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A Exposição do Centenário e o meio arquitetônico carioca do início dos anos 20

Ruth Nina Vieira Ferreira Levy

A Exposição do Centenário, com seus palácios e pavilhões, é tomada como cenário privilegiado paro situar o meio arquitetônico carioca no período, analisar a transiçõo

entre o ecletismo e o modernismo na cidade, discutindo a busca de raízes nacionais, e questionar as radicais intervenções urbanas ocorridas com o desmonte

do morro do Castelo.

Exposição do Centenário, debate arquitetônico, onos 20.

A Exposição I nternacional Comemorativa

do Centenário da Independência,

inaugurada em setembro de 1922, ocupou

uma grande área do Centro da cidade, que

ia do Passeio Público à Ponta do

Ca labouço e de lá se estendia pelo espaço

recém-conquistado com a demolição do

morro do Castelo. Concebida inicialmente

como mais uma exposição nacional,

acabou tornando-se internacional, com

participação de diversos países, França,

Portugal, Estados Unidos, Inglaterra,

Argentina, México, Itália, Bélgica, entre

outros. Foram construídas portas

monumentais e um grande número de

palácios e pavilhões, tanto nacionais

quanto estrangeiros. Prédios já existentes,

como o antigo Arsenal de Guerra e parte

do Mercado Municipal, também foram

aproveitados após sofrer adaptações.

o objetivo desta pesquisa I foi situar' o

meio arquitetônico carioca do início dos

anos 20, tomando a Expos ição como

evento marcante , a fim de melhor elucidar

o mome nto de transição entre o ecletismo

e o modernismo na arquitetura da cidade.

A Expos ição assume importância a partir da

hipótese de que ela representa um cenário

privi legiado para a análise dessa

arquitetura, já que a encomenda de

projetos para uma série de pavilhões,

tendo como autores vários dos

profissionais atuantes no período, serviu de

vitrina a revelar as tendências da

arquitetura naquele momento, as idéias e

ideais dos arquitetos, o repertório

arquitetônico e estilístico então em voga e,

finalmente, como tudo isso se refletia na

prática. Por representar uma grande

oportunidade profissional, levando em

conta, também, a exigência de os projetos

serem assinados e executados por

arquitetos diplomados, essa exposição

assume, em meio aos arquitetos cariocas,

o papel de "marco do renascimento

arquitetônico no Brasil"2

o desenvolvimento da pesquisa baseou-se

amplamente na consulta de fontes

primárias. A Exposição fo i estudada tanto

por meio de publicações específicas a seu

respeito quanto por comentários

encontrados na imprensa da época, o que

contribuiu para melhor entender o

contexto geral do período e os itens em

discussão, na medida em que a imprensa

representava um espaço no qual os

arquitetos ganhavam voz naquele

momento. A revista Archi tectura no Brasil,3 editada a partir de outubro de 1921,

revelou-se ferramenta imprescindível. Além

AR T IGO ' RUTH NINA V IEIR A fERREIRA L E V Y 39

a/e REVISTA DO PR OG RAM A DE PÓS· G RADUAÇA O E M ARTES V I SUA I S E"A • UFRI • 2004

de tratar da Expos ição, seus artigos,

escritos na maior parte por arquitetos,

reve lam as idéias, crenças, opiniões e lutas

desses profissionais, assim como incluem o

registro dos principais acontecimentos no

meio, como a fundação das entidades de

classe, informações sobre os profissionais e

escritórios atuantes, a publicação de

projetos, concursos e prêmios. Periódicos

como A Ilustração Brasileiro, 4 a Revisto do Semanas e o Brasil Contemporôneo6

também estão na base deste trabalho, já

que, além de oferecer grande volume de

informações a respeito da Exposição,

relatam e comentam as principais

intervenções realizadas na cidade e o

debate que se travou em torno delas.

Foi também objetivo dessa tese contribuir

para o movimento de revisão da produção

arquitetônica do período que precede o

modernismo, discutindo como os preceitos

que nortearam esse movimento não

surgiram de uma tábula rasa, mas que seu

germe pode ser encontrado em

experiênc ias anteriores. Além disso, o

trabalho visou colocar em evidência os

arquitetos atuantes na Exposição do

Centenário , profissionais esses que, por

sua importância, são, de certo modo,

representativos de toda a classe naquele

momento.?

Conce itualmente, minha análise

identificou-se com o que propõe Peter

Collins na introdução de Los ideales de lo arquitectura moderno, o ou seja, a idéia de

fazer uma história dos pensamentos sobre

a arquitetura, mais do que uma história

apenas da arquitetura em si, interessando­

se pela preocupação dos arquitetos em

lidar com os problemas mais filosóficos e

em just ificar a eleição de determinadas

formas materiais, em detrimento de

outras. Um tipo de história que se

ident ifi ca com a "história filosófica da

arqu itetura", proposta por César Daly, que

40

não se limita a tratar das obras construídas,

mas busca o pensamento e o sentimento

arquitetônicos.

Os arqUitetos viviam um momento de luta

pelo reconhecimento profissional, que os

distinguisse mais claramente dos

profissionais que com eles rivalizavam na

"arte de construir" : por um lado, os

engenheiros, categoria de status mais

elevado, formação sólida e abrangente, de

nível superior, e supostame nte convocados

para os projetos mais importantes; e, por

outro lado, os construtores que, na falta da

formação acadêmica, tinham, como aliada,

a prática. Com honorários mais baixos do

que os cobrados pelos arqu itetos, essa

classe acabava ficando com uma bela "fatia"

do mercado. Marca o período, a

organização das entidades de classe, dando

respaldo a esse movimento, tendo sido

criados o Instituto Brasileiro de Arqu itetos

e a Sociedade Central de Arq uitetos

(1921 ).

Conceitualmente, trata-se de um momento

de muito questionamento por parte dos

arqu itetos. O esgotamento de uma

maneira de conceber a arqu itetura leva-os

a buscar um estilo mais ligado às tradições

e ao ambiente brasileiro. A questão do

nacionalismo, presente nos debates desde

o século anterior, está agora efervescendo

e sugere a busca de raízes anteriores ao

século 19, impregnado de um

estrangeirismo que precisava ser

combatido e superado. A defesa de um

estilo ligado às tradições e ao ambiente

brasileiros, em contraposição à importação

de modelos, é centro de um debate em

andamento. Até que ponto a busca desse

estilo está na raiz do modernismo é

questão fundamental no âmbito deste

trabalho.

Por outro lado, o ecletismo é ainda

praticado com entusiasmo, estando

presente em grande parte dos projetos.

Vamos ve ri ficar a importância, para os

arquitetos, de defender o estilo adotado,

seja ele qual for, Just ificando sua

propri edade e conven iência. Para todo e

qualquer comentá r io ou descrição de

projeto ou pré dio , a class ificação estilística

era sempre indi spensáve l, marcando seu

"caráter".

Entre as principa is const ruções nacionais na

Expos ição que seguem a linguage m do

ecleti smo teríamos a Porta Principal (Mario

Fertin e Edgar Viana) , o Pavilhão do

Distrito Federal (Silvio Rebecchi), o

Pavi lhão da Estatíst ica (Gastão Bah ianaV o

Palácio dos Estados (H . Pujo l Jun io r) , o

Palácio das Festas (Archi medes Memória e

Francisque Cuchet) , o Pavilhão da Música e

a Fachada do Pavilhão das Indústri as

Particulares (Nestor de Fi gue iredo) e a

Fachada do Parque de Diversões (Mora les

de Los Rios) .

Já dentro do espírito neoco lonial estariam a Po rta N orte (Raphae l Galvão), o Palácio da Fiação (Morales de Los Rios Filho), o Pavilhão de Caça e Pesca (Armando de Ol iveira) , o Pavilhão das Pequenas Indústrias (Nestor de Fi gueiredo e C. S. San Juan) e a curiosa obra de restau ração e adaptação do antigo Arse nal de Guerra, da Casa do Trem e do Forte do Ca labouço para com por o Pal ácio das Grandes Indúst ri as (Archimedes Memória e

Francisque Cuchet) . A adaptação desse conj unto , hoje ocupado pelo Museu H istórico N acional, e que teria t ido como princípio "aprove itar o máximo possíve l a

arqu it et ura e a decoração ant igas, enriq uecendo -se apenas o edifício com o gosto artístico dos seus hábeis restauradores, de modo a criar essa nova manifestação de arquitetura", la ao propor

um neocolonial que encobr ia man ifestações da arq uit etu ra co lonial, aponta para o caráter ambíguo do movimento .

De fato, a defesa do neocolonial vai se

apresentar com fo rça, mas não sem uma

série de am bigüidad es. Como no

ecletismo, també m aqui será im portante a

class ifi cação , indicando tendência ou

fili ação . N ão teremos simplesmente o

neoco lon ial, mas um colonial revisitad o ,

que pode rá ser t raduzido por diversos

comp lementos e com binações entre o

co lon ial, o barroco e o Jesuít ico. A idéia de

que duas tendências distintas predominam

na arquitetu ra co lonial brasi lei ra - o

religioso ou o rn amental e o popu la r ou

singe lo - será repetida com fre qüênc ia.

Além disso, adjetivações como estilizado,

roffíné , "de feição nort ista" e outras se rão

abundantes. Em qualquer caso, será

sempre um co loni al modernizado, com

nova rou pagem, já que a vo lta ao colonial,

caracte r izado desde o sécu lo 19 como algo

li gad o ao atraso, às péssimas cond ições de

higiene e de vida, só poderi a ser

defensável se o mesmo se apresentasse

devidamente recicl ado .

De todo modo , apesar desse esforço

class ificatório, fica claro , também, que a

denominação não é o mais importante. É recorrente a id éia de que não importa

como o estilo ir ia se r chamado , mas sim

que teria que se r algo novo . O neocolonial

não era visto como um estil o que t ives se

fim em si mesmo , mas como uma busca de

elementos fundamentais para a fo rmação

de algo novo, indepe ndente da

denominação, valorizando -se a essência .. .

Se, de ce rto modo, essa consciência da

t ransição aproxima o neocolon ial do

ec let ismo - lembremos aqu i o pensamento

de César Daly, de que o ecleti smo não era

outra coisa senão "lo recherche et lo

préporo tion de I'ovenir, occomplis ou milieu

des ruines du possé", 11 ou a afi rmação de

Victor Cous in, de que, mesmo que o

eclet ismo não criasse um estilo novo , seria

út il à t ra nsição do histo ricismo para a

AR T I GO · RU T H NINA V IE I RA FE RRE I RA LE VY 41

I

a/e R E V I STA DO PR O GRAMA DE. PÓS - GRADUAÇÃO E.M ARTES V ISU A I S EDA • Uf RJ· 2 004

ecletismo não criasse um est ilo novo, seria

útil à transição do historicismo para a

arquitetura do futuro _, 12 esse neocolonial

parece, entretanto, estar mais convicto da

concretização do novo.

Acredito, como Carlos Kessel, 13 que a

arquitetura neocolonial só possa ser

compreendida se consideradas,

simultaneamente, suas produções

construída e textual. Acho até que a

produção textual tenha, eventualmente,

mais força e conteúdo do que a construída

e que , nem sempre, os ideais que estavam

na mente dos arquitetos puderam ser

traduzidos plasticamente. Como também

lembra Kessel, se o neocolonial pôde

inicialmente re ivindicar o posto de

ve rtente das va nguardas contra o

academicismo e a favor da redescoberta e

preservação do patrimônio colonial, seria

em seguida - depois de acirrados embates

- suplantado em sua pretensão pelo

modernismo, passando de uma posição

inovadora para aquela a que o relegaram:

retrógrada e equivocada.

Por outro lado, o neocolonial também foi

visto por vários profissionais como mais

um modismo, uma possibilidade no elenco

de estilos a serem adotados de acordo

com a conveniência do projeto ou o gosto

do cliente. Essa idéia foi associada a uma

certa futilidade ou ao interesse

mercenário, como insinua Lucio Costa em

relação a Heitor de Mello. O neocolonial,

sem convicção, seria fútil e oportunista.

Iria contra as implicações éticas que uma

escolha estilística devia representar.

Parece então que, de fato , o neocolonial

esteve ligado a duas ve rtentes distintas : de

um lado, a busca de algo novo , afastado da

cópia acrítica de modelos existentes,

comprometido com a autenticidade e a

funcionalidade: de outro, amalgamado ao

ecletismo, entendendo este como

42

sinônimo de "indiferentismo".

Na primeira vertente, a busca dos

"elementos essenciais" do colonial, como

inspiração para a nova arquitetura - a

adequação ao clima, a adaptação ao meio

e à função, a simplicidad e, a sobriedade, a

verdade, o essencial em detrimento do

supérfluo - , vai apontar o caminho do

racionalismo. Na segunda vertente, é a

última gota num copo já transbordante.

A questão do patrimônio é outra que

assume relevância no contexto, e Lucio

Costa apresenta-se aí como figura de

transição, um elo entre a tradição e a

modernidade. Costa, rejeitando o

"equívoco" do neocolonial, mas

reconhecendo o valor da arquitetura

trad icional, va i dar um salto além dos

arquitetos da geração do neocolonial. Sua

sólida formação acadêmica e sua visão

críti ca da produção dos anos 20 ajudaram­

no nesse sa lto.

Talvez a maior ambigüidade do neocolonial

seja o fato de sua defesa acontecer ao

mesmo tempo em que alguns dos

importantes marcos iniciais da cidade

colonial estavam sendo eliminados, visto

que, a pretexto da Expos ição, fora

decre tada a demolição do morro do

Castelo , sede do antigo núcleo urbano do

século 16. Com o desmonte houve a

criação de uma ampla área de aterro, para

onde o Centro da cidade poderia então

crescer.

Os interesses imobiliários e de expansão

da cidade sobrepujaram a trad ição , e a

Exposição funcionou aí como a legitimação

para tal interve nção. 14 A figura de Carlos

Sampaio simboliza a controvérsia entre o

desprezo pelo Castelo e o incentivo ao

neocolon ial na arquitetura da Exposição,

como se pudesse estar sendo oferecido

algum tipo de compensação ... Assim, o

colonial até deveria existir, mas um colonial

renovado, saneado . Sampaio vai ter o

reconhecimento por parte dos arquitetos

ao convocá-los não apenas para projetar,

mas para construir os pavilhões: um

engenheiro que soube dar crédito aos

arquitetos. Apesar de já existir, em alguns

meios, o dos arquitet os incluído , a

consciência da importância do Castelo

como patrimônio histórico, o desmonte é

encarado como um "mal necessário ". O

ano do Centenário to rna-se um ano

"memorável", e a Expo si ção, um marco

para a profissão do arqu iteto, que pass a a

ter também, daí por diante, a

oportunidade de opinar no t raçado da

cidade de forma mais abrangente, abrindo­

se o caminho para a constitui ção do

urbanismo dos anos 20.

Por fim, a arquitetura da Exposi ção, com

seus diversos pa lácios e pavilhões,

personagens imóveis, mas fal antes, de toda

essa trama, revela-se como uma

ve rdadeira colcha de retalhos, a exprimir

as diversas tendências, crenças ,

ambigüidades, coerências, radicalismos,

liberdades, enfim, t odos os elementos

então disponíveis para a reflexão e a

prática arquitetônica naquele momento.

Ruth Ni na Vieira Fer l"eira Levy é grad uada em Arquitetu ra e em

Museologia . pós-grad uada em H lstó ria da Arte e Arquitetura no

Bras ;! pela PUC. Rj . mestre e doutora pe lo PPGAV-UFRj e muse610ga da Fundação Eva Klabln.

Notas

r Este artigo é um resumo da pesquisa elaborada para a tese de doutorado de mesmo título. orientada pela Prol" Or" Sonra Gomes Pererra e defendida pela autora no Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais/UFRj em dezembro de 2003.

1 Architecturo no BraSi l - Engenharia.iConstnução: revista ilustrada de assuntos técnicos e artísticos. Rio de janeiro: 1"'1. Moura Bras il do Amaral. ano I. vol.l. n. 3. dez. 1921' 95.

] Nchitecturo no Brasil. op. cit.

4 lIustroçõo BrosJleiro. Rio de janeiro: Álvaro Moreira. 1921­1923.

5 Revisto do Semana. Rio de janeiro: C. Malhei ro Dias. 1921­1923.

6 Brasil Contemporâneo: magazine de atualidades. Rio de janeiro: Mario CordeirO. 19 19- 1924.

7 Foi feito um levantamento do quadro de profissionais e escritórios atuantes no Rio de Janeiro no período. tendo como fontes a revista Architetura no Brasil e o Almanaque Laemmert. A comparação entre as fontes rndrca que na lista comercial (Almanaque Loemmert ). de fato. vários construtores aparecem relacionados como arqurtetos, acusação comumente fena na época.

8 Collm. Peter. Los ideoles de lo orquitecwro moderno; su evolución (1 750-1 950) . Barcelona: Gustavo Gilli, 1970, 1998.

9 Estes dois últimos prédros ainda existem, sendo ocupados pelo Museu da Imagem e do Som e pelo Centro Cultural da Saúde. respectivamente.

ro Rela tório dos Trabalhos: ExposiçãO Internacional do Centenário 1922-1 923 , vol. I . Rio de Janeiro: Imprensa Nacional (Minrstério da justiça e Negócios Interiores), 1926: 31 2.

r r Oaly, César. Revue générole de I'Qrchitecture et des trovQUX publrcs , vol. 32. Paris: Oucher et Cie, 1875: 126. Tradução Irvre: "a busca e a preparação do futuro, consumadas em meio às ruínas do passado",

r2 Cf. Collrns, op. clt" 119.

r) Kessel , Carlos. Entre o pastiche e a modernidade: arquitetura neocolonial no Brasil. Tese de doutorado em História Socral defendrda junto ao PPGHIS/U FRj , em 2002.

r4 A proposta do desmonte não era nova, e O próprro Carlos Sampaio em 1891, à frente da Empresa do Arrasamento do Castelo. obtivera uma concessão do govemo para realrzar esse empreendimento, o que não foi fe 'rto por falta de capital. Agora, como preferto e encarregado das comemorações do Centenário da Independência, surgra a situação ideal para colocar o projeto em prátrca.

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