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RDS VII (2015), 2, 403-433 O Mecanismo Único de Supervisão: uma breve análise sobre os desafios da sua implementação (Parte I) 1 DR.ª INÊS PALMA RAMALHO * Sumário: I – Enquadramento do estudo (e a sua vocação apriorística). II – A criação e implementação do Mecanismo Único de Supervisão. III – Os desafios e dificuldades na implementação do MUS em Portugal. A. Até onde vai o MUS?: i. No Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia; ii. No Regulamento MUS e no Regulamento-Quadro; B. O relacionamento entre o BCE e as ANC: i. Harmonização ao nível do enquadramento regulatório; ii. Harmonização ao nível das práticas de supervisão. C. As dificuldades logís- ticas: a língua de trabalho, o cumprimento dos prazos e a aplicação de legislação nacional. IV – A responsabilidade das ANC e do BCE no MUS. V – Considerações finais. I – Enquadramento do estudo (e a sua vocação apriorística) Este breve estudo foi apresentado, em setembro de 2014, como trabalho final do V Curso de Pós-graduação em Mercados Financeiros (organizado pelo Instituto de Direito Económico Financeiro e Fiscal da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa), então com vista a esboçar algumas notas sobre a implementação do Mecanismo Único de Supervisão enquanto primeiro grande passo para a União Bancária. Nesta análise – feita antes do início de vigência e funcionamento do Mecanismo Único de Supervisão no passado dia 4 de novembro de 2014 – pretendemos abordar, numa perspetiva crítica, as difi- culdades operacionais – algumas de simples logística, outras eventualmente reveladoras de problemas no desenho e construção do sistema – que então se poderiam adivinhar. De forma a não prejudicar a coerência e construção global do texto e sendo prematuro transformá-lo numa análise a posteriori do Meca- nismo Único de Supervisão (menos de um ano volvido sobre a sua entrada em * Advogada na Sérvulo & Associados – Sociedade de Advogados, RL e Assistente convidado da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Book Revista de Direito das Sociedades 2.indb 403 Book Revista de Direito das Sociedades 2.indb 403 14/10/15 11:27 14/10/15 11:27

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O Mecanismo Único de Supervisão: uma breve análise sobre os desafi os da sua implementação (Parte I)

1

DR.ª INÊS PALMA RAMALHO*

Sumário: I – Enquadramento do estudo (e a sua vocação apriorística). II – A criação e implementação do Mecanismo Único de Supervisão. III – Os desafi os e difi culdades na implementação do MUS em Portugal. A. Até onde vai o MUS?: i. No Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia; ii. No Regulamento MUS e no Regulamento-Quadro; B. O relacionamento entre o BCE e as ANC: i. Harmonização ao nível do enquadramento regulatório; ii. Harmonização ao nível das práticas de supervisão. C. As difi culdades logís-ticas: a língua de trabalho, o cumprimento dos prazos e a aplicação de legislação nacional. IV – A responsabilidade das ANC e do BCE no MUS. V – Considerações fi nais.

I – Enquadramento do estudo (e a sua vocação apriorística)

Este breve estudo foi apresentado, em setembro de 2014, como trabalho fi nal do V Curso de Pós-graduação em Mercados Financeiros (organizado pelo Instituto de Direito Económico Financeiro e Fiscal da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa), então com vista a esboçar algumas notas sobre a implementação do Mecanismo Único de Supervisão enquanto primeiro grande passo para a União Bancária. Nesta análise – feita antes do início de vigência e funcionamento do Mecanismo Único de Supervisão no passado dia 4 de novembro de 2014 – pretendemos abordar, numa perspetiva crítica, as difi -culdades operacionais – algumas de simples logística, outras eventualmente reveladoras de problemas no desenho e construção do sistema – que então se poderiam adivinhar. De forma a não prejudicar a coerência e construção global do texto e sendo prematuro transformá-lo numa análise a posteriori do Meca-nismo Único de Supervisão (menos de um ano volvido sobre a sua entrada em

* Advogada na Sérvulo & Associados – Sociedade de Advogados, RL e Assistente convidado da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.

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vigor), entendemos publicá-lo1 nos moldes em que se encontrava à data da sua apresentação, i.e. mantendo a sua vocação apriorística, deixando para análise subsequente (numa Parte II) um balanço do Mecanismo Único de Supervisão.

A União Bancária é um projeto ambicioso e um passo fundamental na integração da construção europeia quer a nível regulatório, quer e sobretudo a nível de práticas de supervisão. O (in)sucesso do Mecanismo Único de Super-visão dependerá de todos os players relevantes: a começar pelo Banco Central Europeu, enquanto autoridade líder na área da supervisão prudencial, mas tam-bém das autoridades nacionais competentes e das próprias instituições supervi-sionadas. E, aconteça o que acontecer, o resultado deste esforço conjunto terá, sem dúvida, uma forte infl uência no futuro próximo da Europa.

II – A criação e implementação do Mecanismo Único de Supervisão

A 30 de maio de 2012, a Comissão Europeia defendeu , na sua Comuni-cação «Ação para a Estabilidade, o Crescimento e o Emprego»”2, a importância do aprofundamento da construção europeia como forma de restaurar a confi ança na União Monetária e Económica, argumentando que tal deveria ser levado a cabo através de uma união bancária que incluísse uma supervisão fi nanceira integrada e um mecanismo único de garantia de depósitos.

Apesar de, desde então, as instituições europeias terem dado vários passos no sentido da implementação desta união bancária3, foi apenas a 12 de setem-bro de 20134 que o Parlamento Europeu aprovou formalmente a implemen-tação de um novo modelo europeu de supervisão bancária prudencial comum a todos os Estados-Membros da área do Euro e aberto à participação dos demais Estados-Membros5.

1 A incentivo do Sr. Dr. Paulo Câmara, que tão simpaticamente nos orientou na elaboração deste trabalho.2 Sob o n.º COM (2012) 299, pp. 5-6 (http://ec.europa.eu/europe2020/pdf/nd/eccomm2012_pt.pdf ). 3 Para uma análise detalhada de todas as etapas sugere-se a consulta da cronologia de implemen-tação do Mecanismo Único de Supervisão, disponível em https://www.ecb.europa.eu/ssm/esta-blish/html/index.pt.html. 4 Conforme resulta de um comunicado de imprensa do Banco Central Europeu (https://www.ecb.europa.eu/press/pr/date/2013/html/pr130912.pt.html). 5 Os Estados-Membros cuja moeda não seja o Euro mas que pretendam fazer parte desta união bancária podem, nos termos da Decisão do BCE de 31 de janeiro de 2014 (com a referência n.º ECB/2014/5 e disponível em https://www.ecb.europa.eu/ecb/legal/ssm/framework/) recorrer

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Este modelo integrado de supervisão – designado por Single Supervisory Mechanism/SSM ou, em português, por Mecanismo Único de Supervisão/MUS – resulta do Regulamento n.º 1024/2013 do Conselho, de 15 de outubro de 2013 (“Regulamento MUS”), que confere ao Banco Central Europeu (“BCE”) atribuições específi cas no que diz respeito às políticas relativas à supervisão pru-dencial das instituições de crédito e, tendo entrado em vigor a 3 de novembro de 2013, determina que, a partir de 4 de novembro de 2014, o BCE assume, de pleno direito, as atribuições conferidas pelo Regulamento MUS.

Este modelo deverá ser complementado com um mecanismo dedicado à resolução das instituições de crédito – denominado Single Resolution Mecha-nism/SRM ou, em português, o Mecanismo Único de Resolução/MUR –, que inclui um fundo de resolução e, em terceiro lugar, um sistema comum de garantia de depósitos, criando assim uma união bancária global6. O racional destes mecanismos é, inter alia, “desligar” o risco-instituição do risco-país e globalizar não só a solução (o que a crise já tinha obrigado a fazer em virtude das diversas intervenções fi nanceiras ocorridas na Europa) mas também a fase prévia do problema, conferindo ferramentas adequadas às instituições europeias para que possam mitigar ou até evitar uma nova crise7.

Em traços muito gerais8, o Regulamento MUS vem defi nir a arquitetura do MUS, determinar o seu âmbito de aplicação, quais as atribuições e poderes do BCE neste contexto, como se deve articular com as autoridades de supervi-

ao mecanismo de «cooperação estreita» previsto no artigo 7.º do Regulamento MUS, passando, com algumas especifi cidades, a integrar o MUS. 6 Para não alargarmos excessivamente o escopo do presente trabalho, não vamos aqui explorar estes dois pilares da união bancária. Sobre o tema e, em especial, o SRM, sugerimos a leitura de Eilis Ferran, European Banking Union: Imperfect, but it can work, Paper no. 30/2014, Legal Studies Research Paper Series, University of Cambridge, abril 2014 ou de Jacopo Carmassi/Carmine di Noia/Stefano Micossi, Banking Union: A deferral model for the European Union with prompt cor-rective action, CEPS Policy Brief, no. 282, agosto 2012. Para uma perspetiva económica da união bancária (ainda que numa fase muito embrionária da respetiva criação) sugerimos ainda Thors-ten Beck (coord.), Banking Union for Europe – Risks and Challenges, Centre for Economic Policy Research (CEPR), VoxEU.org, 2012.7 Sobre a motivação política da União Bancária e respetivos objetivos cfr. Eddy Wymeersch, The Single Supervisory Mechanism or “SSM”, Part One of the Banking Union, Law Working Paper no. 240/2014, EGCI, fevereiro 2014, p. 2-5, H. Tobias Tröger, The Single Supervisory Mechanism – Panacea or Quack Banking Regulation?, SAFE Working Paper Series, no. 27, Goethe Universi-tat, outubro 2013, Alexandra Hennessy, Redesigning fi nancial supervision in the European Union (2009-2013), Journal of European Public Policy, Vol. 21, no. 2, 2014 e Francesco Capriglione, European Banking Union. A Challenge for a more United Europe, Università degli Studi Guglielmo Marconi, setembro 2013.8 Uma análise detalhada do conteúdo deste regulamento era merecedora de um relatório por si só, que não podemos, por motivos de economia de tempo e espaço, fazer aqui.

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são nacionais e outras instituições relevantes e quais os princípios organizacio-nais pelos quais se deve reger.

Como preparação para o “arranque ofi cial” do MUS e ao abrigo do artigo 33.º, n.º 4 do Regulamento MUS, o BCE determinou a realização de uma ava-liação completa (comprehensive assessment) dos bancos que sabia ou, pelo menos, previa poder vir a supervisionar diretamente no âmbito do MUS por força da sua dimensão e volume de negócios. Esta extensa avaliação – cuja duração prevista é de 12 meses, terminando em outubro de 2014 – visa permitir um diagnóstico completo e fi el ao BCE da situação em que os referidos bancos se encontram, perceber que medidas devem ser imediatamente aplicadas para eliminar ou mitigar riscos que desde logo se detetem e, na sequência destes dois intentos, reforçar a confi ança dos stakeholders do mercado bancário (entre os quais se contam os depositantes e os investidores) e o próprio mercado. De forma a concretizar estes três objetivos, o comprehensive assessment foi desenhado em três fases: (i) uma avaliação de risco (risk assessment) para determinar em que medida as carteiras e os ativos de cada instituição estão sujeitas a riscos de liquidez, alavancagem, crédito, reputacional, entre outros; (ii) uma avaliação da qualidade dos ativos de cada banco e da valorização que lhes foi atribuída (asset quality review) e em que medida estes ativos se relacionam e são adequados para suportar adequadamente os riscos; e (iii) um teste de esforço (stress test) de forma a atestar se, face a um cenário adverso (i.e. fora das condições “normais” de mercado) a instituição perseveraria. Os resultados destas três etapas serão agregados no resultado fi nal do comprehensive assessment que o BCE divulgará antes de assumir as suas funções de supervisão no âmbito do MUS9.

A 4 de fevereiro de 2014, o BCE emitiu a Decisão ECB/2014/310 que identifi cou as 128 instituições a abranger no comprehensive assessment, indicando ainda que o BCE lidera este exercício, podendo contar com a colaboração das autoridades de supervisão nacionais na realização deste exercício, não só na fase da recolha e receção da informação, mas também para a verifi cação, se neces-sário com recurso a inspeções, da adequação dessa informação ao propósito do exercício. Com fundamento no artigo 6.º, n.º 4 do Regulamento MUS, a Decisão ECB/2014/3 constrói uma lista que inclui:

(i) Instituições de crédito, companhias fi nanceiras, companhias fi nancei-ras mistas e sucursais de instituições de crédito estabelecidas num Esta-

9 Para mais informações sobre os objetivos, os elementos e a metodologia a utilizar pelo BCE na realização do Comprehensive Assessment recomendamos a leitura do ECB SSM Press Briefi ng, Frank-furt am Main, 23 october 2013 (disponível em https://www.ecb.europa.eu/ssm/). 10 Disponível em https://www.ecb.europa.eu/ecb/legal/ssm/framework/.

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do-membro participante consideradas «signifi cativas» nos termos deste preceito e ainda aquelas cujos ativos excedam 27 mil milhões de euros (abarcando todas as «instituições signifi cativas» e algumas «instituições menos signifi cativas»)11 e, ainda;

(ii) As três instituições mais relevantes em cada Estado-Membro partici-pante (independentemente da sua dimensão em termos de ativos)12.

Desde o início deste comprehensive assessment o BCE já emitiu diversos rela-tórios de avaliação13:

Em outubro de 2013, apresentou o processo e a estratégia a adotar durante o exercício, alguns elementos mais pormenorizados quanto à metodologia adotada e a lista de instituições de crédito que serão possi-velmente abarcadas pela análise;

Em fevereiro de 2014, deu nota do progresso do comprehensive assessment indicando a iminente conclusão da primeira fase (do risk assessment) com o fi nalizar da seleção das carteiras, a decisão fi nal quanto à metodologia de análise da qualidade dos ativos que releva para a segunda fase (do asset quality review) e o limiar de capital relevante para, no âmbito dos testes de esforço (terceira fase – stress tests), se obter um cenário base e um cenário adverso;

Em abril de 2014, apresentou o progresso da segunda fase (do asset qua-lity review), informando sobre a publicação do manual sobre a metodo-logia aplicável a esta fase, e algumas das particularidades nomeadamente em matéria de confi dencialidade e de contratação de entidades terceiras para participarem neste exercício; e

Em julho de 2014, indicou que a segunda fase (do asset quality review) seria concluída em agosto, devendo a metodologia sobre a conjugação dos resultados desta fase com os dos testes de esforço da última fase ser divulgada no mesmo mês.

11 Um dos critérios para classifi car uma instituição de crédito como «instituição signifi cativa» e, por conseguinte, sujeitá-la à supervisão direta do BCE no âmbito do MUS, é a sua grande «dimensão» conforme defi nida no artigo 6.º, n.º 4 §2.º (i) do Regulamento MUS (i.e., ter ativos superiores a 30 mil milhões de euros). Isto evidencia que o comprehensive assessment pretendeu abarcar não só as instituições que seriam abrangidas pelo MUS mas também aquelas que seriam sufi cientemente “grandes” para quase o ser. 12 No que a Portugal diz respeito, esta Decisão lista o Banco BPI, S.A., o Banco Comercial Por-tuguês, S.A., a Caixa Geral de Depósitos, S.A. e a Espírito Santo Financial Group, S.A..13 Todos disponíveis para leitura em https://www.ecb.europa.eu/ssm/assessment/html/index.pt.html.

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A terceira fase da avaliação completa será feita de acordo com a metodo-logia entretanto publicada a 8 de agosto de 201414 que fornece orientações adicionais para a realização dos testes de esforço e explica como devem ser conjugados os resultados destes testes com os da fase anterior. E, após a divul-gação de resultados do comprehensive assessment na segunda quinzena de outubro de 2014, o BCE irá pedir às instituições de crédito auditadas com necessidades de capital que apresentem planos para as suprir. A execução destes planos será já monitorizada no âmbito do MUS, pelo BCE e pelas Equipas Conjuntas de Supervisão/Joint Supervisory Teams15.

Paralelamente a este exercício – de fulcral importância não só pelo facto de permitir ao BCE conhecer, com bastante profundidade, as entidades que passa a supervisionar mas também para diagnosticar eventuais problemas com vista a tratá-los numa fase muito jovem da vida do MUS – foram preparados e aprova-dos instrumentos adicionais com vista a complementar o Regulamento MUS.

Destes instrumentos, destacamos os acordos com instituições europeias que, em linha com o artigo 20.º, n.º 2 e n.º 9 do Regulamento MUS, reforçam a obrigação do BCE de prestar contas. Assim, a 9 de outubro de 2013 celebrou--se um acordo com o Parlamento Europeu reforçando a cooperação entre estas duas instituições e destacando a obrigação de o BCE prestar contas de forma transparente mas salvaguardando a confi dencialidade e o segredo próprios da área fi nanceira e resultantes do Direito europeu e nacional aplicáveis. E, a 4 de dezembro de 2013, o BCE celebrou um memorando de entendimento, com um conteúdo muito similar, com o Conselho da União Europeia16.

Mas o instrumento mais signifi cativo surge em fevereiro de 2014 quando o BCE, em cumprimento do artigo 6.º, n.º 7 do Regulamento MUS, lan-çou uma consulta pública sobre a proposta de regulamento-quadro relativo ao MUS, com vista a concretizar diversos aspetos do Regulamento MUS e, em particular, defi nir os termos da cooperação entre o BCE e as autoridades de supervisão nacionais, nomeadamente os princípios gerais a atender pelo BCE no exercício das suas competências de supervisão no âmbito do MUS e o regime linguístico a utilizar. Em abril de 2014, o BCE publicou um docu-mento sintetizando, de forma crítica, as respostas recebidas durante a consulta

14 Que pode ser consultada em https://www.ecb.europa.eu/press/pr/date/2014/html/pr140808.en.html. 15 Cuja constituição e intento vamos analisar com algum detalhe no ponto III-B.ii infra para o qual remetemos.16 O acordo com o Parlamento Europeu pode ser obtido em http://www.europarl.europa.eu/ e o memorando está disponível em https://www.ecb.europa.eu/ssm/establish/html/index.pt.html.

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pública17, publicando a versão fi nal deste regulamento-quadro, a 16 de abril de 2014, com o número 468/2014 referente à Decisão do BCE n.º BCE/2014/17 (“Regulamento-Quadro”)18.

Como forma de dar cumprimento ao artigo 33.º, n.º 2 do Regulamento MUS, o BCE tem prestado contas através de relatórios trimestrais19 (tendo já emitido três, em fevereiro, em maio e em agosto de 2014) sobre os progressos na implementação operacional do MUS e, em especial, como se tem concreti-zado a cooperação com as autoridades nacionais de supervisão e quais os obstá-culos com que o BCE se tem deparado na fase preparatória do MUS.

Apesar de a implementação do MUS parecer bem encaminhada e de, pelo menos do ponto de vista teórico, este e os diversos atos que o concretizam serem exaustivos e detalhados, não é ainda claro como irá, na prática, funcionar a união bancária. E, mesmo que tudo corra bem e conforme planeado, serão certamente alguns os desafi os e obstáculos com que nos poderemos deparar – e que vamos analisar de seguida.

III – Os desafi os e difi culdades na implementação do MUS em Portugal

Não é tarefa simples perceber exatamente onde terminam as competências do BCE, enquanto líder do MUS, e começam as atribuições das autoridades nacionais encarregues em exclusivo (até ao arranque do MUS) da supervisão prudencial do mercado bancário, seja no âmbito geográfi co, subjetivo, objetivo ou material. Sequencialmente, vamos explorar ainda a implementação opera-cional do MUS, nomeadamente no que diz respeito à articulação entre o BCE, as ANC e até a EBA, bem como alguns dos desafi os logísticos que se adivi-nham, desde já, neste arranque.

17 O Feedback Statement: Responses to the public consultation on a draft Regulation of the European Cen-tral Bank establishing the framework for cooperation within the Single Supervisory Mechanism between the European Central Bank and national competent authorities and with national designated authorities (SSM Framework Regulation) foi publicado em https://www.ecb.europa.eu./ssm.18 Que pode ser consultado em https://www.ecb.europa.eu/ssm/consultations/html/index.en.html. 19 Nos três relatórios trimestrais refere-se a existência de um documento interno do BCE, o Manual de Supervisão do MUS, que contém os princípios, processos e procedimentos gerais, assim como a metodologia de supervisão das instituições de crédito, concretizando o Regulamento do MUS e o Regulamento-Quadro que, por não ter sido objeto de divulgação pública, não pudemos analisar.

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A. Até onde vai o MUS?

i. No Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (“TFUE”)

Dita o n.º 1 do artigo 127.º do TFUE que o BCE20 deve assegurar a esta-bilidade de preços e apoiar as políticas económicas europeias. Para além destas suas atribuições em matéria de política monetária21 – que, aliás, lhe são tradi-cionalmente reconhecidas na qualidade de banco central – o BCE pode, ainda e desde Maastricht, desempenhar funções em matéria de supervisão prudencial não só de um ponto de vista auxiliar, conforme resulta do n.º 5 do mesmo artigo, mas também através de regulamentos (com um especial processo de aprovação) que lhe confi ram atribuições específi cas nesse âmbito, conforme resulta expressamente do n.º 6 desse preceito.

Mas se podemos dizer que o artigo 127.º, n.º 6 do TFUE22 serviu como fundamento à criação do MUS – enquanto “comunhão de esforços” entre o BCE e as diversas autoridades nacionais competentes responsáveis pela super-visão prudencial das instituições de crédito (as “ANC”) – é igualmente correto afi rmar que este preceito limita signifi cativamente os contornos de atuação do MUS, i.e., do BCE.

Um dos limites geográfi cos que o MUS enfrenta, precisamente por “nas-cer” deste preceito do TFUE, é o facto de ser de aplicação obrigatória a Esta-dos-Membros cuja moeda é o Euro (ou seja, aos países do Eurosistema). Isso

20 Na verdade, o artigo prevê esta atribuição a propósito do Sistema Europeu de Bancos Centrais (“SEBC”), que é composto pelo próprio BCE e os bancos centrais de todos os Estados-Membros (nos termos do artigo 1.º do Protocolo n.º 4 do TFUE relativo aos estatutos do SEBC e do BCE). Contudo, atendendo a que o SEBC, nos termos do artigo 129.º do TFUE e do artigo 8.º deste seu Protocolo n.º 4, é conduzido pelos órgãos do BCE, tal equivale a conferir estas atribuições ao próprio BCE.21 Que não são, de todo, estranhas ao Regulamento MUS que consagra no seu artigo 25.º um princípio de separação funcional e orgânica entre o exercício das atribuições de supervisão pru-dencial e as funções de política monetária originalmente atribuídas ao BCE. Sobre este tema – de extremo interesse mas que optámos por não abordar neste trabalho – e a escolha do BCE ape-sar do seu papel nesta área cfr. Wymeersch, The Single cit., pp. 17-20 e pp. 25-27 e Hennessy, Redesigning cit., p. 162.22 Neste sentido (e para uma análise detalhada das discussões sobre o preceito) cfr. Wymeersch, The Single cit., pp. 17 e ss, Damian Chalmers/Gareth Davies/Giorgio Monti, European Union Law – Text and Materials, 3rd edition, Cambridge University Press, junho 2014, p. 733, Torre-jón, El Mecanismo Único de Supervisión Europeo, Actualidad Jurídica Uría Menéndez, n.º 36, 2014, pp. 11-12, Capriglione, European cit., pp. 50-54 e Eilis Ferran/Valia Babis, The European Sin-gle Supervisory Mechanism, Paper no. 10/2013, Legal Studies Research Paper Series, University of Cambridge, março 2013, p. 2.

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não impede os demais Estados-Membros de aderir ao MUS com recurso ao mecanismo de «cooperação estreita» previsto no artigo 7.º do Regulamento MUS e se tornarem «Estados-Membros participantes» do MUS. Todavia não se pode dizer que os efeitos dessa adesão sejam idênticos aos Estados-Membros do Euro-sistema, atendendo a que, apesar de poderem aderir de forma quase livre23, também podem abandonar o MUS decorridos três anos da sua adesão ou ser deste excluídos por não acatarem uma decisão do BCE emitida nesse âmbito24. E, por não terem adotado o Euro, estes Estados-Membros não têm assento no órgão executivo máximo do BCE (o Governing Council), o que os deixa ine-gavelmente em desvantagem, impedindo-os de intervir no processo decisório fi nal que acaba por controlar os destinos do MUS25.

Mas as limitações do n.º 6 do artigo 127.º do TFUE – e, por conseguinte, as limitações do MUS – verifi cam-se ainda quando a própria letra do preceito determina a sua aplicação a “instituições de crédito e outras instituições fi nanceiras, com exceção das empresas de seguros”, não só por utilizar conceitos cujo signifi -cado pode não ser necessariamente o mesmo entre os diversos Estados-Mem-bros, como «instituições de crédito»26, mas também por excluir expressamente do âmbito subjetivo do MUS (ou, pelo menos, do âmbito subjetivo da sua

23 A adesão é feita através da submissão de um pedido de adesão junto do BCE formulado nos ter-mos da Decisão do BCE n.º ECB/2014/5 e não depende apenas do Estado-Membro interessado, por requerer obrigatoriamente o cumprimento, ex ante ou ex post, de alguns requisitos, sob pena de indeferimento do pedido (artigo 7.º, n.º 2 do Regulamento MUS). 24 Cfr. artigo 7.º, n.ºs 1 e 4 a 9 do Regulamento MUS e criticamente Wymeersch, The Single cit., pp. 60-64.25 Apesar de, nos termos do artigo 26.º do Regulamento MUS, ser o Supervisory Board o órgão interno do BCE que “adota” materialmente decisões de supervisão no âmbito do MUS, é o Governing Council (em virtude das insufi ciências da base que serviu para criar o MUS) que, atra-vés de um «procedimento de não objeção», adota formalmente as decisões. Naturalmente, apenas os Estados-Membros do Eurosistema têm assento no Governing Council o que signifi ca que, em teoria, os demais Estados-Membros podem ver uma decisão do Supervisory Board ser alterada por meio de uma segunda decisão na qual não podem participar, o que pode ser um dealbreaker na hora de decidir sobre uma adesão. Sobre este problema cfr. Wymeersch, The Single cit., pp. 48-55 e pp. 59-60, Tröger em The Single, cit., pp. 23-26 e pp. 33-34 e Ferran/Babis, The European cit., p. 15.26 Apesar de este problema não se verifi car em Portugal atendendo à identidade entre a defi nição prevista no §1, n.º 1 do artigo 4.º do Regulamento (UE) n.º 575/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho de 2013 (“CRR”) e à defi nição prevista no n.º 1 do artigo 2.º do Regime Geral das Instituições de Crédito e das Sociedades Financeiras (“RGICSF”), certos Estados-Membros poderão ter este problema sempre que a lei nacional classifi que entidades como «instituições de crédito», preenchendo o conceito de forma mais alargada do que a prevista no CRR. Sobre os conceitos utilizados e a exclusão de determinadas entidades cfr. Wymeersch, The Single cit., p. 12, pp. 27-29, pp. 38-39.

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supervisão direta27) entidades potencialmente indiciadoras de dano sistémico, tais como as seguradoras (que a experiência já demonstrou serem passíveis de ter grande impacto no sistema fi nanceiro28). E, há que acrescentar, exclui igual-mente outras entidades relevantes como contrapartes centrais, entre outras refe-ridas no artigo 1.º, §2.º do Regulamento MUS29.

Mas, se a base legal máxima do MUS levanta tanta celeuma, poderíamos perguntar-nos porque não foi outro o fundamento utilizado? Cremos que a resposta se prendera, necessariamente, com o timing da crise fi nanceira que se viveu (e cujos efeitos ainda tanto se sentem) e com a vantagem de aproveitar a cautela e o receio que resultaram desta mesma crise para impor um meca-nismo da natureza do MUS com profundas implicações em matéria de sobe-rania nacional. A solução ideal teria sido alterar o TFUE30 – o que permitiria desenhar o MUS de raiz não só de forma mais integrada mas também evitando várias das críticas que se têm feito e que tentaremos abordar ao longo do pre-sente trabalho – mas tal obrigaria a um processo moroso e de complexa nego-ciação, podendo resultar numa união bancária bem mais tímida do que aquela que se parece pretender31.

ii. No Regulamento MUS e no Regulamento-Quadro

O artigo 4.º, n.º 1 do Regulamento MUS é o principal preceito32 no que toca à defi nição das (novas) atribuições do BCE de supervisão prudencial. A lista deste artigo introduz o BCE num vasto leque de matérias prudenciais permitindo-lhe exercê-las de forma exclusiva. Entre as diversas atribuições33 previstas destacamos as seguintes:

27 Podem ser supervisionadas mas apenas no âmbito da uma eventual supervisão complementar a um conglomerado fi nanceiro (nos termos do artigo 4.º do Regulamento MUS e do artigo 18.º do Regulamento-Quadro).28 Como foi o caso do colapso da AIG, em 2008, exemplo também citado criticamente por Ferran, European Banking Union cit., p. 6. Também Tröger aborda este problema em The Single cit., p. 12.29 Para uma análise detalhada do problema cfr. Wymeersch, The Single cit., pp. 12-13 e pp. 28-29, Tröger, The Single, cit., p. 12 e Ferran/Babis, The European cit., pp. 5-6.30 Pode dizer-se, aliás, que o legislador europeu incentiva a esta revisão do TFUE, pois acrescen-tou no Considerando (85) uma referência à necessidade de o revisitar para tornar o MUS mais abrangente. Neste sentido ver ainda Carmassi/Noia/Micossi, Banking Union cit., pp. 1-2.31 Este motivo é aliás referido transversalmente por Torrejón, El Mecanismo cit., p. 11.32 Outras atribuições resultam dos demais números do artigo 4.º e ainda dos artigos 6.º e 14.º a 18.º todos do Regulamento MUS.33 Sobre as atribuições do BCE cfr. Wymeersch, The Single cit., pp. 38-39.

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(i) Conceder e revogar a autorização a (novas) instituições de crédito; (ii) Autorizar o estabelecimento de sucursais ou prestação de serviços em

Estados-Membros não participantes por parte de uma instituição de crédito estabelecida num Estado-Membro (substituindo-se assim à ANC que atuava como autoridade de origem/home country) e exer-cer as demais atribuições que seriam antes atribuídas às ANC nesta matéria;

(iii) Autorizar ou objetar a propostas de aquisição e alienação de participa-ções qualifi cadas em instituições de crédito;

(iv) Garantir o cumprimento do direito da União (direta ou indiretamente aplicável), em particular em matéria de requisitos de fundos próprios, limites, liquidez, governo das sociedades (incluindo fi t and proper), ges-tão de riscos e controlo interno;

(v) Conduzir exercícios de avaliação e revisão - stress tests - e, em função dos resultados obtidos, impor requisitos adicionais de fundos próprios, liquidez ou divulgação de informação fi nanceira;

(vi) Exercer a supervisão em base consolidada das empresas-mãe das ins-tituições estabelecidas num dos Estados-Membros participantes, inte-grar colégios de supervisores e participar na supervisão de conglome-rados fi nanceiros;

(vii) Exercer as atribuições relevantes em matéria de medidas de interven-ção precoce (early intervention) sempre que uma instituição de crédito deixe de cumprir as suas obrigações prudenciais (ou aparente esteja ou possa estar prestes a fazê-lo).

De fora deste elenco fi cam certas áreas como a prevenção do branquea-mento de capitais e fi nanciamento ao terrorismo ou a proteção de consumido-res e ainda algumas competências exclusivas das ANC3435. Mas, para além destas “exclusões” expressas do âmbito objetivo do MUS, podemos ainda considerar como permanecendo na esfera das ANC todas as demais competências que não tenham sido listadas no artigo 4.º, não só pelo facto de o conceito de «supervisão prudencial» não ser unânime a nível europeu (não permitindo intuir as compe-tências que pode ou não englobar) mas também pelo facto de as atribuições do BCE – maxime do MUS – terem necessariamente de ser estabelecidas de forma indubitável tendo em conta não só a “imposição” que o MUS representa sobre a soberania nacional mas também atendendo ao facto de o artigo 127.º, n.º 6

34 No geral, todas sumariamente elencadas no considerando (28) do Regulamento MUS.35 Sobre as atribuições das ANC cfr., em especial, Wymeersch, The Single cit., pp. 39-40 e Capri-glione, European cit., p. 42.

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do TFUE permitir apenas prever “atribuições específi cas no que diz respeito às políticas relativas à supervisão prudencial” (realce nosso) dando, aliás, cumprimento ao princípio da especialidade36, o que implica que o Regulamento MUS não apresente uma lista exemplifi cativa mas antes integre um elenco claro e taxativo de atribuições37.

Assim não se compreende como em certas áreas – como é o caso do fi t and proper e que aqui recordamos como exemplo – a intervenção do BCE esteja prevista em termos bastante delimitados no artigo 4.º n.º 1 alínea e) e no artigo 16.º n.º 1 alínea l) ambos do Regulamento MUS, mas seja depois tratada nos artigos 93.º e 94.º do Regulamento-Quadro em termos que ultrapassam lar-gamente o intento da sua fonte (como se de uma atribuição plena do BCE se tratasse, apesar de não constar como tal do Regulamento do MUS).

Por fi m, note-se que é atribuição das ANC a determinação e aplicação de instrumentos macroprudenciais38 que o BCE pode vir depois reforçar.

O confronto do conteúdo do Regulamento MUS com o do Regulamen-to-Quadro leva a questionar o nível de vinculação que um e outro acarretam para o Estado-Membro em geral e para a ANC em particular.

O Regulamento MUS, sendo um regulamento do Conselho, é obrigató-rio em todos os seus elementos, tem carácter geral e é diretamente aplicável aos Estados-Membros, não carecendo de qualquer transposição em virtude do Direito da União, do princípio do primado (vertido no artigo 8.º, n.º 4 da Constituição da República Portuguesa – “Constituição”) e da interpretação deste princípio à luz de diversos acórdãos históricos emitidos no início da cons-trução do projeto europeu39. Por conseguinte, Portugal e os demais Estados--Membros (incluindo os que não integram o Eurosistema) estão vinculados pelo que seja determinado pelo Regulamento MUS40.

36 Este princípio europeu, inicialmente construído sobre o artigo 3.º, n.º 6 e o artigo 4.º, n.º 1 ambos do TFUE, a propósito das atribuições da Comissão Europeia, defende uma delimitação de competências que fundamentem e confi ram capacidade jurídica às instituições europeias para a prossecução das matérias que a lei (maxime os Tratados e os Regulamentos enquanto instrumentos legais diretamente aplicáveis aos Estados-Membros) lhes confere. Sobre este princípio cfr. Fausto de Quadros, Direito da União Europeia, Almedina, 2004, pp. 194-195.37 Cfr. Torrejón, El Mecanismo cit., p. 11.38 Artigo 5.º do Regulamento MUS.39 Nomeadamente o acórdão do Tribunal de Justiça Costa c. ENEL (15/07/1964) ou o acórdão Simmenthal (9/03/1978), ambos disponíveis em http://eur-lex.europa.eu/, entre vários que pode-ríamos referir. Sobre o primado do direito comunitário/europeu e outros acórdãos cfr. Paulo de Pitta e Cunha, Direito Institucional da União Europeia, Almedina, 2004, pp. 47-54 ou Fausto De Quadros, Direito cit., pp. 398-422.40 Também neste sentido vide Wymeersch, The Single cit., pp. 23-24 e pp. 41-42 e Carmassi/

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No que diz respeito ao Regulamento-Quadro cabe relembrar aqui o artigo 132.º do TFUE (transcrito, aliás, no artigo 34.º do Protocolo n.º 4 do TFUE, relativo aos estatutos do SEBC e do BCE), ao abrigo do qual o BCE pode (i) adotar regulamentos necessários para implementar as suas atribuições específi -cas em matéria de supervisão prudencial (i.e., as constantes do Regulamento MUS); (ii) tomar as decisões relevantes para o desempenho das atribuições cometidas ao SEBC; e (iii) formular recomendações e emitir pareceres. Ora, a formulação deste artigo levanta, de imediato, dúvidas relativamente à referên-cia expressa no artigo 132.º do TFUE sobre o facto de os atos jurídicos aqui presentes poderem ser praticados pelo BCE «[p]ara o desempenho das atribuições cometidas ao SEBC» e não para desenvolver atribuições do próprio BCE. Este facto não nos parece despiciendo atendendo a que o MUS – liderado pelo BCE – apenas envolve os países do Eurosistema e não os países representados no SEBC, pelo que não é totalmente claro que estejamos aqui perante uma execução de atribuições conferidas a este sistema.

Em termos similares levanta-se o mesmo problema quanto às decisões do BCE que o TFUE também refere serem destinadas a fazer cumprir as atribui-ções cometidas ao SEBC e não ao BCE. Na nossa opinião, esta questão inter-pretativa poderá criar alguns obstáculos quanto à implementação adequada do MUS, uma vez que leva a colocar em causa a natureza vinculativa do Regula-mento-Quadro (e concomitantemente das decisões do BCE).

Mas, sendo esta dúvida de índole meramente formal (e potencialmente ultrapassável pela abrangência do próprio Regulamento MUS a que haverá sempre de atender), há que referir que já nos parece bem mais material o facto de o Regulamento-Quadro ter de fi car necessariamente limitado à sua função “concretizadora” do Regulamento MUS. Outra solução não se compreende-ria uma vez a concessão de (mais) atribuições de natureza prudencial ao BCE teria necessariamente de ser objeto de um regulamento do Conselho adotado por unanimidade e após consulta ao Parlamento Europeu e ao BCE, conforme resulta do artigo 127.º, n.º 6 do TFUE. Ora não sendo o Regulamento-Quadro nem (i) um ato legislativo do Conselho; (ii) aprovado por unanimidade; e (iii) prece-dido da fase de consulta supra indicada, não se vê como seria possível conferir outras atribuições ao BCE “fora” das já previstas no Regulamento MUS ou em instrumento legal com idênticas características. A reforçar este argumento está, aliás, a própria letra da lei, uma vez que o artigo 132.º do TFUE (e o seu congénere no Protocolo n.º 4) determinam que os regulamentos a adotar visam “implementar as atribuições específi cas [do BCE] em matéria de supervisão

Noia/Micossi, Banking Union cit., pp. 3-4, que vem ainda recordar que também o 127.º, n.º 6 do TFUE, é aplicável aos demais Estados-Membros.

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prudencial” (realce nosso), remetendo indubitavelmente para o Regulamento MUS. Assim, a atribuição de competências adicionais pelo Regulamento-Qua-dro – como parece ter ocorrido em matéria de fi t and proper – não podem, cremos, vincular os Estados-Membros.

Para além dos âmbitos geográfi co, subjetivo e objetivo que explorámos acima, cumpre ainda mencionar o âmbito material, do qual resulta quais as instituições de crédito que o BCE supervisiona diretamente e quais as que vai supervisionar indiretamente (i.e. através da ANC)41. De acordo com o artigo 6.º, n.º 4 do Regulamento MUS, o BCE exerce as atribuições que lhes são conferidas pelo artigo 4.º do mesmo diploma atendendo, salvo algumas exce-ções42, ao «carácter signifi cativo» das instituições de crédito supervisionadas, o que irá depender do preenchimento dos critérios previstos no Regulamento MUS e densifi cados no Regulamento-Quadro43 em termos de «dimensão», «importân-cia para a economia da União ou de um Estado-Membro participante», «importância das atividades transfronteiriças», por ter benefi ciado de assistência fi nanceira pública ou por ser uma das três instituições mais relevantes num Estado-Membro par-ticipante, resultando na sua classifi cação como um «instituição signifi cativa»44 para efeitos do MUS e na assunção, pelo BCE, da sua supervisão direta. Para além destas situações, o BCE pode ainda passar a supervisionar uma «instituição menos signifi cativa» não só quando se torne numa «instituição signifi cativa» por preencher a posteriori um dos critérios supra elencados, mas sempre que o BCE entenda, por sua iniciativa ou na sequência de um pedido da ANC relevante, ser neces-sário assumir diretamente a supervisão para assegurar os «elevados padrões de supervisão» (artigo 6.º n.º 5 alínea b) do Regulamento MUS e artigos 67.º a 69.º ambos do Regulamento-Quadro). Note-se que esta solução de supervisionar diretamente algumas instituições do Eurosistema e não todas já representa um compromisso entre uma supervisão direta sobre todo o sistema bancário euro-peu – virtualmente impossível tendo em conta a dimensão deste – e a escolha das 30 ou 40 instituições mais relevantes a nível europeu – o que levaria a abarcar apenas instituições de países com um sistema doméstico de grandes dimensões, excluindo, por exemplo, Portugal45.

41 Exploraremos esta relação entre BCE e ANC a este propósito no ponto III-B infra.42 Em matéria de concessão de autorizações a uma instituição de crédito ou de apreciação de pro-jetos de aquisição ou alienação de participações qualifi cadas em instituições de crédito o BCE será sempre a autoridade competente.43 Artigos 39.º a 66.º deste instrumento.44 Para uma visão crítica deste método cfr. Wymeersch, The Single cit., pp. 28-32 e Tröger, The Single cit., pp. 14 e ss.45 Para uma visão crítica sobre esta solução de compromisso e a título de exemplo sugere-se a

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Não obstante a necessidade de compromisso neste ponto, acreditamos que os critérios que permitem esta distinção entre «instituições signifi cativas» e «ins-tituições menos signifi cativas» e a fl exibilidade de um e de outro conceito serão certamente um ponto de tensão entre o BCE e as ANC46, em especial se o BCE entender chamar a si a função de supervisionar uma «instituição menos signifi cativa para assegurar elevados padrões de supervisão», e até entre as entidades de supervisão – BCE e ANC – e o mercado, pela incerteza que esta dicotomia pode trazer relativamente às regras e práticas de supervisão a que as instituições tenham de atender.

B. O relacionamento entre o BCE e as ANC

i. Harmonização ao nível do enquadramento regulatório

Um dos elementos essenciais do processo de construção da união bancária é assegurar que as normas que disciplinam o mercado fi nanceiro e os seus pla-yers são similares, se não mesmo idênticas, em todo o espaço europeu. E, não sendo o esforço de “integração” eur opeia ao nível legislativo algo propriamente recente, há que reconhecer o destaque que lhe tem sido conferido nos últimos anos.

Nestes termos, torna-se incontornável referir o EU Single Rulebook como o corolário da harmonização das normas que regem a atividade bancária nacional e transfronteiriça. O EU Single Rulebook é, para já, composto pelo CRR, pela CRD IV47 e ainda pela BRRD e pela Diretiva relativa ao fundo de garantia de depósitos48, sendo expectável que a estes se juntem outros instrumentos legais e regulamentares relevantes para o funcionamento do mercado bancário. Con-tudo, se facilmente se admite hoje a existência do EU Single Rulebook, não se pode afi rmar que o mesmo tenha a importância que porventura lhe podería-mos reconhecer em virtude de consubstanciar um “pacote legislativo” bastante

consulta de Chalmers/Davies/Monti, European Union cit., pp. 734-736 e Tröger, The Single cit., pp. 12-13. 46 Densifi camos esta informação no ponto III-B.ii infra.47 Nome pelo qual é conhecida a Diretiva n.º 2013/36/UE/2013, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho de 2013 (disponível para consulta em http://eur-lex.europa.eu/).48 A Diretiva n.º 2014/59/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de maio de 2014 (mais conhecida por BRRD) disciplina as regras relativas à recuperação e resolução de instituições de crédito e empresas de investimento sendo o mecanismo europeu de garantia de depósitos pre-visto na Diretiva n.º 2014/49/EU, do Parlamento Europeu e do Conselho. Estas diretivas podem ser consultadas em http://eur-lex.europa.eu/.

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incompleto49, não só por apenas um dos seus componentes ser diretamente aplicável aos Estados-Membros (i.e. o CRR) e por não terem sido ainda trans-postos (para vários dos ordenamentos jurídicos nacionais) os demais compo-nentes, mas também por não serem exaustivos nas matérias abordadas deixando margem aos Estados-Membros para evitar facilmente uma transposição ipsis verbis das diretivas (mesmo nos casos em que as diretivas consagrem o princípio da harmonização máxima50 e contando que não violem os limites materiais impostos pelas normas em causa) ou mesmo densifi car a norma genérica que o instrumento legal lhes oferece (como ocorre no CRR, nomeadamente em matérias de riscos e de liquidez51).

Se olharmos para a “composição” atual do EU Single Rulebook verifi camos que a maioria dos instrumentos legais que o compõem são Diretivas e, anali-sando o teor destas, concluímos pela existência de inúmeras opções nos respe-tivos textos que permitem aos Estados-Membros adotar soluções diferenciadas entre eles, o que vem perturbar o intuito harmonizador do exercício52.

Aqui, note-se, surge uma questão que poderá representar mais um foco de tensão entre as ANC e o BCE e que se prende com os casos em que o legislador nacional, ao abrigo do artigo 288.º do TFUE e respeitando o conteúdo da dire-tiva a transpor, deixou na esfera da ANC interpretar e implementar a solução adequada. E, se no primeiro caso falamos da difi culdade do BCE em aplicar, por falta de know-how da legislação nacional, as soluções domésticas de todos os Estados-Membros do Eurosistema a par da legislação europeia, no segundo caso já poderemos estar a falar de uma ingerência do BCE naquele que seria o domínio da ANC – por delegação do Estado-Membro e não por força das suas próprias atribuições - em virtude da transposição nesse mesmo sentido de uma opção de uma determinada Diretiva. Ora, sem prejuízo de o BCE dispor53 dos poderes de conferidos às ANC em matéria de supervisão prudencial, não cremos que exista cobertura para se fazer “substituir” à ANC na situação em

49 Criticando a incompletude do EU Single Rulebook face ao seu propósito vide Ferran, European Banking Union cit., pp. 3-4 e classifi cando-o como conceptual cfr. Wymeersch, The Single cit., p. 12.50 Que (apenas) proíbe ao Estado-Membro transpor a Diretiva de forma mais restritiva.51 Exemplos referidos por Valia Babis, Single Rulebook for Prudential Supervision: Mission Accom-plished?, Legal Studies Research Paper Series, Paper no. 37/2014, University of Cambridge, julho 2014, pp. 9-13.52 Note-se que esta difi culdade também pode surgir caso um regulamento confi ra opções, dei-xando à escolha do intérprete-aplicador determinar qual a solução adequada para dar cumpri-mento à norma.53 Nos termos do artigo 9.º do Regulamento MUS.

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apreço54, sobretudo atendendo a que isso signifi caria “substituir-se”, em última análise, ao próprio Estado-Membro.

Acresce que o EU Single Rulebook é ainda composto pelas regras emitidas pela agência europeia que atua sobre o mercado bancário, a European Ban-king Authority – “EBA”55. Estas regras, que por vezes não dispõem de natu-reza vinculativa (a chamada “soft law”), revestindo antes a natureza de normas interpretativas ou recomendações, integram-se no EU Single Rulebook sempre que visarem promover a convergência das regras e das práticas de supervisão prudencial.

Assim e destarte a necessidade de articulação entre, num primeiro nível, as ANC e o BCE e, num segundo nível, entre as Joint Supervisory Teams ou Equipas Conjuntas de Supervisão (“ECS”) e quer as ANC, quer o BCE56, cremos que é da maior importância assegurar uma adequada coordenação do BCE e as outras agências europeias atualmente existentes, das quais destacamos a EBA57-58-59, tendo em conta as suas atribuições de índole regulamentar e o seu papel no desenvolvimento do EU Single Rulebook. E, quanto mais coordenada esta estiver com o BCE e as ANC, mais conhecedora se tornará das áreas que

54 A propósito do artigo 288.º do TFUE, mas sem tomar posição fi rme sobre as consequências deste ato do BCE vide Wymeersch, The Single cit., p. 15.55 As normas reguladoras da atividade da EBA alteradas simultaneamente à criação do MUS pelo Regulamento (UE) n.º 1022/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho que alterou o Regula-mento (UE) n.º 1093/2010, que criou a EBA. Este regulamento reforçou os poderes desta entidade em inúmeras vertentes, incluindo a regulamentar, podendo a versão consolidada ser consultada em https://www.eba.europa.eu/about-us/legal-framework/founding-texts-and-mandates. Para uma perspetiva crítica sobre as alterações ao regime da EBA cfr. Wymeersch, The Single cit., pp. 66-72 e Tröger, The Single cit., pp. 26-27. 56 Vide infra.57 Atendendo ao seu objeto, cremos que a agência europeia com a qual é fulcral haver coordena-ção é a EBA, não sendo de excluir alguma cooperação com a European Insurance and Occupatio-nal Pensions Authority (“EIOPA”) ou a European Securities Markets Authority (“ESMA”) em função da transversalidade das atividades das instituições de crédito supervisionadas e, em particular, a necessidade de supervisionar conglomerados fi nanceiros. Sobre a articulação com a ESMA vide ainda Ferran, European Banking Union cit., pp. 19-21.58 Para mais detalhe sobre a articulação entre a EBA e o BCE no âmbito do MUS sugerimos a lei-tura de Concetta Brescia Morra, From the Single Supervisory Mechanism to the Banking Union – The Role of the ECB and the EBA, Working Paper no. 2/2014, LUISS Academy – School of European Political Economy, junho 2014, Francesco Guarracino, Role and Powers of the ECB and of the EBA in the Perspective of the Forthcoming Single Supervisory Mechanism, Law and Economics Yearly Review, Vol. 2, Part 1, agosto 2013 e Wymeersch, The Single cit., pp. 66-72.59 Destacando a importância da EBA em especial relativamente seu poder regulatório e ao EU Sin-gle Rulebook vide Wymeersch, The Single cit., p. 10, Capriglione, European cit., p. 29, pp. 36-39 e p. 68 e Ferran/Babis, The European cit., pp. 23-27.

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carecem de (mais ou melhor) regulamentação e mais poderá contribuir para aprofundar o esforço de harmonização que terá, necessariamente, impacto ao nível de práticas de supervisão.

Refi ra-se, fi nalmente, que o EU Single Rulebook foca-se no enquadramento regulamentar na área fi nanceira-bancária, mas naturalmente não aborda – e, por conseguinte, não pretende harmonizar – as regras transversais que também se aplicam aos players deste e doutros mercados que mantêm, em muitos casos, o seu cunho marcadamente nacional, nomeadamente em matéria tributária, societária, mercado de capitais, penal, administrativo, seguros, etc... Assim, cre-mos que o EU Single Rulebook confi gura um passo de extrema importância na harmonização do enquadramento regulatório, mas carece de ser complemen-tado e aperfeiçoado caso pretenda ser visto como uma ferramenta verdadeira-mente integradora e transversal60.

ii. Harmonização ao nível das práticas de supervisão

É reconhecido, por vários Autores,61 que uma harmonização apenas no plano regulatório não resolve – ainda que mitigue – as diferenças no enqua-dramento legal dos vários Estados-Membros e não trata – ainda que enquadre – a aplicação prática in casu das disposições aplicáveis, aquilo a que podemos chamar de «práticas de supervisão».

Num plano mais geral pode relacionar-se com as matérias excluídas do SSM62, quer no que diz resp eito a supervisão, quer nas áreas transversalmente aplicáveis às instituições de crédito supervisionadas. Mas, numa aceção mais direcionada, prende-se não só com a margem que tem sido conferida às ANC para interpretar normas jurídicas e conceitos (construindo a sua «ciência bancária» num plano puramente nacional) mas também quanto à forma e modo como as ANC desempenham as suas tarefas enquanto supervisores prudenciais do sistema bancário nacional.

Uma das críticas à criação do MUS prende-se com a distância – geográfi ca e não só – que o supervisor vai passar a ter das instituições supervisionadas. E a pergunta sobre se o BCE será capaz de, dos seus escritórios em Frankfurt,

60 Para uma leitura aprofundada sobre as vantagens/desvantagens do EU Single Rulebook e outros aspetos cfr., por todos, Babis, Single Rulebook cit.. Refi ra-se ainda que esta Autora defende que a harmonização regulatória per se é insufi ciente e o EU Single Rulebook está ainda longe do seu propósito.61 Como, entre outros, Babis, Single Rulebook cit., p. 7 e Wymeersch, The Single cit., pp. 5-6.62 E que já acima referimos no ponto III-B.i supra.

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desempenhar cabalmente as funções que lhe são conferidas pelo Regulamento MUS vai necessariamente ter de ser respondida nos primeiros anos de vigência do MUS.

O BCE parece ter reduzido o risco de “insucesso” ao evitar a supervisão direta de todo o sistema bancário europeu (uma tarefa hercúlea e provavel-mente impossível) e optar antes pela dicotomia entre «instituições signifi cativas» e «instituições menos signifi cativas», sem prejuízo de exercer algumas das suas atri-buições, ainda assim, sobre todas as instituições de crédito. Mas, para esta solu-ção de compromisso resultar e para se poder almejar a uma maior harmonização das práticas de supervisão, o BCE precisa indubitavelmente da cooperação das ANC o que poderá representar per se mais um foco de tensão63.

Um dos pressupostos para a criação do MUS – patente em diversos dos preceitos do Regulamento MUS64 e destacado pela doutrina especializada65 - terá sido o facto de as ANC não terem desempenhado adequadamente o seu papel durante o período de crise fi nanceira. Este pressuposto explica par-cialmente a inversão feita aquando da tomada de decisão sobre o desenho do MUS, alterando signifi cativamente o esforço de aprofundamento das práticas de integração europeia que vinham a ser seguidas e invertendo a marcha numa direção diametralmente oposta àquela que se percorrera no seguimento das conclusões do Relatório De Larosière66, em 2009, e que tinha originado a cria-ção de várias agências europeias com funções de supervisão que operavam na área dos seguros (a EIOPA), dos mercados de capitais (a ESMA) e da banca (a EBA). Naturalmente, atendendo a que a criação destas agências ocorreu em 2010 e 2011 seria muito ambicioso esperar que as mesmas apresentassem prova indubitável da sua efi cácia apenas 1 ou 2 anos após a sua fundação (atendendo a que, no fi nal de 2012, um esboço do MUS como o conhecemos hoje já dei-xava antever profundas modifi cações). Mas o segundo pressuposto do MUS é igualmente perturbador, no sentido em que revela considerar que se as ANC não foram capazes de fazer o seu trabalho, o BCE é a entidade que capaz de o

63 Destacando a importância da cooperação entre as ANC e o BCE vide, inter alia, Tröger, The Single cit., p. 11 e Ferran, European Banking Union cit., pp. 9-11.64 Entre tantos outros, vejam-se os artigos 5.º, n.º 2, 6.º n.º 5 alínea b) ou 7.º n.º 4 todos do Regu-lamento MUS.65 Nomeadamente por Tröger, The Single cit., pp. 4-5, pp. 8-9, pp. 15-16, pp. 19-20 e Hennessy, Redesigning cit., p. 151.66 Subordinado ao tema “The High-level Group on Financial Supervision in the EU”, preparado a pedido da Comissão sob coordenação de Jacques de Larosière encontra-se em http://ec.europa.eu/internal_market/fi nances/docs/de_larosiere_report_en.pdf. Para uma análise crítica das conclu-sões do relatório cfr. Hennessy, Redesigning cit., pp. 155-159 e Capriglione, European cit., p. 38.

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fazer de forma mais efi caz, o que não deixa de ser revelador (e, note-se, vai ao arrepio do que resultou do Relatório De Larosière).

Estes dois pressupostos podem ser mais problemáticos do que se possa pen-sar atendendo a que é patente que o sucesso do MUS depende da relação entre o BCE e as ANC para, numa primeira linha, a supervisão prudencial de cada uma das «instituições signifi cativas» e, num segundo plano, das «institui-ções menos signifi cativas». De forma a garantir esse efeito, o artigo 6.º, n.º 2 do Regulamento MUS determina que tanto as ANC como o BCE estão sujeitos ao «dever de cooperação leal», pelo que todos devem colaborar para que todos os intervenientes (i.e., os Estados-Membros participantes e o BCE) possam aplicar de forma efetiva o Direito europeu67. E a execução do Regulamento MUS vai requerer o cumprimento deste dever em diversas ocasiões, nomeadamente:

(i) Em matéria de troca (bilateral) de informações seja sobre «instituições signifi cativas» ou «instituições menos signifi cativas» (inter alia artigo 6.º, n.º 2 e n.º 5 alínea c) ou artigo 10.º, n.º 3 e artigo 21.º, este do Regula-mento-Quadro);

(ii) No que diz respeito ao cumprimento de regulamentos, orientações ou instruções gerais emitidas pelo BCE e dirigidas às ANC (inter alia artigo 6.º, n.º 5 alínea a) ou artigo 7.º, n.º 4);

(iii) No que toca ao reporte de situações que o Regulamento MUS identi-fi ca como geradoras de alterações na supervisão em particular a notifi -cação de um «procedimento de supervisão relevante» aplicável a uma «insti-tuição menos signifi cativa» (artigos 97.º e 98.º do Regulamento-Quadro) ou da «deterioração da situação fi nanceira» de uma «instituição menos signifi -cativa» (artigo 96.º do Regulamento-Quadro) e que podem resultar na intervenção do BCE (nos termos do artigo 6.º, n.º 5 alínea c));

(iv) Na receção de pedidos e consequente preparação e elaboração de deci-sões e no suporte em matéria de legislação nacional aplicável a atender nesta vertente técnica (inter alia artigo 14.º, n.º 2 e artigo 15.º, n.º 2);

(v) Na transmissão de informações sobre a atividade de supervisão efe-tuada pela ANC, no âmbito das suas competências ou em execução das competências do BCE (artigos 99.º e 100.º do Regulamento-Qua-dro e artigo 6.º, n.º 5 alínea c)).

Como se pode ver da enumeração supra – que se pretende meramente exemplifi cativa – a articulação entre o BCE e a ANC será constante, se não

67 Sobre este princípio cfr. Fausto De Quadros, Direito cit., pp. 510-513.

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mesmo diária, o que se reforça pelo facto de a ANC continuar a ser o entry point relativamente à maioria dos atos que as instituições supervisionadas podem praticar ao abrigo do MUS.

Um outro ponto que se pode revelar um desafi o na aplicação do MUS é a multiplicidade de conceitos indeterminados que é possível detetar nos vários instrumentos legais europeus. Por exemplo, algumas obrigações de cooperação dependem da clarifi cação do que é um «procedimento de supervisão material»68 ou a classifi cação de uma instituição como «instituição signifi cativa» pode depender de como se densifi que o que é ter «importância para a economia da União e/ou de um Estado-Membro participante»69 ou como se defi ne a «importância das ativida-des transfronteiriças»70 que desenvolva. E, no plano nacional, existem igualmente conceitos indeterminados que poderão difi cultar ainda mais a tarefa do aplica-dor (in casu sobretudo do BCE) por não dispor do know-how sufi ciente71 para ultrapassar essas questões efi cientemente (pelo menos numa fase inicial).

O «dever de cooperação leal» deve capear toda a aplicação do Regulamento MUS (em abono da verdade este dever já resulta expressamente do artigo 4.º, n.º 3 do TFUE, pelo que não carecia de ser incluído nem no Regulamento MUS nem no artigo 20.º do Regulamento-Quadro) mas será preciso não só uma articulação precisa, pontual e atempada de todos os envolvidos para asse-gurar que o BCE consegue levar a cabo as suas funções enquanto supervisor, como ainda uma grande dose de sensatez deste último para, por um lado, asse-gurar uma boa relação com as ANC e, por outro lado, não hostilizar os próprios Estados-Membros.

Dois aspetos que poderão ser aqui especialmente relevantes prendem-se com a importância de saber articular devidamente as especifi cidades de Direito nacional e Direito europeu aplicável (dando, aliás, cumprimento ao artigo 4.º, n.º 3 do Regulamento MUS72) e assegurar o respeito pelo princípio da subsi-diariedade (previsto no artigo 5.º do TFUE) que limita o BCE a intervir em tudo o que não seja sua competência exclusiva apenas quando os objetivos não possam ser adequadamente alcançados pelos Estados-Membros (v.g. através das ANC). Este princípio ganha, aliás, especial relevância em determinadas situações em que o BCE pode sentir-se tentado a chamar a si as competências de supervisão direta sobre uma «instituição menos signifi cativa» para assegurar a

68 Referido no artigo 97.º, n.º 1 do Regulamento-Quadro.69 Artigo 6.º, n.º 4 §1.º alínea (ii) do Regulamento MUS.70 Artigo 6.º, n.º 4 §1.º alínea (iii) do Regulamento MUS.71 Destacando a relevância do know-how nacional neste âmbito vide Capriglione, European cit., p. 40.72 Este artigo é especialmente intrigante conforme vamos discutir no ponto III-C infra.

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«aplicação coerente de elevados padrões de supervisão»73 (artigo 6.º, n.º 5 alínea b), do Regulamento MUS).

Uma questão lateral mas não menos relevante prende-se com a interpretação que possa ser feita dos fundamentos de atuação do BCE. Determina o artigo 13.º, n.º 2 do Regulamento MUS que, caso seja necessário solicitar uma autorização judicial para fazer inspeções in loco a uma instituição de crédito supervisionada, o tribunal nacional deverá analisar a autenticidade da decisão do BCE, o carác-ter não arbitrário ou excessivo das medidas previstas relativamente ao objeto da inspeção e até pode solicitar algumas explicações breves para formar o seu juízo, mas não poderá contestar ou proibir essa inspeção nem pedir informações sobre outros fundamentos que possam ter conduzido o BCE à ação inspetiva uma vez que «a legalidade da decisão do BCE está apenas sujeita à fi scalização do TJUE». Ora, atendendo aos princípios fundamentais de acesso à justiça e da tutela juris-dicional efetiva (artigo 20.º da Constituição) não se vê, à partida, como esta disposição possa ser inócua e totalmente isenta de dúvidas constitucionais.74

Uma das manifestações da importância da cooperação entre o BCE e a ANC (e um passo signifi cativo no caminho da harmonização das práticas de supervisão) pode ser encontrado na fi gura das ECS. O Regulamento-Quadro clarifi ca (nos seus artigos 3.º a 7.º) que estas equipas vão fi car encarregues da supervisão “no terreno” de cada instituição de crédito e serão compostas por funcionários do BCE (um dos quais vai coordenar a ECS) e funcionários da ANC relevante. Tendo em conta as funções a desempenhar pelas ECS é seguro dizer que a maior parte das questões em matéria de cooperação terão de ser resolvidas pelos seus membros, desempenhando estes um papel chave no que diz respeito à deteção de problemas nas instituições supervisionadas, à seleção de factos relevantes para tomar decisões de supervisão e à obtenção e transmis-são de informação quer ao BCE quer à ANC (nesta última situação atendendo ao facto de o «dever de cooperação leal» pressupor obrigações de cooperação – v.g. de informação – recíprocas).

Sublinha-se o facto de as ECS serem chefi adas pelo BCE, sendo este res-ponsável pelo estabelecimento e composição destas equipas (artigo 4.º, n.º 1 do Regulamento-Quadro) e devendo os membros que as compõem seguir as instruções do coordenador sempre que estejam a executar as suas funções decorrentes do MUS (artigo 6.º, n.º 1 do Regulamento-Quadro). E se, por um

73 Mais um conceito indeterminado que poderá revelar-se problemático, sobretudo se atender-mos que pressupõe um juízo de valor sobre a falta de competência da ANC para justifi car uma decisão deste calibre.74 Sobre o papel do TJUE e a limitação na submissão de questões aos tribunais nacionais cfr. Wymeersch, The Single cit., p. 14 e Ferran/Babis, The European cit., p. 18.

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lado se compreende facilmente este jugo, atendendo a que o BCE é responsável pelo funcionamento do MUS como um todo e carece, por conseguinte, de poder “controlar” quem executa as suas atribuições (artigo 6.º, n.º 1 in fi ne do Regulamento MUS), por outro lado, parece-nos evidente que esse domínio não pode deixar de gerar implicações em matéria de responsabilidade75.

Por fi m, recorda-se a necessidade de assegurar a coordenação com outras agências europeias atualmente existentes, conforme já mencionámos no ponto anterior, e outras entidades de supervisão relevantes a nível nacional (nomeada-mente as congéneres nacionais da ESMA e da EIOPA).

É de notar que o BCE, sem prejuízo de ser dotado de extensas atribui-ções em matéria de supervisão prudencial – podendo assim ter uma infl uência real na aplicação e harmonização de práticas de supervisão – não dispõe de poder regulatório76 dependendo, portanto, não só do “legislador” europeu e do legislador nacional, mas também da EBA para poder assegurar que o esforço de integração bancária não se fi ca pela “letra da lei”.

C. As difi culdades logísticas: a língua de trabalho, o cumprimento dos prazos e a aplicação de legislação nacional

Nos pontos anteriores discutimos a arquitetura e aqueles que, no nosso entend er, são alguns dos pontos mais importantes (e mais aptos a representarem difi culdades) do MUS. Analisando o processo de implementação de um ponto de vista operacional, é inegável que este terá problemas de logística atendendo à diversidade cultural, jurídica e linguística dos vários Estados-Membros do Eurosistema.

Um dos problemas operacionais de implementação do MUS é a língua de trabalho. Resulta do artigo 24.º do TFUE e do artigo 41.º, n.º 4 da Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia que todas as pessoas podem comuni-car com as instituições europeias numa das línguas do Tratado e têm o direito a obter uma resposta na mesma língua. Em linha com estas disposições, o Regu-lamento-Quadro determina, no seu artigo 24.º, n.º 1 e n.º 2, que os documen-tos a enviar ao BCE por uma instituição supervisionada ou porque outra pessoa singular ou coletiva que possa estar sujeita aos procedimentos de supervisão do BCE em virtude da aplicação do MUS podem ser redigidos em qualquer língua ofi cial da União escolhida pela requerente ou até, a pedido de uma das partes, exclusivamente numa destas línguas. Isto signifi ca que uma instituição

75 Conforme analisamos no ponto IV. infra.76 Vide Wymeersch, The Single cit., pp. 12-13 e Tröger, The Single cit., pp. 28-31.

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de crédito pode submeter um pedido de autorização junto de uma ANC (por exemplo o Banco de Portugal)77 redigido em português e esperar uma resposta também nessa língua ou escolher qualquer outra e ser respondido nos mesmos termos. Esta solução permite alguma fl exibilidade na escolha da língua de traba-lho, enquanto cumpre com o disposto nos Tratados a este respeito. E, nos casos em que uma instituição de crédito tenha optado por comunicar noutra língua que não a sua (p.e. em inglês) pode, a todo o momento, revogar esse acordo e escolher outra língua com a qual prefi ra trabalhar.

No que diz respeito à comunicação entre as ANC e o BCE, determina o artigo 23.º do Regulamento-Quadro, que deverão ser adotadas “medidas relati-vas à comunicação”, nomeadamente a língua a utilizar. Mas, não densifi cando o conteúdo do preceito, muito fi ca por enquanto em aberto quanto a este ponto, não sendo claro como se irá processar.

Assumindo que as instituições supervisionadas (para já não falar das pessoas singulares que possam participar num processo de supervisão do BCE) vão preferir comunicar na sua língua nativa, podemos antecipar o investimento que o BCE terá de fazer em serviços de tradução não só pela multiplicidade de línguas envolvidas, mas também pela tecnicidade dos temas, a acuidade que terá obrigatoriamente de ser assegurada, a rapidez necessária ao desempenho destas funções e a importância de evitar discrepâncias entre a versão “original” e a versão “traduzida” do mesmo documento.

Relacionada com esta questão levanta-se a problemática dos prazos, desa-fi ante por si só, não apenas por serem habitualmente curtos mas e, atendendo ao início de vigência do MUS, por terem agora de atender a novos fatores. Se, por exemplo, um prospetivo acionista pretender adquirir uma participação qualifi cada numa instituição de crédito, o seu pedido deve ser submetido junto da ANC relevante que, nos termos do artigo 15.º do Regulamento MUS, tem de o analisar e apresentar um projeto de decisão ao BCE pelo menos 10 dias úteis antes do termo do prazo legal para a realização da avaliação. Se atentarmos no artigo 103.º, n.º 4 do RGICSF vemos que o Banco de Portugal (que aqui faria “as vezes” de ANC) tem, na maioria dos casos78, apenas 60 dias úteis para decidir sobre o pedido, o que já hoje pode ser considerado um prazo curto. Ora, equacionar este prazo com a inclusão de passos adicionais para permitir a intervenção do BCE encurta ainda mais os prazos legalmente aplicáveis. Vol-tando ao nosso exemplo acima citado, isto signifi caria que só nesta primeira fase – i.e., da apreciação do pedido e da notifi cação ao BCE – a ANC dispõe de

77 Ao abrigo do artigo 14.º, n.º 1 do Regulamento MUS.78 Nas situações em que exista um pedido adicional de informações este prazo suspende-se por um período adicional de 20 ou 30 dias úteis (cfr. artigo 103.º, n.º 2, n.º 5 e n.º 6 do RGISCF).

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menos 10 dias úteis do que dispunha anteriormente, o que a obriga a ser (ainda) mais efi ciente. E, por sua vez, o BCE tem também de ser pró-ativo para evitar atrasos ou incumprimentos quer das suas obrigações, quer das da ANC (oca-sionadas por sua responsabilidade) ou ainda a ocorrência de um deferimento tácito (nos casos em que a lei assim o prevê) não intencional. Note-se, por fi m, que os prazos ainda se tornam mais curtos se existir a necessidade de traduzir os pedidos ou a documentação que os acompanha.

A acrescentar a estes dois obstáculos – bastante signifi cativos, no nosso entender – temos ainda a potencial difi culdade na articulação entre a lei nacional e a lei europeia que aqui possam ser simultaneamente aplicáveis. Determina o artigo 4.º, n.º 3 do Regulamento MUS que, no exercício das suas atribuições de supervisão prudencial, o BCE aplica toda a legislação rele-vante da União e, havendo diretivas ou regulamentos que confi ram opções aos Estados-Membros, também aplica a legislação nacional que transpõe/densifi ca a legislação europeia. Ora, tal poderá representar um desafi o, pois pressupõe, da parte do BCE, um conhecimento profundo da legislação que, em cada Estado-Membro participante, implementou legislação europeia79. Outro problema poderá surgir ainda sempre que o BCE receba um pedido e, nos termos do Regulamento MUS80, deva a ANC relevante analisá-lo tendo em conta a legislação nacional e o BCE atender aos aspetos que resultam da legislação da União (podendo contrariar a posição da ANC vertida no projeto de decisão caso entenda que o direito europeu assim o permite). Atentando nesta formulação poderíamos pensar que existe uma fronteira transparente e bem delineada entre o que consubstancia legislação europeia e o que é legislação nacional quando, na verdade, a legislação europeia torna-se nacio-nal por força do artigo 8.º, n.º 4 da Constituição e a legislação nacional que transpõe ipsis verbis a legislação europeia não deixa de ser europeia em vir-tude da transposição. Consequentemente podem antever-se casos em que a ANC vai analisar aspetos relativamente aos quais o BCE também se considera competente e vice-versa. E, esperemos que a “decisão” que daqui resulte seja idêntica, ainda que esta duplicação metodológica não seja certamente a via mais efi ciente para alcançar esse resultado.

Uma terceira situação poderá ainda ocorrer nos casos em que a legislação nacional preveja algo que, ainda que não contrarie Direito europeu (sendo, por

79 O que não será certamente fácil conforme também destaca Wymeersch, The Single cit., pp. 7-8, pp. 11-12, entre outros Autores.80 Isto acontece, por exemplo, no caso de um pedido de autorização (artigo 14.º do Regulamento MUS) ou num pedido de avaliação de aquisição ou alienação de participações qualifi cadas (artigo 15.º do Regulamento MUS), entre outros exemplos possíveis.

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conseguinte, internamente admissível), possa afetar a situação jurídica das ins-tituições supervisionadas ou de pessoas singulares ou coletivas abrangidas pela aplicação do MUS. Refi ra-se, a título de exemplo, a consequência prevista no artigo 105.º, n.º 1 do RGICSF, que permite ao Banco de Portugal determinar a inibição de direitos de voto integrantes de uma participação qualifi cada caso o acionista tenha adquirido a participação contrariando a objeção do Banco de Portugal a este respeito (que, adaptando ao caso, teria de ser a objeção deter-minada pelo BCE). Esta norma não tem qualquer correspondência na Diretiva das Participações Qualifi cadas81, nem em qualquer outro normativo europeu, consubstanciando uma inovação do legislador português que não é prejudicada ou impedida por legislação europeia sendo, por conseguinte, admissível.

Os problemas de logística acima referidos são talvez os mais gritantes mas não serão certamente os únicos. Sem prejuízo de outros que se possam anteci-par, cabe analisar atentamente a evolução do MUS para se perceber que outros pontos fracos do sistema poderão necessitar de mais atenção ou melhorias num futuro próximo.

IV – A responsabilidade das ANC e do BCE no MUS

Não poderíamos terminar a presente análise sem abordar – ainda que muito preliminarmente – a responsabilidade que possa resultar da aplicação do MUS.

No que diz respeito a esta matéria, o Regulamento MUS prevê, no seu artigo 20.º, uma obrigação de prestação de contas e apresentação de relató-rios perante o Parlamento Europeu, o Conselho, a Comissão, o Eurogrupo e, nos termos do artigo 21.º do mesmo diploma, os parlamentos nacio nais dos Estados-Membros participantes. Estas disposições abrigam uma previsão de «accountability» política perante as instituições mais relevantes a nível político europeu e nacional. Não se espera, no entanto, que daqui possa sair um juízo técnico de valor sobre a adequação das práticas de supervisão desenvolvidas pelo BCE nem sobre a operacionalidade do MUS, nem tal acuidade técnica seja o intento dos acordos institucionais a celebrar entre o BCE e o Parla-

81 I.e. da Diretiva n.º 2007/44/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 5 de Setembro (disponível em http://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/?uri=CELEX:32007L0044 e entretanto revogada e substituída pela Diretiva n.º 2014/65/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de maio de 2014 e disponível em http://eur-lex.europa.eu/legal-content/EN/TXT/?uri=CELEX:32014L0065).

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mento Europeu82 expressamente referidos no n.º 9 do artigo 20.º do Regu-lamento MUS83.

Aquilo que o Regulamento MUS não aborda – pelo menos de forma escla-recedora – é sobre quem deve recair a responsabilidade pelos atos praticados no âmbito do MUS. O artigo 6.º n.º 1 do Regulamento MUS indica que o “BCE é responsável pelo funcionamento efi caz e coerente do MUS” (realce nosso) e o seu n.º 3 densifi ca um pouco mais este preceito geral84 determinando que “[s]empre que adequado, e sem prejuízo da responsabilidade do BCE e da sua obrigação de responder pelo exercício das atribuições que lhe são conferidas pelo presente regulamento, incumbe às autoridades nacionais competentes coadjuvar o BCE, nas condições estabelecidas no n.º 7 do presente artigo, na preparação e aplicação de quaisquer atos relacionados com as atribuições referidas no artigo 4.º em relação a todas as instituições de crédito, incluindo a coadjuvação em atividades de verifi cação. No exercício das atribuições a que se refere o artigo 4.º, devem seguir as instruções dadas pelo BCE” (realces nossos).

Destas determinações parece resultar um princípio geral de responsabili-dade do BCE pelo funcionamento global do MUS e, em segunda linha, uma confi rmação de que o BCE pode responder pelos atos praticados em execução do Regulamento MUS, entre os quais se poderão incluir os atos praticados pela ANC no seguimento das instruções emitidas pelo BCE (conforme consta da 2.ª parte deste n.º 3).

A acrescentar a estas determinações atente-se ainda no §2.º e no §3.º do artigo 340.º do TFUE85 que determinam que “[e]m matéria de responsabilidade extracontratual, a União deve indemnizar, de acordo com os princípios gerais comuns aos direitos dos Estados-Membros, os danos causados pelas suas instituições ou pelos seus agentes no exercício das suas funções.” E, especialmente quanto ao BCE, refere que este “deve indemnizar, de acordo com os princípios gerais comuns aos direitos dos Estados-Membros, os danos causados por si próprio ou pelos seus agentes no exercício das suas funções” (realce nosso).

O artigo 340.º do TFUE e os preceitos acima citados do Regulamento MUS clarifi cam a alocação da responsabilidade tanto quando o ato é praticado

82 Sem prejuízo de se entender que o Parlamento Europeu desempenha aqui um importante papel de controlo democrático e político conforme defende Wymeersch, The Single cit., p. 24 e pp. 57-58, Carmassi/Noia/Micossi, Banking Union cit., p. 3 e Ferran/Babis, The European cit., pp. 16-17.83 E já abordados no ponto II. supra.84 Sobre este princípio geral de “oversight” vide Wymeersch, The Single cit., pp. 40-41 e Ferran, European Banking Union cit., pp. 5-6.85 Aliás, referido pelo próprio Regulamento MUS no seu considerando (61).

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pelo BCE86 no âmbito das suas atribuições de supervisão prudencial resultantes do Regulamento MUS, como quando parecem imputar responsabilidades à ANC sempre que esta exerça supervisão direta sobre instituições do mercado bancário nacional/internacional também em resultado da aplicação do MUS (v.g. supervisão direta das atividades de uma «instituição menos signifi cativa»). Mas no que diz respeito à responsabilidade por atos praticados pela ANC em cum-primento de orientações do BCE (o que ocorre relativamente a «instituições signifi cativas» e «instituições menos signifi cativas») e face à insufi ciência do Regula-mento MUS – sobretudo no que toca à densifi cação desta responsabilidade – e à norma “aberta” que resulta do TFUE – quanto à articulação com eventuais normas similares constantes de legislação nacional – cabe explorar um pouco o que consta da lei portuguesa e como pode ser comparada com estes preceitos europeus.

Dita o artigo 22.º, da Constituição que “[o] Estado e as demais entidades públicas são civilmente responsáveis, em forma solidária com os titulares dos seus órgãos, funcionários ou agentes, por ações ou omissões praticadas no exercício das suas funções e por causa desse exercício, de que resulte violação dos direitos, liberdades e garantias ou prejuízo para outrem.” (realce nosso) e que conjugado com o artigo 271.º da Constituição permite identifi car os casos em que um funcionário – in casu do Banco de Portugal – pode ser responsabilizado ou exo-nerado de responsabilidade pelos atos ou omissões ocorridos no desempenho das suas funções.

Percebe-se que a norma nacional que prevê a responsabilidade das entida-des públicas – entre as quais se conta, naturalmente, o Banco de Portugal, não foi prevista para situações em que a entidade pública recebe ordens de uma qualquer instituição “hierarquicamente superior” como é o caso, no que ao Regulamento MUS diz respeito, do BCE. De igual modo, é o próprio TFUE que convida aqui a traçar um paralelismo entre a conduta “reprovável” e a ori-gem da mesma, de forma a defi nir o responsável.

Face ao conteúdo do artigo 22.º da Constituição e não sendo um ato da ANC um “ato do BCE ou de um dos seus agentes” (numa aceção puramente técnica) poderíamos eventualmente equacionar a responsabilização do Banco de Portugal pelos atos que pratique ainda que o faça seguindo as instruções ou orientações do BCE e estando vinculado ao seu cumprimento nos termos do Regulamento MUS e dos Tratados. Todavia, parece-nos contraditório defen-

86 Quando se fala em BCE para efeitos de responsabilidade deve falar-se também em Governing Council uma vez que qualquer decisão do BCE que resulte em responsabilidade deste foi, formal-mente, uma decisão do Governing Council (e não do Supervisory Board).

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der tal posição sabendo que uma ANC atua enquanto simples executante87 das indicações recebidas pelo BCE, não tendo margem de discricionariedade para alterar ou não cumprir a orientação recebida e podendo ser “sancionada” quando não o faz. E não existindo esta margem poderemos, no limite, equa-cionar uma aplicação analógica do mecanismo de salvaguarda previsto no artigo 271.º, n.º 2 da Constituição, que permite a um funcionário público (que seria aqui “substituído” pelo próprio Banco de Portugal) deixar de ser responsável se atuar “no cumprimento de ordens ou instruções emanadas de legítimo superior hierárquico e em matéria de serviço, se previamente delas tiver reclamado ou tiver exigido a sua transmissão ou confi rmação por escrito.” (realce nosso). E, não obstante entendermos ser uma posição defensável de um ponto de vista de princípio, esta aplicação analógica poderá pecar por falta de identidade dos diversos elementos que compõem a previsão da norma, esbarrando no prin-cípio geral do artigo 22.º da Constituição e ainda por (poder) contribuir para negar um efetivo acesso à justiça, conforme consagrado no artigo 20.º da Cons-tituição, não sendo esse o objetivo que aqui se pretende incentivar.

Assim, podemos discutir um cenário em que, numa primeira fase do MUS e até que a situação seja clarifi cada, tanto o BCE como a ANC pareçam respon-sáveis88 – cada um, eventualmente, no respetivo foro. Esta situação indefi nida poderia ter sido evitada, desde o primeiro momento, pelo Regulamento MUS e terá muito provavelmente de ser revisitada em breve89.

Uma questão adicional prende-se com a responsabilidade que possa ser eventualmente assacada aos atos praticados por membros de uma ECS. Como referimos supra90 uma ECS é chefi ada por um funcionário do BCE e os mem-bros da ECS – a maioria dos quais são funcionários da ANC relevante – desem-penham funções de supervisão direta sobre as «instituições signifi cativas» pare-cendo admitir que desempenhem ainda outras funções na própria ANC91. Da

87 O preceito talvez mais revelador desta função de “executante” será o artigo 9.º, n.º 1 §3.º do Regulamento MUS que indica que «[n]a medida do necessário para o exercício das atribuições que lhe são conferidas pelo [Regulamento MUS], o BCE pode, por meio de instruções, exigir que essas autorida-des nacionais exerçam os seus poderes (…)» (itálico nosso). Mas outros preceitos existem de carácter (e intuito) muito similar.88 Note-se que a responsabilização do BCE não exclui a responsabilidade da ANC e vice-versa conforme refere Wymeersch, The Single cit., pp. 58-59.89 Criticando igualmente a falta de clareza em matéria de responsabilidade, ainda que sem tomar posição sobre o tema cfr. Wymeersch, The Single cit., pp. 57-59 e Ferran/Babis, The European cit., pp. 17-18.90 Vide supra no ponto III-B.ii.91 Conforme se parece retirar do artigo 4.º, n.º 5 do Regulamento-Quadro, ainda que tal nos pareça estranho tendo em conta o grau de compromisso que participar numa ECS certamente exigirá.

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interpretação dos vários preceitos que dizem respeito ao funcionamento das ECS parece resultar de forma bastante clara que os membros das ECS – inde-pendentemente de terem um vínculo à sua ANC, ao BCE ou mesmo a outra ANC – cumprirem cabalmente as instruções recebidas pelo coordenador da ECS (artigo 6.º, n.º 1 do Regulamento-Quadro) e que visam cumprir, por sua vez, as ordens recebidas do próprio BCE (artigo 31.º, n.º 2 do Regulamento MUS). E, note-se, mesmo quando as instruções têm origem no subcoordena-dor da ECS (que, caso exista, será um funcionário da ANC92) estas não podem contrariar as orientações do coordenador da ECS que, por conseguinte, se sobrepõem (artigo 6.º, n.º 2 do Regulamento-Quadro).

Na sequência do supra exposto e sem prejuízo das demais questões que aqui se poderiam equacionar – a começar pela óbvia dissociação entre o poder disci-plinar e o poder de direção relativamente aos funcionários das ANC que sejam simultaneamente membros de uma ECS e passando pelas difi culdades que terão em afi rmar a sua independência e não ocasionar confl itos de interesses93 – pare-ce-nos defensável a posição de que uma atuação no estrito cumprimento das orientações recebidas do BCE equivale a uma atuação do BCE sendo este, por conseguinte, responsabilizável nos termos já acima defendidos. Mas, mais uma vez, a indefi nição legal deste tema resultará em muitas questões que deveriam ter sido, desde logo, tratadas adequadamente.

Um dos pressupostos desta argumentação prende-se, naturalmente, com a inexistência de juízos de valor ou de discricionariedade na atuação das ANC ou dos funcionários nacionais que sejam membros da ECS. Nos casos em que a orientação do BCE seja genérica ou a instrução não seja sufi cientemente pre-cisa, deixando à escolha do aplicador algum dos elementos do ato a realizar ou a emitir, será mais difícil defender a responsabilidade exclusiva do BCE tendo em conta que esta instituição europeia não foi a única a ter o domínio – ainda que tenha tido um papel preponderante – do processo decisório. E, numa ótica de alocação de responsabilidades, poderá interessar aqui à ANC ou aos mem-bros das ECS obter os esclarecimentos necessários para poder limitar-se a atuar como executante dessa indicação ou, por outro, trabalhar com maior amplitude e habilitar-se às consequências que daí possam resultar (sendo que ambos os cenários podem interessar dependendo do caso concreto).

92 Conforme resulta do artigo 6.º, n.º 2 do Regulamento-Quadro.93 Tudo questões do maior interesse e que, por motivos de economia de tempo e espaço, não podemos abordar aqui.

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V – Considerações fi nais

A criação do MUS e a atribuição de funções de supervisão prudencial ao BCE nos termos previstos no Regulamento MUS resultam de uma época infe-liz, em que a crise fi nanceira e a desconfi ança sobre a competência das institui-ções de supervisão nacionais contribuíram para uma justaposição sobre os prin-cípios da subsidiariedade, especialidade e soberania nacional, sempre presentes nos Tratados. Mas foi esta mesma origem que permitiu à Europa ultrapassar os seus receios habituais o sufi ciente para dar início à concretização da União Bancária.

O MUS é, sem dúvida, um arranque ambicioso para esta nova fase da integração europeia. Conforme tentámos demonstrar nesta nossa análise, acre-ditamos ser possível antecipar difi culdades práticas signifi cativas, não só na deli-mitação dos vários âmbitos do MUS mas também na articulação entre o BCE, as ANC e as agências europeias, em particular a EBA. Mas, no seguimento da integração regulatória que se tem verifi cado nos últimos anos (e que deverá ser objeto de maior aprofundamento) e conseguindo o BCE harmonizar as práticas de supervisão prudencial enquanto entidade centralizadora das mesmas, o MUS pode ter sucesso.

Notamos que, nesta fase, apenas o amadurecimento deste sistema poderá dizer o que carece de ser melhorado, seja do ponto de vista da cooperação entre instituições, seja uma simples a revisão das condições logísticas que enquadram o MUS. E só o avançar da União Bancária nos poderá dizer até que ponto está esta apta a sobreviver sem uma evolução (mais) federalista da Europa, quiçá em direção a uma União Fiscal ou até Política.

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