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Estacas Quinta-feira_7 de maio de 2015_Diário de Notícias DN JOVEM UM SUPLEMENTO QUE FAZ HISTÓRIA 15 O sonho define as personagens Maria do Céu Guerra O sonho é aquilo que antecipa as estra- das e os passos só porque, um dia, pen- samos em viagens. É o princípio, o mapa cheio de anotações e desenhos de naus e de comboios, onde o tesouro procurado fica sempre a dez passos de qual- quer porto. E o impossível não passa nunca de um desafio. Não me saem do pensamento esses anos vividos em Angola, com a longa praia aos pés, os barcos, o rumor dos pássaros ao entardecer, as histórias das mulheres avisadas do destino pelas ci- ganas velhas e de rosto vincado, que mur- muravam ladainhas de sabedorias no ter- reiro da avó Marta. Era o tempo das sibilas, que me lembre. Elas chegavam, vestidos ne- gros, olhos inquietos, e teciam sobre a mão confiada das minhas tias um futuro de via- gens e heranças inesperadas, de traições e recompensas, de inquietude e de navios. Trocavam, então, chás e receitas, propu- nham negócios de oiros e atavios, diziam se- gredos... E, no terreiro da avó Marta, a vida assomava como cristal descoberto e sem ansiedade. Aquele que sonha tem o olhar alumia- do, como se adivinhasse o fim das noi- tes ou o parto das sementes. Aos domingos à tarde chegavam os ve- leiros. Corríamos ao cais e por ali ficá- vamos, a olhar o fundo dos barcos, os que chegavam, as velas descidas com lentidão... Um mundo inteiro assoma- va aos nossos olhos: a longínqua Finlândia, a Roca, Veneza, o Finis Terrae dos duendes e dos encantos... E tudo era claro e distinto, como se os países ficassem mesmo ali a nos- so lado, fossem a linha mágica do horizonte onde, agora, o sol incidia ou até a nossa casa, não sei. Era a hora das aves. Nunca mais me esqueci. O sonho é o fermento na massa, a lâm- pada iluminando as avenidas e as vie- las. É o gesto fraterno nascendo na li- berdade do coração de todos os ho- mens. E a ousadia dos passos, o medir-se pelo infinito e pela distância, abalançar-se na aventura do mar alto. E ter a coragem de perguntar sempre “porque não?”. Estava a olhar para a rua. Carros e pes- soas. Ritmo apressado. O Jorge aproxi- mou-se. “Estás a sonhar com barcos”, disse ele. E eu estava. – Mestre, fala-me do sonho – pediu o jovem Anuk. – Meu irmão... – retorquiu-lhe Zaaur. – Se és mestre, porque me chamas ir- mão? – disse, espantado. – Não há mestres para o sonho – acrescen- tou o velho sábio. E não voltou a falar. Tiago Hulssen 21 anos, estudante universitário, Lisboa Tolentino Mendonça Poeta, sacerdote e professor, de 49 anos, nascido na Madeira. É uma referência na poesia portuguesa contemporânea, assumindo-se também como ensaísta e tradutor. No DN Jovem, assinava as criações literárias como Tiago Hulssen. // A solidão é um instrumento para enfrentar o universo um vidro para evocar minúcias nela está estampada a casa, os olhos abertos e fechados, isso que chega a nós através de golpes existe porventura coisa mais misteriosa mas não tão surpreendente como a solidão quando regressamos a ela encontramos intacto o que nos pertenceu mas se estendermos a ponta dos dedos na direção das figuras percebemos que se dissipam sobre a superfície outra vez vazia O livro dos sonhos e das memórias PUBLICADO EM 10 DE FEVEREIRO DE 1987 1 1 1 2 2 2 1 Rui Toscano Artista multidisciplinar, nascido em 1970. Formado em pintura e escultura, produz criações nos mais variados meios, desde o desenho à instalação multimédia. Venceu o prémio União Latina em 2001. E desde então que marca a arte portuguesa. JULHO DE 1989 Escreve-nos hoje TOLENTINO MENDONÇA

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Page 1: O livro dos sonhos o prémio União Latina em e das memóriasSecure Site PDFS/DN_07052015...O livro dos sonhos e das memórias PUBLICADO EM 10 DE FEVEREIRO DE 1987 1 1 1 2 2 2 1 Rui

Estacas

Quinta-feira_7 de maio de 2015_Diário de Notícias DN JOVEM UM SUPLEMENTO QUE FAZ HISTÓRIA 15

O sonho define as personagens

Maria do Céu Guerra

O sonho é aquilo que antecipa as estra-das e os passos só porque, um dia, pen-samos em viagens. É o princípio, o mapa cheio de anotações e desenhos de naus e de comboios, onde o tesouro

procurado fica sempre a dez passos de qual-quer porto. E o impossível não passa nunca de um desafio.

Não me saem do pensamento esses anos vividos em Angola, com a longa praia aos pés, os barcos, o rumor dos pássaros ao entardecer, as histórias das mulheres avisadas do destino pelas ci-

ganas velhas e de rosto vincado, que mur-muravam ladainhas de sabedorias no ter-reiro da avó Marta. Era o tempo das sibilas, que me lembre. Elas chegavam, vestidos ne-gros, olhos inquietos, e teciam sobre a mão confiada das minhas tias um futuro de via-gens e heranças inesperadas, de traições e recompensas, de inquietude e de navios. Trocavam, então, chás e receitas, propu-nham negócios de oiros e atavios, diziam se-gredos... E, no terreiro da avó Marta, a vida assomava como cristal descoberto e sem ansiedade.

Aquele que sonha tem o olhar alumia-do, como se adivinhasse o fim das noi-tes ou o parto das sementes.

Aos domingos à tarde chegavam os ve-leiros. Corríamos ao cais e por ali ficá-vamos, a olhar o fundo dos barcos, os que chegavam, as velas descidas com lentidão... Um mundo inteiro assoma-

va aos nossos olhos: a longínqua Finlândia, a Roca, Veneza, o Finis Terrae dos duendes e dos encantos... E tudo era claro e distinto, como se os países ficassem mesmo ali a nos-so lado, fossem a linha mágica do horizonte onde, agora, o sol incidia ou até a nossa casa, não sei. Era a hora das aves. Nunca mais me esqueci.

O sonho é o fermento na massa, a lâm-pada iluminando as avenidas e as vie-las. É o gesto fraterno nascendo na li-berdade do coração de todos os ho-mens. E a ousadia dos passos, o medir-se

pelo infinito e pela distância, abalançar-se

na aventura do mar alto. E ter a coragem de perguntar sempre “porque não?”.

Estava a olhar para a rua. Carros e pes-soas. Ritmo apressado. O Jorge aproxi-mou-se. “Estás a sonhar com barcos”, disse ele. E eu estava.

– Mestre, fala-me do sonho – pediu o jovem Anuk. – Meu irmão... – retorquiu-lhe Zaaur. – Se és mestre, porque me chamas ir-mão? – disse, espantado.

– Não há mestres para o sonho – acrescen-tou o velho sábio. E não voltou a falar.

Tiago Hulssen 21 anos, estudante universitário, Lisboa

Tolentino Mendonça Poeta, sacerdote e professor, de 49 anos, nascido na Madeira.

É uma referência na poesia portuguesa contemporânea, assumindo-se também como ensaísta e tradutor. No DN

Jovem, assinava as criações literárias como Tiago Hulssen.

// A solidão é um instrumento para enfrentar o universo um vidro para evocar minúcias nela está estampada a casa, os olhos abertos e fechados, isso que chega a nós através de golpes existe porventura coisa mais misteriosa mas não tão surpreendente como a solidão quando regressamos a ela encontramos intacto o que nos pertenceu mas se estendermos a ponta dos dedos na direção das figuras percebemos que se dissipam sobre a superfície outra vez vazia

O livro dos sonhos e das memórias

PUBLICADO EM 10 DE FEVEREIRO DE 1987

1

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1

2

2

21

Rui Toscano Artista multidisciplinar,

nascido em 1970. Formado em pintura e escultura, produz criações nos mais variados

meios, desde o desenho à instalação multimédia. Venceu

o prémio União Latina em 2001. E desde então que marca

a arte portuguesa.

JULHO DE 1989

Escreve-nos hojeTOLENTINO MENDONÇA