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1 O MARTÍRIO NA LITERATURA: “OS MÁRTIRES DO COLISEU” SILVA, Diego Henrique Sanches da (PIBIC/UEM) Renata Lopes Biazotto Venturini (UEM) 1. A CRISE DO SÉCULO III. D.C: APONTAMENTOS HISTORIOGRÁFICOS No século III d.C. o Império Romano atravessava a sua maior crise até então já vivida por sua sociedade, crise que iria contribuir diretamente para selar o destino do império e sua desagregação. É preciso, primeiramente, termos a clareza na compreensão de que tal crise, embora tenha sido um marco na história romana, não foi a única causa no declínio do império. Santo Mazzarino (1991) em sua discussão sobre as mudanças nas abordagens historiográficas sobre o declínio do Império Romano, desde o século XVIII com suas concepções pessimistas de “declínio do mundo clássico” sobre um possível assassinato do Império Romano clássico pelas tribos bárbaras, até as revisões elaboradas nos fins do século XIX e no decorrer do XX, conclui que a desagregação do império fora uma somatória de fatores externos e internos, entre eles as invasões germânicas e a crise interna iniciada no século III d.C. fizeram parte desse processo histórico. O entendimento do que foi a crise do século III d.C. igualmente perpassa pela compreensão de que esta também foi uma somatória de percalços e

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O MARTÍRIO NA LITERATURA:

“OS MÁRTIRES DO COLISEU”

SILVA, Diego Henrique Sanches da (PIBIC/UEM)

Renata Lopes Biazotto Venturini (UEM)

1. A CRISE DO SÉCULO III. D.C: APONTAMENTOS

HISTORIOGRÁFICOS

No século III d.C. o Império Romano atravessava a sua maior crise até

então já vivida por sua sociedade, crise que iria contribuir diretamente para

selar o destino do império e sua desagregação. É preciso, primeiramente,

termos a clareza na compreensão de que tal crise, embora tenha sido um marco

na história romana, não foi a única causa no declínio do império.

Santo Mazzarino (1991) em sua discussão sobre as mudanças nas

abordagens historiográficas sobre o declínio do Império Romano, desde o

século XVIII com suas concepções pessimistas de “declínio do mundo clássico”

sobre um possível assassinato do Império Romano clássico pelas tribos

bárbaras, até as revisões elaboradas nos fins do século XIX e no decorrer do XX,

conclui que a desagregação do império fora uma somatória de fatores externos

e internos, entre eles as invasões germânicas e a crise interna iniciada no século

III d.C. fizeram parte desse processo histórico.

O entendimento do que foi a crise do século III d.C. igualmente perpassa

pela compreensão de que esta também foi uma somatória de percalços e

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problemas de ordem econômica, política e social que afetaram as estruturas nas

quais o império se fundamentava.

Para Alfoldy (1989), por exemplo, a crise generalizada no dominado

romano pode ser entendida em um processo de estreitamento ou afunilamento

das relações de dominação e enquadramento pelo estado, então representado

pelo dominus, com a sociedade. Em um período de meio século toda a estrutura

sócio-política em que estava organizado o Império Romano modificou

profundamente. A estratificação social dos hosnestiores e humiliores que dividia a

sociedade romana em ordos1 ou status fora atingido pela crise econômico-

política.

No decorrer do século III d.C. as ordens dos senadores e eqüestres foram

se homogeneizando e sendo cada vez mais agrupadas em uma mesma situação

político-jurídica para o estado romano. Quanto a plebs urbana, esta foi sendo

agrupada em corporações de oficio, os collegia2, como forma de se extrair maior

produtividade de sua mão-de-obra além de se ter um maior controle sobre a

população de status mais baixo, no entendimento do governo imperial, mais

sediciosa.

1 Entendemos por ordem a definição de Moses Finley, “Uma ordem ou estado é um grupo juridicamente definido dentro de uma população. Possui privilégios e incapacidades formalizadas em um ou mais campos de atividade – governamental, militar, legal, econômico, religioso, conjugal – e situa-se em relação a outras ordens numa relação hierárquica”. (1980 p.56). 2 Embora caracterizamos os Collegia como corporações de oficio, essa instituição não deve ser confundida com as “corporações” medievais. Enquanto a instituição medieval surgiu como agremiações de ajuda mútua e de regulamentação de determinados ofícios artesanais, no Império Romano o estado criou o collegium com outros objetivos. Segundo Alfoldy; “Um rescrito de Septímio Severo sobre uma associação de artífices de Solva, em Nórico, revela claramente quais as intenções do Estado: os pobres deviam exercer uma atividade útil a comunidade, a troco da qual eram dispensados da participação nos encargos dessa comunidade; mas os membros de um collegium que se encontrasse em melhor situação financeira ou que não quisesse exercer um oficio manual eram forçados ao pagamento dos munera públicos, tal como os membros da ordem dos decuriões”. (1989 p.189). Para Finley, os collegia eram mais um órgão-chave vinculado ao sistema das liturgias (os munera) que no Baixo Império Romano tornou-se obrigatório em gerações sucessivas, ou seja, hereditário. Contudo “Esta é uma historia conhecida, mas temos que resistir à idéia de que se tratava apenas de mais uma inovação brutal do militarismo absoluto do Baixo Império. Pelo contrário era a conclusão inevitável de uma longa evolução que pode ser (mas não tem sido) delineada”. (Finley, 1980, p.208). Tentava-se exercer um controle sobre as massas urbanas agrupando-as em associações para melhor controlar e orientar suas atividades.

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A situação política era igualmente confusa e muito diferente do que até

então prevaleceu como marca de governabilidade do império. O poder imperial

era cada vez mais despótico e insaciável. No dominado romano, o Estado

tornou-se uma instituição absoluta que, segundo Alfoldy (1989), exigia de seus

súditos uma submissão total. Tal situação simultaneamente gerava uma

instabilidade no poder central de forma que em alguns momentos a

governabilidade só era possível por meio de uma política de assassinatos e

traição.

A vida econômica do império também entrou em um período de grave

crise. A produção agrícola enfrentava dificuldades por falta de mão-de-obra, os

alimentos se escasseavam, a produção de mercadorias estava em declínio e os

preços subiam vertiginosamente. Sobre o declínio da produção de mercadorias,

Alfoldy (1989) exemplifica com as oficinas de terra sigillata do noroeste do

império que haviam parado de produzir.

Soma-se a esse quadro uma inflação incontrolável que no século III d.C.

atingiu dimensões catastróficas. A prática do comércio que se desenvolvia

principalmente nas regiões fronteiriças das províncias era cada vez mais

impossibilitado pelas guerras intermináveis nos limes3 do império com as tribos

germânicas. A pobreza e miséria agravadas pela crise não só se generalizava

por todo o império como ainda era agravada por catástrofes naturais.

A crise do século III d.C. já se anunciava no século II d.C.; o imperador

Adriano (117-138 d.C.) quando deu início a configuração dos limes romanos

havia percebido que o império não tinha mais bases econômicas e nem militares

para mais expansão. Em fins do século II d.C. a estrutura de produção em que

estava alicerçado o império já tinha poucas condições para mantê-lo.

3 Do latim; limite, fronteira; atalho. Os limes eram um conjunto de muralhas, fortes e limites naturais (montanhas, rios, colinas, etc.) que foram fortificados e no decorrer do tempo tornaram-se fronteiras reconhecidas do Império Romano. Dos limes mais conhecidos cita-se a muralha de Adriano na Grã-Bretanha e a fronteira danubiana na qual o rio Danúbio separava o império dos povos germânicos.

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Podemos falar em uma instabilidade do sistema político-administrativo

que imperava em Roma e nas estruturas subjacentes a ele que passavam por

uma transformação acelerada.

Essas alterações não consistiram apenas numa profunda modificação na estratificação da sociedade mas, igualmente, na constituição de um novo modelo social (ALFOLDY, 1989, p.173).

Tomando como base uma abordagem estritamente econômica, Moses

Finley ao trabalhar a economia antiga tendo por base o aspecto do mundo

antigo ter sido uma unidade política dentro de um quadro cultural-psicológico

comum defende que,

Antes do fim do século II, as pressões externas começaram e não foi possível resistir-lhes eternamente. O exercito não pôde ser alargado para lá dos limites inadequados por que a terra não podia suportar um esvaziamento maior de homens; a situação na terra tinha-se deteriorado porque os impostos e as liturgias eram demasiado elevadas; os encargos eram demasiado grandes, sobretudo porque as exigências militares aumentavam. (...). O mundo antigo corria para o seu fim e a culpa era da sua estrutura social e política, do seu sistema de valores institucionalizado e profundamente incrustado, e, subjacente a tudo, da organização e exploração das suas forças produtivas (1980, p.239).

A crise do século III d.C. deixou espaço para um profundo vácuo

ideológico e moral que favoreceu o surgimento de novas correntes espirituais,

como a filosofia neoplatônica, o cristianismo e o mitraísmo. No entendimento

de Peter Brown (1971) a crise ou revolução social do século III d.C. formou o

espírito e o homem necessário para a revolução espiritual do ultimo período da

Antiguidade.

As metamorfoses que experimentou neste período foram numerosas e complexas. Vão das classes e das modificações claras, bem documentadas, tais como as repercussões da guerra

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e do aumento dos impostos sobre a sociedade dos séculos III e IV, às atividades referentes às relações do homem consigo próprio e com seu próximo (BROWN, 1971, p.08).

Para Brown (1971) a crise ou revolução social do século III d.C. mais do

que uma modificação no plano estrutural da organização social foi uma questão

de transformação dos limites culturais assimilados pelas elites do Império

Romano no decorrer de sua formação.

No século II d.C. o Império Romano era entendido como uma rede de

múltiplas civitas espalhadas pelo território circundante ao Mediterrâneo e

governadas por um escol que mantinha uma impressionante uniformidade

dentro de limites marcada pela cultura clássica adquirida e observada pelos

mesmos. Contudo já no período áureo do Império Romano e do sistema das

civitas o mundo antigo já apresentava as bases de uma futura crise,

O mundo antigo, com seu baixo nível de tecnologia, métodos limitados de distribuição e capacidade restrita de conservar os alimentos, vivia sob a ameaça permanente da fome, especialmente nas cidades (FINLEY, 1980, p.230).

Esses orgulhosos aristocratas romanos, segundo Brown (1971), passavam

de um lugar para outro, administravam a justiça, observavam os mesmos ritos

do paganismo romano, falavam as mesmas línguas, o latim e o grego, e

desempenhavam os modos de vida delimitados por um seleto código somente

ao alcance dos homens educados. É a penosa modificação das antigas fronteiras

culturais do mundo clássico a partir do século III d.C. que vai preocupar o

antigo escol.

Essa revolução social silenciosa vai despertar no decorrer dos séculos III

e IV d.C. uma modificação mais visível a essa aristocracia, o aparecimento de

novas correntes espirituais e filosóficas, como o cristianismo, que pregará um

corpo de idéias em muito contrárias a tudo o que até então serviu como base de

sustentação do poder político romano.

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Portanto, entendemos a revolução espiritual não como um efeito da crise

do século III d.C., mas como mais um fator inserido em seu contexto a

contribuir em sua generalização. Falar da crise do século III d.C. apenas como

uma expressão de fatores de ordem econômica, política, militar e social é

negligenciar um fator igualmente importante para o seu entendimento, o fator

espiritual. O vácuo ideológico moral de que nos fala Alfoldy (1989) foi o

contexto no qual o cristianismo galgou espaço e tornou-se predominante na

sociedade do Império Romano promovendo modificações que em conjunto a

outros fatores formaram o homem que Brown (1991) caracterizou como o bom

cristão membro da Igreja da Antiguidade Tardia e Alta Idade Media.

2. AS PERSEGUIÇÕES, ASCENSÃO DO CRISTIANISMO E A

APOLOGÉTICA DE LACTÂNCIO.

A partir do século III d.C. a idéia de conversão estava presente de forma

profunda entre os pagãos. Enquanto o paganismo tradicional das elites optara

por atitudes impessoais mobilizando os sentimentos para coisas materiais

externas no sentido de coisas sagradas, como templos, oráculos. As novas

correntes, como o cristianismo, valorizavam as atitudes internalizadas. Essas

novas idéias, segundo Brown (1971), pregavam uma relação cada vez mais

intimista com um universo de prodigalidades sobrenaturais.

Em uma época marcada pelas incertezas e pela luta cada vez mais difícil

pela sobrevivência, as novas correntes espirituais levavam os homens a

buscarem em um Deus Uno a direção e o auxilio de que necessitavam.

Os escritos pagãos e cristãos da “nova corrente” mostram grande interesse pela conversão, no seu sentido mais vivo -isto é, consideram-na como possibilidade de a realidade divina emergir repentinamente na própria pessoa, à custa da normal identificação social do individuo. (BROWN, 1971, p.55).

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Lembremos que a maior busca ou opção pelos caminhos ligados a

abordagens religiosas não deve ser encarada como um declínio da ilustração

clássica. Mazzarino, por exemplo, defende que não é incorreto incorrer em uma

crise política e social ou até em uma decadência geral, mas,

A literatura e a arte do baixo império constituem manifestações, como vimos, de uma sensibilidade intuitiva muito elevada, que ainda nos comove ou nos fascina. (...). Os grandes criadores vivem em meio a uma civilização que os deixa solitários, ou que se sente cansada, mesmo nos revelando uma infinidade de recursos espirituais. (1991, p.223).

É em meio a esse contexto caracterizado por Brown (1971) como período

de metamorfoses, que o cristianismo desponta entre as novas religiões. A

pregação dos mestres cristãos, em torno de idéias como uma solidariedade

entre os crentes e um coração simples e inequívoco diante de uma divindade

una e muito próxima da realidade humana em decadência vivenciada naquele

período de grandes contrastes, transformações e incertezas, não demoraram a

surtir efeitos na sociedade romana, principalmente a partir do século III d.C.

O crescimento das comunidades cristãs e a abrangência da pregação

pelos organizadores eclesiásticos logo chamaram atenção das autoridades

romanas, principalmente quando a pregação cristã causava confusões na

população pagã local. Muitos pagãos se mostraram hostis à mensagem cristã

principalmente as populações rurais mais enraizadas nos antigos ritos. A

própria palavra paganus com que os cristãos os caracterizavam vem do latim

pagus que designa aldeão, rústico4.

Segundo W.H.C Frend, o cristianismo se desenvolveu principalmente no

meio urbano, a própria Igreja e seus membros eclesiásticos se organizava como

instituição cuja vida dependia das facilitações proporcionadas pelo meio

urbano. Essa foi sua força e debilidade. Quando o estado romano voltou suas

4 Do latim; Território rural limitado por marcos; distrito; aldeia; povoação. A palavra paganus com que os cristãos romanos chamavam os populares hostis a eles desenvolveu o termo pagão.

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atenções para o que se configurava como o problema cristão o fato destes

estarem presentes principalmente no ambiente urbano facilitou a repressão e as

perseguições.

A primeira perseguição aos cristãos empregada pelo estado romano foi

no governo do imperador Septímio Severo (193-211 d.C.) que promulgou em

202 d.C. um edito proibindo a propaganda e o proselitismo cristão.

Mas as perseguições gerais tiveram inicio no governo de Décio (249-251

d.C.) e tiveram como marca a sistematização nos métodos e na legislação

empregados na perseguição. No ano de 250 d.C., segundo Simon e Benoit, o

imperador Décio promulgou um edito ordenando a todos os cidadãos do

império sacrificarem aos deuses do panteão romano. Em tese se tratava de uma

restauração dos antigos cultos, mas na verdade estava voltado aos cristãos. A

exigência de se fazer sacrifícios os forçava a abjurar de sua fé e com isso

tentava-se eliminar o corpo estranho em que se havia constituído o cristianismo,

segundo Simon e Benoit, que para o estado romano era uma fonte de subversão.

As perseguições de Décio foram as que obtiveram maior sucesso. Muitos

cristãos abjuraram e por temerem a repressão do estado romano sacrificaram

aos deuses do panteão. Como já salientamos a maior debilidade da comunidade

cristã estava no fato desta ambientar em sua maioria nas cidades.

Em um período de meio século os cristãos vivenciaram uma relativa paz

até o governo do imperador Diocleciano (284-305 d.C.). Esse imperador antes de

empreender a ultima grande perseguição à Igreja foi o responsável por medidas

de cunho administrativo de extrema importância para o Império Romano.

No entendimento de Finley, Diocleciano tinha como principal qualidade

um profundo realismo no tocante as questões de estado, implementou a divisão

do império em ocidente e oriente dando origem à Tetrarquia. Com isso o

imperador não só tornou a administração de um imenso território que era o

império, mais fragmentado e melhor administrado, como também fez com que

as sucessões no poder do império fossem menos caóticas e anárquicas.

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Entretanto, inserido em uma política que visava a reafirmação do poder

imperial por meio da reafirmação do antigo corpo de valores moral-religiosos

incorporados no mos maiorum romano, Diocleciano deu inicio a ultima

perseguição contra os cristãos. No ano de 303 d.C. o imperador decretou um

edito de perseguição válido em toda a extensão do império. Nele ficava

proibido o culto e proselitismo cristão sob a pena de morte ou deportação para

as minas.

Contudo nos anos entre a perseguição de Décio em 250 d.C. e de

Diocleciano em 303 d.C. uma modificação no panorama social romano havia

ocorrido. Nesse meio século, na leitura de Frend, o cristianismo havia

penetrado com sua mensagem de salvação e solidariedade intercrentes o meio

rural romano que anteriormente houvera se mostrado hostil. De acordo com

Brown (1991) nesse período muitos membros da aristocracia romana, até

mesmo os que ainda eram pagãos, se relacionavam pacificamente com a

comunidade cristã, pois já não viam o cristianismo como uma fonte de

subversão.

Sem o apoio irrestrito da aristocracia e com o campesinato romano base

produtiva da agricultura permeada pelos cristãos até mesmo para a autocracia

romana de Diocleciano e seus sucessores era extremamente difícil empreender

as perseguições com êxito. Segundo Frend, uma vez que o estado romano cada

vez mais dependia do trabalho dos camponeses para defender e abastecer o

império ao mesmo tempo em que mantinham as comunicações e outros

serviços tornou-se impossível eliminar-se o cristianismo do mundo romano.

A partir de então o cristianismo era uma nova força a ser levada em

conta pelo poder imperial romano. No ano de 313 d.C., Constantino e Licínio,

imperadores do Ocidente e Oriente respectivamente, ratificaram um edito de

tolerância que dava liberdade de culto aos cristãos de todo o império.

Mas nos voltemos melhor para o processo de cristianização da sociedade

romana principalmente para os séculos III e IV d.C., período marcadamente

conturbado, instável e com profundas modificações em andamento.

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A importância do período em questão configura-se principalmente pelo

choque entre o corpo moral ideológico pagão antigo e o cristianismo nascente

visto como inovação e ruptura com os valores romanos antigos. Sabemos que o

cristianismo não rompeu com todos os padrões sócio-morais do período até por

que muitos de seus principais apologistas eram romanos de formação clássico-

pagã. Brown (1991), por exemplo, ressalta que a maior inovação dos mestres

cristãos foi botarem em prática em meio à comunidade dos cristãos um corpo

moral-filosófico a muito pregado na sociedade romana.

Enquanto os filósofos pagãos ficavam apenas na pregação voltada

principalmente para a elite, os mestres cristãos transformaram tal pregação em

conceitos universais ao alcance de todos, aristocrata ou plebeu, que deveriam

ser observados de forma bastante intimista em uma sincera conversão de

espírito.

3. O MARTÍRIO E OS IDEAIS CRISTÃOS NA LITERATURA: “OS

MÁRTIRES DO COLISEU”

Ao tomarmos a literatura como testemunha para auxiliar o trabalho da

historia devemos ter certas precauções e atentar, principalmente, para a estreita

relação que podemos estabelecer entre elas. A análise da história literária pela

historiografia perpassa pela definição do público da obra literária, no estudo

das relações entre a condição social do escritor e a criação literária e as razões de

uma sociedade manifestar o seu interesse por uma forma literária em

preferência a outra.

Augustine J. O’Reilly escreveu seu romance histórico, intitulado “Os

Mártires do Coliseu”, na segunda metade do século XIX. A justificativa pelo

interesse em escrever sobre o assunto, segundo o autor, teria surgido de uma

viagem sua a Roma por volta de 1873/1874 na qual teria visitado o Coliseu.

Mas o que realmente o fez escrever sobre o assunto fora sua surpresa com as

escavações que estavam ocorrendo no anfiteatro romano. O bispo britânico,

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radicado no Canadá, ficou perplexo diante da ação do governo da recém

unificada nação italiana de retirar as insígnias cristãs que foram colocadas no

Coliseu para celebrar a memória dos mártires da Igreja.

Anne-Marie Chartier e Jean Hébrard em seus estudos sobre o discurso da

Igreja do século XIX sobre a leitura e sua relação com o leitor, principalmente o

leitor cristão, observam que a Igreja nesse período toma consciência da

importância que a leitura ganha com a escolarização da população,

Mas os últimos anos do século XIX também constituem, para ela, o inicio de uma longa crise que engendraria simultaneamente a laicização da escola e do Estado, a ruptura dos equilíbrios tradicionais (evolução dos costumes, descristianização, escolarização generalizada, desenvolvimento industrial da produção impressa...), embora entre 1880 e 1980 a Igreja procura resistir à invasão da modernidade e descubra gradualmente que a sua autoridade se torna obsoleta (1995, p.23).

A Igreja não só toma consciência que a escolarização está transformando

o modo de pensar e agir da população como também conclui que a percepção

religiosa do povo estava modificando-se; a tradição cristã perde seu significado

e aos poucos se esvai. Segundo Chartier e Hébrard o discurso eclesiástico

oficial, ou seja, o episcopal, passa a condenar o que caracterizou como má

literatura e incentiva o que chamou de literatura cristã. Augustine J. O’Reilly

vivenciou esse período e esteve conectado a essa forma do discurso eclesiástico.

Seu romance analisado por nós está devidamente ligado a essa literatura cristã

divulgada pela Igreja dos fins do século XIX.

Como observa O’Reilly, as escavações feitas em 1874 no anfiteatro

romano não passavam de uma agressão ao passado cristão e à tradição do

martírio guardado pelas ruínas do Coliseu,

Não obstante o capricho dos godos, que domina no capitólio, a santidade da arena, o sentimento religioso do povo, e os recursos emprestados de um governo falido, devem ser sacrificadas para se procurar novas plantas da fundação do

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Coliseu.(...) Não foi a arqueologia, mas o paganismo e a infidelidade, que instigaram a profanação deste sagrado monumento da Roma antiga (2005, p.13).

Na leitura de O’Reilly, o interesse em se estudar o Coliseu e de resgatar o

seu passado puramente pagão era igualmente um ataque à tradição cristã que

havia transformado as ruínas do anfiteatro romano em uma relíquia digna de

veneração.

Segundo Proust (1967), a análise de uma obra literária pela historiografia

passa pelo crivo de alguns aspectos a serem levantados pelo historiador.

Considera-se, pois, o lugar ocupado pelo escritor na sociedade e qual a

definição de público ideal que o autor tem para si. Junto a esses pontos ressalta-

se a subjetividade do escritor da obra literária, sobretudo no romance, como

testemunhos da vida de uma sociedade.

Augustine J. O’Reilly não dependia para viver de sua literatura, ou seja,

escrever não era um trabalho para o autor. O’Reilly foi um bispo da Igreja

Católica e escreveu “Os Mártires do Coliseu” na segunda metade do século XIX.

Período, como observado, conturbado e marcado por um incipiente processo de

laicização da sociedade não só na política, com a separação já anterior entre

Estado e Igreja, mas também em vários aspectos culturais da vida social.

O autor ressalta a subjetividade do discurso em seu romance como

necessária para tornar a leitura do mesmo mais agradável a seus leitores. Em

seu romance o conteúdo estritamente histórico fora sacrificado em favor de uma

leitura mais aprazível,

Nas traduções a seguir, nem sempre me confinei à versão literal do original. Ao contrário, diligenciei por evitar a monotonia e a aridez das traduções textuais. Tomei as idéias apresentadas nos Atos, e moldei-as na fôrma inglesa, muitas vezes lançando flores à sua volta, quando nenhuma era vista no original (O’REILLY, 2005, p.10).

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Para O’Reilly, o público ideal a ser alcançado era os cristãos da segunda

metade do século XIX. Nas palavras do autor, “A virtude, o poder, e a vida

extraordinária dos primeiros cristãos contrastam com os dos cristãos atuais. Contudo, o

cristianismo é agora tão brilhante e poderoso quanto era triunfante no Coliseu”(2005,

p.10). Para o bispo, cabia aos cristãos, contemporâneos seu, buscarem no

exemplo dos primeiros mártires o modelo de vida e a firmeza de fé, necessárias

para resistir às vicissitudes da modernidade contrárias ao cristianismo.

Segundo O’Reilly, as vicissitudes da modernidade e o processo de

laicização da sociedade levaram com que o passado cristão das ruínas do

Coliseu fosse esquecido e ignorado.

Percebe-se que para O’Reilly o Anfiteatro romano mais do que um

monumento pagão que no passado fora construído para o divertimento e a

satisfação pela violência da população romana, era também o local, ou melhor,

a arena onde os primeiros cristãos travaram o combate pela conversão do

mundo pagão.

A história do Coliseu e sua própria construção passam pela ambição

romana de proporcionar um espetáculo de sangue e crueldade cuja visão

despertaria na platéia uma inesquecível excitação com a violência retratada nos

espetáculos dos gladiadores ou nas lutas com as feras. Segundo Peter Browm

(1991), os espetáculos de gladiadores apresentados em todo o Império Romano

saciavam a histórica crueldade do povo romano, mas também celebrava o

próprio império. Na leitura de Browm, Roma era um império fundado na

violência e protegido por ela.

Para O’Reilly, apesar do Coliseu ser a representação material e

monumental do paganismo e celebrar a crueldade romana,

O povo que se deleitava com aquelas cenas de carnificina eram homens como nós; naquele tempo, como agora, o coração era capaz de sentimentos nobres. Havia no Coliseu, testemunhando os jogos cruéis, senadores que podiam sentar-se com honra no parlamento britânico; (...). Havia pais de família, que bradavam clamorosamente para que o gladiador ferido fosse acometido

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novamente, e o seu corpo moribundo, cortado em pedaços pelo oponente triunfante, e que à tarde, ninavam os filhos com toda a ternura do amor paternal (2005, p.33-34).

Essa forma paradoxal de se viver estava ligada diretamente, segundo

O’Reilly, ao paganismo,

Vemos nisto a natureza humana sem o cristianismo. Elas eram as vítimas do paganismo, essa terrível escravidão, que manteve cativa as nações, (...). Podemos facilmente traçar um elo de união entre a impiedade e a crueldade do passado pagão, com suas cenas desumanas, capazes de partir o coração, e as nações infiéis que ainda se acham sepultadas na escuridão da sombra da morte (2005, p.34).

Sabemos o quanto seria difícil quantificarmos o quanto violenta era a

sociedade romana, afinal mesmo hoje as sociedades humanas ainda são

marcadas pela violência. Percebe-se na visão demonstrada pelo autor o

desconhecimento por parte deste que para a sociedade romana, segundo Paul

Veyne (1991), determinadas práticas que foram condenadas pelo cristianismo

eram perfeitamente normais para os romanos.

Na leitura do bispo do século XIX, seria acrescentada ao longo dos três

primeiros séculos da era cristã, aos espetáculos de crueldade e violência

apresentados no Coliseu, a figura de homens que não procuravam armas para

lutar, nem demonstravam medo de morrer,

Depois de testemunhar os corajosos combates dos gladiadores armados, lutando loucamente por suas vidas, admirar a força e agilidade dos caçadores, ridicularizar o aspecto deplorável e trêmulo dos miseráveis indefesos, expostos à morte sem ao menos uma chance de se defender, era estranha e inusual a visão daqueles homens entrando na arena com passo destemido e semblante jovial, (...). Eram homens que pertenciam à detestável seita que viera da Judéia. Eram os cristãos (O’REILLY, 2005, p.35).

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Ao analisarmos as descrições dos martírios selecionadas por O’Reilly

para compor seu romance tivemos o cuidado de não exauri-las. No romance de

cunho histórico, percebemos características comuns a todos esses relatos. Essas

características que são definidas, no decorrer dos relatos, por um profundo

sentimento moral, fazem parte da construção que a tradição cristã guardou

sobre a emblemática figura do mártir.

Entre os casos de martírio, descrito pelo bispo escritor, nenhum

apresenta mais integralmente as características de inocência, perseverança e

desejo pelo martírio do que o de Inácio, bispo de Antioquia, que segundo a

tradição cristã sofreu o martírio no ano de 107 d.C. sob o reinado de Trajano

(98-117 d.C.).

Segundo a tradição, aquele menino era Inácio! O garotinho abraçado por Cristo, e posto em sua inocência como modelo de tudo o que é verdadeiramente grande, seria, nos anos vindouros, o bispo de Antioquia, que foi devorado por bestas feras no Coliseu (O’REILLY, 2005, p.44).

Segundo O’Reilly, o martírio é um presente onde se manifesta a

Providência que chama o cristão a sofrê-lo como modelo a ser seguido pelos

demais cristãos,

Após uma vida de mais de cinqüenta anos no episcopado de Antioquia, aprouve ao Todo-Poderoso chamá-lo a receber sua coroa, por uma morte que deveria ser uma glória e um modelo para a Igreja (2005, p.44).

O martírio de Inácio não só é um exemplo a ser imitado pelos demais

cristãos como também é uma obra da Providência para inspirar aos demais

cristãos a perseverarem em sua crença; segundo O’Reilly,

A constância, a piedade, e a eloquência do mártir em seu caminho para a morte espalharam amplamente a sublime verdade da lei divina; ele despejou de seu coração o fogo do amor que queimava dentro de si. Por onde ele passava, os

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cristãos eram animados a um novo fervor, e muitos fiéis reconheceram no respeitável prelado um reflexo da divindade do evangelho que ele pregava; abjurando os falsos deuses do paganismo, tornaram-se filhos de Deus (2005, p.46).

A morte do mártir era um exemplo a ser seguido e um mecanismo de

conversão. O cristão martirizado apresenta todas as características do “coração

simples” e da “solidariedade” entre cristãos, discutido por Peter Browm (1991).

O mártir encontra-se em uma estreita ligação com a Providência e sua santidade

pode ser testemunhada ainda em vida momentos antes de sua morte. É devido

a uma vida em santidade que a Providência concede a coroa do martírio.

Outra característica marcante nos relatos de martírio descritos por

O’Reilly, respaldado na tradição cristã, é os milagres sobrenaturais como marca

da ação da Providência na vida desses cristãos.

Segundo O’Reilly, no reinado de Adriano (117-138 d.C.) pregava na

cidade de Aquiléia um jovem bispo de apenas vinte anos chamado Eleutério. As

pregações do jovem bispo marcadas pela particular piedade e pureza presentes

no prelado teriam resultado em um aumento da comunidade cristã na cidade.

Essa presença cristã em Aquiléia teria chegado aos ouvidos do imperador

Adriano que ordenou, imediatamente, a prisão do bispo e sua condenação que

deveria ocorrer em Roma.

Trazido a Roma fora ordenado que Eleutério fosse condenado à morte

pela “cama de cobre” que segundo O’Reilly, “Tratava-se de um instrumento de

tortura largamente usado nessa época de perseguição. (...) Consistia de diversas barras

de cobre ou latão cruzadas, (...) sob a grelha ateava-se fogo para consumir os mártires”.

(2005, p.87).

Entretanto, em pleno Coliseu, continua O’Reilly,

Quando o fogo foi ateado, e as chamas lambiam a grade de cobre, o mártir foi despido, levantado pelas mãos rudes dos soldados para a cama de tortura. Nenhum peregrino de pés feridos estendeu seus membros cansados num leito de musgo com tanto alivio e refrigério como fez o bispo Eleutério em sua

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cama de fogo. (...) Depois de uma hora, durante a qual permaneceu acorrentado à grade, sem se queimar, e sem que um único fio de seu cabelo fosse chamuscado, o jovem foi solto (2005, p.87).

Obviamente que Eleutério recebeu posteriormente a sua coroa de mártir.

Mas, nos atos de Priscila, uma jovem nobre, filha de um senador romano, algo

de milagroso também ocorreu em seu martírio. Prossegue O’Reilly, que a

menina fora condenada a morrer pela boca de um leão que fazia dias não era

tratado,

O imperador mandou, então, que soltassem o leão feroz. O leão estava rugindo na cova, de modo a aterrorizar as pessoas. O guardador soltou-o, e ele entrou na arena saltando e bramindo. Depois se encaminhou à menina, não demonstrando ferocidade, mas amor, e abaixou-se diante dela, como se lhe beijasse os pés (2005, p.188).

Nota-se que tanto no caso de Eleutério como no de Priscila o autor

ressalta a jovialidade de ambos, a piedade, a docilidade de caráter, mas

principalmente os milagres em seus martírios que os colocava devidamente

ligados à Providência; e esta manifesta seu poder em ambos os casos. O’Reilly

toma esses milagres como sinal da santidade desses mártires.

Conforme observado, esses relatos sobre a vida e a morte dos mártires

adquiriram a importância de uma verdadeira pedagogia cristã. Para os mestres

cristãos que guardaram em sua tradição as histórias de seus mártires, e para

O’Reilly que as resgata em seu romance “Os Mártires do Coliseu”, a figura do

mártir torna-se modelo de vida e de conduta moral cristãs a serem observados

pela comunidade. A morte pelo martírio ganha status de sacrifício pela

comunidade cristã. O exemplo dado pelo mártir não só educa o cristão na

perseverança como também se configura em prova a favor do cristianismo em

sua missão de converter o mundo pagão romano.

Assim como Jesus, tido pela comunidade cristã como o primeiro mártir,

o cristão ao abraçar a morte pelo martírio, como um sacrifício pela comunidade,

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expressava sua sincera conversão. Na leitura de W.H.C Frend, no período do

Dominado romano nos séculos III e IV d.C. em que houve as Grandes

Perseguições, para os dirigentes cristãos, o cristianismo era a religião do

martírio e isto a tornava única entre as demais religiões conhecidas no Império

Romano. Observa-se que nesse período o martírio tornou-se uma forma de

resistência às injustiças do mundo.

Segundo O’Reilly, o Coliseu foi o campo de batalha onde se escreveu

com o sangue dos mártires a história da luta que a Igreja travou pela conversão

do mundo pagão,

Romano em sua origem, oriental em sua dimensão, grego em sua arquitetura, judaico nos operários que o construíram, cosmopolita em seus espetáculos de homens e feras de todas as regiões, e cristão no sangue que o santificou durante três séculos, ele é o teatro dos mais sangrentos e cruéis prazeres, e o templo da mais heróica virtude (2005, p.264).

Conforme observado em O’Reilly, o sangue cristão vertido na arena do

grande anfiteatro romano o tornou símbolo concreto do triunfo do cristianismo

sobre o mundo romano pagão, e como vencedor, o cristianismo, defendido por

O’Reilly, toma para si o direito de reclamar o Coliseu como monumento em

honra à tradição e ao passado de seus mártires. Na visão unilateral do autor

cristão o passado guardado pelo cristianismo prevalece sobre a história pagã do

Coliseu.

Para uma melhor compreeção do posicionamento de O’Reilly, como

qualquer outro escritor cuja atenção está mais voltada para a literatura do que

para a história, deve-se estudar o lugar ocupado pelo autor na sociedade no seu

sentido restrito, e também a notabilidade alcançada pelo mesmo no seu meio

social. “Interessa, portanto ao historiador da sociedade, quer essa criação seja, para o

autor considerado, o seu principal meio de existência, ou pelo contrario, uma atividade

supérflua, gratuita, supondo outros meios de existência”. (Proust, 1967, p.306).

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Quando se trata da evolução das idéias e das fórmulas Proust enfatiza a

importância de não confundirmos as condições e as causas. É neste ponto em

que outras disciplinas intervêm na ligação entre as sociedades e as criações

literárias. Dessa ligação é que resulta o que Proust chamou de distorção.

Esta distorção faz com que, por exemplo, tal forma que corresponde no tempo a um fato social determinado, não esteja em relação direta de causa e efeito com este estado social. Mas esta forma pode ser a filha de outra forma anterior que corresponde ela própria a um fato social anterior (1967, p.307).

Ressalte-se a subjetividade do escritor da obra literária, sobretudo no

romance, como testemunhos da vida de uma sociedade. O discurso é a forma

com que o conhecimento expressa-se e isso implicou, necessariamente no

reconhecimento da importância de sua autoria, de seu público, de sua forma e

de seu conteúdo. A narrativa como construção discursiva, tornou-se o centro

das reflexões. Assim como na literatura, também a narrativa histórica é um

discurso em que se fazem necessárias habilidades de exposição, explicação e

persuasão por meio do uso dos signos, ou seja, as palavras.

CONCLUSÕES

Como vimos, perceber a crise do século III d.C. apenas como uma

transformação estrutural da estratificação social das ordens na qual embasava-

se o Império Romano, devido uma grave e generalizada crise político-

econômica (Alfoldy,1989), sem o entendimento da dinâmica que marcou uma

profunda transformação ou metamorfose no espírito romano tardio

(Brown,1971), é simplesmente negligenciar variantes que se somaram no

processo histórico no qual se configura a própria crise.

Esse mesmo processo histórico da crise do século III d.C. contribuiu em

muito para a ascensão do cristianismo como uma força religiosa na sociedade

romana tardia. Entretanto, essa ascensão não teria ocorrido sem a revolução

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social do século III d.C. (Brown, 1971) que modificou o espírito do homem

romano o tornando suscetível à penetração da mensagem cristã.

Como reação a essas transformações moral-religiosas que passava o

império, o poder central em uma tentativa de reviver a moral religiosa pagã na

qual alicerçava seu poder empreendeu uma política de valorização do antigo

mos maiorum. Todavia o cristianismo foi visto pelo estado romano como uma

fonte de subversão da ordem pré-estabelecida. A reação adotada foi a de

perseguição e tentativa de eliminação do fator cristão na sociedade romana.

Nesse ínterim despontou a figura do mártir cristão como símbolo de conversão.

Para um melhor estudo desse processo de construção histórica do

martírio na consolidação dos ideais cristãos no Dominado romano, analisamos

o romance histórico de Augustine J. O’Reilly, intitulado, Os Mártires do Coliseu.

O’Reilly era bispo da Igreja no século XIX quando escreveu o History of the

Coliseum and its Martyrs em 1874. A importância dessa informação dá-se pelo

fato de que a formação religiosa do autor compromete o seu discurso e sua

precisão histórica.

Conforme observado, O’Relly com base no que a tradição cristã guardou

sobre os mártires faz um resgate literário e romanceado sobre os martírios

ocorridos no Coliseu. Seu compromisso não é com a verdade histórica, mas com

a tradição cristã que por vezes apresenta falha.

Em O’Reilly, a caracterização do mártir como exemplo máximo de

indivíduo cuja conduta e moralidade devem servir de inspiração aos cristãos do

século XIX, contemporâneos ao autor, são testemunhos da verdade cristã e de

seu triunfo sobre o antigo paganismo romano.

Tendo todas as transformações político-econômicas e sociais do século III

d.C. como pano de fundo, alem das perseguições gerais, configurou-se o embate

entre autores cristãos e pagãos. Na leitura de Arnaldo Momigliano (1979) esse

embate ideológico religioso desenvolveu uma historiografia cristã de fundo

apologético que teve como precursor, Lactâncio, um cristão professor de

retórica na corte de Diocleciano por volta da primeira década do século IV d.C.

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Em resposta a essa hostilidade por parte da sociedade romana e de seu

estado os autores cristãos dos séculos III e IV d.C. desenvolveram uma

literatura apologética como forma de reação racional e não violenta aos ataques

de todo tipo que a nova religião sofria. A tese central defendida por essa

literatura apologética era a ação da Providência no mundo provada por meio

dos acontecimentos vivenciados pela história humana.

REFERÊNCIAS

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SIMON, Marcel e BENOIT, André. El Judaísmo y el Cristianismo Antiguo: de Antíoco Epífanes a Costantino. Trad. I Castells. Barcelona: Labor, 1972.