o manto diáfano nº 4 - 10 de junho de 2016

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Revista eletrônica ∙ nº 4 ∙ Brasília/DF ∙ 10 jul 2016 ESCOLA LIVRE? ESTADO LAICO? ESCOLA LIVRE? ESTADO LAICO? Ensino de música e política Estado laico, questões iniciais A honra, a glória e a morte Encaixotando Brasília Assistindo De Gaulle falar

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política e literatura

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Page 1: O Manto Diáfano nº 4 - 10 de junho de 2016

Revista eletrônica ∙ nº 4 ∙ Brasília/DF ∙ 10 jul 2016

ESCOLA LIVRE? ESTADO LAICO?ESCOLA LIVRE? ESTADO LAICO?

Ensino de música e política

Estado laico, questões iniciais

A honra, a glória e a morte

Encaixotando Brasília

Assistindo De Gaulle falar

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Revista eletrônica Nº 4 ∙ 10 jul 2016 ∙ Brasília/DF

VERBENA EDITORA

CONSELHO EDITORIAL:Ronaldo Conde AguiarHenrique Carlos de Oliveira de CastroArnaldo Barbosa Brandão

COLABORADORESRenan Springer de FreitasWalter Sotomayor Joana ZylbersztajnCarlos MullerAlexandre InneccoEloisa RosaMurilo de AragãoArnaldo Barbosa Brandão (romancista)

EDITORESBenício SchmidtFabiano CardosoArno VogelWalter Mota

DIRETOR EXECUTIVOCassio Loretti Werneck PROJETO GRÁFICOSimone Silva (Figuramundo Design Gráfico)

VERBENA EDITORA LTDAwww.verbenaeditora.com.br

4A glorificação da morte como modo de vida

6A leitura multimídia

10Questões sobre ensino religioso e Estado laico

12Tabus e mitos sob o assédio da ficção

16Música sem Política

17Por Bernardo, desassossegos

19Elvis Morreu

21Encaixotando Brasília

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nº 4 ∙ Brasília/DF ∙ 10 jul 2016o manto diáfano

EDITORIAL

Neste número do Manto Diáfano, tentamos iniciar mais uma discussão referente ao tema da “Escola Livre”, ou “Escola sem Partido”. Tema este que vem ganhando força e terreno

(já são muitas as câmaras legislativas a incluir a proposta em seus estados da federação), porém sem nenhuma discussão mais aprofundada que não beire o ódio e bordões políticos acéfalos. Tentar, a partir de crenças religiosas e ou estapafúrdias, doutrinar as escolas públicas a serem apolíticas não resolverá questões primordiais na sociedade brasileira, mas com certeza, essas questões serão agravadas pelo simples fato de que estaremos a criar, não cidadãos e cidadãs, mas rebanhos facilmente manipulados e sem qualquer tipo de consciência crítica.

Sabemos ser o Estado laico, mas precisamos entender as nuanças desta laicidade e a discus-são começa, aqui neste Manto, com a contribuição de Joana Zylbersztajn em trecho de seu recente livro, fruto de seu doutorado na Universidade de São Paulo sobre a Laicidade do Estado Brasileiro.

O maestro e produtor cultural Alexandre Innecco, nos brinda com texto ácido e bem-humo-rado acerca do problema em se falar de política e ensino de música. É praticamente impos-sível saber os pormenores das criações dos Grandes sem sabermos o mínimo da política por trás de suas biografias.

Eloisa Rosa, novamente em texto delicado, nos mostra as dificuldades do ensino da dança ser desvinculado das preocupações morais, políticas, pessoais da professora que se sente e se vê nos alunos e alunas, moscas que somos e são.

Porém, iniciamos este volume com texto imperdível do cientista político Renan Springer de Freitas sobre como surgiram e o que representam os atos terroristas e os suicídios dos solda-dos, sejam eles cristãos ou muçulmanos.

O jornalista Walter Sotomayor traz texto sobre a importância da multimídia ao se procurar saber sobre o estadista, militar e humanista que foi o ex-presidente francês Charles de Gaulle.

O também jornalista Carlos Muller finaliza o artigo do número anterior e analisa o mito lite-rário de Frankestein sob a perspectiva da mudança de paradigma e o que eles representaram para as sociedades ocidentais. Além disso, nos felicita com texto escrito por Percy Shelley sobre a Necessidade do Ateísmo.

O também cientista político, Murilo de Aragão, escreve conto sobre a morte, ou não, de Elvis, o rei do rock, e saberemos se há ou não uma conspiração por trás de sua morte.

Finalizamos este número com o Capítulo 4 de nossa novela cerradiana, Encaixotando Brasí-lia, de Arnaldo Barbosa Brandão.

Boa leitura.

Os Editores

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Foto: Polidelli via Visualhunt.com CC BY-NC-SA

Em 13 de setembro de 1997 um jovem de 18 anos foi abatido ao invadir, portando um

rifle, uma área militar de acesso restrito na fronteira entre Israel e o Líbano, sob controle de Israel. Não era um jovem qualquer, é bom que se diga: tratava-se do filho de Hassan Nasrallah, o líder do grupo xiita Hezbollah. Nessa mesma data Nasrallah se dirigiu a uma plateia de milhares de pessoas para dizer, sem verter uma única lágrima, que se sentia “orgulhoso” por Alá tê-lo finalmente incluído entre aqueles que têm um mártir na família. Antes ele se sentia envergonhado perante os pais de outros mártires, mas, agora, graças à “generosidade de Alá”, ele era também o pai de um mártir. Disse ainda que seu filho adentrou a área militar “voluntariamente e sabendo bem o que estava fazendo”. Ele agiu como um “verdadeiro mujahideen” (combatente islâmico). Sua morte não significava, por isso, uma vitória do inimigo, mas “uma vitória e uma honra” para o Hezbollah. O exemplo de seu filho, ele conclui, deverá ser ensinado às gerações futuras.1

A bem da verdade, nosso destemido mujahideen não primava pela originalidade. No ano anterior ao de sua morte teve fim a guerra da Bósnia e, na ocasião, todos os combatentes estrangeiros tiveram

que deixar o país. Isso incluía, evidentemente, os mujahideen. Pois em vez de celebrarem o fim da guerra e a oportunidade de voltarem em segurança para casa, como o faz qualquer combatente, de qualquer época, eles lamentaram e choraram. Eles esperavam morrer como mártires e, com o fim da guerra, essa chance lhes foi tirada.2

A ideia de que um “verdadeiro” combatente é aquele que não sobrevive ao combate é uma novida-de do séc. XX e não se restringe aos “mujahideen”. Em favor dessa tese é suficiente mencionar que 41 atentados suicidas foram cometidos no Líbano entre 1981 e 1986 e, desse total, apenas 8 foram da autoria de grupos islâmicos. 27 foram cometidos por grupos ligados ao Partido Comunista Libanês e à União So-cialista Árabe.3 John Gray, a quem devo essa infor-mação, atribui a origem intelectual dos atentados suicidas ao pensamento de Lenin, mais exatamente, à ideia, inexistente no Islã tradicional e no cristianis-mo, de que “mediante o uso sistemático da violência um novo mundo, uma nova humanidade até, pode ser criado.”4 Gray fundamenta essa tese na informa-ção de que os atentados suicidas com cintos exclusi-vos tão amplamente utilizados por grupos islâmicos na década de 1980 não foram idealizados por algum grupo islâmico, mas pelo grupo de inspiração leninis-ta Tigres do Tamil, cujos integrantes eram recrutados principalmente na população hindu do Sri Lanka.5 Entretanto, a própria ideia de que um “novo mundo” e uma “nova humanidade” precisam ser “criados” pres-supõe a existência de um “mundo” e de uma forma de “humanidade” que precisam ser destruídos. Ora, um pressuposto dessa natureza tem claramente um caráter niilista. Por outro lado, se a “nova humanida-de” a ser criada é a que eleva ao máximo a dignidade de um combatente suicida, é a “humanidade” que faz desse combatente o melhor “exemplo” a ser seguido, então, não estamos mais nos marcos do pensamento leninista, mas de uma forma peculiar de niilismo. ▶

A Glorificação da morte como modo de vidaRenan Springer de Freitas – Cientista Político, UFMG

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A PEQUI e uma associação civil, sem fins lucrativos, criada em 2000, por profissionais da área ambiental com o objetivo de incentivar e divulgar pesquisas e ações políticas para a conservação do Cerrado e uso sustentável da sua biodiversidade. Para isso a PEQUI tem desenvolvido projetos próprios e em parceria com outras instituições não-governamentais e governamentais.

A Pequi e membro da Rede Cerrado e faz parte do conselho deliberativo desta Rede desde 2002. Dentre os projetos desenvolvidos destacam-se os estudos que levaram a criação da maior unidade de conservação do Cerrado: Estação Ecológica Serra Geral do Tocantins, localizada na região do Jalapão (TO); os planos de manejo do Parque Estadual do Jalapão (TO) e da RPPN Minnehaha (TO); os estudos que levaram a normatização do extrativismo sustentável do capim dourado; e estudos pioneiros para o desenvolvimento de tecnicas para a restauração de ecossistemas típicos do Cerrado.

www.pequi.org.br

Sugiro que esta forma é uma versão radicaliza-da de uma variante já radicalizada do niilismo cuja origem remonta a uma tradição peculiarmente alemã de desdém pelo senso comum e pelos obje-tivos da vida humana tais como vistos pelo senso comum. Conforme ensinou Leo Strauss, em uma esplêndida Conferência proferida em 1942 sob o título "German Nihilism”, essa tradição, sedimenta-da ao longo do séc. XIX, elevava as virtudes mili-tares a um patamar celestial de dignidade. Homem que é homem, de acordo com essa tradição, não busca a felicidade nem pauta seu comportamento pelo autointeresse. Ele se pauta pelo senso do de-ver e busca realizações grandiosas, feitos heroicos! No período entre-guerras essa visão ganhou mui-tos porta-vozes, dentre os quais se destaca Ernst Jünger, um combatente alemão na I Guerra que so-breviveu a nada menos que catorze ferimentos, cin-co dos quais resultantes de tiros de fuzil. Para ele, um homem que jamais enfrentou o perigo da morte em um combate está em falta com sua própria con-dição de homem. Entretanto, é lhe permitido sobre-viver. Jünger, ele próprio, se gabava de ter sobrevi-vido aos referidos ferimentos, os quais lhe valeram, aliás, a tão almejada “Insígnia Dourada do Feri-dos”. A exaltação da morte tal como se dá entre os mujahideen me parece, sobretudo, uma radicali-zação dessa concepção desenvolvida na Alemanha entre-guerras. Esta exaltava o ato de colocar a vida em risco em combate. Na versão radicalizada, so-breviver não vale, nem mesmo a catorze ferimentos. É a morte ou nada. ■

1 Vídeo disponível no YouTube: “[ENG/ARB] Sayyed Nasrallah Martyrdom of his Son Hadi”, pelo usuário “wa3ad7”, publicado em 27 de maio de 2007.

2 Artigo disponível no site da BBC Brasil sob o título de “O país europeu onde nasceu o Jihadismo moderno”, por Mark Urban, publicado em 4 de julho de 2015.

3 Artigo disponível no site do jornal O Estado de S.Paulo sob o título de “O islamismo não inventou o que hoje nos apavora”, por John Gray, publica-do em 17 de julho de 2007.

4 John Gray, citado, conforme nota anterior.

5 John Gray, citado, conforme nota anterior.

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Foto: Public domain, via Wikimedia Commons

John F. Kennedy e Charles De Gaulle saindo do Palácio do Eliseu, em 02 de junho de 1961, Paris, França.

Sempre fui um entusiasta da extraordinária aventura

da leitura. Desde cedo as minhas leituras tiveram o auxílio dos ma-pas e às vezes das enciclopédias. As leituras cruzadas hoje fazem parte da cultura interdisciplinar. Interessado em buscar explica-ções para guerras, revoluções ou grandes negociações diplomáti-cas, aos poucos fui incorporando aos hábitos de leitura, além dos mapas e as enciclopédias, outros elementos que ajudavam a enten-der o curso dos acontecimentos.

A leitura cruzada hoje pode ser uma aventura bem mais agra-dável. A primeira experiência de leitura multimídia de eventos his-tóricos pode ter sido propiciada graças à popularização dos com-putadores e à possibilidade de di-vulgação de todo tipo de conteú-dos. A enciclopédia Encarta, com vídeos e fotografias de aconteci-mentos históricos recentes, é um bom exemplo disso: o dramático relato ao vivo do incêndio do di-rigível Hindemburg narrado até às lágrimas pelo locutor da BBC é um registro impressionante. Há duas décadas, na primeira Encar-ta em CD Rom (hoje uma mídia já antiquada) estavam também as imagens da assinatura dos acor-dos de paz de Camp David, de 1993, com Clinton, Rabin e Ara-fat. O vídeo e o seu grande reposi-tório público – o YouTube – virou também uma ferramenta para a preservação da memória.

As leituras cruzadas exclusiva-mente no papel também passaram

por transformações destinadas a fa-cilitar a pesquisa. Os livros trazem hoje o índice onomástico que facili-ta muito a vida do leitor: permitem localizar assuntos ou personagens com rapidez. Certamente a internet também se tornou, além de um re-positório de grande dimensões de informações sobre quase qualquer assunto, um meio para comparti-lhar todo tipo de arquivos.

Há hoje inúmeros canais onde seguir pistas, pesquisar, estudar ou tentar entender o passado. Como entender a história da França, por exemplo, sem o general Charles De Gaulle? O general que gover-nou seu país entre 1959 e 1969 foi o responsável pela organização da resistência durante a ocupação nazista e, de alguma forma, um

A leitura multimídia Walter Sotomayor – Jornalista

indisciplinado que não seguiu as orientações dos seus chefes ime-diatos, partidários da colaboração com Adolf Hitler. No caso de De Gaulle, a sua liderança parece que acabou se sobrepondo às enormes dificuldades que enfrentou, junto com os que o seguiram. Seu ca-risma pode ter sido determinante para enfrentar o impossível. Por isso, a história de um general car-rancudo como Charles De Gaulle é motivo de interesse de qualquer pessoa interessada em história.

A leitura cruzada hoje a respei-to de um personagem como De Gaulle tem inúmeras referências, inclusive imagens do personagem em ação que nos permitem uma aproximação maior e, quem sabe, a compreendê-lo melhor. Meu in-

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O documentário abriu novamente meu interesse por conhecer a trajetória desse general cuja

figura me parecia meio desajeitada: fotografias e filmes exibem um homem muito alto e com

tremenda barriga, algo típico dos aposentados.

teresse pela trajetória do general foi estimulado recentemente de-pois de assistir a um seriado da TV francesa sobre um período muito específico da história, marcado pela reação de um grupo de mili-tares franceses que se opunham à independência da Argélia.

Assisti ao documentário “J’ai vou ai compris” (Eu os compre-endo), frase do general pouco depois de assumir o governo da França, em janeiro de 1959. Em meio à crise agravada pelo iní-cio da guerra de independência da Argélia, surge a figura do ge-neral, seja em filmes da época ou em cenas com atores. Para quem tem boa memória, no dis-tante 1964 De Gaulle esteve em visita a América Latina e fora recebido e aclamado por gran-des multidões em uma época em que não eram frequentes as visitas de chefes de estado.

Voltando ao documentário so-bre a crise da Argélia, há nele o fio condutor que, com sutileza, mos-tra a mudança de opinião a res-peito do assunto. Logo depois de assumir o governo em janeiro de 1958, De Gaulle enfrentou a cri-se deflagrada com o surgimento da luta armada na Argélia, como parte do movimento que levaria o país à independência. De Gaul-le mudou de posição depois de se

convencer de que a França devia sair da Argélia. Toda a evolução da política em relação à então colônia pode ser encontrada nos pronunciamentos do general na página da internet “Charles de Gaulle Paroles Publiques”.

A decisão de apoiar a inde-pendência da Argélia acabou ge-rando uma onda de terrorismo como reação de grupos de inte-resse que atribuíam a grandeza da França à posse de territórios coloniais, quando também se de-senhava a “perda” da Indochina. No período foram cometidos vá-rios atentados contra a vida do velho general. Os atos terroristas e atentados foram sinais de insa-tisfação dos militares franceses da OAS (Organisation armée se-crete) que não admitiam deixar a colônia e rejeitavam a autodeter-minação dos argelinos. A França deixou a Argélia em 1962 encer-

rando um período colonial que se estendeu por 132 anos. O grito “Argelie, Française”, era a expres-são do mais forte conservadoris-mo, um grito de guerra dos que estavam dispostos a lutar contra a independência da Argélia.

Jean-Paul Sartre à frente da revista Temps Modernes apoiou o processo de independência da Argélia junto com outros inte-lectuais como Raymond Aron,

Maurice Merleau-Ponty e Simo-ne de Beauvoir, e foram alvo da violência da OAS que atacou cin-co vezes a sede da revista.

O documentário mostra a evo-lução da política, desde uma afir-mação feita pelo general de man-ter o status quo da colônia, até a progressiva mudança. Em dado momento ele chega a conclusão de que não havia mais sentido, nem econômica e nem politicamente, manter a Argélia como uma colô-nia da França. Sua decisão de aca-bar com isso implicava iniciar uma guerra contra praticamente todos os generais franceses da época. E ele acaba ganhando a parada, ape-sar dos atentados contra sua vida.

O documentário abriu no-vamente meu interesse por co-nhecer a trajetória desse gene-ral cuja figura me parecia meio desajeitada: fotografias e filmes exibem um homem muito alto e com tremenda barriga, algo típi-co dos aposentados.

Achei uma biografia1 de De Gaulle escrita pelo jornalista norte-americano Don Cook que conta a trajetória militar, a par-ticipação na Primeira Guerra, a prisão na Alemanha e as difi-culdades para fazer uma carreira normal sendo ele, principalmen-te, um intelectual e um homem muito sensível às coisas do poder. O curioso da obra de Don Cook é que foi publicada em 1983 e apenas foi traduzida para o por-tuguês em 2008, 25 anos depois.

O perfil traçado pelo jornalista é o de um homem que quase sem-pre está na contramão dos seus pa-res por ser considerado um intelec-tual, uma vocação aparentemente incompatível com a do profissional da guerra. No início da sua carreira teve que lutar na Primeira Guerra e foi feito prisioneiro na Alemanha,

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onde passou um período determi-nante para suas ideias a respeito da guerra. De volta à França compre-endeu que a invenção dos tanques, muito utilizados na Alemanha, indicaria uma reformulação da estratégia militar. O Alto Coman-do francês insistia na estratégia de utilizar barreiras fixas de artilharia, como na Primeira Guerra Mun-dial, para barrar o avanço de tropas de infantaria, quando os alemães já estavam conquistando grande parte da Europa com um avanço fulminante em carros de combate e tanques. De Gaulle havia compre-endido a importância da mobilida-de do poder da artilharia, mas seus chefes preferiam insistir nas velhas concepções que levaram a França ao desastre em 1940.

O relato de Don Cook tem o ritmo de um romance policial quando De Gaulle, como mem-bro do governo que está prestes a cair, faz todos os esforços para evitar o armistício. Um dia ele deixa a França e no dia seguin-te, já do outro lado do Canal da Mancha, está conclamando os franceses a se unirem a ele para resistir, tornando-se inimigo do governo colaboracionista que sob o comando do seu ex-chefe, o general Petain, havia decidido acatar as ordens de Adolf Hitler.

O primeiro pronunciamento, de 18 de junho, não se conser-vou, mas o de quatro dias depois, pode ser ouvido no YouTube, as-sim como os que vieram depois.

Para acompanhar melhor o de-senvolvimento da Segunda Guer-ra, identificando os principais pro-tagonistas, tirei também da poeira um belo livro de Peter Young que exibe os personagens, as imagens das batalhas e os mapas do conflito.

De Gaulle é uma máquina de oposição contra uma França de-

cadente. Ele luta com obstinação para manter seu país cada vez mais independente e, para isso, toma atitudes que ingleses e norte-ame-ricanos, seus aliados, têm dificul-dade em compreender. Uma das primeiras medidas adotadas por De Gaulle, na condição de pri-meiro-ministro, em 1945, foi criar a Escola Nacional de Administra-ção (ENA), seguindo o exemplo de Napoleão, que fundara, em 1802, a Escola Politécnica.

Cook diz que De Gaulle que-ria mudar a mentalidade dos funcionários do Estado e assim evitar a repetição da passividade de quem calmamente aceitara a dominação nazista. No máximo 100 pessoas são formadas anual-mente na ENA, uma escola que em meio século já criou uma elite com nova mentalidade. O atual presidente da França, François Hollande, estudou na ENA.

Cook, ao comentar a volta de De Gaulle ao governo, em 1958, depois de 10 anos de ostracis-mo na sua simplória casinha de Colombey-Deux-Eglises, diz que havia uma grande expectativa so-bre como seria seu governo, já que o sistema parlamentar da Quarta República tinha levado à crise. O autor dá uma dica: o novo siste-ma político certamente já estava no discurso de Bayeux, a peque-na cidade da Normandia, onde De Gaulle falou sobre seus pla-nos para o futuro em 1946. Então, basta entrar no site do Instituto Nacional do Audiovisual (INA), instituição que guarda a memória audiovisual dos franceses, procu-rar o discurso e assisti-lo no pró-prio computador. No site do INA também pode ser visto o vídeo da sua visita ao Brasil, em 1964.

O personagem é controverso, pois ao mesmo tempo em que

disputava palmo a palmo o que considerava o espaço de manobra de seu país, tinha que agradecer pela ajuda que recebia de ingleses e norte-americanos. Mas ele esta-va obstinado em recuperar a ca-pacidade de decisão sobre assun-tos relacionados à França. Claro que isso era difícil numa França ocupada por tropas aliadas como resultado da Segunda Guerra Mundial, algo que se estendeu até 1969. A característica da sua re-lação com os líderes dos Estados Unidos e da Grã-Bretanha era tensionar a convívio até o ponto mais próximo do rompimento. Assim conseguiu novamente es-paço entre as grandes potências para uma França destruída pela guerra. Isso, naturalmente, irri-tava seus aliados. Mas, durante a crise dos mísseis, em outubro de 1962, deixou claro ao enviado de John Kennedy, que a França esta-ria ao lado dos americanos, mes-mo sabendo que o primeiro alvo dos mísseis soviéticos seriam ci-dades da Europa ocidental. Na ocasião, De Gaulle recebeu tam-bém o embaixador russo, Serguei Vinogradov, com uma mensa-gem pessoal de Krushev, sobre as consequências para a França por conta de sua amizade com os norte-americanos no caso de uma guerra nuclear.

“A reunião foi marcada sem demora, e Vinogradov foi levado ao gabinete de De Gaulle no palá-cio do Eliseu. De Gaulle, seguindo seu invariável costume nessas reu-niões, limitou-se a dizer: ‘Bem, se-nhor embaixador, estou ouvindo’. Vinogradov, fazendo referência ao telegrama que acabava de rece-ber, expôs o perigo de destruição nuclear a que a França estava se expondo. De Gaulle permanecia imóvel, inexpressivo, silencioso.

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Vinogradov prosseguiu com sua exposição, até que o silêncio de De Gaulle tornou-se esmagador. No fim, o embaixador soviético já não encontrou mais nada a dizer. En-tão, De Gaulle levantou-se, e com movimentos lentos e pesados, es-tendeu a mão a Vinogradov para despedir-se e disse: ‘Ah senhor embaixador, morreremos juntos! Até a vista, senhor embaixador”.2

O general, depois disso, inves-tiu na própria capacidade france-sa de dissuasão nuclear e deixou perplexos mais uma vez ingleses e americanos quando rejeitou a instalação de mísseis (norte-a-mericanos) Polaris no território francês. Na sua resposta ao go-verno dos Estados Unidos disse:

“É bem verdade que o núme-ro de armas nucleares com que podemos nos equipar não igualará, nem de longe, o volume de armas dos dois gigantes de hoje. Mas, desde quando está provado que um povo deve se privar da arma mais eficaz porque seu principal adversário possível e seu principal aliado têm meios muito superiores aos seus? Só posso dizer que a

força atômica francesa, des-de o primeiro momento que for estabelecida, terá a sinis-tra e terrível capacidade de destruir, em poucos segun-dos, milhões e milhões de seres humanos. Este fato não pode deixar de ter algum re-flexo sobre os interesses de um possível agressor”.3

Henry Kissinger em A Diplo-macia das Grandes Potências faz referências ao velho general fran-cês e conta um encontro em uma recepção a Richard Nixon no Pa-lácio Elysée, em março de 1969:

“No Palácio Elysée, onde De Gaulle era o anfitrião de uma grande recepção, um assessor descobriu-me na multidão para dizer que o presidente francês desejava falar comigo. Impressio-nado, aproximei-me da grande figura. Ao ver-me, ele desfez o grupo que o cercava e, sem uma palavra de saudação ou cortesia social, recebeu-me com a inda-gação: ‘Por que vocês não saem do Vietnã?’ Respondi, com certa difidência, que um recuo unila-teral prejudicaria a credibilidade americana. De Gaulle não se im-pressionou e perguntou onde tal

perda de credibilidade ocorreria. Quando mencionei o Oriente Médio, o seu ar distante trans-formou-se em melancolia e ele comentou: ‘Que coisa estranha, Pensei que era exatamente no Oriente Médio que vossos inimi-gos estavam tendo o problema da credibilidade”.4

A leitura de De Gaulle é uma leitura que inevitavelmente leva a outras. Muito se escreveu sobre o general. Para os interessados há o site “Charles de Gaulle, le site de référence”, da Fundação Charles de Gaulle, com tudo a respeito dele.

Há uma vasta bibliografia a respeito do general, desde as me-mórias que versam sobre assuntos militares e a situação da Europa, dos quais o mais conhecido deve ser O Fio da Espada, publicado pela Biblioteca do Exército, até di-versas biografias como a de Alain Peyrefitte (só em francês) C’etait de Gaulle, muitos deles encontrá-veis no site da “Estante Virtual”. ■

1 Cook, Don. Charles De Gaulle. São Paulo: Planeta, 2008.

2 Cook. Op. Cit. pag 385.

3 Idem, pag 393.

4 Kissinger, Henry. A Diplomacia das Grandes Potências. Rio de Janeiro: UniverCidade Edi-tora/Francisco Alves, 1999, pág. 660.

http://www.allabroad.org/

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Foto: pixabay.com

A Lei Estadual n° 3.459/00 do Rio de Janeiro disciplina o ensino religioso no estado. Além

de prever a disponibilização de aulas na modalida-de confessional – conforme a religião escolhida pelo aluno ou seu representante legal –, determina regras para a contratação de professores destinados ao en-sino da respectiva matéria.

Estas regras estão expressas no art. 2° da referida Lei: “Só poderão ministrar aulas de ensino religio-so nas escolas oficiais, professores que atendam às seguintes condições: II – tenham sido credenciados pela autoridade religiosa competente, que deverá exigir do professor, formação religiosa obtida em instituição por ela mantida ou reconhecida”.

Ademais, a Lei prevê ainda que o conteúdo será definido pelas autoridades religiosas, como dispõe o seu art. 3°: “fica estabelecido que o conteúdo do ensino religioso é atribuição específica das diversas autoridades religiosas, cabendo ao Estado o dever de apoiá-lo integralmente”.

Percebe-se de imediato o conjunto de inconstitu-cionalidades que esta lei propõe. Ambos os disposi-tivos mencionados afrontam cabalmente o disposto no art. 19, I1 da constituição federal. A exigência de credenciamento de servidor público perante auto-ridade religiosa para exercer o magistério estabele-ce um claro laço de dependência do Estado com as instituições religiosas. O mesmo se percebe na de-terminação de atribuição específica das autoridades religiosas no estabelecimento do currículo religioso, cabendo ao Estado apenas apoiá-lo integralmente.

Ainda que o primeiro artigo da lei ressalve que não deve haver proselitismo nas aulas de ensino religioso, uma leitura honesta da lei apresentada não tem como conduzir a outro entendimento de que não seja essa a sua intenção. Ao abster-se de elaborar o conteúdo das aulas de ensino religioso, delegando a autoridade religiosa que deverá fazê-lo especificamente quanto à sua confissão, somado ao fato do professor ter sido formado especificamente

para divulgar tais conteúdos, o Estado está justa-mente abrindo as salas de aula para a pregação de determinadas confissões.

Além de violar a separação entre Estado e Igreja, prevista no texto constitucional, estes dispositivos ainda violam a liberdade de crença do professor (art. 5°, VI)2, ao exigir que tenha formação de caráter emi-nentemente religioso, conforme doutrina de deter-minada confissão. Devo mencionar também que esta exigência configura-se em restrição de direitos (liber-dade profissional) por motivo de crença religiosa, nos termos do art. 5°, VIII da constituição federal3.

Por fim, há que se destacar o tratamento discri-minatório ante as religiões que não se organizam de modo a ter uma “autoridade competente” ou man-tenham “instituições” de formação religiosa. Caso pretenda garantir a liberdade e igualdade religiosa, o Estado não pode deixar de contratar professores ou oferecer aulas de religiões nestes casos, sendo ne-cessárias alternativas ao credenciamento dos profes-sores e estabelecimento de conteúdos.

De todo modo, repiso a questão abordada ante-riormente sobre a viabilidade do oferecimento de disciplina de todas as confissões individualmente, já que cada aluno pode escolher qual religião será objeto de suas aulas. Sem falar no caso de ateus e ag-nósticos, que certamente precisarão ter à disposição

Questões sobre ensino religioso e Estado laicoJoana Zylbersztajn – doutora em direito pela Universidade de São Paulo

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aulas complementares para frequentarem durante o período em que o ensino religioso será ministrado.

Questionamento referendado por Luiz Cunha, em sua análise sobre a questão, ao afirmar que nem a prescrição da lei é observada, por diversas razões

“primeiro porque não tem pessoal suficiente para ensinar as diferentes religiões em cada escola; segundo porque a tentativa da maio-ria das diretoras e diretores de escola – que é católica – não consegue colocar em operação o ensino do catolicismo porque senão as bases evangélicas se sublevam. (…) O que acontece é uma tutela religiosa da escola pública que é acionada a partir da vontade das direções.”4

Cumpre ressaltar que a referida Lei está sendo questionada no STF por ação direta de inconstitu-cionalidade interposta pela Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE).5

Vale aqui uma pequena observação: a LDBEN não veda o ensino religioso confessional de forma absoluta. Esta modalidade é inclusive prevista pela Lei ao tratar das instituições privadas de ensino (art. 20, III). O que não se permite é a propagação de ide-ais religiosas confessionais promovidas pelo Estado nas escolas públicas.

Neste cenário, Roseli Fischmann aborda a solu-ção encontrada para atender ao anseio de formação religiosa das famílias que têm seus filhos nas escolas públicas, pela abertura de mecanismos de incentivo como a filantropia ou concessão de bolsas de estudo. Para a autora “atenuou-se, do ponto de vista jurídico, a separação entre o Estado brasileiro (laico) e as re-ligiões, apoiando o ensino religioso praticado, mais propriamente, pelas próprias organizações religiosas. Com isso, desincumbiu-se o Estado de tarefa que não lhe cabe, qual seja, a de promover diretamente o en-sino religioso” (FISCHMANN, 2004: 6-7). A autora ainda reafirma que o Estado laico não pode ser pro-nunciar em matéria de religião e isso significa não de-terminar critérios e conteúdos de seleção de pessoal, ou mesmo de fazer a contratação sem risco de incor-rer no que lhe é vedado, “praticar gestos arbitrários, sem transparência e critérios efetivamente públicos”.

Ao abordarmos outros casos práticos, posso expor aqui alguns exemplos recentes. Contra parecer do Conselho Municipal de Educação, o município do Rio de Janeiro aprovou em 19 de outubro de 2011 a Lei municipal n° 5.303, que cria a categoria de

professor de ensino religioso no quadro permanente do Poder Executivo municipal, estabelecendo 600 cargos para a categoria.

O art. 4º da referida lei traz a mesma disposi-ção da lei estadual, ao prever que “os professores de ensino religioso deverão ser credenciados pela Autoridade Religiosa competente, que exigirá de-les formação religiosa obtida em instituição por ela mantida ou reconhecida”. Entre as responsabilida-des do profissional previstas no anexo da lei está a de “inteirar-se do Conteúdo Programático do Ensi-no Religioso a partir das orientações emanadas da respectiva autoridade religiosa”.

Na ocasião de sanção da Lei, a subsecretária mu-nicipal de ensino, Helena Bomen, esclareceu que foi feita uma pesquisa de amostragem no início daquele ano para identificar a confissão religiosa que os pais e alunos da rede pública seguiam. A partir disso, a subsecretária informou que serão oferecidos cursos das doutrinas católica, evangélica/protestante, afro--brasileiras, espírita, orientais, judaica e islâmica. De todo modo, segundo a subsecretária, os alunos que optarem por não frequentarem as aulas de ensino re-ligioso terão ensino de “educação para valores”.6 ■

1 Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:

I - estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de depen-dência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público;

2 Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, ga-rantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilida-de do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

VI - é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias;

3 VIII - ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei;

4 Plataforma Brasileira de Direitos Humanos Econômicos, Sociais e Culturais – Plataforma DHESCA. Relatório Preliminar, 2010. p. 09.

5 Supremo Tribunal Federal. ADI n° 3268-2.

6 Artigo disponível no site da Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janei-ro sob o título de “Sanção da lei do Ensino Religioso nas escolas da rede”, sem autoria, publicado em 19 de outubro de 2011.

Referência Bibliográfica:

FISCHMANN, Roseli. Escolas públicas e ensino religioso: subsídios para a reflexão sobre Estado laico, a escola pública e a proteção do direito à liberdade de crença e culto. ComCiência: Revista Eletrônica de Jorna-lismo Científico. São Paulo, 2004, v. 56, p. 1-7.

(Trecho extraído de: ZYLBERSZTAJN, Joana. A Laicidade do Estado Brasileiro. Verbena Editora: Brasília. 2016. pp.174-176).

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Somente um extraordinário acúmulo de coin-cidências explica (será?) que Frankenstein e

Drácula tenham sido gestados naquelas noites tene-brosas de junho de 1816. Mas o que explicaria que eles sejam tão popularmente assustadores até hoje, que os livros, filmes, quadrinhos e “biografias” fa-çam sucesso há 200 anos?

Só de Frankenstein, criado por Mary Shelley, há pelo menos cinco versões cinematográficas de su-cesso. A primeira, de 1910, pode ser vista no site da Open Culture. Mas a imagem que se tornou icônica da criatura-monstro é a que ficou do filme de 1931, embora a notável interpretação de Boris Karloff não assegure, de modo algum, fidelidade a aspectos cen-

trais da trama. Isso para não falar de séries de TV e das histórias nas mais diversas mídias. Algo seme-lhante ocorre com o vampiro de John Polidori.

Afirmar que a permanência de ambas histórias se deve ao fato de estarem relacionadas a tabus e a mi-tos é a parte fácil da resposta à pergunta do primeiro parágrafo. Afinal, é difícil encontrar um clássico da literatura ou do cinema em que não se identifique em seu núcleo narrativo um conflito em torno de um mito ou um tabu. Pela mesma razão é possível produzir uma novela ambientada na Zona Sul do Rio de Janeiro ou no sertão nordestino tendo por cerne um mito originalmente elaborado no teatro grego ou shakespeariano. É por isso que são mitos e tabus. Porque dizem respeito às questões mais pro-fundas e críticas da alma e das sociedades humanas.

Os tabus e mitos que sustentam a popularidade de Frankenstein e de Drácula e cercam o grupo que os criou, reunidos em torno de Lord Byron na Villa Diodati renderiam um bom volume. Neste artigo, vamos ficar apenas em um tabu e em dois mitos (o da transgressão das disposições divinas e o da alte-ração das condições naturais da vida humana) por-que estão mais vivos do que nunca.

Um tabu ronda o mundo...

Antes de se refugiar na Suíça, Byron corria o ris-co de prisão na Inglaterra sob as acusações separa-das de incesto e homossexualismo. Eram mais que fofocas. Numa Inglaterra que sequer havia iniciado a Era Vitoriana, práticas como essas eram crimes gravíssimos – e continuariam a sê-lo por muito tem-po. Somente em 2004 a Grã Bretanha faria o que foi considerada “a mais profunda revisão da legislação sobre conduta sexual de sua história”, eliminado os últimos vestígios de homofobia legal. Mais que isso,

Tabus e mitos sob o assédio da ficçãoCarlos Muller – jornalista

Foto: Wikimedia Commons

Boris Karloff, no filme de 1931, se tornou a imagem duradoura do monstro criado por Frankenstein.

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apenas no Natal de 2013 a Rainha Elizabeth II “con-cedeu o perdão” (sic) a Alan Turing, um dos pais da informática e principal responsável pela quebra do código nazista “Enigma”.

Em 1952, Turing foi penalizado à castração quí-mica, condenado por homossexualismo. Os efei-tos colaterais do tratamento o levaram ao suicídio. Também não pode ser esquecido que, entre os casos de Byron e Turing, o poeta Oscar Wilde foi conde-nado, em 1891, a dois anos de trabalhos forçados por homossexualismo.

Dois séculos depois de Byron, segundo alguns le-vantamentos, manter relações homossexuais ainda que consentidas e entre adultos ainda é crime em 75 países. Dois séculos depois, violência homofóbi-ca é presença constante no noticiário e justificada por políticos conservadores e lideranças religiosas, numa evidência de que tabus como os relacionados à sexualidade seguem rondando a humanidade.

A ficção ataca mitos O primeiro mito questionado em Frankensetein

se refere ao conhecimento e pode ser encarado tanto em termos da práxis quanto, metaforicamente, em relação aos limites supostamente intransponíveis dos humanos frente à omnisciência divina. Mary Shelley atacou em ambos os flancos.

Não se deve esquecer que ela e seus companhei-ros na Villa Diodati conheciam e admiravam o poema “O Paraíso Perdido”, de Milton, que quase duzentos anos antes se hospedara na mesma casa. Além disso, mais tarde Mary dialogaria com o avô e precursor de Charles Darwin – Erasmus Darwin – que influenciaria o neto a partir de uma exploração mais filosófica que empírica sobre a evolução.

Quem conhece a história de Shelley apenas de forma superficial costuma designar a criatura por Frankenstein, quando este era, na verdade, o nome do médico que a criou, Victor Frankenstein. A criatura não tinha nome e isso não foi por aca-so. Mary deliberadamente enfrentou um mito ao colocar a questão de quem, afinal, era o monstro, o criador ou a criatura?, num momento em que a humanidade começava a descobrir a eletricidade, a explorar, em termos modernos, a origem da vida e especular sobre um eventual desafio da criatura ao criador.

O subtítulo do livro de Mary Shelley é “O Pro-meteu moderno”. Não custa lembrar que Prome-teu foi um titã que roubou o fogo dos deuses para entregar aos homens e foi, por essa transgressão/traição, punido por Zeus. O Doutor Frankens-tein emula um titã, disposto a mudar o destino da humanidade. Frankenstein, como Prometeu, é o transgressor, encarna a rebeldia frente ao divino, valorizada pelos românticos.

Karl Marx, que nasceu pouco mais de quatro meses depois da publicação da primeira edição de Frankenstein (respectivamente 1º de janeiro e 5 de maio de 1818), provavelmente nunca leu o livro de Mary Shelley. Mas, por sua pretensão de mudar o rumo da História, foi comparado, inclusive em ca-ricatura, a Prometeu, e ao que se sabe gostava disso. Por trás da imagem (e em certo sentido do plano do doutor Frankenstein), está a ideia de um burguês que, traindo sua divindade/classe, se propõe a dar à humanidade/proletariado os meios de sua reden-ção. Mais um sinal do que estava em jogo naquele início de século XIX. ▶

Foto: http://imgur.com/mtyp1

"Marx Prometeu" em cartum publicado após o fechamento do jornal Rheinische Zeitung, dirigido por ele, reproduzido na biografia escrita por Franz Mehring.

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O “Manifesto comunista”, como o título suge-re, obra seminal do comunismo, começa com a frase: “Um espectro ronda a Europa – o espectro do comunismo”. Politicamente era mais do que uma frase de efeito e, no plano simbólico e dos mitos, não estava só. Não seria surpreendente que a reação política e moral pós-napoleônica acredi-tasse estar diante de uma ofensiva satânica.

Se Frankenstein utilizou membros e órgãos de cadáveres furtados aos cemitérios, foi porque, na época, nas pesquisas e nas aulas de anatomia apenas podiam ser utilizados corpos de crimino-sos executados, e naturalmente havia falta deles. Esse é apenas um detalhe anacrônico na leitura atual do livro, quando os transplantes se torna-ram corriqueiros. O que importa, e que segue vigente, está na tentativa de restabelecer a vida e eventualmente prolongá-la indefinidamente, um objetivo declarado do autor do experimento.

Ao criar o personagem e, com isso, inaugurar um gênero literário, Mary Shelley levantou ques-tões complexas que, mais de um século depois, dariam origem a uma disciplina: a Bioética. Ao que se sabe, o termo foi usado pela primeira vez em 1927, pelo filósofo alemão Fritz Jahr em seu artigo “Bio-Ethics: A Review of the Ethical Rela-tionships of Humans to Animals and Plants”, no qual propôs um “Imperativo Bioético”.

Ao longo do século XX a Bioética avançou aos saltos, quase sempre confrontando os progres-sos científico-tecnológicos com aspectos morais fortemente influenciados pelas várias vertentes do cristianismo. Foi assim com a introdução da máquina nos procedimentos médicos e, por-tanto, no eventual prolongamento da vida; na descoberta do DNA, em 1953, e a consequente possibilidade de intervenção na carga genética, com tudo o que disso decorre; com o desenvol-vimento de técnicas que permitem a fecundação in vitro, a intervenção intrauterina e a preserva-ção da vida de prematuros, recolocando a ques-tão do momento do início da vida. E se tudo isso e muito mais significou que a vida deixou de ser um processo estritamente natural, a ampliação do direito à vida para além de não ser morto foi seguida pelo direito à morte, como ocorre nos casos de legalização da morte assistida. ▶

A necessidade do ateísmo1

Percy Shelley

(...)De fato, enquanto mesmo admitindo a exis-

tência do Deus teológico e a realidade de seus tão discordantes atributos que lhe imputam, não se pode concluir nada para autorizar a con-duta ou o culto que se recomenda a alguém ado-tar. A teologia é, verdadeiramente, a peneira das Danaides. Pela pressão das qualidades contradi-tórias e das afirmações arriscadas, pode-se dizer que seu Deus está tão cerceado que se lhe tornou impossível agir. Se ele é infinitamente sábio, por que devemos ter dúvidas sobre o nosso futuro? Se ele sabe de tudo, por que avisá-lo de nossas necessidades e cansá-lo com nossas orações? Se ele está em todos os lugares, por que construir templos para ele? Se ele é justo, por que temer que ele punirá as criaturas que fez fracas? Se a graça lhes faz tudo, por qual motivo recompen-sá-los? Se ele é todo-poderoso, como ofendê-lo, como contê-lo? Se ele é razoável, como ele pode se enervar com o cego, a quem concedeu a liber-dade de não ser razoável? Se ele é resoluto, por qual direito pretendemos fazer com que mude seus decretos? Se ele é inconcebível, por que nos ocupar dele? SE ELE JÁ FALOU, POR QUE O UNIVERSO NÃO SE CONVENCE?2 Se o co-nhecimento de Deus é o mais necessário, por que não é o mais evidente e claro?3

(...)4

Trecho extraído de: SHELLEY, Percy Bysshe. A necessidade do ateísmo. (Tradução e notas de Fabio Cyrino e Marcella Furtado). In: SHELLEY, P.B. Uma defesa da poesia e outros ensaios. A defence of poetry and other essays. São Paulo: Editora Landmark, 2008. pp.123-137.

1 Este texto é um fragmento do panfleto “A necessidade do Ateísmo”, publicado anonimamente por Percy Bysshe Shelley e às suas custas, em 1811. Mesmo assim, causou sua expulsão de Oxford e a ruptura com seu pai.

2 Em maiúsculas, no original.

3 Marquês de Laplace, Sistema da natureza, Londres, 1781.

N. do E.: Ao final do parágrafo há esta nota, mas sem a indicação a que ela se refere: se ao trecho completo, se à parte grifada em caixa alta, se à oração final do parágrafo.

4 N. do E.: O ensaio completo “A necessidade do ateísmo” vai da página 123 a 137, como indicado. Este trecho específico, está nas páginas 134 e 135.

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O elo digital Há outro elo entre Byron, nosso mundo con-

temporâneo e os mitos desafiados naquelas noites assombradas, que deram origem a Frankenstein e a Drácula. Essa ligação foi resgatada por Walter Isa-acson, biógrafo mais conhecido por seu livro sobre Steven Jobs, em “Os Inovadores – uma biografia da revolução digital”.

Isaacson aponta o “link” entre Byron, Mary Shelley e um tema da maior atualidade: “as má-quinas podem pensar?” O elo é certa Ada Love-lace, interlocutora e uma das poucas pessoas que entendiam o que pensava Charles Babbage, o in-ventor da “Máquina Analítica”, o mais remoto e reconhecível antecessor dos computadores.

Ada é a “padroeira” dos autores de software, mas não se limitava a “escrever códigos”. Ques-tionava o inventor, como demonstram as cartas entre ambos. Sobre o espectro que ronda a huma-nidade desde o surgimento da informática como a conhecemos hoje, tinha uma opinião categóri-ca, registrada em suas “Notas” (de 1842, que po-dem ser lidas, em inglês, no site “Sketch of The Analytical Engine - Fourmilab”, sob o britânico título de “Sketch of The Analytical Engine Inven-ted by Charles Babbage. By L. F. MENABREA of Turin, Officer of the Military Engineers from the Bibliothèque Universelle de Genève, October, 1842, No. 82. With notes upon the Memoir by the Translator ADA AUGUSTA, COUNTESS OF LOVELACE).

Em seus escritos, Ada afirma taxativamen-te que “A Máquina Analítica não tem nenhuma pretensão de originar algo... Ela pode fazer tudo aquilo que soubermos ordenar-lhe que faça. Ela pode seguir análises; porém, não tem poder de antecipar quaisquer relações analíticas ou verda-des”. Como destaca Isaacson, mais de um século depois, essa afirmação, chamada de “Objeção de Lady Lovelace”, significa uma categórica negativa à pergunta sobre se as máquinas podem pensar.

O que tudo isso tem a ver com aquela noite que durou três dias em junho de 1816? Apenas que Lady Lovelace era, como Mary Shelley, uma mulher que não se intimidava frente ao conhecimento e aos mitos. E, vejam só, ... era filha de Lord Byron. ■

Se o eventual leitor que chegou até aqui quiser saber mais sobre os mitos, busque os interessantes livros de Joseph Cambell. Se o objetivo for criar relatos a partir e envolvendo estruturas míticas, uma referência é Christopher Vogler. E se tiver uma curiosidade específica sobre os aspectos míticos de Frankenstein, a refe-rência é “Frankenstein – as muitas faces de um monstro”. A autora é Susan Tyler Hitchcock. Não, não tem relação com o diretor dos filmes de suspense, mas já ad-virto que não adianta procurar no Goo-gle. Não há pistas. Seu site está fora do ar e, segundo o texto sobre o marido no implacável obituário do The New York Times, estavam divorciados quando ele passou desta para outra vida.

Foto: HansGA via Visualhunt / CC BY-SA

Ada Lovelace, interlocutora de Charles Babbage, postu-lava que a máquina jamais superaria a mente humana

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Dentro do assunto principal desta edição do Manto Diáfano, eu gostaria de misturar o meu

feijão com arroz – que é a História da Música – com a ideia de ensiná-la sem se precisar falar de política.

Tomemos Mozart, por exemplo. Vamos falar dele sem falar de política.

Mozart trabalhava para o arcebispo de Salzburgo e para o imperador José II da Áustria. Opa! Che-guei em política. Paro. Tentemos outra abordagem: a ópera mais famosa de Mozart é, provavelmen-te, As Bodas de Fígaro, baseada numa trilogia de Beaumarchais, autor que era proibido na Áustria, por causa de... Opa!!! Política. Falemos então de ou-tra ópera famosa de Mozart: A Flauta Mágica. Esta é uma fantasia, evidentemente inspirada na maçona-ria. Mozart era maçom – e pra entender o que isso significa é preciso entender um pouco de política, então é melhor falar de outra coisa.

Beethoven, por exemplo.Beethoven era um rabugento. Não gostava de ba-

nho; não gostava de gente. Sua música evoluiu mais rápido do que o seu público e, no fim da vida, era claro que este já não compreendia aquela. Mas não fora sempre assim. Antes de escrever o ultramoder-no e controverso quarteto de cordas conhecido como A Grande Fuga, Beethoven gozou de grande popula-ridade. Suas sinfonias eram bem recebidas, e sempre geravam boas lendas. Sobre a Terceira, por exemplo, consta que foi dedicada a Napoleão – que, em seu movimento expansionista, resolveu invadir a Prússia e, por causa disso, perdeu a dedicatória. A terceira sinfonia passou a chamar-se Heroica. Mas não tem como saber o que era a Prússia nem porque Napoleão a invadiu se não tocarmos no incômodo assunto da política, então é melhor falar de outra coisa.

Villa-Lobos, por exemplo.Villa-Lobos era um nacionalista – termo com

conotação pesada em países do Hemisfério Norte. Mas pra saber o porquê disso temos que falar de política, então é melhor deixar o assunto de lado. Falemos apenas de sua música. Não há dúvida que a música de Villa-Lobos sofreu uma forte influência francesa, já que os Guinle – percebendo seu talen-to – patrocinaram o músico numa longa aventura parisiense, talvez o mais importante passo para a aceitação internacional desse brasileiro. Na França, o grande pavão carioca teve contato com a vanguar-da musical europeia, influenciando e deixando-se influenciar pelos sons que ouvia. De volta ao Bra-sil, tornou-se a figura mais importante da música erudita tupiniquim, e conseguiu implementar nas escolas brasileiras um método de educação musical conhecido como Canto Orfeônico – que vigorou de Getúlio a Passarinho. Mas pra entender porque o método entrou no currículo e porque saiu, temos que estudar Getúlio e Passarinho – e aí, sem falar de política, não tem como.

A questão, obviamente, não é questionar a possi-bilidade de se estudar a música de Mozart, Beethoven e Villa-Lobos sem entrar em méritos políticos. É evi-dente que isso é possível. O que é impossível é enten-der os porquês sem entrar na História em si, que é claro, se confunde com a história da política no mun-do. A música desses gênios tem as características que lhes são peculiares por causa das plateias para as quais eles escreviam (Mozart para a realeza e a igreja; Beethoven para a burguesia; Villa para a intelligentsia brasileira e francesa). Da mesma forma, não há como analisar a obra de Palestrina sem entender o que era a Igreja do século XVI; não há como estudar John Cage sem compreender o papel das universidades na produção musical do século XX.

Enfim... é, sim, possível falar de música sem falar de política, mas sem os dois nunca entenderemos porque todos os nomes citados nos parágrafos ante-riores são exemplos de artistas que superaram todas as expectativas e mudaram a História. ■

Música sem PolíticaAlexandre Innecco – Maestro

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Por Bernardo, desassossegosEloisa Rosa – professora do Departamento de dança do Instituto Federal Brasília

Deparei-me com ele. Seus olhos entre-

meados, pouco estudados, tão profundos e inacabados. Pergunto-me por que insis-to em imaginar Bernardo? Talvez por sua vontade ser um balde despejado onde tenho me encontrado.

Fito os olhos do rapaz que adentra a minha sala até então em paz. Senta-se, cruza as pernas e me diz: “Posso ficar aqui?”. Meu corpo responde sem que eu tome consciência. Começa ali minha desavença!

Bernardo: Lindas palavras as suas! Por que tão belo discurso se não há dança há algum tempo nesse espaço da sua vida? Suponho que seu texto anterior seja um reflexo do corpo que se diz sensível, atra-vessado, aliviado, ensinado, mas o que me traz aqui é entender o porquê esse corpo liberto prefere ficar oculto na covardia? Por que é mais fácil ficar parado e escrever sobre Bernardo? E não falo de mim, cor-po assumidamente flor de estufa, falo de você que já há algum tempo irrompe tentativas que se esvaem.

Seria pela alteridade de ensinar? Por estar cansa-da de danças que julga vazias? Seria por negar narci-so? Ou seria por ter sofrido mutilações na carne que quisera dar a vida? Por que nega a dança quando fala tão bem dela?

Aos mortos, o heroísmo! Relembrar-se dela pelos outros parece ser mais simples do que vivê-la. Por que se reconhece em mim, professora? Por que pen-sa que seria diferente se eu bailasse em volutas ale-gres ao som da grande orquestra dos astros? Escreve palavras por mim? Faz uma ode à ação que minha sensibilidade repugna. Reconheço em ti a paz da an-gústia e o sossego da resignação. Por isso insiste?

Eloisa: Serei mosca se pela mosca puder ser eu. Posso ser-me sem a mosca, mas dela me utilizarei se preciso for para sobreviver à diligência. Danço a covardia e propus-me ao retorno depois que vos encontrei pela primeira vez. Tens razão em tua aná-lise, imagino que muitos concordem, mas torna-te equivocado quando pensas a dança apenas como volutas alegres na orquestra dos astros. As qualida-des que atribuis em sua otimista oração, restringe a arte em questão.

A dança não é movimento pelo movimento, ou é. A dança não é diversão, ou é. A dança é um ges-to perdido e repetido inúmeras vezes de diversas formas, ou não. A dança é o corpo que busca suas infinitas respirações, sentidos, equilíbrios, desequi-líbrios e significações. A dança é tanto e pode ser tão pouco. O pouco. Ou o tanto em recriar-se.

Refletindo-se sobre a dança, observando-a como um conhecimento constituído culturalmente nesses diálogos sociais contemporâneos e justificando as-sim nossa presença nessa sala, proponho pensar na educação pela dança como outro modo de pensar o pensamento, pelo corpo. Pela percepção, sensação, vivência, experiência. O conhecimento do mundo

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percebido não somente pelo que alguns chamam de razão, o conhecimento adquirido pela experiência estética, como diria Dewey. A experiência intelectu-al tem a experiência estética como parte dela sendo um fluxo afetivo, uma reconstrução que pode tam-bém ser dolorosa. Nega-se a compartimentalização da concepção de arte que a desvincula dos objetos da experiência comum e concreta. Negam-se os véus que escondem a expressividade das coisas vivencia-das, nega-se a rotina do perceber e o esquecimento de quem somos, afirma-se o prazer de experienciar o mundo à volta e a volta em suas qualidades e for-mas variadas.

Não há divisões psicológicas intrínsecas en-tre os aspectos intelectuais e sensoriais, entre o emocional e o ideativo, entre as fases ima-ginativas e práticas da natureza humana (...). Mas, assim como é função da arte ser unifica-dora, romper as distinções convencionais dos elementos comuns do mundo vivenciado, ao mesmo tempo desenvolvendo a individuali-dade como a maneira de ver e expressar esses elementos, também é sua função, na pessoa individual, compor diferenças, eliminar iso-lamentos e conflitos entre os elementos do nosso ser, utilizar as oposições entre eles para construir uma personalidade mais rica (...). (Dewey, Arte como experiência, pág. 433).

Falo por Dewey para que entendas que a edu-cação pela arte é um pensamento contemporâneo e, em seu cerne, é política. Poderia citar Adorno, quando pensa uma educação que negue a repeti-ção da história por Auschiwitz, sugere a imagina-ção pelo corpo livre, pela consciência não mutilada e afirma o risco do corpo educado no rigor das re-gras e da humilhação. Infelizmente, posso afirmar que alguns ensinos de dança se estruturam sobre essas bases e, por isso, aqui me encontro. E, se de alguma forma já sofreram mutilações pela dança, que se neguem a reproduzi-la.

Bernardo: Entendo porque viste em mim um pouco do ser bailarino quando outrora escrevi dar a cada emoção uma personalidade, a cada estado de alma uma alma isso me foi um alívio efêmero, mas reconheço em tua fala um diálogo da necessi-

dade da arte, o que poderia ser a minha literatura, por exemplo. Não consigo ainda identificar o por-quê defende a dança. Já compreendi que categoriza a dança longe do alienante bailado dos astros, não precisa se repetir.

Eloisa: Proponho pensar na simples afirmação do corpo como condição de vida e na dança como manifestação do corpo ao longo dos anos. Na histó-ria do corpo foram criadas representações variáveis de acordo com a cultura dos grupos e os momentos do tempo. Um invólucro individualizado que se re-laciona diretamente com a experiência social. Há, pela dança, uma resignificação individual da forma-ção dessas representações que poderão influenciar as experiências sociais. Meu caro corcunda sentado, o teu mundo não seria o mesmo se dançasse, a dan-ça é capaz de apreender o sentido do mundo. An-tes que pense em se levantar, deixe-me explicar essa afirmação. Recorro a um conterrâneo seu, José Gil, que num pensamento contemporâneo pensa a cons-ciência do corpo como modo de atribuição de sen-tido. A consciência do corpo abre-se em direção ao mundo “já não como consciência de alguma coisa, já não segundo uma intencionalidade que faria dela a doadora de sentido, não pondo um objeto diante de si, mas como adesão imediata ao mundo, como contacto e contágio com as forças do mundo.” (José Gil, Movimento Total, pág 177).

Bernardo, chamei-te bailarino quando percebo uma consciência que se abre ao mundo pelas sen-sações em tua escrita, quando olha a mosca e é um com ela. Imagino-me sem a dança e sobrevivo pela consciência do corpo, te imagino em minha escrita porque te tenho no pensamento. Penso a dança, te penso e isso me desassossega sossegando.

Serei mosca. E mosca ensinarei a seres. Mesmo que legislem pelas datas de Bernardo. Mesmo que ele se restrinja à presença num quadro, mosca serão os estudantes que adentrarem essa sala. Pela mos-ca aprenderão e não pela biografia com fatos. Sinto muito aos que julgam a dança nas volutas da beleza, em minha sala o conteúdo pode ser as minorias da maioria. A dança será território, será política, será gênero, será quilombos, será espiritualidade, será eu e eles. Eu como a dança, e eles comem a dança de-les. Mudando o mundo que se vê, com olhos libertos pelo corpo que por dançar, movimenta. ■

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Elvis MorreuMurilo de Aragão – Cientista Político

Durante muitos anos, ali perto do Dom Orione,1 havia uma pichação em um muro verde que

repetia o que se diz por aí: “Elvis não morreu”. Para muitos, a morte ocorrida no dia 16 de agosto de 1977, em Graceland, na cidade de Memphis, Tennessee, foi uma farsa. Apesar de toda a mística em torno de Elvis, sempre achei James Brown mais importante e revolucionário do que o rei do rock. Brown tinha uma visão musical mais aguda e anárquica do que Elvis. Mas há de se reconhecer que, provavelmente, não existiria James Brown se Elvis Presley não tivesse detonado o rock para o patamar de onda mundial.

Segundo o atestado de óbito, Elvis se foi por conta de uma arritmia cardíaca. Não se sabe o que levou uma arritmia a matar o rei do rock. Que, na-quela altura, estava meio balofo e cafona. Tal qual a morte de Michael Jackson, a morte de Elvis abalou o mundo. E, como era de se esperar, gerou muita especulação. Ano após ano, a crença de que Elvis estaria vivo foi crescendo. Para uns, isso era uma jogada de marketing. Para outros, a constatação de que sua arte é imortal. Para um outro grupo, Elvis não morreu mesmo. Sua morte foi forjada porque estaria sendo perseguido pela máfia.

Existem dezenas de relatos de que Elvis teria sido visto. Segundo um deles, ele foi visto em uma base aérea na Argentina, o que seria reforçado pelo fato de que Elvis teria uma casa na Argentina. Outros dizem que ele vive em uma ilha. Longe de tudo e de todos. Outros afirmam que Elvis, que teria sido agente secreto, estaria sendo protegido pelo governo norte-americano e viveria com uma identidade falsa em lugar incerto e não sabido.

Certo de que Elvis não morreu, Adam Muskiewicz produziu um documentário para provar que o cor-po enterrado em Graceland não é o do rei do rock. Muskiewicz mandou analisar amostras de sangue para comprovar sua tese. Segundo ele, o sangue co-letado prova que… Elvis não morreu. Para mim, também, Elvis não morreu. Pelo simples fato de que eu e meus dois filhos o vimos em um mercadinho de posto de gasolina no interior da Virgínia.

Mais precisamente em 1996, em algum lugar en-tre Paris e Uppersville, na Virgínia, na estrada John Mosby Highway, em uma lanchonete 7-Eleven. No meio do nada. Era uma noite sem lua. Quase lú-gubre. Havia chovido e ventado muito. Depois de abastecer o carro, fomos pagar a despesa no caixa e aproveitar para comprar biscoitos e chocolate. Lá es-tava ele, fazendo compras. Mostrei para os meninos, que ficaram impressionados com a figura.

Elvis se movia com alguma dificuldade e de for-ma furtiva. Sabendo que éramos estrangeiros, pare-cia não estar preocupado. Pegou algumas coisas nas prateleiras e foi para o caixa. Usava óculos escuros e um chapéu de caubói e estava gordo. Depois de alguns minutos, percebeu nossa curiosidade e a tro-ca de comentários. Acelerou o pagamento. Ao sair, olhou para nós e deu um sorriso. Com a boca meio torta. Como se quisesse dizer que era ele mesmo. Saiu em disparada em uma camionete. ▶

Foto: libertygrace0 via Visualhunt.com / CC BY

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nº 4 ∙ Brasília/DF ∙ 10 jul 2016o manto diáfano

Anos depois, voltei a encontrá-lo. Desta fei-ta em Key West. O mesmo andar e o mesmo jeito. Para nossa surpresa, estava vestido de Elvis Presley. Como os milhares de “cover” que o imitam. Na praça perto do Key West Aquarium, o nosso Elvis puxava um carrinho com amplificador, toca-fitas e um micro-fone. Estava acompanhado de uma senhora gordinha de bermudas e esbaforida. Elvis armou seu equipa-mento e começou o show.

Em poucos minutos, uma pequena multidão se formou para ouvi-lo cantar “Jailhouse rock”. Quando ia começar a cantar “Love me tender”, uns vendedores de artesanato da praça interromperam a apresenta-ção e indagaram se ele tinha licença para cantar. Ele respondeu: “Eu sou Elvis, não preciso de licenças”. E prosseguiu cantando.

Minutos depois, um carro de polícia chegou com a sirene ligada. Nosso Elvis parou de cantar e desapareceu, deixando para trás o equipamento. A praça se esvaziou e tudo voltou ao normal. Menos o fato inusitado de que o equipamento ficou abandonado, logo ali, na praça.

No início da madrugada, eu estava caminhando pela Wall Street, depois de jantar no Meson Del Pepe. Fumava um charuto cubano e pensava na guerra fria e no fato de Key West ficar a menos de 150 quilômetros de Cuba. De repente, vi a gordinha esbaforida carre-gando o equipamento de Elvis. Resolvi segui-la. Já na Duval Street, a gordinha encontrou nosso Elvis e em-barcaram o equipamento na mesma camionete de anos atrás. Aquela que eu tinha visto em Virgínia. Surreal.

Quando tentei acelerar o passo para encontrá-los, fui derrubado na calçada por um pedinte que carre-gava um cartaz dizendo que sua mãe tinha fumado toda a sua maconha e ele precisava de dinheiro para comprar mais. Tentando me desvencilhar dele, fui no-vamente derrubado. Por outro doidão, que carregava um livro todo rasgado e sem capa. Ambos cheiravam a álcool e falavam como se estivessem bêbados. Até que, em mais um tentativa, me levantei e dei dois pas-sos em direção a Elvis, mas logo fui novamente der-rubado pelos dois. Dominado, fui jogado em uma ca-mionete. Não queriam que eu falasse com Elvis.

Adiante, depois de algumas ameaças, me deixaram na praça perto de Wall Street com a recomendação expressa de não olhar para trás e seguir direto para o hotel. Advertiram, ainda, que eu poderia ser depor-tado, caso insistisse em seguir pessoas. Por fim, me deram um aviso: “Elvis está morto, mesmo que ainda possa estar vivo”. ■

1 Instituição assistencial no Lago Sul, em Brasília.

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Capítulo 4

ENCAIXOTANDO BRASÍLIAArnaldo Barbosa brandão

Não adiantava, aporrinhado com o mundo desde o incidente trágico na Praia Vermelha, neste dia o general estava mais atacado que de costume. Antes da reunião começar deu um soco na mesa, convocou os paraquedistas para se garantir e decidiu enfrentar o pessoal da li-nha dura. Gesto drástico que dizia claramen-te aos lobos-guarás: “logo que der nós vamos sair, depois será com vocês”. O general era ca-lado, nunca falava diretamente, mas ficou pior depois do acidente, depois que a mulher de JK dispensou sua guarda de honra para o enterro e depois do seu encontro com Glauber Rocha em Portugal, de onde saiu resmungando: “o Brasil prefere matar seus gênios e endeusar os idiotas”. O ajudante de ordens me contou que Glauber aproximou-se e disse sem rodeios, da-quele seu jeito de baiano do Sertão. Posso ima-ginar a cena, Glauber não era jeitoso, nem ma-neiro como o pessoal do litoral e do recôncavo, de onde saiu essa visão glamorosa dos baianos. Era estúrdio, incisivo e, às vezes, grosseiro.

— Eu sou Glauber Rocha. General, estamos vivendo um momento histórico, encruzilhada.

E continuou falando, falando, desconexo, descontrolado, destrambelhado, passando por cima de pontos, vírgulas, exclamações e interro-

gações, até que começou a tossir sem parar, foi preciso a interferência do médico do general. Ele então voltou a falar e conseguiu dizer ape-nas três palavras: “histórico”, “encruzilhada” e “horror”. Como se a filha do general, que era vi-drada em livros e filmes, não tivesse visto todos os filmes dele umas três ou quatro vezes naquele cineminha do Alvorada. O mesmo cinema de onde o Jânio, que costumava sentar-se na últi-ma fila de cadeiras ao lado de uma geladeirinha, tinha que ser carregado para a cama todas as noites. O general respondeu do seu jeito seco: “sei, terra em transe”. Glauber deu então por en-cerrada sua epopeia cinematográfica e quando voltou de Portugal já veio encaixotado.

O ajudante abriu a porta da sala de reuni-ões, o general sentou-se na cabeceira da mesa, a sua direita o comandante dos paraquedistas, que veio no primeiro voo do Rio, à esquerda o intelectual de fala mansa e rara, com quem o general combinava antes o que desejava da reunião, a seguir, a cadeira vazia esperando o Ministro da Justiça, um civil da política nor-destina, a quem caberia acertar tudo com os políticos do partido da situação. O atraso de-corria das dificuldades com os políticos: não queriam ceder terreno para a oposição, não

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se davam conta que estavam na situação por um ato de força. As tentativas do general de cooptar a liderança da oposição para seu plano de abertura “gradual e segura” do regime não andava, a oposição desconhecia as entranhas do monstro, onde estavam os coronéis da linha dura, a maioria desconhecia até mesmo como funcionava a hierarquia militar, mal sabia que os generais mandavam nas regiões militares, mas quem comandava os quartéis eram coro-néis e tenentes-coronéis e quem comandava os soldados eram os capitães através dos sar-gentos. Os políticos imaginavam um sistema como o deles: um cacique lá no alto decidindo tudo e embaixo aquele bando enorme, repre-sentando uma tonelada de pequenos interes-ses, geralmente resolvidos pelo do orçamento do país. O ministro chegou e a reunião pôde começar. “Você sabe, ele gostava de parecer so-lene”, me disse o ajudante tentando descrever a reunião. Nem precisava, eu sabia que o ho-mem envelhecera, mas continuava detestando nariz de cera. Foi direto ao ponto, disse bem claro e bem alto, mantendo um resto de sota-que nordestino:

— Não quero chegar aos noventa anos res-pondendo um processo por desaparecimento de presos, isto aqui não é Argentina, nem Chi-le, temos uma tradição pacifista, tanto é assim que toda vez que a situação fica muito confli-tante inventamos uma anistia.

Deu início à reunião propondo a demissão do comandante do Segundo Exército e a cas-sação do mandato do vice-líder da oposição,

uma no prego outra na ferradura. Olhando di-retamente para o comandante dos paraquedis-tas, determinou:

— Quero que faça parte do grupo que vai recepcionar o Ministro do Exército no Aero-porto de Brasília, para que ele entenda bem quem manda nesta merda!

O estrategista do general, o intelectual de fala mansa e lenta sabia que era um jogo ar-riscado e o general estava pagando pra ver, só esperava que o Ministro do Exército não desconfiasse de nada. Terça à tarde, o Gaúcho apareceu lá em casa com os jornais do dia na mão, cópia das manchetes do Jornal Nacional de segunda-feira.

— O homem botou pra quebrar, tchê!Agora não era mais o Periquito como ele

chamava o general, desde a Fronteira, agora era “o homem”, sinal de que alguma coisa es-tava mudando, pelo menos para o pessoal do partido do Gaúcho, a maioria deles veio de-pendurada nos estribos dos bondes sindica-listas que trafegavam desde Getúlio. Tiveram seu auge com Jango, sobreviveram a JK e sua modernidade, quase se espatifaram com os militares e finalmente ressuscitaram, graças à indústria automobilística.

— Acho que vou começar teu discurso pela Fronteira, pelo Oiapoque, o que achas?

— Fronteira? Pra que relembrar aqueles tempos de merda, tchê?

— Bem, foi lá que conhecemos o Periquito, esse que agora você finalmente vai ter que pe-dir a benção. Sabe como é: o passado é quem

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Continua na próxima edição da revista O Manto Diáfano

governa o futuro, se JK não decidisse construir Brasília você agora não seria governador, se ele não criasse as fábricas de automóveis, teu par-tido não existiria.

— Tu que sabes, nem sei se vou ler esse dis-curso, talvez fale de improviso, em todo o caso preciso de um texto pra me guiar. Mas lem-bre-se, quero um discurso como os do Fidel, e cuidado com o que dizes, ultimamente estás com a cabeça meio destrambelhada.

— Sei, o Fidel, aquele que prometia mun-dos e fundos e o povo cubano vive na merda até hoje, loucos pra se mandarem pra Miami.

— Não disse que estás com a cabeça destram-belhada? Fidel é Fidel, e depois os cubanos sem-pre viveram na merda, já estão acostumados.

— Acho que nem tanto, os cubanos tiveram seus grandes dias: os cassinos, toda aquela bela música, os dólares, os boleros que ecoavam por toda a América Latina. Até hoje me recor-

do do Bievenindo Granda, a voz metálica das américas cantando Perfume de Gardênia. Ti-nha as gorjetas dos gringos; falei irônico para chatear o governador.

— E o povo nos canaviais trabalhando como escravos, completou o Gaúcho.

Esse era o Gaúcho, ou melhor, o que sobrou do discurso dele. Como não poderia se referir a Cuba e ao Fidel, queria usar pelo menos a forma do discurso, talvez marcar posição dian-te do partido.

“Discurso à lá Fidel”, era só o que me faltava, pensei. Foi aquela revoluçãozinha dele que co-meçou toda esta lambança, ferrou a vida de meio mundo e me fez ir parar na Fronteira. É uma his-tória muito confusa e nem sei por onde come-çar; é como resumir tudo num longo discurso. Pensando bem, melhor fazer como todos, come-çar pelos começos. E nos começos, antes de ficar doente, eu me lembro bem: houve a Fronteira. ■

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