documentos da Comisso, como tambm nos textos mdicos da poca, a malria era comumentechamada de impaludismo ou, ainda, paludismo.9 No encontramos, nas pesquisas realizadas no material da CLTEMTA, referncias especficas formaodesses mdicos. No entanto podemos dizer que sua formao era constituda como aquela de todos osmdicos que se formaram entre finais do sculo XIX e incio do XX na Faculdade de Medicina do Rio deJaneiro ou na Faculdade de Medicina da Bahia pela combinao de distintas tradies de pensamentoda rea. A propsito, ver Edler, 1999.10 Praticantes regionais eram civis, habitantes das regies percorridas, incluindo ndios, que atuavam comoguias, remadores de canoas e auxiliares nos servios de derrubada da mata e instalao dos postes telegrficos.11 A exceo, aqui, o quadro apresentado pelo doutor Murillo de Campos (1913, p.221), que coloca oberibri frente da malria como a doena de maior incidncia entre os homens por ele examinados, queincluam ndios Pareci e Nambiquara, seringueiros e trabalhadores da CLTEMTA.12 De acordo com Julio Csar Schweickardt (2009, p.265), no estado do Amazonas era comum o enviode barcos-ambulncia ao interior, com medicamentos, para atender os habitantes, principalmente emtempos de epidemia. A ambulncia mdico-cirrgica da CLTEMTA no estava instalada num barco,mas numa barraca.13 Este trecho faz parte da segunda conferncia.

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