o longe e o perto - ppgav–eba–ufrj · narrativa estabelecida na escultul-a do século 19, ......

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o longe e o perto como distâncias contemporâneas

~-------------------------------------------- - -----Malu Fatorelli

o artigo abordo o questõo do espaço no arte o partir de poéticas visuais e busco estabelecer pontes entre o saber acadêmico e o prático artístico_

------------- --_ . _---­

No desenvolvimento de uma tese , em qualquer

área, é exigido do pesquisador um

distanciamento crítico em relação a seu obJeto_

Para o pesquisador/artista demarcar essa

"distância" talvez seja tarefa ainda mais difícil, na

medida em que a proximidade com sua prática

e, conseqüentemente, com o objeto de sua

pesquisa, é determinante para o

desenvolvimento do trabalho, Essa relação

podei-ia ser comparada à do autor/personagem,

na qual biografia e ficção tensionam lugares na

estratégia de construção de uma narrativa, Na

elaboração de minha tese em Linguagens

Visuais, busquei estabelecer ressonâncias e

conexões entre a obra e o texto, discutindo

questões geradas por uma prática artística que

opera em um domínio entre arte e arquitetura,

No meu trabalho de doutorado, a obra de Rodin A Porto do Inferno se constitui como uma referência seminal pelas relações que estçbelece

em seu espaço plástico, permanecendo como passagem e comunicação entre configurações espaciais e processos construtivos que reverberam em procedimentos contemporâneos,

A Porto do Inferno 2 foi projetada originalmente para a fachada de um museu de artes decorativas que seria edificado no terreno em

que hoje se encontra o Museu d'Orsay, em Pari s, Rompendo duplamente limites

Art e contemporâneo, espaço, orle e arquitetura,

o mais profundo é o pele I

Paul Valéry

estabeleCidos para os espaços da arte e da arquitetura, ela não cumpre sua função primeira

como elemento de passagem entre os espaços externo e interno do edifício, Permanece, ao contrário, como um baixo-relevo sobre uma parede cega do atual Museu Rodin. Inicialmente inspirada na Porto do Paraíso do Batistério de

Florença, 3 sua superfície externa não segue a

modulação original da porta de Ghibertl,4 mas

estabelece limites fora da moldura, em um

extravasamento de personagens que demarcam uma fronteira entre o pensamento do século 19 e um momento de transformação em direção à arte moderna, em que novas categorias e aproximações entre pintura e escultura, plano e

espaço, têm lugar na produção da arte. Segundo Krauss, s o trabalho de Rodin rompe com a narrativa estabelecida na escultul-a do século 19,

na qual uma lógica de causas e efeitos constitui a imagem. Uma opacidade formada de Junções e colagens de diferentes figuras ultrapassa a transparência o itocentista, contrapondo à ordem causal de ossos, músculos e nervos uma

opacidade absoluta, que afirma a superfície e o processo,

o trabalho de Rodin foi constituído a partir de

fragmentos, cada peça moldada era repetida, criando uma espécie de arquivo de "pedaços" formado por anatomias cambiantes, A moldagem escultórica, como também a impressão, são passagens "cegas" obtidas, sem

mediações, entre a matriz e a imagem em

formação, Oidi-Huberman6 afirma que essas

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a/e REVISTA DO PROGRAMA DE PÓS-GR/:..DUAÇÃO EM ARTES VISUAIS EBA • UFRJ 2004

passagens, por contatos no interior da matéria, introduzem uma dupla distância temporal - uma dimensão de origem arqueológica e imemorial,

e outra que desafia a história, pois se recusa a ocupar um lugar no interior de uma evolução de estilo, escapando da arte como idéia humanista, associada à "cosa menta/e", algo distanciado da

aderência da matéria. Talvez por isto Rodin tenha sido acusado de plágio - por ferir o sentido de criação ao operar uma estética do fragmento.

A superfície de A Porta do Inferno, moldada com

todas as figuras? e exposta no Museu Rodin,8

apresenta uma relação ambígua em seu espaço

intemo. Uma profundidade infinita compõe a

cena, na qual se multiplicam figuras que se

projetam para fora do painel principal, quase

tocando o espectador. Essa configuração

estabelece uma oposição entre dois espaços ­

um ótico, relacionado à profundidade criada

virtualmente a partir do plano da porta, e um

tátil, dominado pelas figuras que se projetam

para fora do plano do painel da obra. Esses dois

espaços, ou visões, associados à idéia de

proximidade e distância, presentes na história da

arte, são objeto de investigação e

questionamento relacionados à teoria e à prática

artística aqui discutidas.

No desenvolvimento de minha tese os

conceitos de espaço liso e espaço estriado, propostos por Deleuze e Guattari,9 foram de

grande importância para pensar a relação entre

arte e arquitetura. Esses conceitos estão

relacionados a proximidades e distâncias e são

apresentados, pelos autores, a partir de uma

série de modelos em diferentes campos do

conhecimento, como a física, a matemática, a

música e a estética.

Cabe ressaltar o modelo estético no qual o liso é objeto de uma visão aproximada, associada a

um espaço tátil ou háptico. IO Éo espaço do

deserto, que não tem fundo nem limite, que

não se enxerga de longe e "diante" do qual

nunca se está - está-se nele, em tal

proximidade, que as coordenadas da geometria

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não encontram lugar. Contrariamente ao liso, o

estriado seria caracterizado pela visão à distância

e como espaço ótico, pelo ponto de fuga e pelo

ponto de vista. No estriado, a simetria, o

contomo e as sombras imperam na imagem que

empurra o céu, o mar e o horizonte para um

fundo dominado pela forma da figura. Éo

espaço do distanciamento e do ponto de vista

que, na arte do Renascimento, é estabelecido

com as regras da geometria euclidiana. Éo

espaço da "veduta", II que domina e restringe a

paisagem. 12

Tomando como referência os conceitos de

espaço liso e estriado, pretendo fazer um

recorte a partir da obra de dois artistas que, a

meu ver, poderiam circunscrever os limites

desses espaços; busco também esta-belecer um

diálogo entre essas obras e minha produção

recente.

Donald Rodney e Jean-Pierre Raynaud são

artistas europeus contemporâneos que realizam

operações artísticas relacionadas à casa. Entre

conceito e representação, essas arquiteturas operam lógicas construtivas muito específicas,

ocupando lugares instigantes e opostos na

abordagem do espaço de habitaçõo.

A cosa de Donald Rodney, 13 construída em

1996/97, não utiliza como material tijolo ou

argamassa, mas a própria pele do artista.

Secções de pele, removidas durante um

tratamento para sickJe cell anaemia, configuram

as paredes de uma pequena e frágil casa que o

artista segura na palma da mão. Rodney utiliza

em In the House of !'v1y Father uma situação

autobiográfica. O artista refere-se a problemas

sociais e políticos, assim como a questões de

identidade e abandono, na ótica de um homem

inglês, negro e pobre, vivendo em condição

social de extrema fragilidade.

Não há espaço mais íntimo do que o própl"io

corpo, cUJa superfície limite entre interior e

exterior é a pele. Éessa mesma pele que, no

trabalho de Donald Rodney, constitui a casa

como índice máximo de aproximação. Essa

casa, berço e túmulo do artista, não existe

enquanto monumento, mas apenas como frágil

representação do desejo de habitar um lugar.

Expressando sua condição de nômade

contemporâneo, Rodney faz aproximar de zero

o intervalo entre sua "casa paterna" e seu corpo,

construindo uma casa que, como o artista,

pertence a todos os lugares ou a nenhum lugar,

revelando, sobretudo, uma condição de

transitoriedade.

A pele, matéria da casa do artista inglês, poderia

ser comparada ao feltro da tenda nômade.

Utilizado pelos turcos mong6is na construção da

tenda e também da roupa e da armadura,'4 o

feltro é obtido a partir de um emaranhado de

fibras prensadas. Configura-se como um espaço

liso, que não é fechado, não possui avesso ou

direito, e pode crescer em qualquer direção.

Segundo Deleuze e Guattari, enquanto para o

sedentário, o tecido, roupa e tapeçaria, integra o

corpo e o exterior a um espaço fechado, o

nômade ajusta a vestimenta e a própria casa ao

espaço externo.

No projeto de Jean-Pierre Raynaud o exterior

não é especialmente tratado, enquanto o espaço

interno é totalmente redefinido, seguindo

necessidades de organização do artista. Uma

geometrização das superfícies é levada a cabo a

partir da utilização de azulejos comuns, que

conferem uma relação de escala e ordenamento

ao espaço arquitetônico.

o artista iniciou o trabalho nos anos 70 e desde

I 988 decidiu fechar o acesso à casa pelo

período de 20 anos. Assim como o tecido que,

ao contrário do feltro, é um espaço estriado

constituído de elementos verticais e horizontais

que originam a trama, a casa de Raynaud

permanecerá fechada até 2008, dividida em

intervalos regulares que marcam latitudes e

longitudes de uma cartografia particular.

As arquiteturas de Donald Rodney e Jean-Pierre

Raynaud, aqui apresentadas, inventam espaços e

reelaboram medidas que, a meu ver,

estabelecem contribuições importantes no

âmbito das poéticas visuais que investigam

questões da arte e do espaço, tocando limites

de territórios artísticos nos quais se inscreve

minha produção plástica.

Em meu trabalho prático experimento a

possibi lidade de operar dispositivos táticos e

óticos como estratégia para promover sucessivas

aproximações de determinados espaços

arquitetônicos como experiência afetiva de

tempo e lugar. A frotagem, 15 escolhida como

técnica de trabalho, alude à "visão" de cego e à impressão, fazendo surgir no visível a questão

do contato e impondo uma contrapartida à

dimensão 6tica do espaço arquitetônico.

A imagem impressa traz uma temporal idade imprecisa, presente em cadeias operat6rias entre pensamento, processo, linguagem e gesto. Ao escolher trabalhar a partir de frotagens, tento definir os fragmentos e os elementos que me interessa "recolher" para, posteriormente,

reutilizá-los. Essa técnica me permite usar, como referência e "matriz", grandes e sólidas

superfícies arquitetônicas que freqüentemente contrastam com a delicadeza e a fragilidade dos papéis nos quais esses elementos são registrados. Também posso trabalhar com dimensões de suporte muito maiores do que as utilizadas nas gravuras ou impressões tradicionas, pois estas são limitadas pelos formatos das

prensas , das telas e dos materiais que compõem as matrizes.

Ao falar a respeito das marcas monotípicas que

Mira Schendel realiza sobre o papel, Guy Brett ' 6

aponta uma combinação de gesto ativo e impressão passiva, produção/reprodução. Essa me parece uma 16gica aplicável à frotagem que, em meu trabalho, muitas vezes é reali zada com a participação simultânea de várias pessoas. O gesto de cada um trata a superfície do papel

como mediação e registro do encontro entre uma forma dada pela arquitetura e o movimento exercido pelos participantes do

trabalho.

Na exposição realizada no MAM-RJ, 'l por

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ale R E V 1S T A DO P R o G R A M A D E P o S - G R A o U A ç Ã o E M A R T E S V I S U A I S E B A • U F R J 2 o o 4

exemplo, as colunas do edifício, ícones do

espaço urbano e cultural do Rio, foram tratadas

como topografias-limite, pele de um corpo que, ao ser- tocada e transcrita, produziu uma espécie de mapa, O suporte do trabalho, na maioria das obras, é o da pintura, propondo dialogar com

esse plano/terntório histórico da arte. O tamanho do chassis remete à medida de meu corpo, o procedimento da frotagem toma-se

um diório de reconhecimento das marcas da superfície do edifício como tatuagens

espaço/tempo. Da mesma forma, uma série de outras exposições foi realizada, construindo essas arquiteturas de artista. Entre elas, Nono, rnstalada no Headlands Center For the Arts, na Califón ia, em 1999, ou Co/uno poro Carvão , realizada no Palácio Gustavo Capanema, no Rio de Janeiro, em 200 I.

O trabalho prático realizado para a tese fOI

iniciado sobre as páginas A4 dos rascunhos do

texto, aludindo a questões nele tratadas e elaborando diferentes proposições a partir de desenhos bi e tridimensionais, recortes e

colagens, tramas e pequenas maquetes. Ocupei,

posteriormente, a Galeria do Galpão da Pós­

EBA por vários meses, em uma investigação que envolveu diferentes procedimentos associados ao espaço arquitetônico. As paredes da galeria foram moduladas, seguindo a medida da folha A4, e algumas inversões foram realizadas no

espaço, aludindo ao espelhamento entre matriz e impressão. Todas as folhas, quase mil. entre rascunhos e reimpressões do texto, compuseram uma espécie de tapete ou de plano, tramado de verticais e horizontais formadas pe las páginas da tese emendadas umas

às outras. Esse grande plano foi suspenso

transversalmente no espaço da galeria. Um vídeo documentando o processo acompanha o texto.

Os procedimentos utilizados criaram um espaço de interseção entre a obra e o texto. A obra "aproveitou" ou, de certa forma, invadiu o ritual

da escrita, estabelecendo uma passagem de

volta do texto à imagem. As páginas e as palavras compuseram uma nova arquitetura, um

espaço liso que impôs um estranhamento à sa la da Pós-EBA, mas, também, um espaço

duplamente estriado, pelo texto da tese e pela trama organizada em horizontais e verticais

constituídas pelas páginas coladas umas às

outras. Posteriormente o trabalho foi ampliado e

remontado no MAC de Niterói, '8 estabelecendo um diálogo com a arquitetura do

museu, reproduzindo ou se contrapondo à curva do edifício.

As questões levantadas buscaram ampliar ou tomar "visível" um campo conceitual que habita

as imagens, estabelecendo, a partir de uma poética particular das distâncias, conexões que

visaram articular diferentes momentos da produção de arte.

Matu Fatorelli é artista plástICa. pro fessora adjunta do Ins tituto de

Artes da UERJ e da EAV Parque- Lage. Este art igo é um re sumo

de sua dissertação de Doutorado em LInguagens VisuaiS.

Programa de Pós-Graduação em Artes V!suals-E BA UFRJ. sob a orientação da ProP-. Dr2 Glória Ferre ira

Notas

I Paul Válery, apud Machado, Roberto. De/euze e o filosofia. Rio de janeiro: Editora Graal, 1990: 19.

, 1880/19 17, bronze, 635x400x85. Cf. Normand-Romain,

Antonlette Le. Rodm - lo porte de /'enfec Paris: Museu Rodin, 2002: 15.

3 Idem Ibidem: 6.

1 No concurso para a execução da Porta do Paraíso do Batistério de Florença, construída entre 1425 e 1452, estiveram em confronto as concepções espaciaiS de Brunelleschi e de Ghlbertl, que refletiam um importante debate sobre a questão do espaço no século 15. Argan, História da Arte Italiana, vol. 2. São Paulo: Cosa, & Naify, 2004: 196.

5 Krauss, Rosalind. Caminhos do Escultura Modema. São Paulo: Martins Fontes, I998: 26-43.

6 D idi-Huberman, Georges. Catálogo da exposição L'empreinte, Paris: Centro Georges Pompidou, 1967: 76 .

7 Essa porta foi moldada sob a supervisão de Léonce Bénédite, primeiro diretor do Museu Rodin, a parti r de moldes numerados encontrados em 19 I7. Cf. Normand-Romain, op.cit.: 32.

8 Existem atualmente sete bronzes de A Porto do Inferno, com todas as figuras, espalhados por vários museus do mundo, e dois gessos datados de 1886 e 19 I 6, ambos em Paris, nos museus Rodin e d'Orsay. Cf. Normand-Romain, op. eie

9 Deleuze, G lles e Guattari, Fé lix. Mil Platôs - capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Editora 34 , 1997: 179-2 I5.

10 Que não opõe os órgãos dos sentidos, mas pressüpõe que o olho possa ter uma função tátil, e não ótica.

I I Recurso utilizado na época do Renascimento que consistia em abrir uma pequena janela em uma parede ou muro desenhado no quadro, deixando entrever uma paisagem ao longe e reforçando, assim, a idéia de profundidade no espaço pictónco.

" Contrariamente ás idéias apresentadas por Delleuze e Guattari, espaço ótico (estriado) associado à pespectiva. e espaço moderno associado ao tátil ou háptico (espaço liso). Greenberg refere-se à pintura do RenasCimento como tát il, e à pintura moderna como ótica, associando-a à idéia do espaço como um cont/nuum, apenas fletido pelos objetos. Greenberg, "Sobre o papel da natureza na pintura moderna". Arte e Cultura - ensOlOS críticos, São Paulo: Editora Ática. 1996: I 79 .

13 Coleção da Tate Modem. n. de catálogo P78529.

14 Deleuze e Guattari. op. cit.: 179.

IS Procedimento que consiste em transferir um relevo, textura

ou marca de uma superfície para uma folha de papet. A frotagem é técnica anterior à xilogravura e fOI uti lizada pelos chineses já no quarto século. Entre nós é também conhecida como bnncadeira infantil de transferir o desenho, cunhado em relevo em uma moeda, para uma folha de papet. Na arte moderna Max Ernst utilizou a técnica em uma série intitulada H istória Naturat.

16 Bren, Guy. At ivamente o Vazio. In No Vazio do Mundo. Rio de janeiro: Marca d'água. 1996: 49.

17 Exposição realizada no Museu de Arte Moderna do Rio de janeiro em 200 I . A mostra integrou o Projeto Novas D lCeçóes. do ltaú Cultural. com a curadoria de Agnaldo Farias.

18 Exposição realizada no Museu de Arte Contemporânea de NiterÓI, curadoria de Guilhemne Bueno.

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