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Page 1: O Livro de Malco - perse.com.br · O Lago da Serpente, 46 A Sentinela, 51 O Poder Governante, 54 Capítulo 3: A Lua Vermelha, 59 A Vidente, 63 A Noite do Banquete, 68 À Mesa do Conselho,

Eliude A Santos

O Livro de Malco: O Manto do Caçador

1ª Edição

São Paulo - 2012

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O Livro de Malco O Manto do Caçador

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O Livro de Malco: O Manto do Caçador ISBN: 978-85-8196-018-0

Todos os direitos desta edição reservados a Eliude Alves Santos

www.eli-ude.blogspot.com

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O LIVRO DE MALCO 5

Índice

Apresentação pelo Autor, 7

Prefácio: Carta de Augusto à sua Esposa, 9

O Livro de Malco, 11

Capítulo 1: O Vale das Tormentas, 13

A Iniciação, 22

Primeiros Voos, 30

Junto à Fonte das Águas, 34

Capítulo 2: O Livro do Grande Segredo, 41

O Lago da Serpente, 46

A Sentinela, 51

O Poder Governante, 54

Capítulo 3: A Lua Vermelha, 59

A Vidente, 63

A Noite do Banquete, 68

À Mesa do Conselho, 77

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6 ÍNDICE

Capítulo 4: O Resgate do Rei, 83

A Caminho de Zahdok, 85

A Retomada da Cidade, 90

O Encontro com Etana, 96

Capítulo 5: A Cidade da Grande Torre, 102

A Fornalha, 104

O Manto do Caçador, 112

O Fogo de Moloch, 117

Capítulo 6: O Levante dos Cativos, 122

O Juramento de Nebuk, 126

A Tomada dos Portões, 130

O Contra Ataque, 134

Capítulo 7: O Conselho de Shiloam, 142

A Unção de Peleg, 155

O Salão dos Livros, 160

O Monte das Dores do Alto, 168

Capítulo 8: Amargos Reencontros, 178

O Urim, 189

A Planta da Concepção, 206

A Grande Partilha, 214

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O LIVRO DE MALCO 7

Apresentação pelo Autor

O LIVRO DE MALCO é um relato da ascensão e declínio do primeiro império pós-diluviano, bem como das crenças e costumes das antigas civilizações que habitavam as lendárias planícies de Shinar. A narrativa tem início pouco antes da separação dos continentes, e estende-se através da construção e queda da Grande Torre, da erosão da língua original e da dispersão dos povos por toda a Terra, num ambiente em que mitos e lendas gerados pela crença individual ou coletiva eram o remate da realidade.

Narrado em primeira pessoa, “O Manto do Caçador” conta-nos a história de Malco, um jovem de ascendência real que é escolhido pela providência divina para conduzir seu povo para além dos domínios de Etana, um tirano imperador que, pela posse indevida de certas vestes sagradas, assumiu o poder de governar toda a Terra.

Segundo crenças judaico-cristãs, vestes com poder semelhante haviam sido confeccionadas pela própria divindade e presenteadas a Adão e Eva quando foram expulsos do Jardim como símbolo do domínio do homem sobre os outros seres viventes. Uma história que encontra reflexo no mito grego de Jasão e os Argonautas. Segundo a lenda, Jasão saíra em busca de um manto de ouro que lhe garantiria o trono de Iolco na Tessália.

Certa de que havia uma relação entre essas histórias e convencida de que o referido manto de fato existira e subsistira ao tempo, a jovem Anita Eisenberg induz seu esposo a organizar uma expedição em busca dos pergaminhos de Malco na esperança de que, traduzindo-os, pudessem ter algum indício do paradeiro do tal manto.

Eliude A Santos

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O LIVRO DE MALCO 9

Prefácio: Carta de Augusto à sua Esposa

Cáucaso, 1943

Querida Anita,

Hoje recuperamos mais um fragmento. Fomos todos tomados de uma profunda euforia com o achado. E, mais uma vez, você provou-se certa, apesar de todo o meu ceticismo.

Agora, os rapazes devem estar comemorando pela montanha. Uma fogueira, petiscos, vinho e música são tudo o que eles precisam pra espantar o frio.

Eu fiquei no acampamento. Quis catalogar os últimos achados e colocar em ordem alguns papéis. De repente, percebi-me insulado por um mar de documentos, registros e evidências que desapercebidamente espalhara ao meu redor num perfeito círculo quase que ritualístico iluminado à luz trêmula daquela candeia de azeite que recebemos de um guia turco no início da expedição.

Quase nem atentava para o embolorado odor dos artefatos; antes, parecia sentir a fresca maresia das lembranças mais marcantes de nossas vidas.

É assombroso ver como sua presença permanece viva neste lugar esquecido pelo mundo.

Ao abrir aquele velho baú de madeira, encontrei uma fotografia que tiramos quando nos conhecemos. É triste que ela não possa revelar o azul inconfundível de seu olhar. Ah, como sinto saudades de seus olhos compenetrados, de seu sorriso largo e de sua voz firme nos dizendo aonde ir e o que fazer.

Às vezes, quando fecho os olhos, ouço o barulho rouco do monomotor que a levou para longe de mim. Arrependo-me por ter cedido tão facilmente. Fui um tolo ao permitir que “o tamanho de nosso oponente embotasse o meu poder de defesa”.

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10 CARTA DE AUGUSTO À SUA ESPOSA

Na carta rude de seus pais: o anúncio da tragédia! Desejei deixar tudo de lado e voar até você. Naquele momento, nada parecia mais importante que estar ao seu lado. Mas, aonde eu iria, agora que o seu lado tornara-se um lugar abstrato? Eu também sabia que não poderia abandonar a expedição exatamente quando o sonho de nossas vidas começava a ter algo de concreto.

Não sei se algum dia encontraremos o tal manto, mas agora creio em sua existência tanto quanto acredito na minha própria. O Livro de Malco é prova disso.

Por ora, o processo de decifração dessa língua tão fascinante em que foram escritos os pergaminhos tem-me permitido mergulhar na atmosfera não menos encantadora e igualmente singular desse antigo mundo que, juntos, fizemos ressurgir em seu esplendor.

Uma vez, você desenhou um sonho na alma de um cético. E com seu suor e lágrimas, deu ao desenho tons de pastel que criaram sombras, textura e profundidade. Que me resta agora, senão dispor-me a verter o meu próprio sangue para dar cor e vida a este sonho?

Assim, quando a obra estiver concluída, nela perceberão pulsando o nosso coração.

Então, subirei o monte mais elevado que o horizonte me permitir enxergar para ali depositar a obra de nossas mãos como um memorial de nossa eterna aliança.

E os Ventos hão de sussurrar em seus ouvidos todas as minhas lágrimas e sorrisos. E os Céus serão testemunhas de que o nosso amor é mais forte que os laços da Morte. E não mais se atreverão a mantê-la longe de mim.

Para sempre seu, Augusto

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O LIVRO DE MALCO 11

O Livro de Malco

ESPERO que jamais possas experimentar momentos como os que agora me atormentam dias em que parece não haver refúgio aos que fogem das lembranças confusas da própria mente lembranças que são punhais afiados, dos quais não se pode desviar.

Assim, contorcendo-me em minha ansiedade pelo inatingível, rogo para que sejam abreviados os meus instantes de tormento e de dor no cessar de minha tão desventurada existência.

Espero, amigo, que nunca proves o sabor amargo do néctar letal que me foi dado a saber. Basta somente que me escutes, enquanto o conduzo ao obscuro poço de minhas lembranças.

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O LIVRO DE MALCO 13

Capítulo 1: O Vale das Tormentas NAQUELES dias de estações inconstantes, quando a própria Terra retorcia-se em seu interior e fazia rios de fogo brotarem dos lugares altos e descerem sobre vales e campinas, consumindo tudo à sua frente; naqueles dias de grande alvoroço em que as próprias entranhas da Terra reviravam-se em desalinho rasgando savanas inteiras como se fossem rotos pergaminhos, reis e sacerdotes levantaram-se entre os homens, que novamente começavam a multiplicar-se e espalhar-se sobre a Terra.

Força e ambição teceram armaduras, forjaram armas e escudos, e fizeram de homens simples do campo, assassinos sanguinários. Poder e ganância levantaram cidades e ergueram tronos e fortes.

Por sua liberdade, filhos e maridos ajuntaram-se em exércitos e muitas mães e viúvas prantearam a morte de seus salvadores. Mas caindo um ao fio da espada, um novo erguia sua lâmina em defesa daquilo que mais amava.

Ahag também se ergueu em batalha. E grandes foram suas conquistas. Com a força de seu braço comprou a paz de seu povo. E nas planícies de Zahdok houve calmaria.

Mas o salário de sua valentia foi a morte. Na Batalha dos Sete Dias, a espada de um tirano calou sua voz para que a de Ázekah, seu filho mais moço, se erguesse em seu lugar.

E, enquanto não chegava o esperado dia da Partilha, quando seriam divididas as herdades e nosso povo conduzido a um lugar de segurança, Ázekah, meu pai, defendia com bravura as terras de sua herança.

Sendo filho do rei, eu, Malco, fui instruído desde meus primeiros dias em todos os assuntos do reino e em todo o conhecimento de minha geração, de modo que, findando-se os dias de minha meninice, assentava-me nas rodas de anciões e conversava com mestres e doutores em semelhante nível de entendimento.

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14 O VALE DAS TORMENTAS

Vendo que se aproximava o tempo para a partilha das herdades, e empenhado em preparar-me para tão aguardado acontecimento, meu pai mandou chamar à casa do rei, o Grão-Mestre, ou em outras palavras, o guardião supremo dos registros sagrados e conselheiro do reino nos assuntos de guerra, cujo nome era Elam, filho de Meshec.

Este Elam era irmão de Ahag e lutou ao seu lado pela liberdade dos zahdokam quando a terra em que vivíamos deixou de ser um lugar seguro.

Tendo conquistado o respeito de todos por sua invejável sabedoria e assisados conselhos, foi posto por mestre supremo dos aprendizes do reino e, desde então, poucas ocasiões inspiraram-no a sair do Vale das Tormentas, onde os filhos de Zahdok, entregues aos seus cuidados, eram feitos homens de guerra.

Naqueles dias de grande alvoroço, o Grão-Mestre rompeu seu quase inabalável claustro para vir ter com Ázekah, meu pai. Tão inusitado acontecimento foi celebrado com festas e clarins, e grande fartura de iguarias.

Mesmo antes de sua chegada, já haviam começado os preparativos. E a despeito de todas as pelejas travadas para manter a segurança de nosso reino, um grande esforço foi feito para dar ao Grão-Mestre uma recepção à altura de seus feitos.

Abstive-me em tomar parte nos preparativos, porquanto sua vinda prenunciava o cumprimento da assombrosa sorte que me havia sido reservada pelos Senhores do Lugar Sagrado pouco antes de meu nascimento. Muitas vezes, tomado de apreensão, deitava-me na relva, esperando que ela crescesse sobre mim e me ocultasse do mundo; mas a relva não crescia, e o mundo continuava inteiro, esperando que eu o rasgasse em pedaços.

Quando a comitiva do velho mentor cruzou os portões de Zahdok, corri pelos campos com uma prece no coração uma prece que não seria atendida.

Eu não queria tomar parte nos banquetes e recitais que se dariam na casa do rei. Enquanto, para todos, aquela visita soava

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O LIVRO DE MALCO 15

como um sopro de esperança; para mim, tinha o sabor de uma infusão amarga e a aparência de um agouro sombrio.

Somente depois, soube pela boca de Abis, a mais jovem das esposas de meu pai, da ocasião em que, passados os festejos, Ázekah chamou Elam à sua presença.

“Já se passaram treze ciclos desde tua última visita à casa do rei. E bem sabes que tenho muito apreço por tua companhia.”

“Também me agrada estar ao teu lado, ó rei; mas sou um homem já avançado em dias e, ainda que se tenha mantido o meu vigor para a maestria, já não gozo do mesmo ânimo para as mais curtas jornadas.

Maior agrado fazes-me se vais ao meu encontro no vale. Afinal, cada adorno que embeleza esta majestosa construção

traz à minha mente a lembrança daquela triste noite em que nossa doce Eshna desfalecia em teus braços, enquanto o infante, deitado sobre a lã embebida em vida carmesim, chorava, inocente do fatal destino de sua mãe.”

“Tais recordações são-me de igual modo dolorosas. Entretanto, fechando-se os olhos de tua filha, abriram-se os

do meu, cheios da mesma bravura e força que sempre foram tão peculiares àquela que lhe dera a vida, ainda que sob o custo da própria.”

“Traze-o, então, para que o veja.”

Então meu pai fez sinal a Abis, que recolhia os adornos do salão enquanto ele conversava com Elam, para que me encontrasse e conduzisse à sua presença, porquanto sabia que meus esconderijos eram-lhe conhecidos.

Abis era para mim como uma irmã: crescêramos juntos, e juntos havíamos desbravado cada recanto daquelas planícies.

Ao receber aquela ordem de seu esposo, ela saiu correndo pelas campinas de Zahdok à minha procura. Encontrando-me junto ao riacho, fez-me saber das coisas que havia visto e ouvido na casa do

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16 O VALE DAS TORMENTAS

rei, tomou-me pela mão e fez-me acompanhá-la à presença do ancião.

Seguindo apreensivo as candeias de azeite que apontavam o caminho para o trono, entrei no salão onde aqueles dois espectros de aparência imponente conversavam à meia-luz.

O Grão-Mestre fez sua mão pesar sobre o meu ombro. Ele era um homem alto e forte, de tez mui alva e enrugada, cuja voz firme fazia-nos despercebidos de sua cerviz ligeiramente encurvada pelo tempo. Levava consigo um cajado de cedro esmeradamente decorado, mas visivelmente desgastado pela mão que tão firmemente nele encontrava apoio.

Abaixando-se, fitou-me com espanto.

“Eis que o infante já se faz homem!”

E deslizou a mão calejada pelo meu rosto, constatando a já existência dos primeiros pelos. Meu pai adiantou-se para fazer-me o mesmo e incômodo afago.

“Que se torne, então, entre os guerreiros, o mais valente do reino!”

Depois que deixei sua presença, vi que as lâmpadas permaneceram sendo alimentadas durante toda a noite. Risos ecoavam pelos salões vazios, enquanto a ansiedade vinha-me fazer companhia ao leito.

Pela manhã, o Grão-Mestre fez-me acompanhá-lo num caminho de duas luas até o Vale das Tormentas, onde os moços do reino eram instruídos nas artes da guerra. Ali, o conhecimento dos registros sagrados me seria revelado.

Foi-me mui pesaroso deixar a casa do rei, onde vivi todos os dias de minha infância.

Após a morte de Eshna, minha mãe, fui entregue aos cuidados das outras esposas de meu pai que me acolheram como se de seus ventres houvesse saído.

Oito luas antes de abrir os meus olhos para a luz desta Terra, anunciou-se o assombroso destino que me aguardava. Da boca dos

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O LIVRO DE MALCO 17

antigos oráculos foi decretado meu portentoso fim. E agora haveria de acompanhar aquele incomum visitante a fim de levar a efeito a palavra de tais videntes.

Embora houvesse prometido ao meu pai que assim o faria, não era de mui bom grado que eu seguia adiante.

Ao anoitecer, paramos para descansar. Enquanto eu preparava o fogo, o guia silencioso observava-me

de longe.

“O temor que ora te oprime o coração fomentará tua bravura em dias futuros.”

“O que sabes tu sobre o que vai em meu coração?”

“Nada além do que me falam os teus olhos.”

O fogo acendeu. Trancamo-nos novamente em nosso silêncio. O Grão-Mestre mostrou no canto dos olhos um início de sorriso, recostando-se num punhado de folhas secas.

Embora, naqueles dias, eu não fosse ainda suficientemente maduro para admitir minhas próprias fraquezas, aprendi com o passar dos ciclos que quanto maior é o esforço que fazemos para ocultá-las, mais aparentes elas se tornam.

Eu temia não ser capaz de levar a efeito a promessa que, antes de partir, fizera ao meu pai.

“Meu filho, nosso povo tem enfrentado momentos trabalhosos. A cada nova batalha, mais difícil tem-se tornado a defesa de nossas terras contra os ataques de Etana.”

“Tenho visto, meu pai, que a guerra não traz, senão, grandes perdas e muitas lágrimas.”

“Quisera poder poupar-te de tão trágica sentença. Entretanto, precisamos resistir até o dia da Partilha, quando o Senhor do Trovão nos há de conduzir para além dos domínios do Caçador.”

“Não há outro meio?”

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18 O VALE DAS TORMENTAS

“Se há, não o conheço. Prometa-me, Malco, que defenderás este reino com todo o

empenho de teu nobre coração.”

“Por minha honra e por amor a vós.”

“Que o Senhor do Trovão te conduza com sabedoria, meu filho.”

As brasas da fogueira viraram cinzas, mas aquelas palavras de meu pai continuavam acesas em minha mente e em meu coração. Minha imaturidade era esmagada com o peso da responsabilidade que carregava sobre os ombros.

Antes que o sol despontasse no horizonte, levantamos acampamento, ajuntamos os animais e partimos novamente.

Descemos ao povoado de Alkah. Já de longe, avistávamos o grande poço à entrada da cidade,

onde todos os alkaham, de tempos em tempos, se reuniam para as festividades.

Não havia qualquer viv’alma ao redor. Aproximando-nos, descemos os nossos cântaros a fim de

saciarmos nossa sede e a de nossos animais. Atando-os à sombra, entramos caminhando pela cidade.

Fomos recebidos por um opulento ancião, cujo nome era Sahel, filho de Meshec, que com grande entusiasmo convidou-nos a entrar em sua casa, certamente a maior naquele lugar. Embora ele não tivesse a estatura do Grão-Mestre, tinha uma maior medida de humor e vivacidade e igual porção em sabedoria e cortesia. E recebeu-nos com grandes honras em sua casa.

“É este o infante de quem tanto se fala ― o tal que fará os rios mudarem seu curso e as terras avançarem sobre as grandes águas?

Que se mate, pois, mais um cordeiro, porquanto é tolice pensar que possa realizar tão grandes feitos com tão pouca carne sobre os ossos.

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O LIVRO DE MALCO 19

Achegai-vos e banhai-vos e recostai-vos à mesa para partilhardes conosco da fartura desta casa”.

Então, fez-nos entrar à sala de banhos, que antecedia a do banquete. Ali, uma serva apoiava um vaso sobre o ombro e uma tina aos quadris.

Sob o comando do efusivo ancião, ela banhou-nos as mãos e os braços, fazendo-nos esfregá-los bem; em seguida, mergulhou ramos de alecrim no vaso que trouxera consigo e delicadamente açoitou-nos os ombros e o peito, bem como nossas pernas e pés já desnudos. E, murchando-se os ramos, fez uso de uma mui branca fazenda de linho a fim de nos secar.

Suas mãos moviam-se como nuvens em dias de pouco vento. Aliviados dos rigores da jornada, fomos conduzidos à sala

seguinte. Enquanto conversávamos, recostados à mesa, as filhas de Sahel

trouxeram-nos de seu melhor vinho, e cantaram e dançaram ao nosso redor. Eram todas moças mui belas e bem adornadas, cujo canto, como plumas de cisnes, acariciava-nos com ternura.

Eu, certamente, teria cedido aos seus encantos, não houvessem meus olhos encontrado, assim que adentráramos a sala do banquete, uma amazona que tinha a imensidão da Expansão em seu olhar e campos de lírios cobrindo e perfumando sua alvíssima tez.

Meu desejo tornara-se sobremaneira evidente. E embora muitas vezes quisera levantar-me e falar-lhe; contive-me, na esperança de que ela viesse ter conosco à mesa.

Percebendo que não somente se absteria de vir à mesa, mas também não se demoraria a partir porquanto, já apoiada aos pilares que davam para a saída da casa, despedia-se da velha senhora que a acompanhara até ali levantei-me e dirigi-me rapidamente até ela, a despeito de agir com rudeza para com o bondoso anfitrião.

“Eia, jovem infante! Ó tu, cuja beleza inebria-me com mais eficácia que o bom vinho que nesta casa foi-me servido, não

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20 O VALE DAS TORMENTAS

negues a este humilde servo o prazer de tão sublime companhia.”

“Nada tenho contigo, jovem aprendiz. Volta para as que são livres para ouvir tuas lisonjas.”

Caminhando na direção dos arreios, fez saber aos servos que ela mesma encilharia sua montaria.

Eu não sabia o que fazer, pois não queria que ela partisse, mas seria rude se a tentasse impedir de qualquer modo.

“Nada tenho eu com elas. Meus olhos foram para ti quando chegaste e acompanhavam-te quando saías. E agora estão cegos para qualquer beleza que não seja a tua. E também os meus ouvidos estão surdos para quaisquer palavras que brotem de outros lábios que não sejam os teus.”

“Como podes declarar tamanho embuste? Acaso fui-te dada a conhecer? Nada sabes sobre mim senão o que teus olhos te dizem. E cuida que podem pregar-te maior logro que este que teus lábios acabam de declarar.”

“Não há dolo algum nas palavras que saem de minha boca, nem tampouco no que veem os meus olhos. Não me queiras mal. Apenas rogo que me concedas um pouco de tua atenção.”

Julguei que de algum modo minhas palavras houvessem lhe causado certa compaixão, porquanto um leve sorriso começava a adornar-lhe a face. No entanto, quando pensei que desceria de seu cavalo e viria até mim, ela virou-se e partiu com o vento.

Também a velha senhora, fonte de quaisquer úteis novas sobre a que tão apressadamente partira, havia-se recolhido à penumbra de seus aposentos.

Então, com uma desculpa em minha mão direita, voltei à mesa onde deixara Elam e Sahel; mas, antes que pudesse dirigir-lhes o inquérito de meu coração, o Grão-Mestre já se pusera de pé ao nosso lado.