o livro das eras - o chorar dos anjos, livro ii

289
1

Upload: vinicius-littig

Post on 11-Mar-2016

451 views

Category:

Documents


33 download

DESCRIPTION

Segundo livro da saga amadora "O Chorar dos Anjos". Todos os direitos reservados!

TRANSCRIPT

Page 1: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

1

Page 2: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

2

Page 3: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

3

Vinicius Littig

O Livro das ErasO Chorar dos Anjos – Livro II

Editora Bookess2012

Primeira Edição

Page 4: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

4

Page 5: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

5

Dedico este livro aos meus fãs, aos meus amigos e à minha namorada, Ana Ruth Gomes. Obrigado por serem minhas pernas e músculos nessa grande

e, aparentemente, interminável caminhada.

Page 6: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

6

Page 7: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

Cap. 32 – Capa Negra

manhã apenas raiara e Qlon já estava de pé. Sua mestra estava pe-gando muito pesado nos treinamentos de concentração na última se-mana. De acordo com ela, um corpo bem centrado é a chave para

um bom guerreiro. Como o físico dele havia tornado-se praticamente perfeito com o treinamento sobre uma grande gravidade, boa parte do treinamento poderia ser pulada. Agora ele precisaria desenvolver sua concentração e talentos sociais, ou algo do tipo. Se ele deveria aprender magia, precisaria desenvolver a mente.

A– Vamos lá, Qlon. Mantenha o foco. - Pedia Lua enquanto seu pupilo medi-

tava na posição de lótus em cima de uma pedra.

– Manter o foco em... Ai! - Perdera a concentração assim que sua mestra o acertou pela quinta vez na cabeça com uma vara.

– Não me responda! Esqueceu do motivo do treinamento? Manter o foco. Não abra os olhos, não se mova, não pense. Esvazie a cabeça.

"Depois de regressarmos, algumas coisas aconteceram. Primeiro contei tudo que aconteceu nos sete céus para Lua. Como ganhei as asas negras, como fui salvo... Também contei aquilo que havia aprendido sobre seu passado. Isso a deixou meio chocada, mas parecia que ela já imaginava algo parecido. Não se abalou muito, ao menos não em minha presença. Começou a lecionar com dedi-cação e ardor. Aliás... Ardor demais. Tanto que eu mal tinha tempo de fazer mi-nhas necessidades básicas, como dormir e comer. A maior parte do tempo eu es-tava sendo esmagado com tarefas.

Coisas menos importantes também. Precisei de um novo uniforme. Com as roupas desgastadas que eu estava parecia um mendigo em meio aos alunos. Também fiquei com uma cicatriz no ombro, resultado do meu embate no quinto céu. Apesar de a roupa esconder, ela incomodava um pouco. Cortei as pontas chamuscadas de meu cabelo, mas isso não alterou muito minha aparência. Na verdade, alterou. Não sabia cortar, então algumas mechas ficaram maiores do que outras. Não havia conseguido sequer tocar nos livros que ganhei de Viruel. Ainda estavam em minha bolsa, intactos, junto das lembranças de Zarat. Não re-cebi mais notícias de Nisroc, também não tinha mais a pena que ele me dera.

7

Page 8: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

Ainda assim, sabia que um dia nos encontraríamos novamente. Por fim, quanto às minhas asas, Lua concordou em usar um encantamento que as escondesse completamente, até mesmo do toque. Era como se elas sumissem no ar, sim-plesmente. Os anjos o proferiam muito quando visitavam os mortais, era apenas um disfarce. A parte boa era que até mesmo vestir as roupas tornava-se menos incômodo."

O sol aos poucos nascia e passava pelas frestas da montanha, incomodando. Aquela luminosidade clareava suas pálpebras e deixava seu treinamento mais di-fícil. Apesar daquilo, não poderia fugir dele tão facilmente.

– Não apenas a essência da magia, mas a essência do combate estão na sua concentração. Seu físico pode estar bom, mas nada adianta se não puder usá-lo corretamente. Movimentação, pontaria, percepção... Nada disso usará corretamente se não souber manter o foco, concentrar.

– Mas mestra, não acha que sou muito novo para... Ai! - Sexta vez.

– Aprender a concentrar-se não precisa de idade adequada. Sei que o prin-cipal problema das crianças é como dispersam a rica imaginação. Os pensamentos são muito vagos e rápidos, mas ainda assim pode apren-der. Agora, apenas mantenha os olhos fechados e a cabeça vazia.

– E como uma mente vazia pode... Ai! - Sétima.

– Quando a sua mente está perturbada com problemas, a calma não se faz presente. Ela vagueia com soluções ineficazes e que, muitas vezes, aca-bam gerando mais problemas do que resultados. Ou seja: sem a calma, sua mente vira um caos. Quando a mente é esvaziada e o foco retorna, o problema pode ser visualizado com mais clareza e resolvido mais facil-mente. Aplica-se também ao campo de batalha: como movimentar-se, perceber o inimigo, reagir... A concentração torna-te letal.

– Entendo. E você acha que meu pai... Ai! - Oitava.

– Sim, com toda certeza. Agora volte a meditar e não pare até eu mandar. E se dormir, prepare-se para um castigo...

...

As horas passaram arrastando-se. Quando foi meio-dia Lua interrompeu o trei-namento e mandou ele ir alimentar-se. O castelo da Base. Fazia tempo que não o via. Desde que voltou de sua primeira missão, passou a pensar naquele lugar como uma segunda casa, algo que, de certa forma, realmente era. Apesar disso, mal conversava com as pessoas. Gostava de passar despercebido a maioria das vezes, apenas fazia o necessário lá: comer e usar o banheiro. Mas este dia seria diferente: era o primeiro domingo desde que voltara. Sua mestra havia dado per-missão para ter a tarde de folga, e usaria para... Estudar.

8

Page 9: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

"Não havia muito a fazer lá dentro. Era uma instituição dedicada ao ensino mi-litar. Algumas crianças tiravam o dia para brincar ou divertir-se com outras coi-sas. Bem, para mim era divertido ler, e eu faria justamente isso. Peguei o livro de capa negra na minha bolsa, cujos dizeres em dourados significavam 'O Livro das Eras' em idioma angelical. Coloquei-o na dobra de minhas vestes e rumei para a biblioteca."

...

A luz do meio-dia não chegava no recinto que era banhado apenas pela luz emanada das chamas dos archotes presos às paredes. Poderia escolher uma mesa para sentar em qualquer que fosse o andar, menos o depósito. Mas antes de sentar, precisava encontrar algo. Dirigiu-se, então, à bibliotecária:

– Com licença...

– Sim, posso ajudar? - Uma doce e fina voz respondeu do outro lado do balcão.

A voz vinha de uma simpática anja de apenas duas asas, com um largo sorriso em seu rosto. Tinha curtos cabelos pretos e lisos que mal tocavam suas orelhas. Uma pele mais escura contrastava com seus belos olhos azuis cristalinos. Usava uma roupa comum aos serviçais do castelo, muito parecida com a de Sheha-quim.

– Talvez possa. Gostaria de saber se possuem algum dicionário da lingua-gem celestial aqui.

Viruel havia explicado que nem todas as palavras em celestial e enoquiano possuíam um significado, e por isso, para traduzir aquele livro, precisaria de um dicionário. Ela olhou para ele com olhos desconfiados, mas respondeu, amigavel-mente:

– Sim, a biblioteca possui. Nosso acervo, com toda certeza, é o maior de todo o mundo. Ao menos em livros que possam transmitir conhecimento. Mas... Posso saber para que precisa de um?

– Bem, eu... - Complicou-se Qlon. Como revelaria aquilo sem entrar em uma situação difícil?

– Ah sim! Você é Qlon W. Eros, não é mesmo? Aquele que está sendo mestrado por Lua...

– Sim, sou.

– Então, já está aprendendo o idioma celestial? Ele geralmente só é minis-trado a anjos mais velhos, perto da formatura. Ainda assim, só para aqueles que desejam. Ela deve estar dando um treinamento diferencial, não é?

9

Page 10: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

– Com toda certeza. - Não mentiu.

– Bem, poderá sim achar dicionários. Estão no primeiro andar, corredor 85.

– Se não se incomoda, poderia também me indicar algum livro no idioma angelical para leitura?

Se aquele era realmente o acervo que ela dizia ser, teria, com toda certeza, os dois livros passados a ele por Raziel. Precisava saber se eles estavam ali tam-bém. Sentir-se mais em paz com sua consciência.

– Sim, existem! Mas, para sua infelicidade, eles são permitidos apenas aos mestres e aos sábios que, por ventura, visitam o acervo. Crianças de sua idade não podem nem pensar em chegar perto do acervo proibido! Quan-do tiver cerca de 300 anos e muitas mortes em seu histórico poderá pro-curá-los.

Isso o desanimou um pouco. O livro que estava lendo era ilegal a ele no mo-mento, por certo. Engoliu em seco e tocou as dobras de suas vestes, para ter certeza que seu livro estava ali.

– Mas, caso queira, posso ajudar com as aulas passando algumas frases simples e...

– Obrigado por ofertar, mas não precisa incomodar-se com isso. Poderia indicar-me então onde fica o corredor 85?

– Claro. - Apontou para um corredor qualquer no meio das centenas deles.

– Obrigado.

– Qlon, eu não ia perguntar, mas... Por que oculta suas asas? Aliás, já aprendeu este feitiço?

– Não, ainda não. Minha mestra que use sua magia para escondê-las. E oculto-as pois... Porque...

– Devo imaginar. É mais fácil usar suas vestes assim, não é? Além de eco-nomizar muito espaço...

– Com certeza é.

Qlon tinha em mente que, cedo ou tarde, por suas últimas ações, tornaria-se um caído. Mas, ainda assim, tinha sua honra: não mentiria. Evitava as perguntas com respostas que poderiam comprometê-lo e, quando não podia responder a elas, procurava achar outro assunto ou esperar que desistissem dela.

– Bem, nós, anjos, somos orgulhosos e gostamos de exibir nossas asas neste reino, mas eu o entendo. Também uso o encantamento para trocar de roupas. De qualquer forma, não se habitue muito com ele. Dizem que,

10

Page 11: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

quando conjurado por muito tempo, o encantamento não tem mais volta.

Mas não era por muito tempo, apenas enquanto treinava. Apesar de ser reco-mendado do contrário por sua mestra, dormia com suas asas nas formas origi-nais, mesmo com ela oferecendo-se para continuar o encantamento pela madru-gada. Claro que não abusaria de sua bondade, ninguém iria visitá-lo enquanto estivesse dormindo.

– Obrigado pelo conselho. Agora vou estudar um pouco.

– Por nada, volte sempre que precisar de ajuda.

Ele dirigiu-se ao corredor 85 e analisou as prateleiras. Encontrou vários dicio-nários para várias línguas: élfico, inglês, arcano... Mas, por fim, achou o que pro-curava: um enorme dicionário Latim – Celestial e Enoquiano / Celestial e Eno-quiano – Latim. Realmente enorme... Deveria ter mais de mil folhas e uma capa grossa, empoeirada e desgastada pelo tempo. Pegou-o com certa dificuldade, mas após suportar uma gravidade 10 vezes maior que a que estava agora, aquilo era pouquíssimo. Não teria pegado sem essa ajuda. Foi para uma cadeira mais afastada que encontrou da bibliotecária e sentou-se. Colocou o pesado dicionário aberto em um apoio inclinado para livros que havia em todas as mesas. Dentro dele colocou seu livro de capa negra, e passou a lê-lo sigilosamente...

Primeira Era

E, no princípio, o tudo era nada, e o nada era tudo. E deste nada, em um ponto qualquer de uma folha, surgiu a primeira gota de tinta: a essência di-vina. Assim foi chamada a essência que daria origem ao universo. Quanto a tal folha, não se sabem as dimensões: ela pode ser infinita ou pequena o suficiente apenas para caber a gota de tinta que chamamos de espaço. A essência divina, então, explodiu. Uma enorme explosão, que passou a dar forma a tudo que um dia existiria através do chamado tempo. Mas o univer-so estava parado. Congelado, sem vida, sem movimento. Era apenas maté-ria inanimada e sem calor.

Mas a essência divina não havia perdido-se completamente naquela ex-plosão. Os seus resquícios geraram os chamados deuses, que nada mais são do que parte da grande energia inicial. Eles vieram de todos os cantos do universo e uniram-se com um propósito: criar a vida. Para serem admira-dos por sua criação e para encher de calor aquele espaço vazio e inanima-do, frio. E, a partir dai, precisariam criar a essência daquilo que cumpriria seu propósito principal. Pensaram em sua sabedoria ilimitada: Se estavam vivos e o motivo principal disso era a essência divina, para criar a vida pre-cisariam também de doar à sua criação um pouco desta mesma essência.

"Daremos à vida nossa forma, nossa essência. E toda a vida carregará dentro dela a nossa existência, e serão gratos por isso!"

11

Page 12: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

Deste ponto em diante, juntaram um pouco de seu poder para criar uma nova essência, uma nova forma, que emanaria a energia de seus criadores. Então surgiu a "vida". Uma semente, apenas. Não surgiu nenhuma criação nova, apenas uma esfera irradiante cheia de poderes. Ela deveria ser usada para algo...

"Usemos esta nova forma como usamos nossas mentes. Vamos imaginar nossas criações e, então, retirar da esfera tudo que desejarmos que viva. E às primeiras criaturas que dela surgirem vamos dar nossa forma, e elas se-rão gratas por isso!"

Mas, sem em nada pensarem ou agir, a esfera dividiu-se em dois seres idênticos. Um deles possuía 9 asas claras e o outro 9 asas escuras. Idênti-cos de rosto e corpo, não fosse por este simples detalhe em suas costas. Eles foram os primeiros anjos a nascer. E os deuses proferiram:

"Esta cor clara... Este com certeza nasceu da vida. Olhe seus belos orna-mentos nas costas! Irradiam como a essência da luz que o deu origem. Este é um belo ser... Mas o outro... Olhe para suas asas negras, turvas. O univer-so em si é a falta de luz... Este anjo não foi criado pela vida, é apenas uma aberração! Não o descartaremos, pois veio do mesmo lugar de seu irmão, como nós viemos. Mas este ser não terá todo o respeito e prestígio que da-remos ao seu semelhante. Este ser que representa o oposto da vida, que chamamos agora de 'morte', viverá às sombras dele por toda a eternidade."

__________ e __________, assim serão chamados.

Logo ao chegar ali, Qlon enfrentou seu primeiro problema na leitura do livro. Dois símbolos que não existiam no enorme dicionário que pegara. Aliás, achara isso muito estranho, pois até então tinha conseguido decifrar todas as simbolo-gias facilmente, como "vida" e "morte", que ganharam representação especial. De toda forma, estava ficando tarde. Passara horas ali traduzindo o texto e pro-curando palavras específicas naquele enorme dicionário. Quando a sombra caís-se seria a hora do jantar, e aos domingos o jantar era especial. Jantar com todos os outros alunos e mestres era quase que uma tradição. Também eram passados certos avisos e tarefas semanais, geralmente nada de importante. Enfiou discre-tamente seu livro nas vestes, pôs o dicionário no lugar, e foi para o salão princi-pal.

Andava sempre com a Sanctus em sua cintura. Havia tornado-se um hábito desde que ouvira o que Nisroc dissera sobre ela. Queria desvendar seus segre-dos sozinho, sem a ajuda das inscrições da família. Mesmo por que sabia que nem mesmo elas continham tudo sobre aquela magnífica arma.

– Qlon! - Alguém chamou-o no corredor. Era sua mestra, Lua.

– Sim, mestra?

12

Page 13: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

– Então era aqui que estava? Maldito castelo enorme... Antes de...

– Já sei, o encantamento. Não é?

– Sim, é. Vamos para um lugar discreto.

Ela o arrastou para um dos corredores isolados das salas usadas como depó-sitos e pediu para que ele mostrasse novamente suas asas.

– Exhibere alas! (Exibir asas!)

Suas asas apareceram novamente, e então passou a proferir o encantamento que mudaria a cor de suas asas negras. Acabado isso, voltaram a andar pelos corredores:

– Mestra, por que ainda não me ensinou esse encantamento? Pouparia seu esforço.

– Com certeza pouparia, mas você ainda não está pronto para aprender,

– Por que não?

– Qlon, este é um encantamento que só funciona quando o usuário está concentrado. Por que motivo acha que estou focando o treinamento nes-te ponto?

...

– Alunos, atenção, por favor!

Silverius gritava de sua cadeira tentando conter as conversas espalhadas pelo salão principal. Quando conseguiu acalmar as vozes, prosseguiu:

– Obrigado. Os alunos mais velhos já devem saber disso, mas os alunos mais novos ainda não. A cada estação do ano realizamos um evento. É um evento obrigatório, então absolutamente TODOS os alunos deverão participar, fui claro? - Pareceu olhar diretamente para Qlon enquanto fala-va. - E em que consiste este evento? Cada mestre dará uma tarefa a seu pupilo. A tarefa que cada mestre escolher estará apenas a seu encargo, não há restrições. Mas não se preocupem, alunos novos, eles jamais irão pedir algo que não possam realizar. De fato, esta tarefa pode envolver desde uma simples pesquisa a uma missão de sobrevivência em uma das florestas das ilhas-satélite, então fiquem atentos ao que seu mestre pedir.

Qlon olhou de súbito para sua mestra, que mantinha uma expressão maliciosa na face. Voltou então a ouvir o que Silverius dizia:

– Qual é o motivo destas missões? Apenas um: uma avaliação esporádica dos soldados que estamos treinando nesta instituição. Haverá alguma re-

13

Page 14: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

compensa? Sim, haverá. O prêmio é sempre um segredo. E como será o método de julgamento, por fim? Aqui na Base dividimos as missões em 5 categorias: muito fácil, fácil, mediana, difícil e muito difícil. Também há um critério avaliativo para cada missão completada com sucesso: quase um fracasso, ineficaz, normal, eficaz e magnífico. Alguma dúvida?

Qlon imediatamente levantou o braço.

– Senhor Silverius, estas missões não atrapalhariam nosso treinamento? E também, vencer esta “gincana” será útil para algo, algum dia?

– Boas perguntas, pequeno príncipe. Vejo que é muito curioso. - Disse ele com um pouco de ironia em sua voz. - As missões serão dadas no lugar dos treinamentos. Ou seja: cada mestre irá avaliar a missão que melhor couber ao seu aluno e só então designá-lo. Quanto à utilidade desta gin-cana, ela contará em seus documentos oficiais como soldado. Tudo será anotado: dificuldade, eficácia, idade com que realizou e, caso ganhe uma destas “gincanas”, será dada uma medalha honorária. Cada medalha pode significar uma patente maior ou menor dentro do exército. Mais al-guma dúvida, senhor Eros?

– Não... Apenas isso, obrigado.

– E, antes que eu me esqueça, - Finalizou o vice-diretor. - lembrem-se que podem ser destinados a tarefas letais. É raro algum aluno morrer durante a missão, mas já aconteceu a alguns séculos atrás. Por isso, dediquem-se. Era apenas isso. Terminem sua refeição e tenham uma boa noite.

Ao acabar seu longo discurso, retirou-se rapidamente do recinto. Uma balbúr-dia fora gerada: alunos novos que choravam com medo do que podia acontecer a eles, alunos mais velhos tentando acalmar e explicar a situação, mestres con-versando entre si. Menos Lua, que olhava sadicamente em direção a seu pupilo. Levantou-se suavemente e foi até seu lado. Abaixou o corpo e sussurrou em sua orelha:

– Não queria ser o melhor soldado de todos? Eis sua chance, Qlon. Duran-te os anos que passar aqui, será bom se conquistar estes títulos e honra-rias. Se o ensino básico acaba aos seus quinze anos e o ano possui qua-tro estações... Vejamos... Isso dá um total de 40 medalhas.

– Saberia informar-me se meu pai ganhou alguma?

– Alguma? Qlon, seu pai é o atual recordista em medalhas. Ele ganhou 36 em sua estadia aqui. Apenas não conseguiu as do último ano pois deci-diu ignorar estas missões e focar em seu treinamento como combatente.

– Então ganharei as 40. Há algum meio fácil?

14

Page 15: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

– Sim, há. Ser “magnífico” em uma missão “muito difícil” para sua idade.

– E é difícil ser “magnífico” em uma missão considerada “muito difícil”?

– É claro, pois ela significa uma pontuação 10 na escala de 10.

“Explicarei melhor o sistema de avaliação, que era demasiado simples. A pon-tuação era uma somatória do grau de dificuldade e eficácia: 'muito fácil' valeria apenas um ponto, e em ordem crescente, a mais difícil valeria cinco. O mesmo se aplicava a eficácia. Quanto melhor, mais pontuação.”

– E se houver empate?

– Um comitê será formado para escolher qual foi o maior merecedor, consi-derando a missão dada e a perfeição que ela foi executada. Serão então adicionados mais dois pontos auxiliares: “extremo” para dificuldade e “perfeito” para eficácia. Quem chegar aos 12 pontos...

– E se ainda assim houver empate?

– Um combate entre aqueles que empatarem. Mas não se preocupe com isso agora, mesmo porque um caso extremo assim jamais aconteceu. Preocupe-se primeiro em sua missão...

– Mas e se mesmo no embate houver um empate?

– Qlon, pare de perturbar-me. Quer suas asas negras expostas?

Qlon engoliu seco enquanto sua mestra inspirava forte para acalmar-se.

– Crianças...

– Mestra, posso fazer apenas mais uma pergunta?

– ... Faça logo antes que eu perca o controle.

– Caso fosse avaliar a minha missão no reino celestial como o juiz deste jogo, qual seria a nota?

– Oito.

– Apenas oito?

– Sim, e merecidamente. Apesar de a missão ter sido “extrema”, utilizou de ajuda de terceiros para alcançar suas metas, além de ter quase morrido diversas vezes, sido capturado uma, revelado seu objetivo a inimigos e, por fim, deixado um de seus parceiros morrer. Voltou de sua missão com o que viera buscar, adequou-se bem aos desafios, mas quase fracassou. E se acha que estou sendo dura, lembre-se que quem irá julgar-te não sou eu. Será Silverius. Agora, se me der licença, quero pensar no desafio “extremo” que darei ao meu amado aluno. Bom apetite!

15

Page 16: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

Cap. 33 – A Primeira Missão

ra, por certo, um perigoso desafio. Para um aluno de sua idade e atual conhecimento de combate, quase uma missão suicida. Lua olhava para Qlon com um sorriso no rosto. Impressionara, assim como quis. Do ou-

tro lado da mesa daquela simples cabana, Qlon olhava para ela com perplexida-de. Afinal, o que ela desejava com aquilo? Matá-lo? Provar sua incapacidade, in-fantilidade?

E– Mestra, eu...

– Não diga nada, Qlon. Pode recusar a tarefa, é um de seus direitos.

– Recusar eu não vou. Gostaria apenas de entender... Por quê?

– Pois confio em sua capacidade, Qlon. Oras, você adentrou, sozinho, os sete céus com um plano de própria autoria. Resistiu torturas inimaginá-veis. Passou no teste das virtudes por mérito. Resistiu a uma batalha contra dois querubins guardiões. Tudo bem que eles não chegaram a usar seus poderes, talvez pelo susto que passaram tendo um invasor em milênios. Ainda assim, Qlon! Você é forte. As experiências deixaram-no mais forte, até mesmo uma enorme gravidade ajudou! Tenho certeza que será apto!

– Então o que a senhora disse ontem sobre...

– Como eu disse, era de um ponto de vista imparcial: o mesmo que o vice-diretor, Silverius, usaria.

Qlon leu novamente aquela inscrição em um pedaço de papel manchado pelo sangue de sua mestra – símbolo que dava crédito a missão. “Matar e trazer o corpo de um demônio qualquer.”

– Acha que posso conseguir?

– Já disse que sim.

– Mas e os alunos mais velhos? Eles também estão aptos a matar demô-nios, não é?

16

Page 17: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

– Sim, estão, e provavelmente muitos mestres darão a esses pupilos esta missão. Mas é como eu disse, tudo é relativo. O que você acha que vale mais? Um adolescente de 14 anos que matou um demônio após ser pre-parado durante anos para tal ou uma criança de apenas 5 anos, que mal treinou e, mesmo assim, conseguiu aniquilar um demônio?

– Eu não tenho certeza se vou...

Lua, imprevisível como sempre, esbofeteou seu rosto.

– Qlon Warrior Eros, não há tempo para covardia ou dúvida! Foi dada uma missão, soldado! Se cumpri-la estará apenas realizando seu papel, se desacatá-la será exonerado de seu posto! Nem parece o mesmo que, com tanta força de vontade, se ofereceu para invadir os sete céus...

– …

– Acha que o tratamento será diferente no exército, Qlon? Se for dada uma missão, você deverá aceitar sem titubear. Você vai aceitar esta missão.

– E se eu recusar?

– Provavelmente será enviado para casa.

– Provavelmente?

– Não lembro ao certo se no código disciplinar da Base é citada uma pena de morte por traição desta natureza.

– …

Qlon releu o papel ainda mais uma vez. Ao menos era um demônio qualquer, não havia uma especificação.

– Apenas como um “incentivo”, não retornarei com o treinamento antes de completar a missão. Aliás, é mais ou menos isso que todos os mestres fazem de qualquer jeito.

– Em troca desta missão, poderia pedir um favor seu, mestra? - Tentou ne-gociar Qlon.

– A missão é sua obrigação, nada mais. Não tenho que dar nada em troca.

– Sei que não, mas é que preciso de uma certa informação para ler o Livro de Capa Negra...

– Então, finalmente começou a leitura dele?

– Contando que apenas ontem eu tive tempo livre, sim. Mas, continuando... Já expliquei que, quando recebi este livro, me disseram que eu poderia achar muita informação útil sobre a origem de meus poderes nele, certo?

17

Page 18: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

Mas, logo no começo, há dois símbolos que não consigo decifrar, nem mesmo com o auxílio do dicionário...

– Deixe-me ver...

Qlon mostrou a ela os dois estranhos símbolos sem tradução. Nem ela pare-ceu reconhecê-los.

– Qlon, até mesmo eu desconheço estes símbolos.

– Por isso mesmo quero sua ajuda! E se não pode fazer isso como agrade-cimento por eu ter aceitado essa missão, apesar de achar que a palavra “aceitar” fica meio estranha junto a algo imposto, então faça para me agradecer por ter descoberto parte do seu passado!

Lua olhou-o com um semblante triste. Tinha vontade de dizer que seria mais feliz se nunca tivesse descoberto sobre antes de ser resgatada por Freutz e ter uma nova vida iniciada naquele lugar. Mas agora não tinha mais meios de voltar atrás, a curiosidade levou-a para sua própria infelicidade.

– Tudo bem, Qlon, eu ajudarei. Mas como acha que posso fazer isso?

– Há uma seção reservada com livros no idioma celestial na biblioteca. Pesquise em algum dos livros estes dois símbolos e, assim que eu com-pletar minha missão, pedirei o significado. Caso nem assim consiga en-contrar, tudo bem, eu tentarei pensar em outra coisa.

– Entendo... Acho que posso ajudar com isso. - Disse Lua, analisando no-vamente os símbolos.

– Mestra, quanto à minha missão, acho que esqueceu-se de algo.

– Do que esqueci? - Perguntou com uma voz repreensiva.

18

Page 19: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

– Esqueceu que já estamos na segunda semana de outono. A esta hora os campos devem estar vazios. Como encontrarei um demônio?

– Qlon, esta é uma guerra. Os dois lados possuem suas táticas. Os demô-nios têm entre eles guerreiros e bestas mais resistentes ao frio que per-manecem aqui, neste continente, dentro de florestas, cavernas... Apenas esperando o momento certo para atacar algum pequeno vilarejo nas es-tradas entre as capitais ou uma chance de infiltrar-se nas cidades gran-des. Nenhum deles conseguiu muito até agora além de gerar algumas baixas entre os aldeões. As capitais são lacradas por magias fortíssimas em suas muralhas e até mesmo as cidades pequenas tem lá suas prote-ções. Mas, ainda assim, oferecem certo risco.

– Então quer dizer que...

– Não, o trabalho do exército não para durante os seis meses de frio. Além do planejamento e treinamento para a próxima temporada, soldados es-pecialistas em rastrear e eliminar estes demônios trabalham para livrar o continente dessas pestes.

– Compreendo... Então poderia dar-me algo muito útil para esta missão?

– O quê?

– Um mapa.

Lua sorriu. Agora sim ele estava se portando como o anjo precoce que era. Ela retirou das dobras de suas vestes um pergaminho dobrado e colocou em suas mãos.

– Sabia que não me decepcionaria.

Qlon também sorriu. Pegou a espada, colocou em sua cintura, checou sua bol-sa, depositou o mapa e o pedaço de papel descrevendo sua missão – que servi-ria como uma espécie de permissão especial para deixar a base – lá dentro, en-cheu o cantil de água na torneira da pia e, finalmente, abriu a porta.

– Vou começar o quanto antes. Sugiro que comece a pesquisa o quanto antes também, cobrarei assim que retornar! Até logo, mestra! - E saiu de seus aposentos.

– E então, posso passar ou não? - Qlon perguntou, impaciente.

O guarda examinava atentamente o pedaço de papel em que Lua havia anota-do a missão de Qlon.

– O que foi? Acha que falsifiquei?

19

Page 20: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

– Não, desculpe se foi essa a impressão que causei. É que... - O guarda da passagem entre as montanhas para a Base fitou Qlon da cabeça aos pés. - Tem certeza que sua mestra passou essa missão? Não parece ter idade o suficiente para...

– Sim, foi essa mesma a missão que ela me passou. Acredite, também es-tou chocado.

O guarda abriu um sorriso preocupado.

– E acha que pode dar conta disto?

– Não sei. Só vou descobrir tentando, não é mesmo?

– Sim... É mesmo filho de seu pai, Qlon Warrior Eros. - O guarda abriu a passagem. - Pode prosseguir. Tome cuidado, e boa sorte.

– Obrigado, mas... Eu devo realmente tomar esta passagem novamente? Quero dizer... Já passei por ela antes para entrar aqui.

– Se quiser se arriscar entre as montanhas, um labirinto com riscos de ava-lanches eminentes, ou por cima delas, onde bestas aladas muito podero-sas habitam para guardar a passagem, a escolha é sua.

– As bestas não me deixariam passar?

– Não, elas são encantadas magicamente para obedecer apenas ao dire-tor. Provavelmente seria aniquilado.

– Compreendo... Sabia que seria bom um pouco de informação antes de partir.

– Acredite, Qlon, todos aqui gostariam que essa não fosse a única passa-gem possível. Há relatos de anjos serviçais que morreram perdendo-se nessa caverna, ou sendo atacados por monstros.

– Monstros? - A informação extra confundiu a cabeça do jovem anjo.

– Dizem que é apenas um mito, claro. Não se preocupe tanto assim. Tome o mesmo caminho que tomou antes e não se perderá.

– Mesmo por que não vi um caminho alternativo.

– Você só não reparou direito pois a iluminação que carregava deveria ser insuficiente. Tente olhar para as paredes enquanto segue seu caminho.

– Farei isso. Obrigado pelo conselho, mas agora devo apressar-me! Até breve! - Disse Qlon, entrando na caverna e acenando enquanto sua ima-gem sumia na escuridão.

20

Page 21: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

O caminho estava escuro. Qlon retirou o lampião de sua bolsa e acendeu-o. Jamais pensou que voltaria a tomar aquele caminho um dia... Passou pelo pe-nhasco onde conheceu Lua voando. Andou novamente pelo imenso corredor com archotes nas paredes, agora apagados. Quando tomou o caminho do desfi-ladeiro mais uma vez, começou por fim a notar as paredes. Túneis as perfura-vam, espalhados pelos mais diversos cantos. Não podiam ser visualizados muito bem já que a luz não era tão forte, mas podia ver que cada um tinha cerca de um metro de diâmetro.

“Apesar de curiosos, não tinha tempo para explorá-los naquele momento. Se não fossem as estalactites e o risco de elas despencarem com um leve bater de asas, eu me atreveria, pelo menos, a ver tais orifícios. Continuei minha caminha-da até a saída e cortei os galhos que a tapavam com a Sanctus, que queimaram suavemente em suas pontas, igual à última vez. Logo que saí eles regeneraram-se novamente, bloqueando mais uma vez a entrada da Base.”

“A minha primeira missão era difícil, mas eu tinha um plano. De acordo com minha mestra, existiam soldados especializados a matar estes demônios 'fora de temporada'. Primeiro eu deveria encontrar um. Então eu fui ao local mais prová-vel de encontrar tal ser: a base do exército de Seal. Era também a única cidade que eu conhecia, então teria de rumar para lá de qualquer jeito. Voei para no-roeste por alguns minutos, afinal, não era tão difícil assim encontrar a maior cida-de do continente, com seus doze castelos ao redor e o maior castelo de todos do continente ao seu centro.”

Aterrissou a algumas centenas de metros da entrada e andou o resto do cami-nho, escondendo suas asas negras, até colocar os pés no piso pavimentado mais uma vez. Estava nos portões maciços de ferro de Seal, com mais de cem metros de altura e cinquenta de largura, de frente para os guardas armados. Eles fitavam-no, provavelmente indagando o que aquela criança sem asas estaria fa-zendo ali. Teria ele fugido da base ou era um humano que alcançou os céus? Mas, assim que ele entregou o papel, eles permitiram sua passagem.

“Apenas mais uma relevante informação: sair de Aeria voando, por cima dos muros, qualquer anjo podia. Mas entrar não. A magia que protegia a cidade era específica: nada entra. Não havia nada determinando a saída. A magia tinha a forma de uma cúpula que pairava cerca de dois quilômetros acima da cidade, e tinha os castelos como seus pontos geradores. Era dos doze ao redor que saia a energia necessária para manter o escudo ativo, energia essa que se unia na ponta da mais alta torre do castelo real, que ficava no centro de Aeria...”

Passando pelos portões, uma dúvida abateu-o enquanto andava pelas largas ruas, cheias de anjos que o fitavam com estranheza por esconder suas asas, até a base militar: deveria ele visitar sua mãe? Sentia falta dela, e ela provavelmente ajudaria com comida ou abrigo. Isso contaria na hora de julgar seu rendimento na

21

Page 22: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

missão. Preferiu apenas cumprir o que ora ordenado. Ao chegar na Base, falou com o guarda que permanecia imóvel na frente de um grande portão de barras de prata retorcidas:

– Bom dia, senhor guarda. Poderia deixar-me ver um general? Tenho um assunto urgente a tratar.

O guarda riu. Apenas seu sorriso era visível em sua face, visto que seu grande elmo cobria todo o resto. Todos os guardas de uma mesma cidade usavam, basi-camente, uma mesma armadura. Completa, de elmos a grevas, da cor de aço puro, com um símbolo no peitoral indicando a cidade que pertenciam. Boa parte provinha de Aeria, mas as outras capitais e cidades menores também tinham seu contingente, que era usado, boa parte das vezes, para proteger a própria cidade durante uma guerra. As tropas mais valiosas, o exército real, estavam mesmo na capital, “a cidade dos doze castelos”.

“Quanto aos soldados, acho que nem preciso mencionar o óbvio: quanto me-nor a força e treinamento dos soldados, menores eram os postos obtidos. Arcan-jos e Serafins começavam, geralmente, com um posto de soldado dentro do exército. Se, durante o treinamento, conseguissem resultados excelentes, pode-riam ser colocados como capitães. Mas anjos iniciavam como soldados rasos e, muitas das vezes, com os menores postos, como vigias e guardas. Raros eram aqueles que conseguiam alcançar postos maiores, e os que conseguiam acaba-vam como senhores. Explicarei melhor a hierarquia dos postos dos exércitos an-gelicais mais à frente, quando for necessário.”

– Criança, tem algum horário marcado? Caso contrário não posso permitir sua passagem. - Respondeu, tentando conter os risos.

– Horário não tenho, mas tenho isso.

Qlon exibiu o pedaço de papel com sangue de sua mestra.

– Então já está na época dos alunos iniciarem as missões? Céus... O tem-po passa rápido. Mas espere... É essa a sua missão? Ou você é peque-no demais para a idade que tem ou tem uma mestra louca.

– Não obstante, essa foi a missão a mim conferida. Por favor, permita-me falar com um dos generais. - Tentou manter a postura de um adulto ao fa-lar, para conseguir respeito.

– Ei, vá com calma... - Dizia o forte guarda por trás de seu elmo. - É impos-sível vir aqui e ser atendido assim. Agenda-se uma data e um horário para falar com eles. E ainda assim, seu caso não deve ser levado a um dos generais, todos andam sempre muito ocupados com os treinamentos táticos dados aos soldados, principalmente os que vieram da base. Trei-nam vocês para combater e seguir ordens, mas a situação aqui dentro é um tanto quanto diferente.

22

Page 23: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

– Então a quem devo levar minhas considerações?

– Leve para a torre da guarda de Aeria, é para lá que alguns alunos vão pedir conselhos quando são mandados em missões desse gênero. Ela está no centro da base. Vou deixar que vá, mas não desvie sua rota. - Disse ele, abrindo passagem.

– Pode deixar. Muito obrigado pelo conselho!

– Pequenino, se quer mais um conselho, é bom que abra as asas aqui dentro. Chamará mais atenção sem elas.

– Não se preocupe com isso, vou ficar pouco tempo aqui de toda forma. Novamente, obrigado pelo aviso.

– Por nada.

O guarda voltou a fechar os portões da entrada e ficou novamente em seu pos-to: no meio deles, vigiando o movimento das ruas de Aeria.

“Atravessei o pátio de treinos a passos curtos. Eu podia ver os soldados ar-mando suas táticas. Linhas sendo formadas, variados tipos de guerreiros e ma-gos trabalhando em conjunto enquanto escribas anotavam registros em pergami-nhos. Um trabalho de equipe fora de série... Aquilo era ser um soldado. Mas, sem muitas delongas, rumei para a torre de defesa. Ela ficava no meio perfeito da Base, não era difícil de encontrá-la com todos seus mil metros de altura. Ela estava no centro do pátio de treinamentos.”

Bateu na porta de madeira com o batente de ferro na forma de um olho. Três batidas fortes e bem espaçadas, para todos que estivessem ali dentro ouvissem. Logo um arcanjo abriu a porta. Olhava com uma expressão nada amigável do alto de seus quase dois metros de altura para o pequeno anjo. Tinha uma bela face, não fosse por uma cicatriz no canto esquerdo dos lábios. Tinha longos e se-dosos cabelos negros, preso em uma trança que chegava à metade de suas cos-tas. Seus olhos eram de um tom arroxeado, opacos. Usava um traje incomum para um soldado. Não portava armadura: camiseta branca simples, jaqueta de couro e calças negras, com a boca das pernas presas junto à bota de solado me-tálico e cano alto que chegava até o joelho, apertada por longos cadarços. Carre-gava um arco longo nas costas, junto com uma aljava de flechas.

– O que faz aqui, pequeno? Por acaso veio pesquisar algo quanto a este posto do exército? Não vou responder perguntas.

– Vim aqui como minha missão. - Respondeu Qlon, entregando a ele o seu novo “passe livre”.

O arqueiro leu. Releu. Leu ainda mais uma vez e voltou a fitar Qlon, que estava

23

Page 24: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

ali parado, apenas observando.

– Qual é a sua idade, garoto? - Perguntou o estranho soldado.

– Cinco anos. - Respondeu Qlon, mantendo a calma.

– Isso é uma piada?

– Não, de forma alguma. O sangue neste pedaço de papel é o de minha mestra, posso confirmar caso seja necessário.

– Cinco anos? Você é suicida ou sua mestra é louca?

– Pela quantidade de vezes que ouvi isso hoje, acredito que seja a segun-da opção.

O arqueiro mal-humorado sorriu com o canto de sua boca, mas logo voltou ao seu humor natural.

– Bem, se esta é realmente sua missão... Não vejo por que recusar. Venha, entre. - E deu espaço para que Qlon entrasse, afastando-se da porta.

O interior da torre era cônico e terminava em apenas uma sala no seu topo. A base deveria ter uns sessenta metros de raio e o topo menos de cinco. Uma es-cadaria passava por dentro paredes e subia em espiral até o topo, circundando diversas salas apoiadas nas paredes. No saguão de entrada estava o que mais parecia ser um alojamento, com uma fogueira acesa em seu centro e vários sol-dados ao seu redor, tomando algo que parecia ser uma aconchegante sopa de um caldeirão que era esquentado por uma tímida fogueira. Todos em silêncio, al-guns sentados no chão de pedra e outros de pé, cuidando apenas dos assuntos de seu interesse. Junto às paredes, várias armas e proteções vestidas em mane-quins, mas nada de equipamentos pesados: apenas a couraça e, quando muito, manoplas e grevas. As armas acompanhavam o padrão: espadas curtas, arcos dos mais variados tamanhos, lanças simples de uma mão, adagas... Nada de muito complexo. Poucos escudos pequenos, geralmente de madeira, eram avis-tados pelos cantos.

– Está com fome? Se estiver, pode servir-se da sopa. - Dizia o anjo de es-tranhas feições. - Não é saborosa, mas por certo é bastante nutritiva.

– Não, mas obrigado por oferecer. Desculpe-me, senhor, mas nem sequer sei o seu nome...

– Meu nome é Bogard. Nataniel Bogard. Sou o chefe dos vigias do inverno. E você é...?

– Meu nome é Qlon. Qlon Warrior Eros. É uma honra conhecê-lo.

– Warrior? Mas que ironia... Bem, o que veio discutir aqui, criança? Preci-samos partir, logo começa a nossa longa vigília...

24

Page 25: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

Cap. 34 – Prova de Valor

eus passos eram curtos, porém ágeis. Nataniel foi até as paredes e co-locou uma espada curta no lado esquerdo de sua cintura, acompanhada de duas adagas na parte de trás e um machado pequeno do lado direito.

Pegou um escudo que era apenas uma roda de ferro com cerca de 40 centíme-tros de diâmetro e prendeu as tiras de couro, que ficavam do lado de trás do ob-jeto defensivo, no braço esquerdo. Estava contando suas flechas quando Qlon pensou no que dizer:

S– Senhor Bogard, gostaria que designasse a mim uma missão de caça a

um dos demônios que permanecem aqui durante os meses frios. De pre-ferência, eu gostaria de ir sozinho.

Os soldados entreolharam-se. Nataniel olhou para ele com olhos confusos. Logo, riu. Os outros acompanharam-no em uma audível gargalhada que ecoou pelas gélidas paredes de pedra daquele lugar. Qlon sentia-se envergonhado, mas não demonstrava. Aquilo que falava era sério, e ao perceberem isso, os sol-dados pararam. Nataniel dirigiu-se a ele, dizendo:

– Criança... Está mesmo falando sério?

– Sim, estou.

Nataniel foi até perto dele e agarrou-o pela camisa do uniforme recém-costura-da. Olhou no fundo dos seus olhos prateados e gritou:

– Como ousa insultar-nos assim?!

– Mas é minha missão! Você mesmo leu o papel e...

– E você acha que isso dá o direito de entrar aqui e pedir para ir em uma missão, sozinho?! Acha que é fácil, garoto?! Matar um “demônio gélido”?!

– Eu não quis dizer...

– Nós treinamos boa parte de nossas vidas para fazer isso. Passamos mais vinte anos naquele castelo, apenas para nos especializarmos. Re-sistimos a treinamentos que você nem sonharia. E ainda acha que pode

25

Page 26: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

chegar aqui e pedir para ir matar um demônio que passamos longos me-ses para caçar apenas com sua força? - Nataniel o jogou no chão duro e apontou a espada para sua garganta. - Tente convencer-me que é capaz, seu jovem tolo!

Qlon engoliu sua saliva e sentiu a ponta do aço tocar a pele de seu pescoço. Olhou para Nataniel, que estava visivelmente enfurecido. Pensando bem em suas palavras, disse com cuidado:

– Desculpe-me se pareci ter ofendido, senhor Bogard. Por certo, não era a minha intenção. Eu apenas disse que quero ir sozinho pois quero com-pletar a missão com o máximo de eficácia.

Nataniel acalmou um pouco seu semblante. Embainhou a curta espada e res-pondeu:

– Desconsidere completar a missão caso vá sozinho. - Disse, estendendo a mão para levantar Qlon. - Desculpe-me também por minha rudeza.

Os soldados passaram a conversar entre eles desta vez, gerando alguns mur-múrios desagradáveis.

– O que indica que eu faça então, senhor Bogard? - Perguntou inocente-mente Qlon.

– Não é comum um soldado quase graduado procurar-nos, Qlon. A maioria dos que ganham missões para aniquilar demônios entra em alguma tro-pa, apenas para pegar o ritmo do combate durante o verão. A última vez que vieram procurar-nos para este tipo de missão foi a quase duzentos anos atrás.

– E como sabe disso? É tão velho assim?

– Não, é por que fui eu. - Respondeu calmamente Nataniel. - E na época eu estava com dezenove anos. Isso também explica por que eu fiquei tão irritado quando disse que queria ir só. Achei que fosse um suicida.

– Como assim?

– Qlon, na época eu tinha dezenove anos e, mesmo com um tutor junto a mim, levei uma surra tão grande do demônio que quase morri. Estava cansado. A vigília dura até seis meses. Dorme-se, no máximo, quatro ho-ras por dia, quando muito. Meu tutor dormia duas, e mesmo muito mais cansado que eu, ele resistia bravamente lutando contra aquele monstro asqueroso. Demônios gélidos são muito mais fortes fisicamente que os comuns. Fora a capacidade que eles têm de resistir a magias, senão se-ria muito mais fácil. Meu tutor penou muito para vencê-lo, Qlon. Meu tu-tor. Eu, com dezenove anos, quase morri. Meu tutor, com mais de trezen-tos na carreira, teve trabalho. O que faz você acreditar que vai conseguir

26

Page 27: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

sozinho? Uma estranha premonição?

– Então ao menos posso ir com um tutor?

– Você atrasaria demais as missões. Não é fácil limpar este continente, Qlon. Acredite, pois realmente não é.

Qlon silenciou-se. Alguns soldados ainda mantinham conversas isoladas, mas era inaudível o que falavam.

– E se eu provasse que sou capaz de derrotar um demônio sozinho? - Pro-pôs o jovem anjo.

Todos voltaram a calar-se. Novamente Nataniel depositou um olhar pavoroso em cima dele, como se ele prosseguisse com os insultos.

– Ainda que consiga, AINDA, precisaria de um tutor para instruí-lo.

– Mas se eu matar o demônio, o instrutor colocará como meu mérito! E além do mais, é minha missão!

– E como pretende provar que é capaz, pequeno?

– Desafiando um de vocês e vencendo. Se eu não vencer, tento outro meio de matar um desses demônios.

Nataniel novamente repousou um olhar severo sobre ele. Mesmo ele sendo uma criança inocente, suas palavras provocavam-no, faziam seu sangue ebulir. Tentou manter a calma, dizendo:

– E acha que pode?

– Talvez.

– Muito bem. Mas se perder, prometa que desistirá dessa tola ideia de ca-çar um demônio sozinho. Até posso pensar em colocá-lo comigo, então poderá assistir de longe enquanto acabo com o tal monstro.

– Tirando a parte de assistir de longe, já que não está em minha missão... E bem, se eu não conseguir, tentarei sozinho.

– É mesmo? E sabe onde achar?

– Não, mas posso procurar.

– Este continente pode ser pequeno, Qlon, mas possui muitos esconderi-jos, passaria muito tempo procurando. Mais do que os três meses neces-sários para cumprir sua missão. Eu completei a minha com quatro, sob a tutela de um dos anciões e com uma rota certa para traçar. Acha mesmo que pode cumprir sua tarefa em menos tempo?

27

Page 28: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

– Preciso ao menos tentar, não é mesmo?

– Pois bem. Já que está tão decidido e eu não poderei pará-lo... - Ponde-rou Nataniel. - Tragam nosso cadete mais novo!

Os soldados estavam perplexos. Dentre eles surgiu um de semblante sério, que tinha o olhar cabisbaixo. Alguns outros tentaram interceder, alegando que Qlon não duraria muito, mas Nataniel parecia não ouvir. Aliás, parecia gostar da situação. Talvez ele quisesse mesmo ver aquela criança tola passando por uma humilhação para entender o lugar dela. O anjo que duelaria contra Qlon não pas-sava de um metro e setenta. Tinha curtos cabelos negros, presos em uma banda-na. Suas sobrancelhas eram espessas e davam a impressão que seus olhos opacos, da mesma cor dos fios de sua cabeça, eram menores ainda. Seu rosto era bruto, com queixo quadrado e nariz ossudo e longo, além de uma testa enor-me. Usava apenas a couraça da armadura e mantinha como arma uma espada de duas mãos de lâmina curva. O resto do seu corpo era protegido apenas pela calça cinza, luvas e botas de couro marrom.

– Estão prontos? - Perguntava Nataniel, ignorando completamente os ape-los dirigidos a ele. - O primeiro que desarmar ou nocautear o seu opo-nente será o vencedor.

– Estamos prontos. - Disseram Qlon e seu rival, em uníssono.

– Então... Comecem!

Um movimento veloz, quase invisível. Seu oponente havia praticamente sumi-do diante de seus olhos. Sem sequer dar tempo de sacar sua espada, um golpe horizontal veio do lado esquerdo de Qlon. Por sua sorte a agilidade adquirida nos sete céus fora suficiente para fazê-lo esquivar jogando seu corpo para trás. O golpe passou a apenas alguns centímetros de sua barriga, rasgando o tecido. Nataniel olhou para ele com um certo ar de curiosidade. Seu inimigo, de espanto.

– Você disse nocautear! Acho que matar não estava nas regras, não é mesmo? - Gritou Qlon, furioso.

– Não seja tolo. Nós, anjos, podemos curá-lo de alguns pequenos cortes com magias. - Respondeu Nataniel.

– Pequenos?! Se eu não esquivasse aquele golpe iria rasgar-me em dois!

– Mas você esquivou, não é mesmo? Recruta!

– Sim, meu lorde?

– Vá com calma nos golpes. Lembre-se que ele é apenas uma criança.

– Não! - Intercedeu Qlon. - Se é para jogar esse jogo, eu irei jogá-lo da ma-neira mais difícil. - Desembainhou a Sanctus.

28

Page 29: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

– Você tem coragem, garoto. E pelo que percebi de seu movimento, parece ser muito forte para sua idade, realmente. Mesmo escondendo suas asas, a esquiva foi muito boa, meus parabéns. Tem certeza que quer ver a força total do cadete...

– Maciel, senhor.

– Do cadete Maciel?

– Sim, tenho.

– Ao menos deixe-o pegar uma arma sem lâmina. Poderá lutar com essa mesma. Aliás... Essa é a espada de seu pai, não é? A famosa Sanctus...

– Recuso sua proposta. Se devo lutar com uma arma letal, nada mais justo que ele também. E sim, esta espada é a Sanctus.

– Interessante. De qualquer forma, mantenha em mente que essa foi sua escolha. Se o pior acontecer, não me sentirei culpado. - Disse Nataniel com um sorriso frio. - Podem continuar.

Maciel sumiu no ar empunhando sua espada. Um golpe na vertical, de cima para baixo, veio na direção de Qlon, que percebeu a tempo e usou a lâmina de sua espada para bloquear. Não foi suficiente para parar Maciel, que naquela mesma posição usou a perna esquerda para chutar Qlon na barriga, empurran-do-o alguns metros para trás. Qlon girou no ar em um mortal e parou de pé, pro-curando o oponente, que havia sumido mais uma vez.

– Nas suas costas.

Maciel chamou sua atenção, e quando Qlon virou-se recebeu um golpe na face, que o fez cuspir um pouco de sangue. Quase caindo, girou sobre o eixo de sua perna direita e tentou acertar um golpe no inimigo, mas varou o vazio em sua estocada. Maciel havia pulado sobre ele e estava prestes a cravar a espada em seu crânio. Qlon pulou para o lado e deixou a espada perfurar o vazio. Maciel pa-rou por alguns instantes e olhou para Qlon, que ainda parecia descansado.

– Você possui uma bela estamina. Devemos prosseguir?

Qlon limpou o sangue que escorria de sua boca com as costas de sua mão di-reita. Voltou a segurar sua pesada arma com as duas mãos e encarou-o nos olhos:

– Sim, podemos.

Desta vez quem tomou a investida foi Qlon, indo para cima de Maciel com to-das as suas forças. Ergueu a espada acima de sua cabeça e pulou até seu opo-nente. Com toda sua força, deferiu um golpe na vertical. Maciel usou a espada para bloquear, mas logo que percebeu seu erro pulou para trás e deixou a Sanc-

29

Page 30: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

tus abrir uma pequena cratera no chão. Sua espada trincara, com rachaduras bem visíveis a olho nu.

– Como você... Esta espada é de uma liga de metal supostamente indes-trutível! - Ele olhava para a lâmina de sua arma, passando os dedos co-bertos pela luva em suas fissuras. - Como você conseguiu? É o aço es-pecial de sua espada?

– Não. - Respondeu Nataniel. - Isso não bastaria. A força física dele é so-brenatural. A velocidade também. Maciel, não abaixe sua guarda.

– O quê?

– Então. - Qlon chamou a Maciel. - Devemos continuar a luta?

Nataniel riu. “Esse garoto sabe provocar. Gostei de sua personalidade. É igual ao pai.”, pensou. Voltou a acompanhar a luta. Agora trocavam golpes. Ou melhor, Qlon defendia os ataques de Maciel. As espadas se chocando, os passos indo de um lado a outro do salão, afastando a roda de espectadores onde se aproxima-va. Maciel golpeava com certa raiva e Qlon mantinha a calma, focando-se no mo-vimento de seu inimigo. Apesar de o reino celestial ter dado a ele uma grandiosa força física, não alterou em muito seus reflexos. Isso seria só depois de certa prá-tica. E como sua mestra havia ensinado, deveria focar-se na movimentação do inimigo. Concentração, essa era a palavra do momento.

“Pela primeira vez eu entendia, na prática, o que Lua queria dizer com 'con-centração'. Era muito mais do que um princípio dos combates, era vital. Ajudava na percepção de tudo ao redor, de todos os movimentos inimigos. Se usada em conjunto com uma boa análise, poderia prever os movimentos do oponente antes que eles se realizassem. E, naquele momento, eu estava tentando fazer exata-mente isso. Verificar o padrão dos movimentos de Maciel e armar um contra-ata-que. Ele fazia deslocamentos precisos e velozes, e quase não abria guardas em sua defesa. Quase.”

Havia achado. Uma brecha em sua estrutura de ataque. Quando ele golpeava de cima para baixo em uma vertical perfeita, demorava mais tempo para recom-por os ataques. Usaria aquele curto espaço de tempo entre um e dois centésimos de segundo para contra-atacar. A oportunidade surgira. Um golpe com força sufi-ciente para cortar um javali ao meio. Qlon pulou para o lado direito de Maciel e usou a Sanctus para fazer um corte na altura de suas costelas. Maciel sentiu a dor e, aproveitando o movimento, fez um corte contínuo, rodando o corpo. A es-pada fez uma curva em “V” e passou poucos centímetros acima dos fios ruivos da criança com quem lutava. Qlon pulou para mais longe com um impulso, deu uma cambalhota e virou-se, já de pé. Maciel repousava a mão esquerda sobre a ferida, enquanto olhava fixamente para Qlon.

– Já chega! - Gritou Nataniel. - Maciel, vá tratar de suas feridas antes de

30

Page 31: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

sua vigília começar. Qlon, - Chamou-o, encarando a criança nos olhos. - acompanhe-me.

Dizendo isso, Nataniel dirigiu-se à escadaria em espiral.

– Desculpe-me por qualquer coisa, Maciel.

– Está tudo bem, pequeno. É um guerreiro de valor. Agora vá, acompanhe Nataniel até os andares superiores. Eu ficarei bem. - Falou Maciel, curan-do sua ferida com a palma de sua mão, que emanava uma fraca luz branca.

Qlon embainhou a Sanctus e acompanhou Nataniel pelos degraus da escada.

Subiram todas as escadarias até chegar ao topo da torre. Havia apenas uma sala no seu fim. A porta era de uma madeira vermelha muito brilhante, e escritos em uma placa dourada indicavam o nome do dono de tal inóspito lugar: Ronan Warrior.

– Esta sala... - Tentava encontrar as palavras Qlon.

– Sim, é a de seu pai. Apenas dele. Antes de sair em sua missão secreta ele confiou-me sua chave. Acho que ninguém mais digno do que seu filho para visitá-la, não é mesmo?

– Não entendi. Por que está fazendo isso?

– Passe a noite nesta sala. Preciso arrumar os últimos preparativos da vigí-lia. A primeira semana de outono serve apenas para analisarmos onde estão localizados os demônios. A segunda é para iniciarmos a caça. E como as outras salas desta torre são dormitórios pessoais... Além do mais, acredito que não tenha conhecido-o, não é mesmo? Eu fiquei sa-bendo da história. Todos da base já sabem, aliás. Será bom passar o tempo com alguns de seus pertences para ver como era seu pai.

– Entendo. Senhor Bogard, se não ficar irritado com a pergunta... Como era seu relacionamento com meu pai?

– Não preciso responder essa pergunta, não é mesmo? - Respondeu, dei-xando a chave nas mãos de Qlon. - Qualquer dia contarei. Eu acho. Por enquanto durma, será bom descansar. Sua rotina agora será difícil.

E Nataniel desceu as escadas.

Por bastante tempo Qlon encarou aquela porta com a chave dourada em mãos. Sentiu receio de entrar. Mas, por fim, tinha tomado coragem. Colocou a

31

Page 32: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

chave na tranca e deu três voltas. A porta destrancou. Girou a maçaneta e en-trou. Um vento frio saiu de lá de dentro, como se abrisse uma porta para o inver-no. A poeira levantou com a corrente de ar.

“De súbito, olhei para seus pertences. Não havia muito a olhar ali dentro. A es-crivaninha, o arquivo, o tapete com o brasão dos Warrior... E alguns retratos em-poeirados. Três, para ser exato. Um de quando era criança, outro de seu casa-mento e, o último quase havia sumido na poeira que cobria a escrivaninha e seu porta-retratos. Passei a mão sobre ele e vi uma cena que não parecia assim tão antiga: toda a família reunida. Meu pai segurava-me em seu colo, com toda a fa-mília por perto. Parecia ser logo após meu batizado, pois até o padre saiu na pin-tura. Deixei lágrimas quentes escorrerem por meu rosto, misturadas a um bobo sorriso de satisfação.

Queria saber mais sobre ele. Queria saber o que fazia na Base, como eram seus dias de guerra. Parei para olhar os arquivos. Abri e várias pastas organiza-vam os papéis. 'Diários da Guerra'. Não tinha muito nesta pasta em específico, mesmo porque meu pai ainda era muito novo. Mas ainda assim, passei a ler suas anotações. E, naquele dia, aprendi tudo que poderia aprender sobre as ba-talhas que ele travava.”

– Está pronto, Qlon? - Perguntava Nataniel, subindo as escadas.

A noite já estava quase no seu fim. O dia estava nublado lá fora, impedindo a passagem dos primeiros raios da manhã. Qlon dormia abraçado com os escritos de seu pai quando foi acordado por Nataniel, que segurava um lampião agacha-do próximo a ele.

– Se eu fosse você, Qlon, passaria a valorizar mais suas noites de sono. - Pronunciou Nataniel, levantando-se. - Então, está pronto? Ande, levante-se. Limpe esta roupa empoeirada, deixe tudo como estava, saia e tran-que a porta. Vou esperá-lo na porta da torre. Ande logo, não teremos café da manhã.

Qlon arrumou-se enquanto Nataniel saia da sala e descia as escadas. Colocou os arquivos no lugar, bateu o pó de sua roupa, pegou a Sanctus, que repousava deitada ao lado de onde dormira, no meio do tapete, colocou-a em sua cintura e saiu da sala, trancando a porta. Desceu as escadas e deparou-se com o hall de entrada vazio. Apenas Nataniel estava junto à porta. Nem mesmo as armas ali restaram. Tudo havia sido esvaziado.

– Somos os últimos a sair? - Perguntou Qlon.

– Sim, somos. Eu serei seu tutor. Nada melhor que o líder dos vigias do in-verno para auxiliar nesta sua missão, não é? - Respondeu, dando um ta-pinha no ombro de seu mais recente companheiro.

32

Page 33: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

– Sim, mas eu já disse que eu matarei o demônio.

Nataniel gargalhou enquanto eles saiam da torre e ele trancava sua entrada, selando a torre por mais uma temporada.

– O que é tão engraçado? - Perguntou Qlon.

– É que após ver sua demonstração de habilidade ontem, não duvido que seja capaz. - Respondeu Nataniel, afagando os cabelos de Qlon. - Você saiu bem ao seu pai.

Saíram do centro militar calados e rumaram andando para fora da cidade.

– Qlon, por que não saímos voando?

– Eu não gostaria de expôr minhas asas, se possível.

– E por que não? Por acaso é um treinamento para evitar usá-las?

– Algo assim. - Respondeu quase sem convicção, mas ainda não era uma mentira.

– Então não irei obrigá-lo. Sabe para onde estamos indo?

– Não, mas já ia perguntar.

– Tem um mapa?

Qlon acenou que sim e pegou-o de dentro de sua bolsa. Nataniel abriu-o. Era graficamente rico, como um mapa de militares. Possuía informações sobre altura de determinada área em relação à planície onde encontrava-se Aeria, que era o marco zero.

– Vê aqui? A estrada que conduz até as montanhas do norte, que separa este continente da ilha que abriga a cidade de Halo. No extremo norte desta estrada há uma vila que, há muito tempo, vem sofrendo com os ataques de um demônio.

– E por que ainda não acabaram com ele?

– Qlon, como eu já disse, não é tão fácil quanto parece. A dez anos segui -dos eu tento e não consigo muita coisa. É difícil até mesmo de rastreá-lo. Mas, voltando ao assunto original... Nossa missão será nessa vila. Pri-meiro iremos reunir informações recentes, depois iniciar a vigília.

– Então você está levando-me em uma caçada pelo demônio mais difícil?

– Por quê? Está com medo? Achei que queria um grande desafio.

– Medo? Eu estou entusiasmado! Mal posso esperar para começar. - Res-pondeu Qlon, inocentemente, sem saber o que estava por vir.

33

Page 34: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

Cap. 35 – Um Uivo sem Luar

inham caminhado um bom pedaço de chão para o norte seguindo um dos rios que desaguavam no lago imperial, conforme aconselhava o mapa, quando se depararam com o primeiro obstáculo. Uma floresta

de grandes pinheiros, cujas copas estavam a pelo menos quatro metros de suas raízes. Apesar de ser densa, a estrada seguia acima, sempre ao lado do rio Frin-ge, que tinha cerca de vinte metros de uma margem a outra. Neste ponto a estra-da começa a ter um leve aclive e a temperatura caia ainda mais. O sol ainda es-tava na fase do declive, mas nem estava perto de cair por detrás do horizonte.

T

– Qlon, deseja que paremos para acampar aqui ou continuar cruzando a floresta e acampar apenas quando escurecer? - Perguntou Nataniel, já cansado de andar e se questionando o porquê de não voarem até o des-tino.

– Por que a pergunta?

– As florestas daqui ainda abrigam alguns animais ferozes e monstros. Cruzá-la durante a noite é dez vezes mais perigoso, imagine então acampar.

– Qual é mais prudente?

– Acampar agora.

– Qual a sua recomendação?

– Eu não ligo. Possuo força suficiente para acabar com qualquer monstro que me ataque. Aliás, posso cruzar a floresta inteira até o amanhecer. Estou mais preocupado com sua segurança.

– E eu estou aqui para cumprir minha missão e aprender com alguém mais experiente que eu, logo, decido que iremos continuar.

– Qlon, Qlon... Pode ser muito forte por fora, mas por dentro é infantil. Tam-bém é parte do treinamento de um guerreiro seguir as ordens de seu ins-trutor.

34

Page 35: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

– Você não deu uma ordem, deu uma dica e pediu para que eu escolhes-se. Eu já escolhi. Vamos cruzar a floresta até amanhã de manhã.

– Sem parar para dormir? - Nataniel riu um riso abafado, mas logo ajoe-lhou-se ao lado de Qlon e olhou profundamente em seus olhos. - O que está querendo provar? Que é mais forte ou tão forte quanto eu? Eu sou acostumado a isso. Eu fui treinado para isso. Posso passar um longo pe-ríodo de tempo sem dormir, e quando durmo, tenho a capacidade de res-ponder até o mais leve dos estímulos externos. Não tente comparar-se a mim apenas por que tem um punhado de força, jovem.

– Mas... Eu quero assim! - Falou Qlon, iniciando uma pirraça.

– Se meus conselhos não são o suficiente para ensinar, aprenderá então com a vida. - Ponderou Nataniel, pondo-se de pé. - Vamos fazer do seu jeito. Mas que fique claro: não vou defendê-lo se algo acontecer. Esta-mos de acordo?

– Sim, estamos. - Respondeu Qlon, voltando a seguir a estrada,

“Crianças...”, dizia a expressão de Nataniel, que voltou a seguir seu protegido pelo caminho que levava à floresta.

O sol estava escondido, mas pela baixa luminosidade era previsível que o dia chegava ao fim. Qlon estava com os pés doloridos, mas não queria admitir. A es-trada tortuosa subia em meio a alguns pedregulhos do leito do Fringe. Estavam no meio da floresta densa e já deviam estar a muitos metros de altura em relação ao nível de Aeria. O vento de outono, que antes parecia frio, tornava-se ainda mais gélido.

– Estamos perto? - Perguntava Qlon, já demonstrando cansaço.

– Nem na metade da trilha. O sol está sumindo... Então, vamos acampar? Se quiser posso fazer a vigília desta noite, mas ficará devendo um favor...

– Eu disse que iríamos cruzar esta floresta em apenas uma noite, e é isso que iremos fazer.

– Criança, o frio daqui não se compara a qualquer outro que já tenha senti-do na vida. Acho melhor acendermos uma fogueira e nos abrigarmos.

– Por quê? Já sobrevivi a alguns invernos...

– Dentro de sua confortável casa, perto de uma aconchegante lareira e com o calor de sua mãe? Assim qualquer ser humano sobrevive.

Qlon teve vontade de falar a ele sobre sua experiência no terceiro céu, mas

35

Page 36: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

logo notou que seria uma péssima ideia. Continuou a ouvir o que falava seu ins-trutor:

– Este continente está acima até da montanha mais alta do planeta abaixo de nós. Já pode ter visto o inverno de Aeria, mas acho que nunca viu o inverno do lado de fora dos muros, não é? Se a estação fosse apenas um mês mais longa, os muros seriam encobertos pela areia branca. Ma-gias selam a cidade de um fluxo maior de gelo. Não é atoa que os demô-nios não podem sobreviver ao frio daqui. Mas também, por estarmos mais perto do sol e acima das nuvens, nossos verões são mais severos e eles podem ascender, como se estivessem em seu lar de fogo. E, para piorar a situação, estamos subindo mais ainda e nos aproximando das montanhas. Mesmo no outono, o vento daqui é capaz de causar necrose.

– E como você resiste?

– Preparo, treinamento, técnica de fluxo de calor... Básico de um guerreiro de nosso clã.

– Então ensine-me essa técnica.

– Na sua idade? Duvido que será capaz de aprender. É necessária muita, mas muita concentração, algo que acredito que não possui, principal-mente pela impaciência e teimosia que demonstra. Vamos, ainda está em tempo de recolher uns galhos secos para a fogueira. Quer ajuda? - Tentou persuadi-lo.

– Minha decisão já foi tomada, vamos continuar. E só não insisto em pedir que ensine a técnica de fluxo de calor pois até minha mestra fala que ain-da me falta concentração. - Parou para refletir. - De qualquer modo, cru-zaremos este lugar até o amanhecer.

– Seria mais rápido ir voando, mas... Creio que será interessante assim, será bom para que conheça a geografia de seu continente, e isso é im-portante para um general, caso torne-se um algum dia.

– Quer dizer, caso eu não morra aqui?

– Exatamente. - Disse Nataniel, tomando a dianteira. - E já que é insubordi-nável, não tentarei mais convencê-lo. Vou apenas seguir seus planos es-túpidos e assistir seu arrependimento.

Qlon silenciou-se.

Seus pés latejavam por dentro das botas. Com certeza seus dedos teriam al-gumas bolhas, não demoraria muito. Talvez aquilo que molhasse suas meias não fosse mais suor, e sim um pouco de sangue. Quando decidiu sentar para descan-

36

Page 37: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

sar um pouco, o céu já estava completamente escuro. As nuvens encobriam as estrelas e a lua era visível apenas por algumas falhas entre elas. O rio já formava pequenas quedas d'água e uma cachoeira podia ser ouvida um pouco mais longe de onde estavam. O frio fazia o vapor d'água que saia de sua pesada respiração tornar-se visível. Se não fosse pelo exercício que fizera, seus músculos estariam tremendo.

– Eu avisei. - Dizia Nataniel, com um sorriso de satisfação no rosto.

– Já sei. - Rebateu Qlon. - Ainda assim, é apenas um curto descanso. Logo voltaremos a caminhar.

– Qlon, pude perceber que é bem forte, mas tem um curto fôlego. Por ser muito jovem e ter entrado na Base recentemente, creio que não apren-deu a controlar sua respiração apropriadamente e muito menos a econo-mizar energia dos músculos, não é mesmo?

– Não.

– Então tente decorar essas duas dicas: Primeiro, seu nariz serve para res-pirar, sua boca para comer. Se continuar respirando pela boca, vai ficar exausto mais rapidamente e com a sensação de sede, já que o ar secará sua saliva. Respire apenas pelo nariz. Segundo, seus músculos são como máquinas: se souber usá-los, a manutenção será desnecessária. Economize movimentos, realize apenas os necessários. Evite supera-quecimentos, reduza a força e a movimentação caso eles estejam quase colapsando. Se souber desses dois segredos básicos, sairá bem em qualquer batalha.

– Entendo. Bem, vamos continuar até a cachoeira? Decidi ceder ao seu apelo enjoativo.

– Há! - Comemorou Nataniel. - E o que fez com que mudasse de opinião? Por acaso não queria mostrar sua força, superior ou até mesmo igual à minha? Não queria mostrar aptidão a enfrentar os mesmos desafios que enfrento?

– Em partes, devo admitir que sim, queria. Mas estou muito mais interessa-do em impor metas a mim mesmo. Desafios pessoais, se assim preferir. Se quero ser o mais forte guerreiro, devo superar o mais forte. Preciso treinar, superar meus limites. Se eu continuar achando que não posso, que ainda é cedo demais para mim, jamais chegarei a algum lugar. En-tão, não quero provar a você absolutamente nada. Quero provar a mim mesmo que sou capaz.

Nataniel engoliu suas palavras e virou as costas. Não disse mais uma palavra enquanto seguiu o curso do rio com Qlon em seu encalço, levando-os até a ca-choeira.

37

Page 38: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

A cachoeira era imensa. Cerca de seiscentos metros separavam o seu topo do pequeno lago que se formava abaixo dela, com sua margem e leito cheio de pe-dras brancas. As árvores ali faziam uma clareira de cerca de vinte metros até a água. Ao redor um enorme penhasco esperava ser escalado.

– Agora estamos oficialmente na metade do caminho. - Disse Nataniel.

– Bem, já que chegamos aqui... Não pretendo parar agora.

– Como é? Não iríamos acampar?

– Mudei de ideia. Suas dicas me ajudaram bastante, sabia? Isso aliviou bastante meu cansaço e minhas dores. Acho que posso prosseguir pelo resto da noite.

Alguns barulhos foram ouvidos. Não longe dali, os arbustos se moviam. O ven-to estava parado. Algum animal selvagem? Provavelmente. Nataniel abriu as asas e voou até a margem esquerda do topo da cachoeira.

– Espere... Nataniel! - Gritava Qlon.

– Eu disse que não o ajudaria, lembra-se? Ficarei aqui assistindo o resulta-do de suas ações. Seus motivos são nobres, Qlon. Mas viver assim tam-bém o deixa no limite, arriscando sua segurança, sua vida. Sendo assim, assuma também os riscos que suas atitudes proporcionaram. Boa sorte.

Por detrás das moitas saltaram alguns lobos, de pelagem acinzentada e olhos azuis. Alguns muito maiores que o comum. Mostrando seus enormes caninos e deixando baba escorrer pelo canto de suas grandes bocas, encaravam a seu possível banquete: Qlon. Este colocou a mão no cabo de sua espada e tentou não fazer movimentos muito bruscos. Sempre ouviu que feras irracionais reagiam ao medo, a uma movimentação de avanço ou recuo. Separou as pernas e abriu um pouco sua base. Colocou a bainha em paralelo ao solo, do lado direito de sua cintura, e deixou seu ombro esquerdo à frente, braço cuja mão repousava no cabo da Sanctus.

– Esta posição... - Nataniel notara. - … É igual a de... Como...?

Mais rápidos do que os pensamentos que invadiram sua cabeça, os lobos sal-taram para cima do pequeno anjo indefeso. Ou quase. Ao notar seu pulo, Qlon sacou sua espada e a girou diante de seu corpo. Dois lobos caíram ensanguen-tados no chão. Sanctus brilhava com intensidade, clareando a quase total escuri-dão.

Um lobo veio pelo chão e mordeu a perna direita de Qlon, que servia como base. Qlon cravou a espada em suas costas e logo ele foi morto. Sua perna ago-ra precisaria ficar inativa por um tempo. A dor era lacerante, mantinha-o quase

38

Page 39: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

imóvel. Evitava ajoelhar-se para tratar a ferida, mantendo o olho no resto da alca-teia. Um novo lobo veio pulando mas Qlon cortou sua cabeça. Outro mordera o antebraço onde segurava a Sanctus e logo outro o mordeu na altura da coxa de sua única perna ilesa. Qlon se debateu para soltá-los, mas só conseguiu fazer com que suas presas entrassem ainda mais fundo em sua macia carne. Seus de-dos, aos poucos, perdiam a força necessária para manter sua arma segura.

– Ei, Qlon! - Gritava Nataniel de sua posição. - Concentre-se! Vai deixar lo-bos acabarem com você? Já vi você fazendo melhor!

“Sim, ele já havia visto. Mas eles eram mais de um. Fora que eu estava cansa-do. Ainda assim, não cederia tão fácil. Com a mão que me restava livre, dei um soco no crânio do lobo que prendia meu braço. Nocauteado, soltou-o e me per-mitiu fatiar o que se prendera à minha perna. Livre, apenas um pouco ferido, os outros lobos da matilha perceberam que não conseguiriam nada me atacando e partiram em disparada para dentro da mata cerrada.”

Nataniel aplaudia com as pernas cruzadas.

– Parabéns. Ganhou uma luta de lobos selvagens, mas é tão inexperiente que precisou usar toda sua força contra animais irracionais. Isso foi ver-gonhoso.

– O que quer dizer?

– Quero dizer que precisou matar pobres lobos selvagens para conseguir prosseguir seu caminho. Acha que esses animais que buscavam apenas seu alimento precisavam morrer?

– Mas eles iriam matar-me.

– E matá-los o torna melhor que eles? Acha que a bondade angelical se li -mita apenas a outros seres que possuem lógica racional?

Qlon ficou em silêncio enquanto olhou os cadáveres dos animais. Realmente, eles pareciam famintos. Suas costelas eram visíveis por detrás de sua pele, mes-mo que encoberta por pelos.

– Um guerreiro que não consegue controlar sua força é fraco. - Continuou Nataniel. - Um guerreiro que não pode evitar uma morte ao combater é fraco. O que acabou de fazer aqui foi apenas expôr sua fraqueza. Nem sempre ser forte é exterminar todos os inimigos.

– Mas são apenas animais! E eles estavam prontos para matar-me!

– Isso não te torna mais forte. Apenas mais ignorante.

O tutor pulou do alto da cachoeira e aterrissou sobre apenas um pé, sem criar qualquer ruído. Dirigiu-se a Qlon e ajoelhou-se perante ele.

39

Page 40: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

– Se não souber controlar sua própria força, só vai machucar aqueles ao seu redor. Isso é apenas um fato.

Com um pouco de remorso, Qlon perguntou, com lágrimas em seus olhos:

– Não há nada que podemos fazer para ajudá-los?

– Agora? Não. Já os matou, suas almas deixaram seus corpos. E nem se fosse o ser mais forte do universo poderia resgatá-las do lugar para onde elas foram... Espere! Este está apenas nocauteado...

O lobo era menor que os outros e respirava com dificuldades.

– Posso curá-lo, mas ele ficará incapacitado por um certo tempo. Você tem uma mão muito pesada para uma criança.

– Então compensarei meu crime cuidando dele. Nada mais justo, não é?

– Cuidar de um lobo? Esses lobos não são comuns, Qlon. Eles são preda-dores naturais, muito velozes e fortes. Podem saltar muitos e muitos me-tros para matar aves, suas mandíbulas podem destroçar fibras de madei-ra sem muito esforço. Seria um risco para nós dois.

– Então... O que fazer agora?

– Irei curá-lo. Mas, depois disso, ele estará por conta própria.

– Isso é cruel. - Disse Qlon, aos prantos.

– Falou o assassino. Irônico, não? Agora fique quieto enquanto concentro um pouco de forças mágicas para curá-lo.

Nataniel repousava suas duas mãos sobre a testa do pobre animal.

– Por quê? - Qlon perguntou repentinamente.

– O quê?

– Por que se preocupa tanto com animais? Muitos são mortos todos os dias, para as mais diversas funções.

– Sim, são. Servem de alimento, que eu como. Nos fornecem peles que usamos durante o frio inverno. Mas estas mortes têm um motivo. O resto morre apenas para satisfazer a cadeia alimentar. Matar por pura malda-de... É muito triste.

– Mas não os matei sem motivos, por maldade. Matei para me defender!

– E era necessário? Não são os seres irracionais que me preocupam. Eles não têm o poder de mandar milhares de outros da mesma espécie para a

40

Page 41: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

morte apenas para se salvarem. Eles apenas vivem sem preocupações, só seguem seus instintos naturais. Aqueles que me preocupam são os seres que podem pensar. Esses sim têm uma capacidade incrível para fazer maldades. Ou pior, para fazer estupidez. - Falou a última frase olhando de rabo de olho para seu jovem ajudante.

Qlon desviou o olhar e fingiu que aquela indireta não era para ele. Mais uma vez, sentiu que, por mais que fosse adulto em alguns pontos, ainda havia muito a aprender. Muito mesmo. Sentiu-se culpado pela morte de seres muito mais fracos que ele. Se soubesse como lutar... Se soubesse como controlar sua força...

– Pronto! - Proclamou Nataniel, tirando suas mãos de cima do animal.

O filhote de lobo abriu os olhos. Estava desnorteado. Tentou colocar-se de pé, mas suas pernas bambeavam e ele caia com seu próprio peso.

– Vamos. - Ordenou Nataniel.

– E deixá-lo assim?

– Já o curamos, não é? Fora isso, temos uma missão.

– Mas quero cuidar dele! Sou culpado por tê-lo deixado assim, o mínimo que posso fazer para redimir meu ato é tratar do pobre filhote! Se ele acabar morrendo por minha culpa...

– Também possui uma empatia por animais, não é?

– …

– Ande, vamos. Se queremos cruzar a floresta até o amanhecer, temos de ser rápidos.

– Vamos descansar!

– E agora você decide isso? Não queria atravessar até o raiar do sol?

– Queria. Mas agora, depois dessa luta e dos ferimentos adquiridos, sinto a necessidade de descansar e tratar deles para poder seguir.

– …

– Podemos?

– Temos quatro horas de descanso. Aproveite. Se aparecer outro perigo, não conte comigo. Resolva sozinho.

– Mas e se eu não puder controlar minha força novamente?

– Se usou minhas dicas para prosseguir até tão longe dentro da floresta, pode usar para controlar sua monstruosa força também. Respiração e

41

Page 42: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

movimentação. Controle-as e terá controle sobre você mesmo.

– E isso é concentração?

– É uma parte dela. A outra parte não sou eu quem vai ensiná-lo.

Nataniel recostou-se nas rochas do paredão e, de braços e pernas cruzados, pôs-se a dormir. Qlon foi até o lobo caído no chão e acariciou seus pelos macios. O lobo o olhava com certa estranheza, talvez pensando em como um ser que o atacara a tão pouco tempo podia estar sendo tão gentil com ele.

Qlon havia tirado alguns peixes do lago. Fora difícil fazer isso com as próprias mãos, mas conseguiu com um pouco de esforço. Sua velocidade tinha tornado-se grande o suficiente para pegar um peixe em pleno movimento, mas seus refle-xos não haviam evoluído junto. Muitas vezes eles escapavam por entre seus de-dos, ou se debatiam em suas mãos e acabavam caindo de volta n'água. O lobo esperava deitado. Não podia mover-se sem cair. Qlon depositou os peixes na sua frente e esperou que ele devorasse-os, o que fez com extrema avidez. Qlon aproveitou a ocasião para tirar as botas e tratar as feridas, tanto as causadas pela caminhada quanto as feitas pelas presas dos parentes daquele animal man-so que jazia próximo a ele. Após sua refeição, o lobo se levantou com um pouco de dificuldade enquanto Qlon lavava as feridas. Cheirou os corpos de seus com-panheiros mortos e, de súbito, uivou. Um uivo frio, longo. Até mesmo o vento pa-receu uivar em uníssono com ele. Nataniel tomou um susto e levantou-se. Qlon olhava perplexo para o filhote, que havia deitado entre dois corpos com enormes cortes no tórax.

– Parabéns, Qlon. - Ironizou novamente Nataniel.

– Mas... O que eu fiz agora?

– Como assim? Você não percebeu?

– E o que eu deveria ter percebido? Nada sei sobre o comportamento dos animais. Muito menos sobre lobos.

– Pois deveria. Se soubesse, poderia perceber que mesmo animais pos-suem sentimentos. Agora mesmo ele está chorando.

– Pelo quê?

– Os pais dele. Você matou a eles. Tornou ele um órfão. Órfão e sem sua alcateia... Você condenou-o. Espero que tenha aprendido sua lição. - Respondeu Nataniel, friamente.

Qlon lacrimejou. Queria responder algo, mas a culpa não deixava. Apenas fi-cou ali, parado, lamentando em silêncio.

42

Page 43: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

Cap. 36 – Névoa Vermelha

aiava o sol no horizonte. Qlon mantinha a cabeça abaixada, esperando retornar no tempo e corrigir aquele erro. Em sua mente infantil, tinha cometido um incrível crime. Nataniel parecia divertir-se com aquela

cena, de uma forma um tanto quanto sádica. “Aproveite sua inocência enquanto ainda a possui, Warrior.”, pensava enquanto vislumbrava o lobo ganir cada vez mais baixo.

R– Nataniel...

– Já sei no que está pensando, e a resposta é não. Não vamos cuidar de um lobo. Estamos em uma missão para caçar e matar um demônio e você está preocupado em cuidar de um animal?

– Mas você não disse que precisamos ser bondosos com todas as formas de vida? Onde estará nossa bondade se deixarmos este pobre filhote no meio de uma floresta, por conta própria?

– Não confunda bondade com caridade. Já curei ele, mas infelizmente não podemos manter um lobo conosco.

Qlon ficou triste, mas ponderou por alguns instantes e, por fim, encontrou uma possível solução.

– Já sei! Você disse que há uma vila no final da trilha, não é?

– Sim, há. Planeja levar um filhote de lobo selvagem até a vila para cuida-rem dele lá?

– Sim, até meu regresso pelo menos. Eu decidi ficar com ele após tudo que fiz.

– Aceitam animais na Base? Dessa eu não sabia. Bem, desde que ele não nos atrapalhe em nossa jornada, por mim tudo bem. Então, como fare-mos? Eu não vou carregá-lo, e ele não me parece adestrado... E, já que não quer usar suas asas, vai ter que escalar todo este paredão. Sozinho. Acho que já é hora de mostrar suas asas, não é? Caso contrário...

43

Page 44: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

– Não. Escalarei.

– Este treinamento é incômodo e o pior de tudo é que sou obrigado a espe-rar por você. Após a cachoeira são mais duas horas de trilha até o vilare-jo. E, sinceramente, não gosto de esperar um principiante em uma cami-nhada. Estarei no vilarejo, na estalagem. Tem dois dias para chegar lá, caso contrário partirei sem você.

– Espere! Pode ao menos me ajudar a enterrar os mortos? Creio ser a coi-sa mais digna a fazer.

– Você os matou, enterre por conta própria. Até a vista.

Nataniel abriu as asas e, como uma flecha, voou para fora dali. Qlon olhou no-vamente para o lobo. Eram apenas os dois agora. Sacou a espada e, usando-a como uma pá, começou a cavar a primeira cova.

Quando acabou de cavar e enterrar, suas mãos estavam bastante machuca-das. O pequeno lobo, ainda sem um nome, relutou um pouco para que seus pais fossem enterrados, mas no fim acabou consentindo. Quando foram colocados al-guns palmos abaixo da terra, ele ficou deitado sobre suas covas, chorando.

– No fim, animais também são capazes de ter emoções, não é mesmo? - Disse Qlon, enquanto limpava suas mãos e vestes no rio. - É hora de ir-mos...

O lobo permanecia imóvel, deitado com a cabeça entre as patas de um cinza claro, como uma tímida nuvem mais escura em um dia claro.

– Já sei. Seu novo nome será... Cloud. Cloud, me desculpe por ter matado seus pais, eu não... Eu não pretendia...

– Eu o perdoarei, mesmo ainda sentindo essa dor.

Qlon parou por alguns segundos, pasmo. O lobo falara com ele ou era uma mera impressão?

– Cloud, você...

O lobo uivou. No final, era apenas uma impressão. Estava muito cansado, a falta de sono o deixara ouvindo coisas. Sim, por certo era aquilo. Não era? De qualquer modo, tomou o lobo em seus braços. Ele não demonstrava nenhum si-nal de medo ou agressividade, apenas tristeza. Qlon sentia pena do pobre ani-mal. Dirigiu-se a uma certa proximidade do penhasco e olhou para cima.

– Ele já se foi, mas não posso arriscar... De qualquer modo, não é apenas minha força que está melhor após meu treinamento...

44

Page 45: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

Com uma série de pulos em algumas pedras, conseguiu facilmente alcançar o topo. Depois, correra como o vento pela estrada. Seria mais fácil fazer aquilo an-tes do que andar por horas ao leito do rio, mas Nataniel queria poupar esforço. Dizia ele que energia precisa ser poupada para maiores desafios, e gastá-la em uma simples estrada não faria bem algum. Ainda tinham muito tempo para caçar e destruir o demônio. De qualquer modo, desatou a correr, esperando chegar o mais rápido possível no vilarejo.

Após o que pareceram 10 minutos de uma exaustiva corrida, Qlon parou por alguns segundos. Uma névoa avermelhada tomava conta do cenário e um cheiro pútrido infestava o ar. A neve ganhava uma tonalidade amarelada, estranha. Aos poucos, as copas das árvores perdiam mais e mais suas folhas. Antes fosse pelo efeito que o outono tem sobre a vegetação, aquelas árvores suportavam bem o frio. O lobo encolhia-se cada vez mais nos braços de Qlon.

– Você também está sentindo, não está? Essa presença... Parece que al-guém nos observa de longe, como um predador mantem os olhos sobre sua presa... Vamos, chegaremos rápido à vila.

Tomando um impulso guiado mais pelo medo do que pela coragem, correu pela estrada novamente a uma enorme velocidade.

Os caminhos de Mind estavam vazias, como sempre que a visitara. Nataniel andava vagarosamente pelas ruelas. As janelas mantinham-se fechadas e com suas escuras cortinas que nada revelavam bloqueando a visão. Aproximava-se de um edifício de três andares, provavelmente o único do lugar além da mansão do prefeito. Bateu à tímida porta de madeira três vezes bem pausadas. Uma por-tinhola se abriu na altura de seus olhos.

– Ah, Nataniel... Seja bem-vindo, mais uma vez.

Ouviu-se quatro estalos e a porta abriu. Um recinto modesto, mas aconchegan-te, tomou sua visão.

– Altair, é bom vê-lo vivo. - Disse Nataniel a um anjo magro, de pele extre-mamente branca e cabelos enevoados e longos, com olhos de um azul tão claro quanto a água de um córrego.

– Eu que deveria dizê-lo. Veio para tentar caçar aquela abominação mais uma vez?

– Sim, vim. E desta vez eu trouxe ajuda.

O anjo de duas asas, vestido com uma túnica de mangas longas e calças que iam até seu tornozelo e terminavam em uma bota de mesma tonalidade, pareceu

45

Page 46: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

entusiasmar-se. No alto de seus um metro e setenta, pronunciou-se:

– Ajuda? E quem ele é?

– Ah, meu caro. - Disse Nataniel, abrindo um sorriso e repousando a mão sobre o ombro de seu amigo. - Não estragaria esta surpresa por nada.

Logo após teve de segurar uma gargalhada, e deixou Altair confuso.

– Bem, o mesmo quarto de sempre, então? - Disse Altair, pegando as cha-ves por detrás de uma bancada.

– Sim, claro. E como sempre, por três noites. O pagamento é adiantado. - Entregou a ele uma bolsa de couro com algumas moedas de ouro que retirou de dentro de suas vestes.

– Obrigado, senhor Nataniel. Sabe, penso que você é o único que tem mo-vimentado nossa economia recentemente. Mais ninguém atreve-se a vir para cá. A situação está ficando alarmante. Os fazendeiros nada mais produzem e vivemos de esmolas de outras cidades. Não sabemos mais quanto tempo poderemos ficar aqui.

– É. Esta névoa vermelha está matando o solo e as criaturas. Espero po-der ajudar com isso o mais brevemente possível. Espero que esta ajuda que trago seja útil em algo. Ah sim, possui espaço para um animal aqui dentro?

– Animal?

– Logo saberá. Subirei para meu quarto e tomarei um banho, logo após irei para a cama. Acorde-me quando ele chegar.

– E como saberei como ele é?

– Acredite, você apenas saberá. - Respondeu Nataniel, subindo as esca-das no fim do corredor ao lado da bancada, soltando mais uma risada.

Não se passaram nem dez minutos que Nataniel subira. Altair fazia seu passa-tempo favorito: palavras cruzadas. No meio de uma difícil, alguém batera à porta. Levantou-se sem emitir nenhum ruído. Abriu a portinhola e olhou por ela, nada à vista. Voltou a fechá-la. Devia ser apenas sua imaginação. Quando virou as cos-tas, voltaram a bater. Com certeza não era apenas a imaginação. Abriu a porti-nhola mais uma vez. A névoa tapava sua visão, cobria até mesmo os tijolos so-brepostos da parede da casa ao lado. Mas, ainda assim, poderia ver se alguém estivesse ali. Ao menos uma silhueta. Voltou a fechar a portinhola. Deveria estar imaginando coisas, a névoa deveria estar tomando um efeito alucinógeno a essa altura. Sentou-se em sua cadeira almofadada atrás da bancada e voltou ao seu

46

Page 47: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

passatempo. Alguém agora batia forte à porta. Desta vez ele abriu a porta ao in-vés de antes verificar, e deparou-se com uma criança.

– Olá, Nataniel está aqui?

– Sim, está, mas quem é você?

– Sou seu ajudante, Qlon Warrior Eros. Estou aqui para encontrar-me com ele. E quem é você?

– Sou Altair. É... A névoa deve estar criando ilusões... Um príncipe em mi-nha casa...

– Não sou ilusão alguma! Ande, deixe-me entrar! Estou congelando aqui fora e este odor está queimando minhas narinas.

Altair afastou-se da porta e deu espaço para Qlon passar. Ele carregava um fi -lhote de lobo em seus braços. Agora entendia o que Nataniel queria dizer com “ter espaço para animais”.

– Ah, o nome dele é Cloud. Uma longa história. Poderia abrigá-lo em al-gum lugar, por favor?

– Não tenho o costume de fazer isso, mas tudo bem. Só não posso garantir que o alimentarei da forma devida. Esse lugar passa por uma enorme es-cassez de recursos.

– Tudo bem. Onde está Nataniel?

– Está no quarto 303. Quer que eu o anuncie, alteza?

– Não precisa. E também não há necessidade para títulos formais, eu os detesto. Onde estão as escadas?

– No final deste corredor. Pode deixar o lobo aqui, há um lugar que ele se sentirá confortável nesta casa.

Qlon entregou Cloud, que dormia profundamente em seu colo, nos braços de Altair. Tomou então o corredor, com paredes decoradas por um papel esverdeado com listras verticais e portas da cor de vinho, e subiu os degraus da escada de madeira escura, envernizada. Quando chegava no segundo andar, precisava no-vamente cruzar um grande corredor cheio de quartos vazios para alcançar o ter-ceiro andar. Ao chegar no terceiro andar, notou que a névoa se dispersava mais. Neste corredor tinham apenas três quartos. O 303 ficava no fim do corredor. Pa-recia ser o maior dos quartos, provavelmente a suíte de luxo do lugar. Bateu na porta e Nataniel o atendeu, falando lá de dentro:

– Já chegou? Achei que ia demorar pelo menos um dia inteiro... Gastou muitas energias correndo e dando saltos, não é? - Disse, abrindo a porta.

47

Page 48: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

– Essa cidade não é tão grande assim, e só possui uma hospedaria. O que importa é que não perderei nada. - Disse, adentrando os aposentos.

Sim, era a suíte de luxo do lugar. Uma cama de casal bem confortável no cen-tro do quarto, e de frente para ela uma lareira. Um carpete confortável cobria o chão, forçando Qlon a retirar seu calçado para não sujá-lo. Um pequeno lustre enfeitava e iluminava o ambiente, junto com alguns castiçais presos à parede. Um banheiro de porta entreaberta estava soltando vapor, provavelmente Nataniel tomara banho.

– Não perderia nada de qualquer jeito. Ia apenas fazer uma breve investi-gação com o povo daqui. A situação está cada vez pior para eles. Espero que me traga sorte, garoto.

– Eu o derrotarei. Enfim, que informações temos sobre seu paradeiro?

– Quase nenhuma...

– Poderia começar contando o básico? - Disse Qlon, sentando-se em uma cadeira à beira de uma simples mesa circular branca, provavelmente usada para o café da manhã.

– Bem... Este demônio chegou a uma década atrás. No começo a névoa tomava apenas a área equivalente a uma porção do lado oeste da vila, ao redor do lago... Eu tentei rastreá-lo, mas era uma missão muito difícil em meio à névoa espessa. Já vi alguns vultos do que poderia ser ele, mas nunca consegui sequer tocá-lo... Os anos foram passando, e a solu-ção desse mistério ficou cada vez mais difícil. A névoa foi se dispersando até atingir a vila, cerca de dois anos atrás. Com isso, a economia aqui morreu e as ruas são quase inabitáveis. Se não fosse o poder de cura angelical, todos teriam perecido.

– Então... O foco da névoa é o lago? Não seria o mais lógico investigá-lo?

– Antes fosse tão simples. As águas dele estão envenenadas, pútridas e turvas quanto o esgoto de Aeria. Os animais que neste lugar habitavam estão em decomposição em sua superfície...

– E quanto a esta névoa? O que pode dizer?

– Pouco sei sobre ela, a não ser que ela é tóxica quando inalada em gran-de quantidade. Sua composição, entretanto, possui traços de enxofre. Um dos elementos que compõe a atmosfera do inferno.

– Uma magia não poderia afastá-la?

– Sim, poderia, mas o poder mágico de uma pessoa, como bem deve sa-ber, é finito. Assim que ela se cansar e parar de conjurar, a névoa retor-na. Esta vila possui alguns magos para fazer isso em seus muros, mas

48

Page 49: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

infelizmente a névoa, ainda assim, consegue ultrapassar. Como deve ter percebido, a névoa aqui é mais fraca, o que a torna suportável. E, quanto mais alto o lugar, menos efeito ela exerce. Por isso precisamos acabar com ela logo, antes que tome conta da vila e mate a todos.

– Entendi... Então, quando saímos para conversar com o povo de... Como é o nome desta vila?

– Mind. - Respondeu Nataniel. - E agora mesmo. Calce suas botas mais uma vez. Não temos tempo para aproveitar o conforto de um quarto en-quanto há sofrimento neste lugar. Nosso trabalho é caracterizado por ser o mais breve possível. Se pudermos derrotar o demônio ainda hoje, as-sim o faremos. Por isso eu disse para economizar energias.

Nataniel esperou Qlon calçar as botas e, quando saíram do quarto e ele girou a chave, perguntou:

– E aquele lobo?

– Deixei-o com o Altair. Ele disse que cuidaria dele.

– Contanto que você pague as despesas, sinta-se à vontade para deixá-lo sobre os cuidados dele. Isso aqui é uma hospedaria, Qlon, não um abri-go de animais.

– Não se preocupe. Eu sou da família real, esqueceu? As contas vão para o castelo.

– …

– Vantagens da realeza.

– Então deveria aproveitar esta vantagem e arrumar alguns equipamentos melhores para caçar o demônio. Apesar de sua excelente arma, falta uma proteção corporal, mesmo que pequena. Mas cuidamos disso de-pois. Por enquanto, vamos à casa do prefeito.

– A situação não mudou muito, Nataniel.

O prefeito era um anjo baixo, de aproximado um metro e meio, magro, de lon-gos cabelos loiros amarrados em uma trança que chegava até suas nádegas e olhos verdes como uma esmeralda. Usava uma túnica melhor trabalhada, verme-lha e com bordados em dourados e prateados. Em sua cintura pesava um sabre simples, comum a todos os governantes do reino, com cabo feito de puro ouro. Era tão branco quanto Altair, ou até mais. Pertencia à classe dos arcanjos.

A sala que estavam era ricamente decorada por quadros que pareciam perten-cer aos ancestrais do prefeito, com molduras feitas de ouro e prata. A arma de

49

Page 50: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

cada um deles estava abaixo de seu retrato, protegidas por vidros que afastavam as impurezas encontradas no ar do aço que as moldava. No teto, um rico lustre iluminava o recinto. No chão, um tapete bordado à mão enobrecia o ambiente. O prefeito estava atrás de uma enorme mesa, amontoada por livros e manchada por tinta de escrita.

– Nenhuma diferença? - Nataniel estava sentado em um confortável sofá, junto de Qlon.

– Além do fato de termos contratado mais dois magos do vento para afas-tar a névoa? Não. Logo não teremos mais verbas para isso e a cidade perecerá. Nataniel, por tudo que é mais sagrado... - Dizia o prefeito, sen-tado em uma cadeira reclinável e com uma taça de água em mãos.

– Já sei, acabar com este demônio logo. Estou fazendo tudo o mais rápido que posso, acredite em mim.

– Eu acredito, mas... Se demorar mais um pouco, precisaremos esvaziar a vila. Este lugar que permaneceu sendo um dos principais fornecedores de minérios para a criação de equipamentos por séculos. - Tomou um de-morado gole de água, e então voltou a pronunciar. - Espero que seu as-sistente seja de bom uso, Nataniel. Não sobreviveremos a mais um inver-no, creio que sabe.

– Será. - Agradeceu aos céus o fato de o prefeito não ter percebido que ele era da família real. Evitou até que Qlon pronunciasse seu nome comple-to. Se o fizesse, Zenon, o prefeito, o encheria de pedidos. - Posso asse-gurar que, desta vez, traremos a cabeça do demônio.

– Que assim seja. Precisa de verbas, Nataniel? É minha obrigação forne-cer o que precisar.

– Não se preocupe com isso. Meu salário é satisfatório, posso lidar com pequenos custos.

– Então, só me resta desejar boa sorte.

Zenon colocou a taça sobre a mesa e apertou as mãos de Nataniel. Este, por sua vez, pegou o braço de Qlon e o puxou para fora dali.

– Não temos mais tempo a perder. Vamos para o armeiro, ele providencia-rá uma proteção adequada para seu tamanho.

Saíram pela porta que entraram e, acompanhados pelo mordomo, desceram as escadas espirais e atingiram o saguão de entrada. Escoltados, retiraram-se da mansão e passaram pelo jardim, seguidos pelos olhos do prefeito, que os obser-vava da janela de seu escritório.

50

Page 51: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

– É uma criança, Nataniel. Não creio que teremos algo aqui para ele. - Dis-se Willian, que parecia ser o mais moreno da vila por estar sempre ao lado da fornalha.

Ele era alto, quase dois metros, possuía cabelos castanhos-claros que toca-vam suas orelhas e eram muito despenteados. Seus olhos de mesma cor pare-ciam emitir a luz do fogo que ardia no fundo de sua humilde loja, de pouco mais de vinte metros quadrados. Estava sem camisa e suado, exibindo sua exímia musculatura, aprimorada por tanto trabalhar o aço. Mas seu único par de asas in-dicava a casta que permanecia. Sua loja, por sua vez, era repleta de finas peças. Algumas penduradas por ganchos nas paredes, outras presas ao teto por cordas e poucas em uma vitrine especial, com preços extremamente salgados.

– Ora, vamos Willian! Penso que não vende nada há muito tempo. Custa tanto assim adaptar uma simples couraça? - Argumentava Nataniel.

– Tudo bem então, construirei uma sob medida para ele, mas isso custará algumas moedas de ouro... - Disse Willian, olhando para o corpo de Qlon e tirando as medidas mentalmente.

– Tudo bem. Ele pagará. Quando ficará pronta?

– Amanhã pela manhã, no mais tardar.

– Ótimo, acordo feito. Agora voltaremos para a estalagem. Quando acabar, por favor, nos avise. Precisamos partir o quanto antes.

Nataniel e Qlon saíram da loja para deixar Willian trabalhar.

– E agora? - Perguntou Qlon.

– Agora você vai para a estalagem descansar. Deu sorte que precisamos esperar tanto assim por seu equipamento, assim poderá dormir um pou-co. Vá para meu quarto e me espere lá, voltarei mais tarde na noite. Te-nho assuntos pendentes a resolver.

– Aonde vai? - Perguntou Qlon a Nataniel, que já estava partindo para ou-tro lado da cidade.

– A um lugar que crianças não podem entrar. Agora siga minhas ordens e vá para o quarto. Acredite em mim, estarei de volta antes que os raios do sol possam aparecer.

A passos largos, ele se afastou, até sumir em uma das ruas. Qlon, sem enten-der muito, fez o que ele pediu e foi para a estalagem. Brincou um pouco com Cloud, ganhando um pouco mais da confiança do animal, tomou um longo e de-morado banho e caiu na cama, adormecendo rapidamente. Imaginava onde esta-ria seu “parceiro”. Ao menos acreditava que ele estaria a salvo em qualquer que fosse o lugar que ele estivesse.

51

Page 52: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

Cap. 37 – Uma Noite Livre

ndava a passos largos pelas ruelas. Já era tarde, o dia acabava. O pouco que estava vivo naquela cidade fantasmagórica morria lenta-mente. Os anjos trancavam suas residências e selavam as frestas de

suas portas e janelas com uma massa feita de barro, retirada pela manhã. Logo os magos iriam parar de soprar o vento que protegia aquela cidade da destruição para descansarem. Era o toque de recolher oficial. Nataniel não se importava tanto assim com o tempo. Estava descansado, poderia passar semanas e mais semanas acordado sem sequer pestanejar. Aquela noite ele precisava terminar um certo assunto. Após dobrar algumas esquinas e caminhar por uma longa es-trada de pedras que subia uma colina, achou o lugar que o interessava. A taver-na. Mesmo cidades pequenas como aquelas tinham uma. Afinal, que lugar mais pode reunir os mercadores transeuntes de um reino interessados em procurar trabalhadores e vida noturna regada a álcool?

A

“Nem todos os anjos que foram para Seal eram, necessariamente, um modelo de perfeição. Muitos deles adotavam práticas humanas viciantes, como fumo ou álcool, por convívio forçado entre os mortais e por diversas frustrações trazidas pela guerra com os demônios. A influência dos seres imperfeitos era muito gran-de, e estas formas de comportamento podem ser encontradas mesmo no início de minhas anotações. E mesmo em um reino em constante guerra, o comércio ainda se torna extremamente necessário. Nem todas as cidades são autossufici-entes. Nem mesmo os reinos são. As moedas que circulavam por Seal tinham um nome especial: Lumni. Podiam ser encontradas feitas em ouro (Lumni Au-rum), prata (Lumni Argentum) e bronze (Lumni Aeris).

O sistema era simples: 100 moedas de bronze eram iguais a uma de prata, 100 moedas de prata eram iguais a uma de ouro. Apenas para comparar os pre-ços de Aeria a uma cidade comum dos mortais, uma moeda de bronze igualava-se ao preço de um doce, como uma bala.”

Nataniel abriu a rústica porta corrediça. Um odor forte de ervas sendo queima-das atingiu o fundo de suas narinas, mas aquilo não o incomodava. Pelo contrá-rio: acabava se tornando um perfume em toda aquela fumaça malcheirosa. Sen-tou-se em uma mesa próxima ao balcão e logo um garçom de baixa estatura e apenas duas asas fora atendê-lo. De dentro das vestes retirou uma moeda de

52

Page 53: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

ouro e a colocou diante dos olhos do servente. A taverna era simples: um piso de madeira sem muitos luxos e um teto côncavo sustentado por troncos. Nas pare-des, muitos archotes e apenas duas janelas, que estavam sendo seladas com o barro protetor. Daquele instante em diante, ninguém mais entrava ou saia. Mesas já estavam abarrotadas de anjos. Alguns conversando em silêncio, outros garga-lhando com sua embriaguez.

– O mesmo de sempre, senhor Nataniel? - Perguntou o garçom, aproxi-mando-se de sua mesa.

– Sim, hidromel. E encha minha caneca pela noite toda.

O arqueiro acomodou-se em seu assento de madeira enquanto aguardava o retorno do garçom com sua bebida. Uma moeda de ouro por uma noite inteira de embriaguez, uma ótima oferta com toda certeza! O barulho daquele lugar chega-va a ser cômico. Apesar do momento pelo qual passavam, os habitantes de Mind sentiam-se livres ali. Bebiam e fumavam, parando para gargalhar e aproveitar a companhia dos amigos. Talvez fosse o necessário para esquecer aquele inferno.

– Aqui está, senhor. Seu hidromel. Deseja mais algo? - O garçom logo re-tornou com sua bebida em uma bandeja de latão.

– Por enquanto não. Obrigado.

– Com sua licença...

O garçom voltou para trás do balcão para lavar os utensílios. Nataniel beberi-cou o doce hidromel por alguns minutos, deixando escorrer por sua garganta. Es-tava sedento. Após limpar a boca com as costas de sua manga, olhou para o fun-do da taverna. Uma banda se apresentava. Uma linda anja, com lisos cabelos castanhos que tocavam seus seios em seu vestido azul-esbranquiçado e um olho azulado como a água de um rio vocalizava um tom lírico. Ao fundo um jovem me-nestrel de cabelos dourados, presos em um rabo de cavalo e cobertos por um chapéu elegante com uma pena de águia em sua fita, e de um olho esverdeado como jade, escondido por lentes de óculos de armação arredondada, tocava um alaúde. Quase ninguém prestava atenção em sua bela melodia, que falava de esperança e paciência, provavelmente por estarem fartos de temas relacionados. Mas Nataniel não conseguia desfocar os olhos daquela cantora. E lá ficou, por horas e mais horas, bebendo e apreciando a leve melodia que tomava conta do ambiente.

– Pegou seu alaúde, Samuel?

– Sim senhora!

– Ótimo. Vamos para casa, já está tarde. O dia está para raiar.

53

Page 54: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

Samuel, que trazia seu instrumento envolto por panos preso às suas costas, seguiu a ordem de sua irmã mais velha. Ele se formara a pouco na base como um bardo, seguindo os passos artísticos de sua parente. Mas, para sua infelicida-de, era difícil se tornar um bardo de destaque, ainda mais vindo de uma pequena família do interior. Os trabalhos na cidade eram raros de surgir para quem não ti-nha contatos. O período de sombra acabava aos poucos do lado de fora da XII Esmeria, a taverna de Mind. Era o único lugar que a dupla podia se apresentar a hora que quisesse, afinal, eram os tios deles os donos do local. O cachê não era muito alto, mas antes isso do que nada. E estavam saindo de lá quando se depa-raram com ele, seu único e maior fã: Nataniel.

– Bom dia, Samuel.

– Oh, Nataniel. - Respondeu surpreso. - Veio para nos elogiar novamente? Ou, talvez, para...

– Para já com isso, Samuel! - Pediu sua irmã, D'Avilla. - Acho bom cessar suas provocações antes que eu o faça engoli-las.

Nataniel riu tapando a boca com sua mão, apesar de saber que era verdade o que Samuel diria caso não fosse impedido.

– A apresentação de vocês foi magnífica hoje também. Fiquei encantado.

– Oh, obrigada, Nataniel. Apesar de ser suspeito vindo de você. - Respon-dia D'Avilla com frieza.

– Concordo. E seria assim tão difícil para um nobre guerreiro como você nos conseguir uma apresentação em...

– Calado, Samuel! - Sua irmã o censurava mais uma vez. - Até parece que não aprendeu boas maneiras na Base.

– Oras, irmã. Não custa tentar, não é mesmo? - Provocou com um sorriso dócil. - Agora, se me dão licença, voltarei para casa primeiro, para a ale-gria dos dois namorados. Até mais, Nataniel. Vejo você novamente no ano que vem?

Samuel e suas provocações. D'Avilla se envergonhava um pouco em sua pre-sença, mas era um ótimo irmão apesar dos pesares. Após Samuel dobrar a es-quina a passos largos, voltou-se para Nataniel, que se aproximava dela vagaro-samente. A tomou pela cintura e aproximou seu rosto do dela, mas ela virou o rosto para seu beijo.

– Minha amada... Fiz algo de errado?

– Tirando o fato de me largar sozinha por um ano toda vez que aqui vem... - Disse, desvencilhando-se de suas carícias. - Não, Nataniel. Penso eu que não. O que me diz?

54

Page 55: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

– Possui o mesmo senso de humor de seu irmão. É hereditário?

– Por que se preocupa com isso?

– Não gostaria que nossos filhos o herdassem...

D'Avilla olhou para Nataniel com um apreço infinito. Maldito. Ele sempre sabia o que dizer, e quando dizer.

– De que adianta essas belas palavras se, quando o inverno se for, você partir junto dele?

– Desta vez, se quiser, eu a levarei junto.

Ela se espantou. Era a primeira vez que ele dizia isso.

– Isso... Isso... É realmente verdade?

– Sim, é. E pode trazer o seu irmão caso queira. Minha casa em Aeria não é muito grande, mas podemos dividir o espaço. E...

D'Avilla não esperou que ele acabasse de falar. Abraçou-o com força e beijou seus lábios. Era isso, somente isso, que quis ouvir durante longos cinco anos. Cinco anos, se viram quantas vezes? Dez, se muito. Uma quando ele vinha, ou-tra quando ele partia. Ele a conquistou tão rápido... E ela, tola, passava os dias esperando por ele. Na esperança que ele viesse dizer o que estava dizendo ago-ra. Só faltava um detalhe...

– Isso quer dizer... Que vamos nos casar? - Perguntou D'Avilla quase rom-pendo em lágrimas, com os olhos brilhando de contentamento.

– Bem... Eu não disse isso...

– COMO ASSIM?

D'Avilla o largou e empurrou tão forte que ele quase caiu.

– Oras, estou te chamando para morar comigo. É preciso um casamento para isso, por acaso?

– Sou de uma família tradicional, oras! E dou-me ao respeito! Não vou mo-rar na casa de um anjo na capital só porque ele me chamou! Ainda tenho dignidade! - Disse ela, socando seu peitoral.

– Eu sou um guerreiro! - Revidou Nataniel, segurando seus braços. - Trei-no todos os dias do ano, várias horas por dia. Sou encarregado do co-mando de uma tropa especial. Passo quase seis meses do ano fora de casa, e, quando estou em casa, passo cerca de metade do dia fora dela. Eu não a peço em casamento pois mal teria tempo para permanecer em casa com você.

55

Page 56: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

– Então por que faz tanta questão que eu vá embora com você? - Chorava abertamente.

– Pois, apesar disso tudo, eu vou vê-la mais tempo do que a vejo hoje. Dormir junto de você e acordar na mesma cama. Tomar o café da manhã como um casal. Jantar. Prefere isso ou me ver duas vezes por ano, na saída de uma taverna de uma cidade abandonada? Não tenho tempo para me casar.

– Então provavelmente não terá tempo para mim...

Nataniel largou seus braços. Ela recuou, chorando, mas ainda olhando para seus olhos. Depois de um tempo, seguiu os passos de seu irmão, sumindo pelas ruelas, correndo. Nataniel não quis ir atrás. Ela precisava de espaço, e ele de re-pensar seus conceitos.

– Qlon, está aí?

Nataniel batia na porta do quarto que alugara, mas não era respondido. Abriu a porta. Qlon dormia sobre a cama, usando a nova couraça encomendada. Era lin-da. Forjada em puro aço, estava lustrada e adequava-se às curvas de seu corpo. Não parecia tão pesada quanto a de muitos soldados que usavam camadas ex-tras de aço para melhorar sua proteção às garras dos seres infernais e melhorar sua condição física, mas aquilo deveria bastar por enquanto. Ao pé da cama dor-mia o lobo, vigiando Qlon. No final das contas, ele seria uma ótima companhia. A criança dormia tão tranquilamente que não queria ter de acordá-lo. Sentou-se ali em uma cadeira e, de olhos bem abertos, esperou que ele acordasse enquanto refletia no que acabara de acontecer.

Qlon abriu os olhos. A luminosidade estava alta, deveria ser o cume. Seu estô-mago grunhia de fome. Aos poucos, inclinou seu corpo para a frente e se assus-tou com Nataniel ali parado, encarando-o.

– Bom dia, Qlon. Gostou mesmo de sua nova armadura, não é? A euforia foi tamanha que nem pensou em retirá-la?

– Acho que sim, acabei adormecendo com ela em meu corpo. Apenas a achei um pouco leve demais.

– E quanto ela pesa?

– Cerca de 60 quilos.

– Qlon, este deve ser o dobro do seu peso. Tem certeza que não a consi-derou pesada demais?

56

Page 57: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

– Sim, tenho. Será que ela realmente vai me proteger do necessário? Até mesmo meus ombros estão expostos...

– Se estão expostos é para que movimente melhor seus braços. Mas per-cebo que ela veio junto do saiote, e isso é ótimo. Suas “partes baixas” não sofrerão dano algum. Está com a couraça de malha por baixo?

– Sim, estou. Para que serve?

– Proteção extra. Acredite, é importante ter. Bem garoto, sua mestra deve-rá ensinar-te mais sobre armaduras daqui a algum tempo, e não eu. Mas o princípio é só um: quanto mais protegido de perigos externos, mais po-derá se concentrar em seus ataques sem a preocupação de se ferir. Isso faz tanta diferença que mesmo soldados de mais baixa classe procuram usar uma proteção eficaz. Mas chega de falatório. Já que está arrumado, vamos comer alguma coisa e partir. Nosso dia será longo.

– E para onde vamos?

– Vamos procurar o que eu venho buscando a anos: a fonte dessa névoa.

Já alimentados, saiam do portão da cidade sem Cloud, que ficou na hospeda-ria. Olhando para trás, Nataniel podia observar a silhueta de sua amada D'Avilla, quase que o desejando boa sorte. Os magos, posicionados estrategicamente em várias partes do muro, afastavam a densa névoa com suas magias. Mas, a partir daquele ponto, era tão difícil enxergar ou respirar que eles tapavam o rosto com simples máscaras, feitas com pano. Após seguirem rumo ao oeste, para a trilha do lago, Qlon finalmente perguntou:

– E onde nós vamos encontrar a fonte da névoa?

– Obviamente indo para onde ela é mais densa, na área do grande lago.

– E você já não fez isso antes?

– Sim, fiz. E aí está o problema que ainda não tinha te contado. Essa fonte se move, Qlon, sempre que me aproximo demais dela.

– Como assim ela se move?

– Se movendo, ora essa! Ela vai de um lugar para outro e é impossível to-cá-la. Então, ao que tudo indica, a fonte é um...

– Demônio.

– Exato. E, exterminando a fonte, acabaremos com o resto da névoa.

– Então, como localizar a fonte se ela acaba movendo-se?

57

Page 58: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

– Olhe ao seu redor, Qlon. O que você vê?

– Resquícios de uma fauna e flora destruídos por uma irritante névoa ver-melha de odor fétido e insuportável.

– Exato. Quando não puder ver mais nada além da névoa, teremos achado a fonte.

“Os dias se passavam rápido. Descansávamos em qualquer lugar, quando descansávamos. Comíamos pouco, quando comíamos. Por vezes era muito mo-nótono. Nos sentíamos andando em círculos todo o tempo. Procurávamos, pelo que disse Nataniel, por uma esfera maciça de cor vinho. E toda vez que estáva-mos perto e a névoa mais densa, ela dissolvia-se. Rodeamos o lago diversas ve-zes, mas ao que tudo indicava, não estava ali. Minha respiração queimava, mes-mo que protegido pelas máscaras de pano. Suportar tanto tempo assim respiran-do aquela névoa era sobrenatural. Nataniel parecia estar acostumado, apesar disso... Após duas longas semanas de fome e sono, conseguimos avistar, um pouco mais ao norte de onde estávamos, noroeste de Mind, nosso objetivo pela primeira vez: a densa esfera de névoa. Devia ter o raio de pouco mais que cin-quenta centímetros, não ocupava muito espaço. E, mesmo em um ambiente de visibilidade quase nula, era possível vê-la se movimentar e espalhar mais de seu gás tóxico.”

Nataniel, tomando cuidado para a esfera nada escutar, tocou o ombro de Qlon, pedido para ele ficar parado em silêncio.

– Vê, Qlon? - Sussurrava ele. - Era dela que eu estava falando. Agora pre-cisamos ser vagarosos e silenciosos.

– Nataniel, uma pergunta: você já foi vagaroso e silencioso com ela? - To-mava o mesmo cuidado com a voz ao falar.

– Sim.

– Já conseguiu aproximar-se o suficiente dela com isso para exterminá-la?

– Não.

– Então é hora de adotarmos outra tática!

Desembainhou a Sanctus. Seu brilho estava tão forte que era quase ofuscante. Dando um grito de guerra, partiu para atacar a esfera com a espada, em uma vertical perfeita, tentando separá-la em duas metades. Foi ao ar em um grande pulo, mas, antes que seu rápido golpe a acertasse, ela desapareceu no ar.

– Qlon, era isso que eu queria avisar, seu tolo! Ela...

Qlon não ouvia. Ele olhava para os dois lados procurando qualquer rastro da

58

Page 59: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

esfera. Até que conseguiu avistá-la novamente, fugindo numa velocidade muito rápida pelo seu flanco esquerdo. Qlon teleportou-se em um filete de luz e alcan-çou o lugar que ela estava, mas ela estava agora mais à frente. Uma perseguição passou a acontecer. Qlon teleportava atrás da rápida bola vermelha, esquivando-se de árvores mortas e pedras. Sem perceber, já havia dominado completamente a arte do teleporte. Enquanto isso, Nataniel o acompanhava correndo ao longe, repetindo para si mesmo: “Novato maldito”. Quando já estava próximo o suficien-te, saiu da instância do teleporte e golpeou a esfera com a Sanctus, que brilhou forte. A esfera se abriu e um pequeno demônio pulou de lá de dentro. Devia ter menos de um metro de altura, se muito. Um rosto feio e disforme, com apenas dois dentes caninos, furos que deveriam ser suas narinas e olhos negros como a noite. Seu corpo era magro, com sua ossada coberta por uma fina membrana. Ti-nha duas asas como as de morcego. “Então isso é um demônio”, pensou Qlon. Uma rajada de três flechas certeiras atingiu-o em suas costas. Nataniel.

– Acabe com ele, Qlon! Agora!

Em um outro movimento com sua radiante espada, cortou o demônio ao meio, na altura de seu tórax, espalhando sangue por todo o lugar. Havia feito: extermi-nou um demônio. Com a ajuda de seu conselheiro, mas, ainda assim, matou-o. Nataniel logo se aproximou para verificar o corpo.

– Parabéns, Qlon. Matou seu primeiro demônio. Deve estar orgulhoso.

Olhou então para as duas metades do corpo estirado no chão. O sangue es-corria lentamente e os músculos ainda criavam espasmos involuntários. A cena não era muito agradável.

– Não muito. Não o matei sozinho, tive sua ajuda.

– Que seja. Ainda assim aplicou o golpe final.

Nataniel olhou ao redor. Por fim, percebeu que, após dez anos, acontecia algo que ele falhou em fazer acontecer tantas vezes:

– Percebe? A névoa aqui está diminuindo...

– Sim, é verdade. Está se dissipando aos poucos.

– Mas não sumindo completamente... Deve haver mais destes espalhados por esta área. Parece que passaremos mais um tempo caçando-os. Vê algum problema?

– Não, nenhum. Bom que terei a chance de acabar com mais alguns deles.

– Então gostou mesmo de matá-lo, não é? Saiu realmente ao seu pai. Ve-nha, vamos verificar este corpo.

59

Page 60: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

Enquanto analisavam o corpo, Nataniel ponderou:

– Um corpo muito fraco, sem muitos músculos... Eles não parecem ser for-tes o suficiente para sobreviver aqui no inverno. - Disse Nataniel, com sua experiência.

– O que quer dizer?

– Quero dizer que algum outro demônio está por trás deles, ou outros. Mas, se estes forem seus servos, creio que esse mestre se revelará para nós e nos atacará se os destruirmos.

– Então... A nossa tática agora é provocar a raiva do chefe deles?

– Basicamente, sim. Só me culpo por uma coisa...

– O quê?

– Não ter tentado nada assim antes. Parabéns, Qlon. Espero que continue ajudando com seu ótimo trabalho. Apesar de sua decisão precipitada, provou ser capaz de grandes feitos. Não acreditava em você, de início, mas agora vejo que estava errado.

– Muito obrigado, Nataniel. É bom saber disso. Bem, vamos queimar esse corpo e acabar logo com isso.

– Não precisava arrancar a cabeça para levar como prova?

– Sim, precisava. Mas, se é para levar uma cabeça de um demônio que eu matar, que seja a do chefe, e não dos subordinados. E que seja com um que eu acabar sozinho.

– Gosto da maneira que pensa... Mas não pense que poderá acabar com o mestre deles por sua conta... Aliás, se ele está se fortalecendo aqui a dez longos anos, creio que seria necessário pedir reforços. Terá sorte se ele não arrancar a sua.

– Ainda assim, nada me impede de tentar.

– Que seja. A vida é sua, faça o que quiser com ela. Não creio que eu po-deria impedir uma criança impetuosa como você apenas com apelos lógi-cos. Enfim, vamos nos mover. Não acabaremos com essa névoa se con-tinuarmos parados.

E então, Qlon e Nataniel partiram para procurar pelo restante das esferas e acabar com elas, tentando restaurar a ordem naquele pequeno espaço do reino de Seal. Mas nem sabiam eles que um grande mal ainda se ocultava em meio em todo aquele caos. Um mal tão poderoso que tornaria-se muito mais que um simples desafio e marcaria, definitivamente, as experiências que o pequeno anjo possuía sobre combates...

60

Page 61: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

Cap. 38 – Hellhounds

ias correram apressados. Com o esforço dos dois caçadores, mais três esferas haviam sido destruídas após a primeira. A névoa quase não existia mais, e era apenas uma questão de tempo para que a últi -

ma delas fosse encontrada e aquele pesadelo que os cidadãos de Mind sofriam chegasse, definitivamente, a um fim.

D– Vamos, Qlon! Corte-a!

Qlon corria entre as árvores já mortas, de raízes expostas. Usava toda a sua velocidade, ou o quanto conseguia com sua já limitada energia. A esfera era rápi-da, mas ele conseguia parear as velocidades. Nataniel vinha logo atrás dele, pronto para atirar a primeira flecha. Só precisava que ela reduzisse um pouco sua velocidade e a acertaria. Suas flechas eram rápidas e sua mira era letal, mas acertar um oponente em grande velocidade é difícil até mesmo para um expe-riente arqueiro. Por fim, o pequeno anjo ruivo usou um teleporte e apareceu na frente da esfera. Antes que ela pudesse fazer mais qualquer movimento, a ras-gou de baixo para cima. O pequeno Imp agora estava exposto.

“De acordo com o que Nataniel me passou, o nome de tais horrendas e asque-rosas criaturas eram Imps. São os demônios mais fracos de todo o inferno, mas são muito velozes e sagazes. Pelo que parecia, a esfera os protegia do ambiente externo e ampliava seus poderes, além de transformar o sangue venenoso da-queles diabinhos na névoa. Claro que aquela não era uma simples magia, mas um demônio poderoso é capaz de mil truques. Por fim, aquelas criaturas esta-vam liquidadas. Após a última esfera se romper, Nataniel acertou o monstrinho com duas flechas, que entraram por trás de seu crânio e vararam seus olhos.”

– Bom trabalho, Qlon. Acho que conseguimos. - Disse Nataniel olhando para cima e contemplando o céu acinzentado.

– Sim, por fim. Acabamos com a névoa. O povo de Mind deve estar satis-feito. Só tenho um pedido a fazer agora.

– Faça-o.

– Passamos três meses correndo e procurando por demônios. Os primei-

61

Page 62: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

ros flocos de neve já surgiram. Mal descansamos, quase nada comemos, tive de beber água de chuva e neve. A primeira parte da missão está por fim concluída e, se me permite a falta de humildade, graças a mim. Será que não mereço a recompensa de, por fim, tomar uma ducha quente, co-mer uma refeição decente e descansar em uma cama macia?

– Ora, vejam só. Não era esse o garoto entusiasmado que queria a todo custo acabar com todos os demônios e completar logo a tarefa a ele dada? Não era esse mesmo anjo que queria arrancar a cabeça do chefe deles sozinho? Onde será que todo seu entusiasmo se perdeu?

– Provavelmente junto com minhas energias, após dormir, somando todas as horas que tivemos de descanso, menos de cinco dias. Devem ter aca-bado por volta da metade do segundo mês.

– Era uma pergunta irônica e retórica... Bem, criança... Creio que não po-demos fazer muito mais além de esperar agora. Então, creio que não te-remos problemas se voltarmos para Mind e descansarmos um pouco. Mas não se acostume a essas mordomias, garoto. Se acha que está can-sado agora, espere até se tornar um soldado...

– Vamos queimar logo esse corpo e ir embora. Estou todo dolorido...

Nataniel sorriu com a sagacidade de seu protegido e conjurou uma magia, inci-nerando o corpo do Imp. Ambos abaixaram suas máscaras. Podiam, finalmente, respirar ar puro. A passos curtos, deixaram para trás a floresta morta e partiram para o vilarejo de onde saíram, esperando apenas a oportunidade certa para acabar de vez com aquilo.

– Até que enfim, um banho!

Qlon se deliciava com a água quente de sua banheira enquanto Nataniel trata-va de ir à prefeitura. Ele tinha assuntos urgentes a serem resolvidos. Nesse meio tempo, ele pôde devorar o equivalente a mais de dez refeições completas e, ago-ra, relaxava em um banho que duraria horas. Cloud, seu novo animal de estima-ção, estava no quarto, dormindo no chão enquanto esperava um pouco de aten-ção de seu mestre.

– Nataniel, sua ideia é inconcebível! - Zenon gritou. - Não temos lugar para abrigar todo o povo!

– Dê o seu jeito. A minha tarefa é derrotar demônios, e não cuidar da logís-tica populacional.

– Não há outra forma?

62

Page 63: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

– Há, com certeza. Deixe todos nas ruas e corra o risco de sua cidade se tornar uma cidade fantasma.

O prefeito tomou um demorado gole de seu cálice, com as mãos tremendo.

– Será que esse demônio de quem está falando é tão forte a ponto de obri-gar-nos a achar refúgio?

– Pode ser que sim, pode ser que não. Não sei a dimensão de seus pode-res. Apenas creio que, se ele é capaz de sobreviver por longos dez anos em um ambiente gélido e ainda conseguir matar fauna e flora de uma enorme área com uma névoa venenosa, ele deve sim ser capaz de inva-dir e destruir essa cidade.

– Mesmo com as magias protetoras?

– Mesmo com elas. Nem mesmo sei se apenas eu e meu assistente dare-mos cabo dele. Precisaremos de reforço dos magos, se puder permitir.

– Sim, claro que permito. A segurança de meu povo em primeiro lugar.

Como se Nataniel acreditasse naquelas palavras. Deveria mudá-la para “os im-postos de meu povo em primeiro lugar”. Só estava colaborando pois sem povo, sem tributos.

– Informe-os o quanto antes. - Pediu Nataniel. - Não temos ideia de quan-do ele irá aparecer.

– Mandarei um mensageiro espalhar de porta em porta o mais rápido pos-sível. Obrigado por seus préstimos, Nataniel.

– Não estou fazendo nada além do meu dever. - Respondeu, virando-se bruscamente e deixando os aposentos de Zenon, fazendo esvoaçar sua capa.

Já era noite. Uma balbúrdia era feita na cidade. Os anjos misturavam-se nas ruas e comemoravam com canecas de hidromel ou cerveja e taças de vinho. Apesar de admoestadas pelo mensageiro, elas queriam sair de suas casas, co-memorar por fim. Foi uma época difícil que, ao que tudo indicava, acabara. Final-mente as pessoas poderiam ir para as ruas sem medo de se intoxicarem com aquele cheiro forte de enxofre. Podiam, aliás, sair de suas casas, algo que era anteriormente evitado pois apenas parte dos efeitos daquela fumaça inebriante eram conhecidos. A música tocada por Samuel era feliz, dançante. O dueto de ir-mãos se apresentava na praça de Mind, tendo como cenário um pequeno chafa-riz e um pobre calçamento de paralelepípedos. Detalhes que passavam desper-cebidos.

63

Page 64: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

“Aliás, ainda nem descrevi a cidade, tamanha a minha falta de atenção. Mind era uma vila pequena, rodeada por uma floresta, agora morta, e com montanhas como cenário de fundo. Na verdade, Mind era apenas parte de uma estrada que ia de Halo para Aeria. Todas as casas tinham dois andares, no mínimo. Adapta-ção feita para fugir das antigas condições que ela se encontrava. Um pequeno muro de pouco mais que um metro delimitava a cidade, que possuía, se muito, 5 quilômetros quadrados em sua área urbana. No centro dela, uma pequena e tími-da fonte servia como cenário para a mansão do prefeito. Uma moradia que ema-nava ostentação, de seus portões dourados ao espaço que ocupava. Fora isso, tinha o que toda cidade tem: tecelão, armeiro, taverna, hospedaria... Mas eu não estava envolvido na comemoração daquela noite. Fiquei no quarto, dormindo, enquanto Nataniel sumiu no meio da multidão...”

Nataniel assistia a apresentação de sua amada no telhado de uma das casas na proximidade da praça. Depois do que ela disse, não tinha mais coragem de falar cara a cara com ela. O tempo que Nataniel passou caçando também serviu para que refletisse sobre seus atos. Sua sinceridade jamais seria párea aos sen-timentos de uma mulher, e agora ele entendia. Se ele quisesse ficar para sempre com ela, teria de seguir suas regras. Para ele, que nunca antes havia interessa-do-se por uma mulher, aquilo era estranho. Podia ser um forte general, ou o sol-dado mais forte do reino. Ainda assim precisava seguir as ordens das fêmeas. Mas não era apenas para observá-la que ele estava ali. Aquela comemoração era precipitada demais. Seus sentidos diziam que algo ruim estava por vir, então ele vigiaria mais uma vez. Não havia por que incomodar o jovem Qlon. Ele esta-va cansado demais, enquanto Nataniel já conseguia passar até mais tempo acor-dado. Fora que, se não fosse pelo esforço do anjo ruivo, ele provavelmente teria fracassado mais uma vez. Sentia que devia deixá-lo descansar um pouco, ao menos. Enquanto a festa continuava, Nataniel bebia, sozinho, no telhado.

Uma hora havia passado. A festa enfraquecera com alguns foliões já estirados nas calçadas, tamanha a dosagem de álcool. Mas Nataniel mantinha-se ali, vi-giando tudo. O álcool parecia não ter efeito algum sobre ele, que hora ou outra descia de seu posto para pegar mais hidromel ou urinar em algum canto – dando trabalho aos pobres zeladores. Mas aquela festa não duraria muito.

– Socorro! Me ajudem!

Um anjo disparou por uma das ruas, abrindo o caminho por onde passava. Ti-nha marcas de arranhões no rosto, no peito – onde as garras rasgaram suas ves-tes – e nas pernas. Ainda assim corria rápido, levando a mão à cintura. Nataniel foi ao seu encontro, tentando acalmá-lo:

– Acalme-se! O que houve?

64

Page 65: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

– Os portões... Destruídos... Hellhounds...

Hellhounds? Mas hellhounds não eram capazes disso sozinhos.

“Hellhounds são cães do inferno, no sentido literal da palavra. São como os animais domésticos dos humanos, mas de duas a três vezes maiores, mais ágeis, mais ferozes e mais letais. Não possuem olhos, apenas narinas com um olfato aguçado o suficiente para perseguirem uma presa do outro lado do planeta e, obviamente, dentes finos e mandíbulas poderosas, capazes de triturarem aço. Seu corpo é avermelhado e as veias podem ser vistas através de suas peles se-mitransparentes. Mas são apenas bestas. E toda besta tem o seu mestre.”

O caos estava formado. As pessoas corriam para a mansão do prefeito, que serviria de abrigo, e os magos dos ventos já tomavam suas posições para defen-der seus muros. Nataniel colocou o anjo ferido aos cuidados de alguns cidadãos, que o carregaram apoiando os braços do ferido em seus ombros. Não demorou muito até que os hellhounds fossem vistos. Correndo pelas ruelas e estilhaçando os mais desavisados. Nataniel estava certo: era cedo demais para qualquer co-memoração.

Algo batia na porta, e quase a quebrava. Qlon, que já estava acordado após os gritos, prestava atenção. Montou guarda atrás dela, com Cloud atrás dele, ganin-do de medo. Sacou a sua espada lentamente, emanando brilho na sala escura. A luz da lua se fora, apenas densas nuvens de neve podiam ser vistas pelas jane-las do aposento. Uma forte ventania se aproximava.

Um estrondo! A porta se quebrou e dois hellhounds entraram, sedentos por sangue. Um veio na direção da barriga de Qlon, pronto para dar uma mordida, mas o anjo foi mais esperto e girou o corpo, deixando-o passar e cortando-o ao meio assim que teve a oportunidade, espalhando um espesso sangue rubro pelo tapete. O outro mordeu Qlon no braço, mas não teve tempo para mastigar. A criança separou a cabeça do restante do corpo assim que notou. Com a ponta da Sanctus, cortou os dois lados do maxilar que prendiam os dentes finos e compri-dos à sua carne. Não penetraram tanto assim, mas foi o suficiente para arrancar um pouco de seu sangue.

– Cloud, esconda-se! Vou procurar por Nataniel!

Nataniel matava hellhounds tão facilmente quanto respirava. Seus movimentos eram fluídos. Flechas partiam de seu arco tão rápido que olhos destreinados não podiam ver. O único problema é que flechas acabam. Mas tudo bem, Nataniel ainda tinha uma adaga na bainha caso precisasse. Em meio ao tumulto, ele grita-va um nome. D'Avilla.

65

Page 66: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

Qlon desceu as escadarias. Estava tudo escuro. Podia ouvir o som de algo se rasgando, e foi investigar o que era. Ao chegar ao primeiro piso, mesmo com a pouca luz da Sanctus, pôde observar o corpo de Altair sendo dilacerado por 4 enormes hellhounds, que comiam sua carne com vontade. Como eram cegos, não podiam enxergar a Qlon. Estavam apenas deliciando-se com seu novo ban-quete. E, por não o virem, estavam em natural desvantagem. Com sua enorme velocidade, ele varou a antessala e estilhaçou os cães em enormes cubículos de carne, ossos e sangue. Parou para verificar o corpo de Altair. Suas duas pernas e o braço esquerdo já estavam separados do corpo. Sangue morno ainda escorria de suas feridas. Seu rosto mantinha a última expressão que teve antes de mor-rer: dor. Sua boca ainda estava escancarada, como sua barriga, com o intestino espalhado pelo chão. Seus olhos bem abertos contemplavam o infinito.

“Era a primeira vez que eu tinha contato com um corpo neste estado. Minha primeira reação foi sentir nojo. Prendi o vômito em minha boca e o engoli, man-dando-o de volta para meu estômago enquanto ele descia por minha garganta, queimando-a. Tentei concentrar-me no seu rosto, e não nos restos estilhaçados de seu corpo. Foi difícil, mas tentei manter-me calmo. Fechei seus olhos e boca, dando-o um semblante de paz, e, silenciosamente, pedi desculpas por não ter chegado antes. Mas não havia tempo para aquilo. A cidade estava sendo invadi-da e algo me dizia que aquilo que eu via naquele instante seria apenas o come-ço. Com a Sanctus em mãos, disparei pelas ruas, sem olhar para trás.”

– D'Avilla! D'Avilla! - Gritava Nataniel em meio ao alvoroço.

Os hellhounds chegavam continuamente, e nem todos eram rápidos o suficien-te para escapar deles. Alguns até tentavam voar, mas não era eficaz. Isso ape-nas deixava o ataque deles mais fácil, já que seus pulos eram imensos e voar apenas destacaria a presa.

– Nataniel! - Sua voz respondia em meio às dezenas que a arrastavam para dentro da mansão.

– Vá com eles, D'Avilla! Fique em segurança! Quando eu acabar, voltarei para pedir sua mão!

Nem soube se ela ouviu. Não conseguia obter respostas em meio a gritos e som de carne se rasgando. Nataniel guardou dez de suas flechas na aljava e li-mitou-se a usar sua adaga. Era, certamente, complicado, mas necessário. Se al-gum grande desafio aparecesse mais à frente, uma adaga não daria conta. Tudo resumia-se a esperar que o reforço ajudasse, e que Qlon pudesse ter alguma uti-lidade.

Qlon correu pelos becos e ruelas, varando o ar. Atrás dele, meia dúzia de cães

66

Page 67: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

demoníacos o perseguiam. Suas bocas salivando por carne de anjos.

“Aquela era uma luta em que eu sairia perdendo, muito provavelmente. A gra-vidade absurda dos sete céus pode ter aumentado minha força, destreza e velo-cidade, mas aquilo não melhorou, necessariamente, os meus reflexos. A capaci-dade de visão mortal e reação muscular chegam a um limiar. Este limiar pode ser definido por vários fatores, como nível de atenção, concentração e tônus muscu-lar. E, além de tudo isso, a idade. Mortais de idade baixa não possuem uma com-pleta formação do cérebro, e isso reduz muito sua capacidade. Em um mortal, 21 anos são mais do que necessários para a completa formação do cérebro, por isso é também considerada a “idade adulta”. Os anjos envelhecem exatamente até esse estágio de completa formação da massa cefálica, e só voltam a enve-lhecer quando a mente deixa de pensar. Mas, até esse ponto, eu não tinha capa-cidade para tanto. Um dos ensinamentos que meu pai deixou em um de seus es-critos foi: 'O limite não é um empecilho para deixar de tentar, mas não está longe o suficiente para desaparecer.'. E, se o melhor soldado dos anjos em uma era in-teira foi capaz de dizer isso, não era eu que iria duvidar.”

Após correr em zigue-zague o suficiente para ficar tonto, avistou a praça. A cena não era lá das melhores: corpos ensanguentados jogados em todos os can-tos. Alguns ainda se moviam enquanto enormes hellhounds devoravam suas en-tranhas. Nataniel, sozinho ali no meio do caos, matava cães o quanto podia, mas eles não pareciam parar de brotar das profundezas da terra.

– Nataniel! - Gritou Qlon, tentando separar contentamento e choque.

– Qlon, ainda bem que chegou! Ajude os feridos, rápido! Leve-os para a mansão, estarão seguros lá dentro! - Respondeu Nataniel, já o dando no-vas ordens.

– E quem me ajuda?

Nataniel olhou para ele e viu ferozes cães saltarem sobre suas costas. Em um piscar de olhos, colocou três flechas entre seus dedos. Atirou-as e repetiu o pro-cesso antes que as anteriores atingissem o alvo. Os seis cães foram ao chão.

– Mais seguro agora? - Ironizou Nataniel.

– Sim, mas é estranho ver essa atitude vinda de um dos defensores dos animais. - Rebateu Qlon. - Pode dar-me cobertura?

– Não. Tenho apenas quatro flechas agora e pretendo guardá-las para emergências. Pode pedir ajuda dos magos do vento na mansão, apesar de perceber que eles estão mais ocupados do que nunca. Então, se qui-ser fazer algo de útil, corra!

“Nataniel continuava concentrado arrancando cabeças de hellhounds com sua adaga. Os cães não paravam de chegar, o que dificultava e muito o nosso traba-

67

Page 68: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

lho. Ainda assim, decidi ajudar como podia. Concentrei-me primeiro nos corpos mais distantes da mansão, afinal eram eles que mais corriam perigo. Aproxima-va-me deles, checava sua respiração, colocava-os em minhas costas se estives-sem vivos e corria para a mansão. Infelizmente o teleporte não era uma opção. Eu não tinha recuperado completamente minhas energias, mesmo com todas aquelas horas de sono e, quanto mais peso para carregar, maior a quantidade de energia gasta com o teleporte. O combate que estava por vir seria grandioso de-mais para eu permitir que todas as minhas energias fossem embora antes que eu arrancasse a cabeça do responsável e a erguesse como um troféu.

Após um incontável esforço, consegui salvar cinco anjos da morte iminente, mas 14 pereceram. Fora os que foram devorados e não puderam ser contados. Após isso, fiquei ao lado de Nataniel, ajudando a exterminar aqueles seres infer-nais. Ficamos, por mais de uma hora, cortando hellhounds ao meio. Seus corpos foram amontoando-se na praça e manchando o antes festivo cenário em uma enorme poça de sangue. Mas, por mais que matássemos, eles não paravam de vir. Os magos já estavam tendo problemas o suficiente para proteger a popula-ção na mansão do prefeito, não iriam conseguir nos auxiliar a acabar com todos aqueles bichos. Até que, em meio à turbulência, os cães pararam. Não saíram de sua postura agressiva, rosnando e mostrando os afiados dentes, mas também não mais nos atacavam. Eu pude sentir um arrepio na espinha. Meu sangue pa-recia ter virado gelo. Era como se meus sentidos fossem perdendo-se aos pou-cos. Meu corpo ficou dormente, minha visão foi escurecendo e podia ouvir um fino chiado. Estava chegando.”

– Qlon... Está vindo.

– O que... Nataniel? - Perguntou Qlon, tentando recuperar o fôlego e se fo-car no ambiente ao redor.

– Pode sentir a presença, não é mesmo? Todos nós sentimos da primeira vez que nos deparamos com um caído... Mas não ceda tão facilmente. Recomponha-se!

Qlon estava ajoelhado sobre sua perna direita, segurando com as duas mãos sua espada, onde apoiava seu peso. Vomitou um punhado de líquidos intestinais misturados a seu sangue. O cheiro da névoa voltava às suas narinas, mas muito mais forte do que antes. O enxofre característico o deixava ainda mais tonto. Olhou para frente. Os portões de Mind, no horizonte, estavam abertos, e uma criatura passava por eles.

Quatro enormes asas, negras como a noite, saíam de suas costas. Um sorriso sádico e completamente psicótico se formava em seu rosto, com dentes caninos avantajados e contornos brutos. Olhos negros, mas de escleras avermelhadas, fi-tavam os dois heróis no centro do sangrento cenário. Seus cabelos loiros chega-vam até seus ombros e tapavam quatro chifres que furavam seu couro cabeludo. Estava completamente nu. Possuía garras no lugar de unhas, e muito pelo espa-

68

Page 69: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

lhado pelo seu corpo bronzeado, inclusive na face, de onde brotava uma barba espessa e sobrancelha unida. Andava a passos longos, esticando bastante suas pernas a cada pisada. Ao chegar a menos de dez metros de Nataniel, parou. Abriu ainda mais seu sorriso, escancarando o máximo possível sua enorme boca. Um rabo no final de suas costas balançava agitado.

– Então, são vocês que estão acabando com meus pobres filhotes? - Per-guntou uma voz grossa como um trovão. - Que rude de sua parte!

Nataniel retesou uma das flechas de seu arco e a disparou. Ela varou o ar, mas o estranho caído a pegou antes que ela tocasse sua testa.

– Vejo que os anjinhos são ferozes. - Caçoou. - E tão selvagens quanto eu, deveria dizer.

Nataniel retesou outra flecha e a apontou para o monstruoso ser, metade ani-mal e metade demônio.

– Não precisamos ser educados com nossas presas. Nem mesmo cordiais. Está com raiva por eu ter acabado com seus bichinhos?

O demônio correu como o vento e, antes que Nataniel pudesse esboçar algu-ma reação, o atingiu na barriga com um soco que o fez voar vinte metros para trás, só parando por fim na parede de uma casa, quebrando-a.

– Quem é a presa aqui, afinal? - Ria, cada vez mais agitando sua cauda.

Olhou para Qlon. Este estava paralisado de medo, apenas olhando para ele. Olhos negros de fundo vermelho atemorizantes. Ele o pegou pela cabeça com sua enorme mão. As garras perfuraram suas bochechas e ele quase soltou um grito de dor, que também foi retido em sua garganta.

– É muito petulante para usar uma espada perto de mim, garoto. Agora vai morrer como o inútil que é.

Com a outra mão, apertou seu pescoço. Qlon perdia o ar aos poucos, engas-gando com uma mistura de saliva e sangue provenientes de sua boca perfurada. Mas, antes que o demônio quebrasse seu pescoço com a descomunal força, Na-taniel surgiu para salvá-lo e cortou fora a mão que o estrangulava. Por reflexo, o selvagem o soltou. Nataniel completou o ataque dando um chute em sua barriga e enviando-o alguns metros para trás.

– Fala de nossa selvageria, mas age exatamente igual. É realmente tão es-túpido quanto parece? - Disse Nataniel, já um pouco escoriado.

– Sim, sou estúpido. - Respondeu o demônio, erguendo-se. - Estúpido como a besta que sou. Acabaram com minhas criaturas e estragaram meu plano, então vou derrotá-los com minha fúria. Preparem-se, seres fracos. Serão esmagados por minha descomunal força!

69

Page 70: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

Cap. 39 – Inconsciência

situação era delicada. Qlon levantava-se vagarosamente. Sua mente ainda não respondia direito aos seus comandos. Sua visão turva afe-tava sua percepção, e por longos minutos o mundo ao seu redor pa-

recia um monte de manchas de uma pintura abstrata.A– Qlon! Qlon, concentre-se em minha voz! - Nataniel dizia.

Aos poucos o mundo voltava ao seu estado original para o jovem anjo ruivo.

– Ainda acha que pode lutar?

– Eu não... Eu não sei. - Lutava para se manter de pé.

– Eu sei que a presença dele é poderosa, mas tente concentrar-se. Eu pre-ciso de sua ajuda, já não tenho muitas flechas. Há algo em sua bolsa que possa ser de serventia?

– Não... Duvido muito que itens de sobrevivência possam ser úteis agora.

A noite estava escura demais. Nuvens tempestuosas cobriam os céus, e ape-nas pequenas chamas no alto de postes iluminavam a totalidade da cidade. Na-taniel precisava ganhar tempo para seu parceiro recuperar-se. Adiantaria algo tentar iniciar uma conversa civilizada com aquele monstro? Não custava tentar.

– Afinal de contas, que plano tão perfeito era esse? - Perguntou com certo tom de ironia.

– Você acabou com ele e nem ao menos sabe do que se tratava? IDIOTA!

O demônio, com uma velocidade espetacular, tentou golpear Nataniel, que se esquivou e puxou Qlon para que esse não fosse acertado pelo soco deferido.

– Já vi que é muito fácil irritá-lo. Isso será interessante. Posso ao menos saber seu nome, ó poderoso demônio? - Ironizava cada vez mais.

– Imbecil desgraçado! Está provocando quem não pode vencer!

– Ah, então seu nome é Imbecil Desgraçado? É um nome completamente apropriado ao seu caráter, se me permite o elogio.

70

Page 71: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

O demônio se agitava cada vez mais com as provocações de Nataniel. Suas veias saltavam de sua pele e seu sorriso psicótico se abria cada vez mais, quase rasgando o canto de seus lábios. Era uma péssima ideia para ganhar o tempo que queria, mas agora que havia começado não pararia ou demonstraria inferiori-dade. Precisava continuar e ver que tipo de respostas conseguiria arrancar da-quela fera antes que Qlon estivesse em condições de lutar.

– Não sabia que bestas comuns podiam usar magias. - Dizia Nataniel, con-tinuando com as provocações. - Como aprendeu a invocar um nevoeiro tão forte?

– Simples, eu não aprendi. A magia é emprestada de um antigo “amigo” meu. Eu controlava os Imps, e eles controlavam as magias. Eu só me ali-mento de formas de vida mortas, isso aumenta meus poderes. A névoa matava e eu comia. E se não fosse a intromissão de vocês, eu teria um belo banquete em alguns dias... - Disse, olhando para o povo assustado nos jardins da mansão, que “apreciavam” o espetáculo. - Mas, como fize-ram questão de me atrapalhar, eu mesmo vim buscar a minha comida.

Nataniel passou a rir.

– O que é tão engraçado, desgraçado? - Perguntou o demônio com um tom de ira, mas sem tirar o sorriso da face.

– Não acredito que eu levei anos pensando que isso seria obra de um de-mônio inteligentíssimo, e agora... Descubro que um selvagem qualquer a armou... Me sinto estúpido por minha inteligência não ter sido capaz de se rebaixar ao seu nível.

Tomou um soco no rosto sem perceber, que o fez voar um pouco para trás, até ele abrir as asas e planar. Cuspiu um pouco se sangue junto com um ou dois dentes. Qlon estava seguro em seu braço esquerdo e sua adaga repousava em sua mão direita. O jovem anjo sentia-se como um boneco, sendo arrastado para todos os lados, mas não era culpa se a sua força decidira abandoná-lo quando ele mais precisava.

– Você fala demais. Vou fazer questão de arrancar sua língua e dar um nó em seus lábios com ela. - Disse o demônio, sorrindo.

– Acabou de me acertar um soco e está se sentindo poderoso, não é? Pro-ve seu poder de mais maneiras, pois essa não serviu para acabar comi-go.

Nataniel largou Qlon. Sabia que atingira o limiar. Logo o demônio voou ao seu encontro, aplicando socos e chutes em uma velocidade assustadoramente alta. Esquivava dos que conseguia, revidava os que podia. Mas a luta estava agora centrada naqueles dois. Qlon fora esquecido, jogado em um canto qualquer.

71

Page 72: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

Qlon usava sua espada de muleta para tentar se colocar de pé novamente. En-quanto Nataniel estava lutando, já visivelmente cansado, o demônio parecia se divertir, deferindo golpes e esquivando dos que Nataniel tentava acertar. Maldito, ele deveria ter dormido mais! Por certo, todo aquele tempo de caça não ajudara muito para manter suas energias. E além do mais, ele era um anjo arqueiro, não um lutador. Qlon sabia disso, e precisava recuperar-se antes que a situação fi-casse pior. Com muito esforço, ergueu-se. Colocou-se em modo de combate e voou até seu alvo. O golpe foi um na vertical, de cima para baixo. Lento, mas foi o suficiente para separar os dois. Nataniel colocou-se em posição de combate. Estava completamente escoriado e ofegante, mas ainda tinha energias para manter-se de pé. Qlon pousou com dificuldade, quase caindo.

– Nataniel, está tudo bem?

– Na medida do possível. - Respondeu após tomar fôlego. - Pode lutar agora? Pelo que vejo, precisarei de ajuda.

– Posso, ou acho que posso. Economize essas flechas. Algo me diz que precisaremos delas.

– Quem você pensa que é para se intrometer em nossa luta? - Disse o de-mônio, visivelmente irritado. - Suma daqui garoto, antes que eu decida matá-lo e comer seu cadáver.

– Se está procurando aquele que estragou seus planos, deveria conversar comigo. Eu que matei seus Imps. - Respondeu Qlon, apontando a Sanc-tus para seu oponente, que não se sentia nem um pouco ameaçado. - Ele tentou por dez anos, mas sem minha ajuda não havia conseguido nada. Então sou eu que você procura...

O demônio fechou as mãos. Suas garras perfuraram sua pele e adentraram seus músculos. Veias saltavam de toda extensão de seu corpo. Seus lábios quase se rasgaram, tamanho seu sorriso.

– Não acredito que fui atrapalhado por uma criança. Meu nome é Canine. O último nome que irá conhecer antes de morrer, verme.

Canine saltou para cima de Qlon, e com fúria deferiu um golpe no centro de seu peito. Sem chances de se defender, Qlon voou muitos metros para trás com um soco tão forte que amassou sua armadura. Quicou e arrastou no chão por al-guns metros antes que o demônio pisasse no seu tórax com sua enorme pata, o afundando no chão e fazendo com que cuspisse sangue. Preparou um golpe no rosto de Qlon, mas fora atingido por uma flecha nas costas, perto do pescoço. Voltou-se para trás e viu Nataniel com o arco retesado. Arrancou a flecha como se nada fosse e, em sua menor distração, teve a Sanctus atravessada em sua perna. Urrou de dor com seu osso quebrado sem tirar o sorriso do rosto, enquan-

72

Page 73: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

to a lâmina fazia seu sangue evaporar. Tirou a perna de cima de Qlon e este de-sencravou sua espada.

– Qlon, tome mais cuidado. Este oponente não é comum. - Avisou Nataniel antes que um soco atingisse seu rosto em cheio, levando-o à parede de uma casa, onde foi “suavemente amortecido” por tijolos.

O demônio voltou-se para Qlon, que havia retirado a armadura amassada e a jogado ao chão. Aparentemente estava com o esterno quebrado após o soco e o pisão. Sangue escorria de sua boca, e para Canine aquela cena era muito boa. Mesmo com uma perna incapacitada, correu para cima dele como se a dor não importasse. O acertou um soco na barriga fazendo-o soltar todo o ar de seus pul-mões e, com as duas mãos juntas, golpeou sua nuca, levando seu corpo ao chão. Quando ia aplicar o golpe de misericórdia, arrancando a cabeça de Qlon do resto do corpo, levou uma segunda flechada, desta vez no olho.

– Qlon, levante-se e lute! Não tenho capacidade de combater se for para fi-car protegendo você! Achei que era forte!

“Aquelas palavras ressoaram em minha cabeça. Finalmente me dei conta de quão pequeno era meu real poder diante do mundo. Eu tinha muito, muito ainda a aprender. Eu podia ser forte para alguém de minha estatura, podia ser melhor até que alguns adultos. Mas ainda era fraco demais para comparar-me a grandes guerreiros. Eu enfrentaria monstros piores em minha vida, aquele era apenas o começo, e daí se eu estivesse cansado? Eu não queria padecer diante daquele grande desafio.”

Aos poucos, Qlon levantou-se. Segurou sua espada com as duas mãos. Seu peitoral e sua barriga doíam muito, e seu pescoço parecia estar moído de tanta dor. Olhou para Nataniel, que apanhava de Canine. Interveio indo para o meio da luta e deferindo um golpe com a espada na altura do pescoço de Canine, que es-quivou, segurou o braço de Qlon e chutou-o no nariz com a perna quebrada. Na-taniel tentou ajudar seu protegido, mas sua adaga nem fez cócegas nas costas da besta, que apenas virou seu braço com força e o deu um bofetão forte o sufici-ente para que ele voasse para trás. Qlon ainda tinha seu braço preso por Canine, e apanhava brutalmente com diversos socos da outra mão de seu oponente.

– Primeiro vou torturar, depois te matar e, por fim, comer seu corpo. Apro-veite cada segundo de dor. - Dizia enquanto batia.

“Por alguns segundos ele lembrou-me Juggernaut. Um ódio estranho crescia em meu coração, e em um momento de fúria eu me desvincilhei de seu braço, cortando-o com a Sanctus. Caído no chão, tentei cravar a espada em seu peito, mas este já estava longe de mim. Levantei, arrancando o braço cortado dele do meu. Os danos em meu corpo eram sérios: Esterno e nariz quebrados, mandíbu-la deslocada, ombro esquerdo deslocado... Então aquela era uma batalha de ver-dade. Nataniel parecia desmaiado, largado em um canto qualquer. Era eu contra

73

Page 74: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

um demônio sem braço e de perna quebrada, mas que ainda assim era muito mais forte. Ofeguei por alguns segundos, tentando recuperar as energias. Meu peito doía a cada inspirada. A face de Canine ainda se contorcia em um macabro sorriso enquanto me encarava.”

– Você é forte garoto. Mais forte do que eu esperava que fosse. Quando eu vivia em Seal, crianças da sua idade costumavam chorar com um petele-co na orelha.

– Então você caiu recentemente? - Perguntou Qlon, espantado.

“De acordo com a história angelical, os caídos se dividiam em três grandes grupos: os primeiros caídos, e também os mais fortes, que foram os demônios que Lúcifer conseguiu carregar para fora dos sete céus antes do apocalipse. Logo após vinham os caídos apocalípticos, que se revoltaram com os céus du-rante a batalha do apocalipse e, dizem, foi o principal motivo do empate. E, por fim, os caídos de Seal. Aqueles que caíram durante a permanência dos anjos no reino mortal, pois foi facilitado pela localização e atual condição.”

– Sim, mas de que importa? Morrerá aqui de toda forma.

Arrancou a flecha que carregava no olho, puxando para fora o globo ocular. Sangue escorria de suas feridas, mas ele não parecia importar-se. Pelo contrário, continuava com seus risos histéricos. Aquilo irritava Qlon, que podia, cada vez mais, enxergar a face de Juggernaut.

– Prometo que, - Disse Qlon, apontando a Sanctus na direção de Canine. - antes de essa luta terminar, seu rosto irá se contorcer de dor.

– Você fala demais, garoto. Quer parecer um forte herói, mas não se dá conta de como é ingênuo e fraco. Cansei de suas provocações.

Ainda com o sorriso histérico estampado em seu semblante, partiu para cima de Qlon, pegando impulso. Com o único braço que restara, cravou as garras na altura das costelas do jovem anjo, arrancando um fino grito de dor. Com o rosto perto de sua face, lambeu sua orelha e sussurrou:

– Prepare-se. Vai virar minha comida dentro de instantes.

Qlon agitou-se. Os dedos de Canine começaram a mover-se dentro dele, bus-cando seu coração. Com a espada em mãos, tentou movê-la para golpeá-lo na altura do peito e acabar de vez com aquilo cravando a espada em seu peito, mas ele foi mais rápido e pulou para trás.

– Agora que seu amigo não está mais acordado para proteger-te, brincarei um pouco com minha comida. - Provocou Canine, lambendo os dedos. - Um sangue delicioso, se me permite o elogio.

Qlon colocou a mão no peito para tentar conter o sangramento, mas era de-

74

Page 75: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

mais. Passou suavemente o aço de sua espada sobre a ferida e cicatrizou-a com o altíssimo calor que emanava dela. Se não estivesse prestando atenção, toma-ria mais um poderoso soco de seu oponente, que acertou o vazio quando Qlon atirou-se para o lado esquerdo, caindo em cima do ombro dolorido.

– Você disse que faria meu rosto se contorcer de dor, e estou esperando. Mas aviso que, comparado ao inferno, não importa o que faça. Morrerei de sorriso estampado na cara.

Estava um pouco assustado. Ergueu-se mais uma vez e colocou-se em postu-ra de combate. Estivera defendendo, já era mais do que hora de inverter a situa-ção. Com um salto rápido foi encarar o monstro de frente, colocando a espada atrás do corpo, na altura da cintura, e golpeou com toda a força que possuía. Apesar de tudo ter sido muito rápido com seus movimentos, a besta esquivou-se e seu corte horizontal, que visava dividir Canine ao meio na altura da cintura, va-rou o ar. Como contra-ataque, recebeu um potente golpe nas costas, quebrando sua escápula direita. Ainda no ar, foi arremessado alguns metros antes de ser agarrado pelas pernas e atirado em uma parede.

Com um pouco de dificuldade, pôs-se de pé novamente. Ergueu sua espada. Seus braços doloridos mandavam abaixar a guarda, mas ele ignorava-os. Mais uma vez, usou sua velocidade para combater. Corria e golpeava o ar com sua espada. Algumas vezes acertava de raspão, mas para ele era o suficiente. Preci-sava cansar seu oponente para ficarem em pé de igualdade, apesar de ser um trabalho árduo e, em tese, impossível. Em um momento, usou sua inteligência: girou o corpo em seu eixo e deferiu um golpe horizontal na altura do pescoço de Canine. A lâmina santa adentrou por alguns segundos em sua carne, cortando parte de seu pescoço. O demônio afastou-se dos golpes do pequenino.

– Eu disse. - Foi a vez de Qlon sorrir.

– Disse o que, verme? - Perguntou Canine, visivelmente irritado.

– Que antes da luta acabar faria com que se contorcesse de dor. Fui tão pior que o inferno agora?

O rosto de Canine realmente esboçava dor. Parara de mostrar os dentes e fe-chara a boca. Mas fora pouco. Ele não queria dar o gosto da vitória para aquela criança.

– Não, mas sua arma foi... É uma bela espada que carrega. Mas o truque... - Disse, sumindo no ar e reaparecendo atrás de Qlon. - … É evitar sua área de alcance, e tudo ficará bem.

Qlon pensou em virar o corpo, mas já era tarde. Tomou um soco no meio das costas que o fez soltar mais um grito. Enquanto voava de encontro a mais uma parede incrivelmente intacta no meio daquele caos, tentou colocar-se de frente para voltar ao combate, mas recebeu uma voadora na barriga, que fez com que

75

Page 76: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

perdesse suas forças por completo e desmaiasse. Para sua sorte, antes de sentir a dor de chocar as costas contra mais uma parede.

Relatos de Nataniel sobre a batalha contra Canine, o Selvagem

Quando eu acordei, Qlon estava no chão, desacordado. O vento uivava forte e uma nevasca estava prestes a se iniciar. Eu ainda mantinha minha adaga em mãos, mas já não podia mover meu corpo. Minhas energias haviam esvaído-se completamente. Apenas observei Canine erguer o corpo de Qlon pelas roupas. Este não havia largado a espada. Mesmo inconsciente como aparentava estar, sua mão ainda se prendia fortemente à Sanctus. O arcanjo negro sussurrou mais uma meia dúzia de palavras quaisquer para Qlon antes de começar o que chamo de massacre. Sem piedade, deferiu golpes com os joelhos, pois sua outra mão havia sido cortada. Eu assisti aquela cena sem nada poder fazer por alguns mi-nutos, até ele se cansar de bater. Após Qlon sussurrar algo, ele sorriu ainda mais abertamente e continuou a bater. Pelos céus, era uma criança de cinco anos! Mas tal atitude covarde não durou muito. Canine parou de golpear, parecia estar se queimando com o ar. Algo não estava certo.

O corpo de Qlon começou a flutuar e foi então que eu vi. Seis grandes e ma-jestosas asas, até mesmo para uma simples criança. Seis belas asas brancas, enormes. Era espantoso. Eu não tinha certeza do que estava acontecendo. Cani-ne recuou para trás aos tropeços enquanto o pequeno anjo ruivo emanava uma forte aura branca que me ofuscava. Quando o pequeno anjo gritou e sua aura expandiu, eu mais nada pude ver. Fui ofuscado, quase fiquei cego. E então, eu não consegui ver mais nada. Fiquei sem energias mais uma vez.

A aura branca que ofuscara a todos desaparecia aos poucos. Qlon estava flu-tuando no ar, com todas as suas asas abertas. A aura branca juntou-se próxima ao seu corpo. Sua espada emanava um brilho intenso, ainda maior que o de an-tes. Seus olhos acinzentados pareciam estar calmos. Todas as suas feridas esta-vam milagrosamente curadas. Os cidadãos olhavam para ele com uma mescla de temor e alívio.

– Um poder secreto? Desgraçado! Eu te odeio! ODEIO! ODEIO ODEIO ODEIO ODEIO ODEIO! - Gritava Canine, com algumas queimaduras pelo corpo.

Qlon simplesmente olhou para ele e, com uma voz leve como a neve que co-meçara a cair do céu, entoou como quem canta uma canção:

– Não pode matar este corpo. Ele ainda possui uma missão a cumprir.

Canine não deu ouvidos e tentou golpear Qlon, mas antes mesmo de sua mão chegar ao rosto do adversário ela queimou e desintegrou-se em cinzas.

76

Page 77: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

– Mas que desgraça... Isso não é justo! Eu estava quase acabando com você! Garoto desgraçado, eu te odeio! Roubou minha comida e agora zomba de mim com seu poder! EU TE ODEIO!

– Já disse, não pode matar esse corpo. Ele ainda possui uma missão.

Canine passou a rir.

– Pare de falar em você mesmo na terceira pessoa! ISSO É EXTREMA-MENTE IRRITANTE, GAROTO PREPOTENTE!

O estranho e selvagem demônio abriu a boca e uma rajada de fogo saiu de sua garganta. Mas, para sua surpresa, o jato de fogo não conseguiu ultrapassar a barreira criada pela aura de Qlon.

– Para combater o fogo que a queimou, a besta lança mais chamas. Ani-mal irracional, agora já sabe por que será derrotado.

Qlon pousou no chão e, lentamente, caminhou na direção do inimigo, que não esboçou qualquer reação de fuga. Estava paralisada de medo.

– Ao contrário do que se acredita, as bestas das florestas não fogem pela presença do fogo, e sim da fumaça. Animais são guiados por outros sen-tidos além da visão, como seu olfato, que percebe o cheiro gerado quan-do algo é consumido pelo fogo. Mas, se a luz não emite cheiros estra-nhos, os animais investigam. Eles se sentem atraídos pela luz.

Qlon estava próximo o suficiente para queimar, aos poucos, a carne de Cani-ne, que mantinha-se parado, ouvindo.

– Dentre os animais, os insetos são os que mais são atraídos. E a maior parte deles não se importam se há ou não fumaça. A claridade os atrai, como se fosse um novo sol. E neste “novo sol” eles morrem queimados pelas chamas. É assim que irá perecer hoje, demônio das bestas.

Canine sorriu. Sua pele já havia praticamente derretido, e apenas seus múscu-los expostos suportavam o calor. Um cheiro forte de carne queimada se espalha-va pelo ambiente.

– Pretende matar-me, garoto? - Perguntou Canine. - Pois então mate, mas... - Sorriu, mostrando seus afiados dentes mais uma vez. - Mas eu não te darei o gosto de ver minha face de dor mais uma vez! Anda, man-de-me para a morte eterna, mas eu irei com um sorriso!

Qlon guardou a espada na bainha e ajeitou suas duas mãos, formando um triângulo entre elas, com as palmas das mãos viradas para seu oponente.

– Terá a honra de morrer pelo meu selo, anjo caído. O que o levou a cair foi sua libido, seu prazer selvagem com os animais. Queria viver como um selvagem, agora morra como um! Lux Judicium!

77

Page 78: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

Mais um clarão. Este durou por alguns segundos e, quando terminou, Canine havia sumido. Fora obliterado como se nunca sequer estivesse ali. A luta havia chegado a um fim e Qlon, aos poucos, retornava ao normal, enquanto caia em mais um sono profundo.

Quando eu acordei, era tarde demais para ver qualquer coisa. Eu e Qlon está-vamos sendo carregados pelo povo. Pelo que foi relatado após a batalha, Qlon vencera a luta com uma espécie de poder especial e estava bem. Com o fim de Canine, o restante dos hellhounds fugiu de medo, mas os magos contratados pelo prefeito irão em seu encalço para não permitir que eles fiquem soltos por aí. Eu, por outro lado, tive de receber dezenas de magias de cura e muito descanso para recuperar-me após o ocorrido. Depois da batalha, as asas de Qlon sumi-ram, como se fossem ocultadas por alguma espécie de magia. Aquelas inigualá-veis asas brancas... Jamais esquecerei delas novamente.

E isso foi tudo o que aconteceu na batalha de Mind, contra o demônio Canine.

Fim do relato de Nataniel

“Tudo que eu me recordo do final deste dia é de acordar na cama da hospeda-ria de Mind, com Cloud aos meus pés e cerca de mais três curiosos no quarto. Eu não sentia mais dor alguma, apenas uma leve dor de cabeça.”

Qlon tentou levantar-se, mas fora impedido por um jovem bardo.

– Calma, garoto. - Disse o simpático trovador. - Acabou de dormir por uma semana. Não recomendo que saia andando por aí despreocupado.

– Como eu...

– Acalme-se. Após sua luta com Canine, acabou desmaiando de cansaço. Eu e alguns cidadãos o trouxemos para cá, menos sua espada que ainda está no meio da rua onde combateu, e estivemos vigiando seu sono. Foi uma lástima o que aconteceu com Altair, mas... Enfim, sente-se bem?

– Sinto-me... Bem. Apenas com uma leve enxaqueca. E Nataniel?

– Ele está recebendo cuidados na clínica médica da cidade. Quer dizer, no que restou dela. A batalha quase destruiu a cidade toda. Foi um sacrifício imenso limpar e restaurar tudo... Mas os cidadãos estão muito gratos pelo que fizeram por nós... Minha irmã que o diga...

Qlon não estava entendendo muito do que ele dizia, mas saber que havia ven-cido era seu prêmio. Mesmo que ainda não soubesse como... Sem mais energias para prestar atenção no que acontecia ao seu redor, apagou novamente. Sua missão havia terminado.

78

Page 79: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

Cap. 40 – Retorno

ra uma manhã fria de inverno em Mind. A nevasca do dia anterior ator-doara a cidade, mas não mais do que o ataque. Alguns anjos morreram, outros estavam com marcas de mordidas e arranhões, mas ao menos o

pior já havia passado. Por mérito do pequeno anjo, a névoa havia ido embora e o anjo caído Canine havia sido desintegrado. A normalidade voltaria àquele lugar isolado, ainda que aos poucos após a tragédia. Com isso em mente, Nataniel re-pousava tranquilo em seu leito, cercado pelos mimos de alguns cidadãos. Pensa-va em retornar para a cidade, quando Qlon adentrou a sala. Portava sua espada na cintura e a bolsa ao lado, com Cloud em seu encalço.

E

A sala era pequena. Pouco mais que seis leitos bem separados, com cômodas aos lados das camas. Duas grandes janelas abertas de enormes cortinas bran-cas que esvoaçavam com a presença do forte vento iluminavam o ambiente. Em cima de cada cômoda, apenas uma vela para dar claridade durante a noite. As paredes continham algumas rachaduras e, uma delas, até mesmo um buraco. O chão estava meio sujo ainda, com estilhaços de tijolos espalhados pelos cantos e camas com brancos lençóis cobertos por poeira. Nataniel estava em baixo de uma das janelas, envolto por uma manta branca comumente usada por doentes e coberto por um fino lençol.

– Nataniel! Está bem? - Perguntou com a voz fraca, tomando um banco que jazia ao lado da cama para sentar. Cloud deitou aos seus pés.

– Vou recuperar-me. Alguns ossos quebrados e uns dentes a repor. Por sorte a magia branca pode cuidar de coisas pequenas assim com facili-dade. Mas e então, a que devo essa visita? - Repousou o tronco na al-mofada, inclinando-se um pouco mais.

– Eu vim perguntar o que aconteceu. Os cidadãos negam contar-me.

– Sim, por minha ordem. Não será bom que saiba o que aconteceu, não por eles. Fazia questão de que pudesse contá-lo pessoalmente. Tem algo muito estranho relacionado a você e seus poderes, Qlon...

– Eu imagino. - Falou friamente pensando naquilo que passara nos sete céus.

79

Page 80: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

– E, por ter acabado com o mistério deste lugar e libertado os demônios, coisa que eu não fui capaz de fazer, sou eternamente grato. E acho que o povo daqui também.

– Eu estou mais preocupado com o corpo do demônio. O que aconteceu a ele? Preciso da cabeça dele como prova, se bem se recorda.

– Sim, eu sei. Mas... Qlon, você desintegrou Canine. Não sobrou nenhuma prova que você o matou. E imagino que não queira a cabeça de um sim-ples Hellhound como prova, quer?

– Claro que não. - Seu orgulho falava mais alto naquele momento.

– Imaginei. Por isso, eu redigi uma carta à sua mestra explicando a situa-ção, e aos outros mestres uma carta com o acontecimento... “levemente” modificado, mas explanando que você ainda assim matou o monstro por mérito próprio, e só não levou a cabeça pois acabou por desintegrar seu rival. Pedi assinaturas de alguns bons anjos para ajudá-lo. Pode ter cer-teza que aquilo que se passou nesta vila, jamais tomará notoriedade.

– Muito obrigado. Mas... Isso significa que vai mentir?

– Não, acho que não precisarei... - Ele respirou forte por alguns segundos e olhou para o alto, procurando palavras para dizer ao garoto. - Eu me achava um soldado forte, até presenciar o que fez, ainda que beirando a inconsciência. Não sei que força interior é essa que possui, mas com cer-teza está muito acima de qualquer coisa que eu já tenha visto. E, por ter feito aquilo que fez e salvo a todos nós, além de ter demonstrado grande poder, adquiriu a mim como um novo aliado. Quando precisar, não hesi-tarei em ajudar.

Qlon sorriu com timidez e sinceridade. Adquirira um novo e importante amigo.

– Querido, eu trouxe seu jantar. - Disse D'Avilla, adentrando o recinto com uma bandeja. Logo o ambiente passou a ter cheiro de peixe cozido em molho agridoce, despertando o interesse de Cloud.

– Qlon, se não se importa, poderia deixar-nos a sós?

– Sim, mas... Antes, poderia entregar as cartas? Gostaria de retornar para a Base o quanto antes e prosseguir meu treinamento.

– Não pretende ficar mais? - Indagou Nataniel enquanto D'Avilla colocava a bandeja em seu colo.

– Sinto muito, mas quero voltar o quanto antes. Tempo também é crucial na avaliação. - Respondeu, colocando-se de pé.

– Sim, por certo. Querida, poderia, por favor, pegar a carta na primeira ga-

80

Page 81: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

veta de minha cômoda?

Desde o fim da batalha, D'Avilla dava mais atenção ao seu enfermo futuro es-poso. Não saíra do seu lado em nenhum momento, e cantava para ele durante as longas sessões de magia branca que o faziam regressar à saúde plena. Estavam em paz, Nataniel finalmente retornaria para Aeria com sua amada ao lado. Qlon pegou as cartas da mão de D'Avilla e a agradeceu, curvando-se, e curvou-se em sinal de respeito para Nataniel também. Colocou-as na bolsa e, antes que pudes-se deixar o recinto, ouviu a voz de Nataniel mais uma vez:

– Qlon, eu não sei que espécie de poderes guarda adormecidos dentro de você, mas... Tome cuidado com eles. Se saírem de controle, sabe-se lá o que pode acontecer. Boa sorte.

Qlon não proferiu uma palavra sequer em resposta. Apenas abriu a porta e dei-xou a ala médica com Cloud em seu encalço.

Lua não via seu pupilo há muito tempo. Meses passaram-se desde que dera aquela missão árdua a ele. Agora já não tinha tanta certeza se Qlon poderia cum-pri-la como fora instruído. Era algo arriscado demais para um iniciante. Afinal, nem sempre os demônios eram assim tão fracos. Já ouvira relatos de seres que levaram vários invernos para serem mortos. Esperava que tivessem dado a ele um trabalho simples. Outro problema: a missão estava em seu período final. Os alunos recebiam um prazo de 2 semanas além do limite do inverno para entregar seus trabalhos. Faltava apenas uma semana para acabar o prazo de aceitação. E, meditando nisso, não demorou muito para ouvir o barulho da porta abrir.

Qlon adentrou sua cabana pela primeira vez em muito tempo. O ar dentro de sua moradia era gélido, ainda mais do que em Mind. Ao ver sua mestra, o anjo ruivo sorriu e abraçou-a. Ela ficara morando lá apenas como guardiã do lugar, es-perando o retorno de seu aluno. Sentira sua falta também.

– Qlon, é bom ver que está bem. Então, como foi em sua missão? Estamos no prazo limite para a entrega do trabalho.

– Fui bem, mas infelizmente não pude trazer a cabeça do demônio que matei. Aliás, anjo caído.

– Um... ANJO CAÍDO?! VOCÊ MATOU UM ANJO CAÍDO?! - Lua estava boquiaberta, espantada.

– Sim, matei. Enfim... - Qlon retirou as cartas que Nataniel redigira, tanto para Lua quanto para os outros avaliadores. - Leia. Deve esclarecer me-lhor os fatos. Tudo que desejo agora é um banho quente e roupas lim-pas. Vou para o banheiro do castelo.

Lua abriu o envelope. Não tinha um selo oficial, mas a carta em si era mais in-

81

Page 82: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

teressante do que adornos anexados. Passou a ler com atenção cada linha da primeira carta, a que estava endereçada a ela:

Aos interessados avaliadores da base, a carta redigida agora é de teor confidencial. O aluno Qlon W. Eros, através da solicitação de sua mestra, ti-nha a ordem para matar um demônio e levar sua cabeça como prova de seu feito.

Durante anos uma misteriosa névoa de cor rubra assolou os arredores da vila de Mind, na passagem entre Aeria e Halo. Eu, Nataniel Bogard, líder da tropa de extermínio do inverno conhecida abertamente como Vigília do In-verno, estava em uma missão a dez anos para descobrir e exterminar o de-mônio responsável por isso. Meu progresso foi insuficiente, e logo a situa-ção tendeu a piorar. Com a chegada de Qlon, no começo fiquei hesitante. Afinal, um garoto de cinco anos deveria chorar no primeiro golpe que rece-besse de um adulto, mas com ele, impressionantemente, foi diferente. Ele era muito forte, veloz e resistente, além de saber o básico do combate. Pro-vou ser mais do que capaz até mesmo de já estar formado como soldado.

Após nossa pequena viagem para Mind, começamos a investigação. Para minha surpresa, Qlon foi o primeiro a desvendar o enigma de como atacar esferas que portavam Imps em seu interior, responsáveis pela neblina. Aca-bamos com quatro delas, o que levou muitos meses. Queimamos seus cor-pos, pois Qlon dizia que queria a cabeça do chefe, e não dos vassalos. Uma petulância sem tamanho, eu pensei, mas tudo bem. A opção era dele, eu que não me meteria nisso, não tinha responsabilidade por seus atos.

Ao acabar de derrotarmos os Imps, voltamos para Mind. Não demorou muito até um caído de nome Canine atacar-nos. Hellhounds invadiram a ci-dade, e nós tivemos de acabar com eles. Qlon também matou outros tan-tos. Ele poderia ter escolhido levar uma das cabeças deles, afinal também contam como demônios. Mas seu orgulho falou mais alto. Após seus ani-mais atacarem, foi a vez de Canine. Eu e Qlon encontramos dificuldade.

Canine era quase uma besta, um anjo caído tão bruto e selvagem que foi difícil lidar com ele. Até mesmo eu, com anos e mais anos de treinamento, não era páreo para ele sozinho. Qlon ajudou, então, mas foi ainda mais difí-cil para ele. Era a primeira vez que sentia o cheiro forte de enxofre exalado por um demônio daquele porte. Em suma, no começo estávamos em gran-de desvantagem, e não demorou muito até que fossemos pegos pelos po-tentes golpes do adversário. Eu consegui deferir apenas alguns golpes. Qlon, por sua vez, quase não chegara a atacar.

Foi então que eu vi. Retirando de dentro dele uma força incrível, abriu suas seis grandes asas brancas e usou um golpe tão poderoso que quase cegou a todos. Mas, infelizmente para ele, acabou desintegrando Canine. Sei que não sou um dos avaliadores, e nem sei se meu relato contará como

82

Page 83: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

prova. Mas um anjo tão pequeno que consegue fazer tão grande proeza, por certo merece um destaque especial e uma nota impecável. Aos que du-vidarem, o povo de Mind, que presenciou a cena, poderá acordar com o que foi escrito nessas breves linhas. Espero ter sido de utilidade para a com-preensão dos fatos.

Nataniel Bogard

Abriu a carta seguinte. Não havia muitas mudanças além das assinaturas das testemunhas e da descrição mais detalhada de como Nataniel em nada ajudou contra Canine. Sem muitas delongas, devolveu-a ao envelope junto com o papel que dava a missão de Qlon e dirigiu-se ao castelo.

Podia finalmente banhar-se, comer e descansar como antes. Lua dera uma se-mana inteira de folga, junto com um papel. Aquilo que ele pedira, a tradução dos dois símbolos. Nos três primeiros dias, apenas repousou. Queria acabar com qualquer resquício de cansaço que seu corpo ainda estivesse sentindo. Apenas no quarto dia passou a querer prosseguir com sua investigação de cunho pes-soal. Por necessitar do dicionário, ainda precisava ir à biblioteca. Colocou o livro abaixo de seu braço, com o papel dado a ele por lua sendo usado de marca-pá-ginas, e rumou para o castelo.

A biblioteca estava razoavelmente cheia. Algumas dezenas de alunos ocupa-vam os mais diversos andares. Era a época final para a entrega dos trabalhos, logo seria seu julgamento e a entrega das recompensas. Não havia a menor con-dição de Qlon ler ali sem que fosse importunado por alguém, mas precisava do dicionário de qualquer forma.

– Com licença.

A bibliotecária olhou para Qlon, reconhecendo-o de imediato.

– Ah, sim! O garoto que esconde as asas! Em que posso ser útil hoje?

– A biblioteca faz empréstimo de livros?

– Não, infelizmente não. Pode ler dentro de suas dependências, não fora. Todos os livros aqui são únicos, então não funciona como uma biblioteca convencional, empréstimos e reservas estão fora de cogitação.

– Droga. - Reclamou Qlon. - Muito obrigado, voltarei então quando o movi-mento for menor.

– Não gosta de aglomerações, não é? - Ela sorriu. - Entendo, então tam-bém é tímido. Bem, fique a vontade para vir, estaremos abertos até o pôr do sol.

83

Page 84: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

Qlon saiu da biblioteca insatisfeito. Até a entrega de resultados, ler o livro esta-va fora de cogitação, ainda mais sem um dicionário ao lado. O método de Viruel ensinar era bom, mas demorava demais traduzir do latim para os idiomas celes-tial e enoquiano. Decidiu guardar suas coisas e pedir para Lua adiantar seu trei-namento.

– E então Qlon, descobriu o que é concentração? - Dizia Lua, andando de um lado para outro.

Frio. Nuvens escuras ainda cobriam os céus, e um fraco vento gélido soprava do norte. Os campos da ilha estavam cobertas por uma fina manta de neve, e o lago começava a congelar. Neste cenário de inverno, Lua levara Qlon para iniciar seu treinamento.

– Mais ou menos... - Respondeu Qlon, duvidoso, enquanto estava sentado na neve. - Aprendi a concentrar-me em mim mesmo. Saber meus limites e o quanto de força devo usar para ultrapassar um desafio. Nataniel dis-se que seria apenas a primeira parte.

– E é. Qlon, saber usar o mínimo de força com o máximo de eficácia é sim concentração. Se quer um exemplo... Digamos que esteja em um duelo. Se você limitar demais sua força, vai fazer esforço insuficiente para der-rotar o oponente, e isso o deixará debilitado. Se usar força demais, gas-tará muita energia para alguém insignificante e poderá ter menos energia para usar em desafios seguintes.

– Então qual a quantidade certa de energia que devo usar?

– Isso é difícil de se explicar, parte de sua própria intuição. E é aí que entra a segunda parte da verdadeira concentração. - Parou na frente de Qlon e se agachou, colocando o rosto rente ao dele. - Concentrar-se em aquilo que está ao seu redor. Notar a capacidade não só do seu oponente, mas de toda uma situação.

– Como assim?

– Sintetizarei em cinco regras básicas, que irá chamar hoje de “guia de ba-talha”. Poderá aplicar isso não só nas batalhas, mas em todo seu cotidia-no também. Então ouça com atenção.

“Primeira Regra: Sempre conheça a você mesmo. Seus limites, suas fraque-zas. Treine o suficiente para a auto-superação sempre que for capaz, isso que garantirá seu sucesso.

Segunda Regra: Analise a situação. Como foi parar onde está é o primeiro passo para vencer um obstáculo. Há embates que podem ser resolvidos sem o uso da força, apenas as palavras bastam.

84

Page 85: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

Terceira Regra: Analise o terreno. O lugar em que está batalhando pode apre-sentar vantagens ou dificuldades. Saiba usar ou vencer o campo de batalha.

Quarta Regra: Analise o oponente. Conhecer quem está lutando é um passo crucial para a vitória. Teste os limites dele, suas capacidades, e descubra suas fraquezas. E tenha certeza que, consciente ou inconscientemente, ele estará fa-zendo o mesmo.

Quinta Regra: Não é preciso gastar mais força do que o necessário. Use o su-ficiente para vencer de forma rápida e conclusiva, arriscando-se o mínimo possí-vel. Use a combinação de elementos para ajudá-lo.”

Qlon ouviu pacientemente o discurso de sua mestra. Por fim, ela tomou fôlego. Levantou-se e concluiu:

– Esse é o básico. Algumas outras regras envolvem filosofia, como fugir ou não fugir, admitir derrota ou não. Mas as cinco que citei baseiam-se ape-nas na mais pura lógica. Decore-as bem. Agora de pé. Acho que já está cheio de apenas ouvir e quer praticar, não é?

– Claro! - Ergueu-se de um salto.

– Então comece me respondendo: Onde acha que tudo isso que informei entra em um campo de batalha?

– Acho que...

– Espere! - Interrompeu Lua. - Não responderá com sua boca. Venha, ata-que com seus punhos vazios.

Lua colocou-se em posição de combate desarmado, afastando as penas em uma base mais fechada. Ergueu os punhos e os colocou na altura do peito, um esticado na direção de Qlon e o outro retraído, ao lado de suas costelas.

– Concentre-se. Antes de tudo, conhece mesmo seus limites? Sabe suas fraquezas? Sabe como superá-las?

– Sei. - Qlon copiou a posição dela, pois não sabia como lutar desarmado ainda. - Ou acho que sei.

– Achar não é o suficiente. Ou tem plena certeza, ou não tem nada.

Lua partiu para golpeá-lo com uma grande velocidade, usando seu punho, an-tes retraído, em combinação com o giro de seu corpo, invertendo a base. O soco passou perto do rosto de Qlon, mas deu a parecer que Lua que evitou acertá-lo de propósito.

– Analise a situação que se encontra. É preciso lutar ou pode fazer que eu desista apenas usando palavras? Quer mesmo que o treinamento pare?

85

Page 86: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

– Não, não quero. E não acho que vá desistir após ter me atacado.

– Excelente.

Qlon tentou acertá-la na barriga, mas Lua defendeu com a outra mão, girou em cima da perna mais à frente e deu um chute semi-circular na horizontal, com o calcanhar, da esquerda para a direita, no rosto do jovem anjo, que voou um pou-co para trás mas aterrissou suavemente, equilibrando-se mais uma vez.

– O que tem a me dizer sobre o lugar que está?

– A neve ajuda no amortecimento da queda e o frio me impede de sentir muita dor. Estou sendo auxiliado.

– Você aprende rápido.

Uma sequência rápida de golpes veio de Qlon, mas Lua esquivava deles com extrema facilidade.

– E você, Qlon? Acha que conhece a mim? Acha que conhece meu poten-cial? Pode me derrotar?

– Ainda não conheço, mas estou analisando agora!

Tentou um chute na altura da cintura, indo com a ponta do pé de encontro ao abdômen de sua treinadora. Ela desviou lateralmente com um giro e acertou uma cotovelada no pescoço de Qlon, colocando-o de joelhos.

– Analise mais rápido. Esse passo é tão importante que pode significar sua derrota ou vitória por um milésimo de segundo. A prática acabou por hoje.

– Espere. - Pediu Qlon, deslizando os dedos no hematoma que, aos pou-cos, ia tomando forma.

– O que foi? Achou o treino insuficiente?

– Não, você só não me mostrou uma aplicação da quinta regra até agora.

Lua sorriu. Qlon era, realmente, muito perceptivo. Tomando um fôlego final, proferiu:

– Qlon, quatro das cinco regras você pode aprender sozinho. Seja lendo li-vros, meditando... Mas a quinta é muito difícil de aprender sem alguém para ensinar. É possível, mas pense comigo: Se pode aprender todo o resto por conta própria, por que é necessário um mestre para auxiliá-lo aqui? Nós que ensinamos as técnicas que economizam suas energias o máximo possível. Dedicamos séculos de nossa vida a essa arte, sempre buscando a maneira mais simples de economizar esforço e vencer ainda assim. Mas ainda há algo errado...

86

Page 87: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

– Há? E o que seria?

– Oras Qlon, cada corpo é diferente. - Falou olhando e apontando para o corpo de seu pupilo. - Assim como cada pensamento é diferente. Cada um tem sua maneira de economizar energias. Eu não posso simplesmen-te impor o que é melhor para todos os meus alunos, não conheço cada um deles por dentro para afirmar isso. O que fazemos, na verdade, é dar um pontapé inicial. Indicamos quais são os métodos mais simples, e vo-cês trabalham com isso.

– Entendo...

– Não se preocupe. Não aprenderá tudo agora, instantaneamente. Nem mesmo as quatro primeiras regras. Há muitos casos particulares a serem estudados, e o auto-exame e a auto-superação são, com certeza, os mais complicados deles. Irá entender tudo vagarosamente, com o passar do tempo e sua dedicação.

Qlon retribuiu o sorriso de sua professora. Curvou-se em sinal de respeito e gratidão por seus ensinamentos.

– Como voltou agora de sua missão, praticamente, pegarei mais leve com você. A não ser, é claro, que queira treinar mais...

– É óbvio que quero!

– Então tudo bem. Mas antes de passar uma tarefa a você... Qlon, na carta que Nataniel Bogard enviou, dizia algo com suas “seis grandes asas brancas”... Primeiro, você tem cinco anos, suas asas ainda nem são tão grandes assim. Segundo... Se bem me lembro...

– Sim, eu sei. Também estranhei, mas... Bem, ele deve ter feito isso para ocultar as minhas asas negras. Só tenho dúvidas pois ele disse que não mentiria...

– Compreendo. Ah, e já chegou a ver qual foi o fruto de minha pesquisa so-bre aqueles símbolos?

– Não... Para ser sincero, ainda nem abri aquele papel...

– Entendo... Quando tiver um tempo, leia. Achará muito interessante o que encontrei, mesmo por que foram muitos dias procurando... Enfim, vamos colocar seu corpo em dia. Comece fazendo 100 flexões.

Qlon agachou-se para cumprir com sua ordem, feliz por estar finalmente rece-bendo um devido treinamento. Viajar aos sete céus e, logo em seguida, enfrentar um anjo caído, foi desgastante demais. Por fim, aprenderia. E enquanto o suor escorria por sua testa e molhava a branca neve abaixo dele, contentava-se cada vez mais com o rumo que as coisas tomavam.

87

Page 88: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

Cap. 41 – Premiação

– evante-se! - Ordenava Lua. - Acha mesmo que descansará ape-nas com este pouco de exercícios? Se quiser mesmo aprender a lutar com a capacidade de um mestre, acho bom levantar. Sua re-

sistência é alta, ou pensa que não sei?L

Já haviam passado boa parte do dia treinando. Desde a manhã até o dado ins-tante, o fim da tarde. Qlon nem mesmo tivera tempo de almoçar. Praticava uma movimentação estranha sobre uma base de luta de pernas razoavelmente aber-tas. Lua dava instruções e corrigia-o o tempo todo. Caso não fizesse o que pedia ou errasse algo, era prontamente disciplinado com uma ramada de arbusto nas pernas. Não aprendera golpes novos, apenas a mover-se sobre sua base.

– A base é o mais importante, mantenha o foco! - Ensinava. - Se não sou-ber movimentar-se corretamente ou ficar na postura inicial, nenhum gol-pe será efetivo.

Para os lados, recuar, avançar. Seguia essa ordem. Suas pernas estavam exaustas, já quase não se aguentava mais de pé. Era trabalhoso movimentar-se no gelo, deveria manter a concentração para não escorregar.

– Céus... - Lua reclamava do vigor de seu aluno. - Mesmo indo para os sete céus, sua resistência ainda não é alta o suficiente, está cansando-se muito rápido. Não é surpresa, tônus muscular não indica vigor. Mas não se preocupe, tende a melhorar com o passar dos exercícios. E também, estamos apenas no início do treinamento de combatente. Semana que vem descansará um pouco, darei a introdução ao seu treinamento mági-co. E, claro, na outra semana um treinamento artístico.

– Não acha que está em um ritmo muito pesado comigo? - Disse Qlon, pa-rando um pouco com os movimentos.

Lua atirou uma pedra em sua direção, que assoviou a poucos centímetros de sua orelha, forçando-o a continuar.

– Eu deixei que parasse? - Suspirou. - E o ritmo precisa ser pesado, es-queceu que será treinado em todos os ramos aqui? Se fizer as contas,

88

Page 89: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

verá que tenho um terço do tempo que os outros mestres têm para ensi-nar a arte do combate, magia e arte. Além do mais, estamos atrasados.

– Por quê? - Perguntou Qlon, prevendo a resposta.

– Sua missão levou muito tempo. Missões de campo são raras e servem, geralmente, como uma avaliação de término de estudo. A maioria delas são de pesquisa, assim o mestre pode dar uma simples tarefa e conti-nuar treinando seu aluno neste meio tempo.

– Isso explica a quantidade absurda de alunos nas dependências da biblio-teca. - Ponderou o jovem anjo.

– Eu darei missões de campo sempre que possível, não há experiência maior do que aquela que é vivida. Claro que você aprenderá por livros também, mas não tanto quanto em missões de campo. Por isso, reco-mendo que seja mais rápido das próximas vezes. Entendo que demorou desta vez pois foi contra um anjo caído bem articulado, mas poderia ficar contente com a morte de um dos Imps.

– Eu sei, mas...

– Seu orgulho falou mais alto. Tudo bem, posso ler isso no seu rosto e na carta de Nataniel. Várias vezes. Só entenda que isso compromete a qua-lidade e quantidade de seus treinos. Bem... Estive estudando as premia-ções e, caso tenha unanimidade dos avaliadores, poderá ganhar até qua-tro medalhas. Se tivermos sorte, poderá ser enquadrado nisso.

Qlon parou por alguns segundos. Quatro medalhas de vez e com apenas uma missão? Como aquilo era possível? Logo, Lua atirou uma pedra que acertou sua testa e ele voltou aos movimentos que praticava.

– Deve estar curioso para saber como isso funciona, não é? - Sorriu. - Bem, há ocasiões que alunos conseguem proezas gigantescas para uma simples tarefa e recebem quatro medalhas, que valem por um ano intei-ro. Imagino que sua missão poderia enquadrar-se nisso, mas só será possível se todos os mestres aceitarem isso com unanimidade. Caso te-nha sorte, essa será sua última tarefa deste ano, e terei mais tempo para lecionar algo útil. Mas não vamos depositar esperanças nisso. Continua-rei com o ritmo pesado ainda assim. Agora, mais duzentos movimentos, ande!

E assim, o dia arrastou-se até o pôr do sol.

“Na noite que antecedia a premiação, eu tive o primeiro de uma sequência es-tranha de sonhos. Sonhos que me arrancariam – e ainda arrancam – a sanidade. Esse primeiro, em especial, não me dizia muito. Eu apenas estava envolto em

89

Page 90: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

uma forte e condensada luz. Não sentia frio ou calor. Na verdade, nada sentia. Apenas sabia estar lá, de alguma estranha e inesperada forma. Aos poucos a luz se apagava e eu saia de dentro dela. Me sentia cheio de vida, enérgico. Olhava ao meu redor, mas nada via. Estava completamente só. Sentia uma mão tocar meu ombro, e quando eu me voltava para trás para ver o que era, percebia ape-nas a presença de um grande espelho. Mas antes que eu pudesse ver o meu re-flexo, o sonho acabou. Acordei suado, ofegante, daquilo que não foi um sonho, tampouco pesadelo.”

– A cerimônia de celebração é daqui a algumas horas. Tem certeza que está tudo bem?

Lua checava Qlon durante a tardinha. Logo o sol iria pôr-se e a cerimônia teria início. Seu pupilo parecia extremamente nervoso. Talvez preocupado fosse a pa-lavra certa. Ela passou a mão em seus cabelos, tentando acalmá-lo. Qlon estava sentado do lado de fora do castelo, descansando no gramado coberto por uma fina camada de neve, ao lado de Lua. Suor pingava de seu rosto após um treino para melhorar seus reflexos, mas o clima refrescante faria aquilo ir embora rapi-damente. “De que adianta saber o que fazer se não conseguir fazer? Ainda mais importante do que movimentar-se, é ter capacidade de movimentar-se”, disse sua mestra antes de ministrar o novo conhecimento, após Qlon decepcionar-se achando que aprenderia alguns golpes novos. Basicamente, Lua arremessou muitas pedras em sua direção, pedindo que ele tentasse agarrá-las, ou esquivar-se delas. Não deu muito certo e o aluno saiu com diversos hematomas por todas as partes do corpo, mas ela disse que ele melhoraria com o passar do tempo. Outros alunos também treinavam com seus mestres ao longe, mas todos pare-ciam ter cargas muito menores do que as de Qlon, até mesmo os mais velhos, que lutavam entre si. Olhando para eles, sentia cada vez mais o desejo de estar perto de sua formatura, mesmo tendo acabado de começar.

– Estou preocupado se vou conseguir ganhar a medalha, mestra. - Qlon desabafou. - Com Silverius como juiz, estou importando-me menos em conseguir quatro medalhas e mais em conseguir só uma.

– Qlon, acalme-se. Silverius não é exatamente o anjo mais carismático da Base, mas até ele sabe reconhecer uma atitude gloriosa quando vê. A medalha está praticamente em seu peito. Precisamos apenas definir quantidade. De acordo com as regras, a votação para quatro medalhas só é possível se um dos mestres, menos aquele que terá o aluno premia-do, pedir a votação.

– Entendo. - Afirmou com a voz vacilante.

Ainda não tinha certeza se sua missão fora um sucesso ou um fracasso e como os juízes veriam tal proeza. Mas, como estava cercado por crianças e pré-

90

Page 91: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

adolescentes que não deveriam ter capacidade de fazer algo muito maior, uma pequena fagulha de esperança ainda se mantinha acesa em seu peito.

– Recomendo que vá tomar banho. Ao contrário das lendas que cercam essa instituição, eles não são permitidos apenas aos sábados. E esse uniforme não será a única roupa que irá usar aqui.

– Como assim?

– Você verá. - Disse Lua, erguendo-se com um sorriso na face. - E prepa-re-se para deixar suas asas de fora esta noite. As encantarei para pare-cerem brancas novamente.

– Há necessidade?

– Depois explicarei. Agora vá para sua cabana e olhe em cima de sua cama. Entenderá melhor.

Lua abriu as asas e planou pelo lago, já quase congelado, até a escadaria que conduziria ao prédio principal.

“Uma coisa que, interessantemente, não expliquei ainda, é o fato de anjos usa-rem as asas apenas quando acham necessário. Voar gasta muita energia. É mais difícil e cansativo usar os músculos das asas por dez minutos do que cami-nhar por duas horas. Por isso muitas das vezes os anjos preferem usar as per-nas. Na Base especialmente havia uma regra simples, mas muito importante: apenas a entrada principal pode ser usada. Nada de cortar caminho por janelas, sacadas ou mesmo pelo teto. Também é um sinal de cordialidade. E, como o lago já estava quase todo solidificado de uma noite para o dia seguinte, navegar por ele com os botes era praticamente impossível. Pairar sobre ele era a melhor opção, a não ser que alguém quisesse nadar. Mas eu... Bem, minha mestra me proibira de usar as asas, a não ser quando ela julgasse necessário. Até lá, se o lago não estivesse em condições de navegação, eu deveria nadar na água gélida até minha cabana. Ainda me perguntava se minha mestra queria passar treinos ou sessões de tortura, mas de certa forma aquilo aumentava meu fôlego e minha resistência.”

Ele saiu do vestiário da Base já com o traje concedido. Era um terno infantil cercado de mimos. Por baixo usava uma camisa longa de seda, de botões, bran-quíssima. Por cima, um corpete acinzentado para combinar com seus olhos e uma gravata negra, como o terno que vinha por cima de tudo. Fechado até o pes-coço por pequenos botões e com uma gola que chegava ao seu pomo, tinha de-talhes dourados, avermelhados e azuis, cores das casas de sua família.

“O vermelho dava a identidade da casa Warrior, enquanto o azul e o dourado definiam a casa Eros. Lua dera a primeira lição sobre aristocracia e política: As

91

Page 92: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

vestimentas para eventos importantes sempre deveriam conter as cores da casa ao qual pertencia e os brasões (no máximo dois deles, caso viesse de mais que duas famílias distintas). Grandes festas não estavam inclusas, apenas cerimô-nias reais e cerimônias de premiação. O brasão da família de meu pai, os War-rior, era uma espada (possivelmente para retratar a Sanctus) com seis asas em seu cabo e um escudo vermelho atrás dela, com a letra W em destaque, e eu o trazia no lado direito do peito. O brasão da família de minha mãe, os Eros, era re-tratado por uma coroa dourada (uma argola dourada com adornos em joias) em cima de uma almofada azul, e eu trazia do lado esquerdo do peito de minha ves-te. E as asas... Eram sinais de orgulho.”

Lua esperava do lado de fora, com um sorriso no rosto. Trajava uma enorme túnica branca de mangas longas, que chegava a tocar o chão. Era fechado até o pescoço por botões dourados e preso à cintura por uma faixa negra – a vesti-menta dos mestres. O corredor estava vazio a essa hora, as estrelas já surgiam no céu. Todos deveriam estar reunidos no salão, aguardando a grande refeição e o anúncio dos campeões.

– Olhe só! Está bem arrumado... - Pôs-se de joelhos diante de seu aluno.

– Por favor, sem ironias. - Dizia Qlon, claramente encabulado.

– Deveria acostumar-se. - Dizia Lua, ajeitando o cabelo ainda meio molha-do de seu pupilo. - Você é parte da família real, primeiro herdeiro do tro-no, a etiqueta...

– A etiqueta fará parte do meu cotidiano, assim como difíceis decisões. - Interrompeu Qlon, afastando a mão de sua mestra do sedoso cabelo, im-pecavelmente penteado. - Minha mãe já fez questão de ensinar muito disso, assim como minha avó.

Lua sorriu. Um sorriso singelo, carregado de orgulho e graça. “Adulto precoce”, pensou consigo...

– Famílias da nobreza... Deveria imaginar. - Ergueu-se. - Ande, mostre as asas, vou encantá-las logo, aproveitando que o corredor está vazio.

“A festa estava esplendorosa. Um enorme banquete foi posto nas mesas. Os alunos agitavam-se e comiam, comentando de boca cheia com seus companhei-ros o que haviam feito naquele trimestre enquanto o aroma de carne assada com calda de frutas silvestres espalhava-se pelos corredores do castelo. Um tapete vermelho de seda estendia-se da porta de entrada até a mesa dos mestres, e es-tandartes estavam pendurados nas paredes, decorando o ambiente. A ilumina-ção era dada pelo lustre e archotes auxiliares. Apesar do frio que se abatia pelo reino do lado de fora, lá dentro o clima era quente.

92

Page 93: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

Eu entrei tardiamente com minha mestra, e todos olhavam para mim com certo tom de espanto. Eu não percebera pois estava com elas ocultas, mas minhas asas haviam crescido muito desde o incidente nos sete céus. Já deviam ter me-tade do tamanho das asas de um adulto – algo que só poderia ser alcançado por um anjo de cerca de 15 anos. 'Alguém tão pequeno não deveria ter asas tão grandes', era um dos comentários que eu ouvia. Mas não me importei muito. Apesar de que asas grandes dificultam um pouco a alunos se sentarem próximos uns aos outros, em bancos...

Após a refeição, iniciou-se a cerimônia de julgamento e premiação. Um a um os trabalhos eram lidos e avaliados. Os primeiros a serem julgados eram dos alu-nos novos. Poucos chegavam a receber um seis, quando muito, mas isso era bem comum ao que constava. Era apenas o primeiro ano deles. As etapas eram a leitura da missão, os pareceres do mestre sobre a missão aplicada, o que aconteceu na missão em uma versão do aluno e, por fim, um parecer de cada mestre (menos aquele que aplicou a missão), acompanhado de uma nota. No fi-nal, seria feita uma média de notas.”

– Qlon Warrior Eros! Aproxime-se da mesa de juízes! - Chamou Silverius, com sua voz autoritária.

Qlon caminhou até os mestres pelo longo tapete vermelho e, no final desse, ajoelhou-se como sinal de respeito. Tirou a espada, ainda embainhada, da cintu-ra e a colocou no chão, diante de suas pernas dobradas.

– Qlon Warrior Eros, sua mestra agora irá proferir algumas palavras. - Ini-ciou a cerimônia Silverius.

– Eu, Lua, aquela que não carrega sobrenome, antiga guardiã da passa-gem das montanhas e atual mestra de Qlon, dei a ele uma tarefa difícil. Pedi que executasse um demônio e trouxesse sua cabeça como prova de conclusão da tarefa.

O salão, antes em um profundo silêncio, caiu em murmúrios.

– Silêncio! - Berrou Silverius. Todos acataram. - Prossiga seu relato, Lua.

– O motivo de eu ter escolhido esta missão foi o fato de eu acreditar na ca-pacidade de meu aluno.

Todos os juízes conversaram entre si, trocando opiniões. Silverius, que coman-dava o corpo de jurados, novamente tomou a voz:

– Qlon, - Voltou-se para o pequeno anjo ajoelhado. - príncipe de Seal, her-deiro das casas Warrior e Eros, conseguiu concluir sua tarefa assim como fora ordenado?

93

Page 94: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

– Sim. - Foi a resposta.

Nova balbúrdia. Dessa vez as vozes se levantaram mais do que a anterior, dando origem a comentários, em grande maioria, de incredulidade. Silverius vol-tou a pedir silêncio com sua autoridade, colocando todos os outros alunos com a boca devidamente fechada.

– E trouxe a prova pedida por sua mestra?

Qlon hesitou. Sabia que deveria responder a essa pergunta. Tomou fôlego e, com vergonha em seu rosto, respondeu com a voz vacilante:

– Não.

Nova onda de murmúrios, e essa foi tão alta que as vozes ecoavam pelos cor-redores. Silverius levantou-se de seu assento, batendo as mãos na mesa com extrema força, calando qualquer alma vivente ali presente, intimidando até mes-mo os inocentes.

– Caso eu ouça nessa sala - Falou com a voz baixa e calma. - qualquer ou-tra voz neste salão que não seja a requisitada apenas mais uma vez, juro pelos céus que, no dia seguinte, o responsável estará saboreando o aço de minha lâmina temperado com o sangue de sua estupidez. Mais uma última vez pedirei silêncio, e espero que respeitem minha autoridade. Qlon, por que motivo não trouxe a prova?

Antes que Qlon pudesse falar qualquer coisa, foi interrompido por Lua, que pe-gou um papel da dobra de suas vestes.

– Por este motivo. - Disse, saindo da ponta esquerda da mesa de avaliado-res e indo até seu centro entregar o papel ao examinador principal.

Silverius leu um pouco de relance e, percebendo que os outros mestres olha-vam para ele seriamente, perguntou ao aluno avaliado:

– Importa-se que eu leia tal carta em voz alta?

– Não, não me incomoda. - Respondeu com convicção.

Por pouco mais de cinco minutos, Silverius leu uma carta parecidíssima com a que fora enviada para Lua. Cada linha, cada parágrafo, parecia fazê-lo engolir em seco e olhar, de relance, para Qlon. Ao seu término, tomou um rápido gole de sua taça. Os alunos apenas entreolhavam-se, espantados.

– Qlon, você concorda com tudo aquilo escrito ao seu respeito nesta carta?

– Sim, concordo.

Silverius e os outros mestres se olharam. Os olhos de Qlon percorreram a mesa e encontraram os de sua mestra, que sorria para ele e piscava apenas um

94

Page 95: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

de seus olhos. Silverius ainda estava pasmo. Os mestres começaram a conver-sar entre eles. O salão estava pronto para ser tomado por uma algazarra, mas o respeito a Silverius impedia os alunos de desafiá-lo. O mesmo pronunciou-se:

– Eu estou convocando uma rápida reunião dos mestres para decidir o fu-turo desta avaliação. Sintam-se à vontade até o nosso retorno.

Todos eles, com os passos apressados, saíram do aposento pelo tapete ver-melho. Assim que Lua, a última a sair, fechou a porta, a sala tornou-se uma zona de debates. Entre gritos e murmúrios, a incredulidade tomou conta do recinto, e comentários surgiram. Qlon permaneceu no mesmo lugar, sem se preocupar com as vozes que gritavam em seus ouvidos. Faziam perguntas para ele, mas sua resposta era o silêncio. Até que os juízes retornassem, era assim que permane-ceria.

Silverius encontrava-se mais distante dos outros mestres, apoiado na sacada de uma das janelas, contemplando a neve cair. Lua olhava para ele, encostada na parede, ao lado de um archote. A luz das chamas deixava seu sorriso vitorioso quase que demoníaco. Os outros mestres ocupavam-se em berrar uns com os outros, decidindo a nota. Apesar disso, Lua já sabia o que decidiriam. Só espera-va mesmo a indicação a quatro medalhas.

– Suponho que deva estar muito feliz, não é? - Perguntou Silverius à Lua.

– Feliz em quê? - Abria ainda mais o sorriso, acentuando mais ainda suas bochechas rosadas.

– Não se passe por tola. Sabe muito bem. Feliz em ter “provado” que é uma mestra mais capaz do que eu para lecionar a Qlon. Você sabe que, se ele estivesse comigo, estaria recebendo uma carga de treinamento muito mais alta. Ao invés disso, usou de experiência em campo como método. Bem pensado, devo admitir.

– Sim, e esse foi apenas o começo. Liberarei todo o potencial dele, sabe bem disso.

Lua voltava o corpo para reunir-se com os outros mestres quando foi chamada por Silverius.

– Cuidado, Lua.

– Com o quê? - Perguntava novamente com voz de desentendida. - Isso foi uma provocação, por acaso?

– Não, longe de mim. - Respondeu com sinceridade. - Estou falando dele e de seus poderes, sabe bem. Querer liberar todo o potencial dele é ótimo, mas não sem que ele possa controlá-lo. Se ele sair de controle, nem

95

Page 96: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

quero pensar no que pode acontecer...

– Não se preocupe. Não há método melhor de fazer isso do que a prática, dada a necessidade. Se ele nunca sentir urgência em liberar seu poten-cial máximo, nunca irá usá-lo e, quando usar, sentirá descontrole. Eu quero mesmo é mais situações que instiguem ele a liberar todo seu po-der de uma vez.

Silverius calou-se. Por baixo de sua barba malfeita, sorriu. Seus olhos de um azul-escuro inconfundível pareciam brilhar de contentamento com aquelas pala-vras.

– Caso queira assumir o risco, faça como achar necessário. Mas eu aviso que, se as coisas saírem do controle, não conseguirá contê-lo com seus séculos de sangue mesclado. O sangue dele é puro. A força dele é a ori-ginal. A sua força é nem mesmo uma vaga ideia limitada do esplendor que ele pode emanar. Então, não pense que tem o controle da situação.

Lua entendeu bem aquelas palavras, mas ainda contava vitória, como se não se preocupasse tanto com o que Silverius dissera – apesar de sua mente ter as-similado aquela dura verdade. Ao acabarem a troca de “gentilezas”, ambos reuni-ram-se com os demais para ouvir o veredicto deles. Davam nota máxima e indi-cavam que ele recebesse quatro medalhas pela proeza que alcançara. Silverius ficou calado, e quando foi a vez de ele dar sua opinião, disse apenas:

– Se assim decidem... Creio não poder discordar. - Olhou de relance para Lua, que desacreditava naquilo. - Vou admitir que, apesar das falhas, ele saiu muito melhor que o esperado. Acho que nem mesmo alunos mais velhos meus conseguiriam essa proeza. Enfim, vamos dar a ele as qua-tro medalhas.

“Apenas o silêncio em meio aquela decisão. Ao entrarem na sala, também a passos largos, os mestres acomodaram-se em seus assentos e Silverius proferi-ra a decisão: as quatro medalhas do ano eram minhas. Eu sentia todos os olha-res repreensivos atrás de mim, com seus aplausos forçados creditados à falta de provas de meu mérito. Ainda assim, eu não me sentia desconfortável. Eu sabia o que tinha feito, e sabia que merecia aquilo. Não houveram protestos. Poucos me aplaudiram com convicção. Silverius juntava as mãos sem fazer qualquer baru-lho, vagarosamente.

Coloquei a espada em minha cintura novamente. Não sabia se queria encarar o olhar pesado dos outros estudantes, então deixei o recinto. Fui para meus apo-sentos e joguei-me na cama. Olhar para aquele teto vazio era reconfortante. Com a cabeça aliviada, dormi, despreocupado com o dia seguinte. O pior já pas-sara. Agora eu teria mais nove meses para treinar, e aquilo me motivava. Mas aquela não era a hora para pensar naquilo. Eu preferia sonhar...”

96

Page 97: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

Cap. 42 – Lenda da Criação

inverno aprofundava, trazendo um frio ártico consigo. A neve já toma-va conta de todo o reino de Seal, inclusive da Base. Qlon acordara na-quela manhã disposto a ir para a biblioteca o mais cedo possível, mas

antes de sair de casa com sua bolsa, portando os dois livros ganhados de Viruel e o papel que sua mestra dera, encontrou com Lua na porta de sua casa.

O– Onde acha que está indo? - Perguntou Lua na escuridão da caverna, le-

vando consigo um archote.

– Para a biblioteca. - Respondeu Qlon, ainda um pouco abatido pelo sono.

– Nem pensar. Seu treino fica ainda mais intensivo agora. Deixe essa bolsa no quarto junto de sua espada. Hoje iniciamos uma nova fase de seu trei-namento como combatente: Vou ensinar os golpes e defesas enquanto desarmado.

– É sério? - Qlon estava incrédulo.

– Sim, é. E vamos treinar aqui dentro, em cima do lago.

As atitudes de sua mestra já não o espantavam mais. Estava preparado para as torturas que ela iria impor. Após o calabouço dos quatro dragões que enfren-tou nos sete céus, até via um certo propósito em treinamentos parecidos. Deu meia volta e depositou sua bolsa ao lado da espada, partindo para o treino. Ao subir no gelo escorregadio, quase caíra.

– Acho que já percebeu por que vamos treinar aqui, não é? - Perguntou Lua, com um sorriso em seu rosto.

– Não necessariamente.

– Lembra o que falei sobre conhecer o terreno? Então. Lutar sobre terre-nos planos de terra é simples, não há muitos segredos. Apesar de ser necessário saber os efeitos de seu peso sobre o solo – seja ele de terra ou de pedras, em geral é como caminhar. E no ar, nem se fala. Basta sa-ber usar suas asas e ir para as direções, e creio eu que não necessito ensinar esse conhecimento simples. Então, precisa conhecer a luta em

97

Page 98: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

alguns terrenos básicos: gelo e neve, areia, pântano e água. Depois aprenderá a usar aclives e declives em sua vantagem.

– Água? - Levantou a sobrancelha.

– Sim, água. Um dia pode precisar combater submerso, e estou falando sério. O movimento dentro dela é muito dificultado... Enfim, essas são coisas das quais falaremos mais para a frente. Por agora, procure equili-brar-se sobre o gelo. Ainda não está pronto para afundar em terrenos como neve e areia, nem para ter seus movimentos dificultados em um pântano. Começaremos sempre pelo básico e iremos progredindo.

Qlon encontrava algumas dificuldades. Apesar de já ter vivido alguns invernos antes, não tinha caminhado sobre água congelada ainda. E já tinha enfrentado areia e neve no terceiro céu, mas nunca batalhado sobre.

– O segredo - Indicou Lua. - é abrir a base e manter os calcanhares no chão. Se manter apenas as pontas dos pés, é mais fácil desequilibrar e cair. Se manter os calcanhares, mesmo que desequilibre, será mais sim-ples recobrar a postura e mais difícil de escorregar. Se for andar, pegue impulso com o pé por completo.

Qlon fez como o descrito e conseguiu manter-se firme em uma postura.

– Ótimo. Agora vou ensinar a atacar e defender.

Muito tempo passou. O sol nascera coberto por nuvens, por isso o dia todo fi-caram no escuro. O treinamento havia iniciado e terminado à luz de uma tocha.

– Muito bem, acho que podemos parar por aqui. - Disse Lua. - Lembre-se, Qlon: Estamos lutando um contra um. Se a luta envolver mais oponentes será um tanto mais complicado. Mas, como eu disse, iremos progredindo com o passar do tempo. Por agora, iremos continuar com esse aprendi-zado durante a semana, depois passaremos para outros terrenos. Se consegue lutar sobre uma superfície escorregadia como o gelo, será mais simples depois aprender sobre outros lugares. Pode dizer-me o que aprendeu por hoje?

– Claro.

“Aprendi a manter uma base firme, independente dos golpes que eu receba. Aprendi a esperar o movimento do inimigo para depois atacar. Aprendi a mirar sempre na fraqueza do oponente, desejando primeiro desestabilizá-lo e depois fi-nalizá-lo. Esses eram os passos mais simples para a vitória. Também aprendi movimentos básicos de ataque e defesa desarmados, mas que não são tão rele-vantes assim.”

98

Page 99: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

– Parabéns, garoto. - Disse Lua, afagando seu cabelo. - Está cada dia mais perto de tornar-se um bom soldado e, acima disso, um bom lutador. Agora pode ir para a biblioteca estudar. Está ansioso por isso desde a manhã, certo?

– Certo. A biblioteca estará vazia, assim espero. - Puxou um pouco o fôle-go, inalando ar gélido.

– Sim, estará. - Ponderou sua mestra. - Os alunos podem até receber suas missões agora, mas a maioria deles só deixa para fazer o bruto de seu serviço algumas semanas antes do prazo. Aproveite e leia bastante, amanhã teremos mais treino.

– Sim, mestra! - Disse, correndo para a cabana, pegando sua bolsa e acendendo sua lamparina, dirigindo-se ao castelo.

Metatron e Sandalphon, assim serão chamados.

Qlon lia agora o papel dado a ele por sua mestra, encontrando os dois termos em que havia parado a leitura. Acompanhado dos nomes, uma nota: “Qlon, estes não são apenas nomes, são selos. Apenas anjos de extrema importância pos-suem um, acredite. Foi muito difícil de achar, tive de pesquisar em livros de sim-bologias e ir analisando uma a uma. E antes que pergunte, selos são marcas de anjos para poder invocá-los ou usar parte de seu poder. Era usado em uma épo-ca que mortais e imortais eram próximos, mas isso é assunto para aulas de histó-ria angelical. Creio eu não precisar explicar quem foram esses anjos, descobrirá por si só. De qualquer modo, boa sorte em sua pesquisa.”

Após ler o recado, Qlon voltou a mergulhar nas linhas do livro que lia:

Ora, tais anjos não eram simples anjos. Eles foram os primeiros a nascer da essência divina, foram os primeiros a transitar entre os planos da morte e da vida. O anjo de asas brancas passou a ser chamado de Metatron, e este passou a ser o favorito dos Deuses. E Sandalphon, seu irmão de asas negras, passou a ser apenas um ajudante da glória de seu irmão.

Apesar da diferente importância dada aos dois, ambos idealizaram como a vida deveria ser originada. Indicaram usar o restante da essência da vida como uma semente, e plantá-la no centro de todo o universo, no lugar de onde a gota de tinta surgira. E assim surgiu Yggdrasil, a árvore da vida. De sua copa até sua raiz, sete dimensões foram formadas espontaneamente e, no futuro, serviriam de moradia definitiva dos deuses e de seus futuros aju-dantes. Os deuses então passaram a usar partes destes dois anjos para dar origem a outros anjos. Com suas penas, deram vida a vários anjos que os auxiliariam na pesada tarefa de criar outras formas de vida e de encher o universo de calor.

99

Page 100: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

Antes ainda era necessário um ambiente favorável para que a vida se de-senvolvesse. Metatron, no auge de seu poder, criou as inúmeras galáxias, com estrelas e planetas, e seu irmão, Sandalphon, criou os quatro dragões divinos: Juggernaut, Leviathan, Behemoth e Tiamat.

Qlon parou de ler por alguns segundos. Ainda estava perplexo por apenas um anjo ter criado o universo e outro quatro dragões tão fortes que poderiam destruir uma galáxia. Agora entendia o que disseram a ele sobre “o real poder dos sera-fins”, e como eles eram destrutivos. Se bem que um anjo de nove asas não deve-ria ter uma classificação assim... Talvez ainda maior. Ainda espantado, prosse-guiu com os versículos:

Estes, por sua vez, cuidaram para que um mundo perfeito fosse criado, com diversos ambientes para as mais diversas formas de vida, e o mais próximo possível da árvore da vida. Os deuses então viram que o trabalho dos gêmeos era bom, e os elogiaram. E então, vieram os descendentes:

Os primeiros a vir foram os draconianos, prole dos quatro dragões deu-ses. Espalharam-se pelo mundo, ocupando todos os cantos, cada qual de acordo com seu ancestral. Os descendentes de Juggernaut ocuparam os desertos e os vulcões. Os herdeiros de Leviathan ocuparam as geleiras e oceanos. Os filhos de Behemoth encarregaram-se das montanhas, grandes planaltos e planícies. Por fim, aqueles de Tiamat ocuparam cavernas e flo-restas. Todos os quatro dragões deixaram descendência. Após eles, vieram os filhos da terra: os anões e os Treefolks. Nascidos do ventre do planeta, os pequenos anões surgiram próximos aos filhos de Behemoth e Tiamat, tragando sua essência poderosa. Os Treefolks eram plantas que ganharam consciência após sentir as poderosas presenças dos filhos de Leviathan, que forneciam hidratação, e Juggernaut, que forneciam o calor de suas vi-das. Após o surgimento dos anões e dos treefolks, Sandalphon disse aos deuses:

'Óh criadores de toda a existência, vamos criar mais vida para este plane-ta! Vamos povoá-lo! Joguemos até lá uma das sementes de Yggdrasil e en-tão deixemos que a vida cresça naquele lugar por ela só!'

Os deuses gostaram da ideia. Jogaram a semente ao solo e logo a vida brotou. Começou com minúsculos seres que evoluíram gradativamente e, com o passar das eras, seres eretos chegaram. Surgiram então os ogros. Ora, pois eis que os ogros eram primatas cheios de pecados em si. E den-tro de seus pecados, fornicavam e reproduziam com os animais. A partir desta junção pecaminosa, surgiram os Bestiais, que se refugiaram, vivendo em todos os lugares isolados, perto dos animais.

E os ogros evoluíram, cada vez mais buscando a perfeição. Pena que al-gumas destas evoluções não deram tão certo. Surgiram então os Ciclopes, os Goblins, os Gigantes e os Minis, como evoluções fracassadas, mas ain-

100

Page 101: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

da muito resistentes. Ambas sobreviveram às mais diversas severidades que o planeta perfeito infligia sobre eles, e foram reconhecidos como as quintas raças a surgir. Por fim, alguns dos ogros evoluíram e deram origem aos humanos. Uma raça ainda imperfeita, mas com um intelecto muito su-perior aos demais seres do planeta. Os deuses gostaram então do que vi-ram, e Sandalphon subia cada vez mais no seu conceito. Metatron decidiu então regular os mortais: Deu permissão para que anjos os visitassem e instruíssem. Mais anjos foram criados para controlá-los, como as Virtudes e os Princípios. E assim o mundo voltou a estar regulamentado.

Mas, dos humanos, uma última e mais perfeita evolução surgiu. Uma raça próxima ao perfeito divino, a um passo da imortalidade. A sétima e última raça a surgir foram os elfos. Donos dos mais avançados conhecimentos, instintos, dons... Sim, a humanidade havia chegado a um patamar de perfei-ção extrema. Dado a isso, os anjos presentearam sua chegada, e modela-ram pequenos bonecos vivos que serviriam de companhia durante as eras. Tais seres eram chamadas fadas. Minúsculas, por certo, e emitiam uma luz radiante. Os deuses decidiram então descansar, acreditando que sua cria-ção entoaria júbilos por seus serviços. Deixaram todo o resto a encargo de Metatron e Sandalphon, para que cuidassem do mundo no final daquela era.

Qlon olhou pela janela. Já estava tarde. Apesar das poucas pessoas que por lá circulavam mais cedo, a bibliotecária estava agora a sós com ele. Fechou o livro. Estava cansado demais para querer alguma outra coisa no momento. Leria quan-do tivesse mais tempo. Saiu da biblioteca, despedindo-se com um “boa noite” da guardiã dos livros, e rumou para sua cama.

“E naquela noite, veio o segundo sonho. Eu estava sentado em um dos ramos de Yggdrasil contemplando o céu daquilo que imaginei ser o sexto andar. Era va-zio, apenas um vasto e infinito céu. Nem mesmo os andares abaixo de mim exi-tiam, apenas uma grande queda até as raízes. Lá em baixo, alguém chorava. Não podia ver, mas podia ouvir seu pranto. Desci voando até lá, e um ser estava sentado, encolhido, com a cabeça entre os joelhos. Passei a mão sobre sua ca-beça e imagens aleatórias vieram em minha mente. Ele levantou um rosto sem face e perguntou em minha mente:

'Por quê?'

Uma lágrima escorreu de onde deveria haver um olho. Ele me abraçou pela cintura enquanto eu ainda afagava seus sedosos cabelos negros e longos, sem saber o motivo. Foi quando a imagem se apagou e eu acordei. Lua estava em cima de mim, me observando, esperando meu despertar.”

– Vamos, garoto, para o gelo. Vamos repetir os movimentos de ontem, e hoje eu quero mais velocidade e mais força. Aliás, tenho uma pequena

101

Page 102: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

surpresa para você... Prepare-se. - Disse, com um sorriso ingênuo no rosto, fazendo acreditar que seria divertido.

– Qlon, você acha que sua força cresceu muito nos sete céus, não é? E também deve achar que, provavelmente, sua força agora é maior até mesmo que a de muitos adultos, não é mesmo?

Qlon consentiu com a cabeça, ainda sem saber o que ela queria dizer com aquilo.

– Bem, vim informar que não é o único. Boa parte dos soldados treina com pesos pelo corpo justamente para aperfeiçoar o físico. Contam que seu pai usava...

– Uma armadura cerca de vinte vezes mais pesada que o próprio corpo?

– … Exato. - Não deveria espantar-se, Qlon era filho dele. Deveria saber tudo sobre o pai. - Enfim, dizem que essa é a gravidade aproximada do sétimo céu. Então muitos anjos lutam para deixar o corpo em uma base aproximada. Só os serafins chegam tão longe, anjos e arcanjos não têm forças para passar de uma armadura dez vezes mais pesada... De qual-quer modo, já que foi até o quinto céu, como contou, deve suportar uma gravidade dez vezes maior do que a que está acostumado aqui.

– Sim, mas em quê isso altera o treinamento de hoje?

Lua sorriu. Um sorriso meio infantil e meio sádico, que dava medo.

– Adivinha o que encomendei para você nos ferreiros de Aeria?

Lua apontou uma caixa de aço em cima do gelo. Era grande, devia ter dois me-tros de lado, quadrada.

– O que é aquilo?

– Um presente, e muito difícil de se conseguir.

Qlon acabou de retirar a tampa da caixa e viu. Uma armadura prateada. Relu-zia à luz dos archotes, e parecia estar completa dentro da caixa. E não era ape-nas a armadura: a cota de malhas também estava por baixo.

– É estilizada e encantada, ajustável ao tamanho do corpo. Pedi para que fizessem de prata. Não é tão resistente quanto o aço, mas nem tão caro quanto o ouro, mas é de oxidação mais lenta e de mais fácil reparo. Não precisa dar muitos cuidados a ela além do lustre para deixá-la apresentá-vel. E...

Qlon teve dificuldades até para levantar uma manopla.

102

Page 103: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

– Vinte vezes mais pesada que o corpo de um adulto mediano: o conjunto possui 1600 quilos. Pode agradecer-me depois.

– Mas não custou caro? - Perguntou o jovem ruivo, com os olhos reluzen-tes.

– Deve ter custado, mas eu não paguei nada. Pedi isso para os reis e eles trataram de providenciar.

– Pediu para meus avós?! - Qlon não conseguia acreditar na falta de mo-dos de sua mestra. - Mas, mas...

– Não se preocupe, não acredito que isso fará estragos na fortuna da famí-lia. - Disse, despreocupada. - Mas deixemos de conversa. Vista a arma-dura. Em cima do gelo.

Sua mestra estava louca? Qlon parou de admirar um pouco ao seu presente e voltou seu rosto para Lua, que não tirava o sorriso da face.

– Mas o gelo vai rachar!

– Se não souber controlar seu peso, vai. Essa é mais uma lição: Precisa distribuir seu peso em cima do gelo. Afaste mais sua base, fique de qua-tro... Vire-se. É preciso de uma camada de gelo de cerca de vinte centí-metros para suportar esse peso todo, e a camada de gelo aqui chega aos vinte e cinco. Então é sim possível, basta controlar a pressão que exerce sobre o gelo, lembrando que quanto maior o peso e menor a área, maior a pressão. Isso ajudará a manter seus calcanhares no gelo. Ah, e se rachar e você cair, morrerá.

– Como assim? - Sua face agora demonstrava medo.

– Para essa armadura ser mais pesada, eles fazem o aço ter uma densida-de muitas vezes superior por um processo meio complicado, mas que aprenderá comigo algum dia. E isso faz com que fique com uma densida-de tão grande que afunda na água com uma facilidade incrível. Apesar de tudo parecer mais leve dentro da água, vamos levar em consideração alguns fatores...

– Que fatores?

– Primeiro, a água está muito fria. A temperatura hoje está baixíssima. A ar-madura é feita de metal, e metal absorve ou perde calor muito fácil. Seu corpo praticamente congelaria só de cair na água. Aliás, só usar ela já será complicado, mesmo com suas vestes. Precisa de uma brúnia.

Qlon usava uma jaqueta de lã por cima de duas blusas de algodão, uma calça grossa, três meias e uma luva de couro, todas as peças com um símbolo da base.

103

Page 104: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

– Segundo, a água também exerce uma pressão de acordo com a profun-didade, e não creio que seja necessário que eu ensine isso. Afunde al-guns metros e veja a dificuldade em voltar. E, por fim, eu não vou aju-dá-lo se acabar afundando. Sou uma mestra, não uma babá.

Pensou em corrigi-la e chamá-la de carrasco, mas aquilo era bom demais para ela – e estava com medo de um castigo. “Se sobrevivi aos quatro dragões deu-ses, sobreviverei a ela”, pensou em sua ingenuidade. De joelhos, tirou a cota de malha de dentro da caixa. Devia ter quase o peso de seu corpo, talvez mais. Ves-tiu-a. Pôs-se de pé, retirou seu casaco e a vestiu. Era apertada e um pouco des-confortável, além de muito fria. Nenhuma alteração no gelo.

– Vamos, não tenho o dia todo, apresse-se.

Qlon sentou no chão. Tirou as botas e colocou os escarpes e grevas por cima das meias. Joelheira, coxote, saiote, fraldão, couraça, espaldar, canhões de bra-ço e antebraço, cubiteira com asas, manoplas, gorjal, gargalheira e elmo. Estas eram todas as partes da pesada armadura que vestiu. Cada peça que colocava ajustava-se ao tamanho de seu diminuto corpo. Ao acabar, pôs-se de pé.

– Ficou cativante com a armadura, Qlon. - Elogiou Lua. - Estou falando sé-rio. Se reparar bem, esta não é uma simples armadura.

E realmente não era. O elmo tinha a viseira ajustável e uma barbeira completa-mente fechada, com espaço apenas para os bezantes, com o camal anexado. O piastrão da couraça tinha o símbolo da casa dos Warrior em alto-relevo, e em suas costas o símbolo da família real Eros. Seu espaldar, cubiteira e joelheira ti-nham pequenos adornos, como espinhos pontiagudos. O gorjal não era preso ao pescoço, por isso o uso da gargalheira. Ele iniciava na metade dos ombros como um aro de metal cortado no meio, chegando até a divisão da nuca com o crânio. Até era possível usar uma capa presa a ele. Os dedos das manoplas eram pon-tiagudos e detalhados. O saiote era composto de pequenas placas e chegava até a altura dos joelhos, na parte da frente, e nos calcanhares, na parte de trás.

– Esta armadura é completa demais. Acho que muitos adornos aqui pode-riam ser retirados. - Disse Qlon.

– Dê-se por satisfeito. - Indignou-se sua mestra. - Além do mais, armadu-ras ornamentadas assim são típicas de generais. Chamam mais a aten-ção no combate e impõe respeito. Há toda uma simbologia nisso, Qlon.

– Deve estar certa. Está gelado aqui dentro.

Qlon moveu-se para dar um passo, mas o gelo abaixo dele trincou e ele voltou o pé para onde estava.

– Como eu disse, cuidado ao mover-se. - Lua subiu no gelo e parou na frente de Qlon. - Agora começa a parte interessante...

104

Page 105: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

– Como assim? - Qlon pareceu ainda mais confuso do que antes.

– Qlon, qual é a melhor forma de aprendermos uma arte?

– Praticando – Respondeu, confiante.

– E qual a melhor forma de assimilarmos uma arte marcial?

Qlon fechou o rosto. Sabia qual era a resposta, mas não diria.

– Lutando, não é mesmo? - O olhar de Lua exalava chamas quando entrou em contato com os de seu pupilo.

Qlon entendia muito bem o que aquelas palavras e aqueles gestos queriam di-zer. Sem titubear, colocou-se em posição de combate, já esperando o que estava no porvir.

– Vou adiantá-lo uma coisa. - Disse sua mestra. - O último desafio para “formar-se” na base é derrotando o seu mestre. E se quer saber, acho isso muito justo. Nada melhor para provar o conhecimento que adquiriu do que derrotando aquele que o ensinou. Mas a maioria dos mestres pega leve com seu aluno. Primeiro por sua inexperiência, e segundo por sua jornada. Mas eu...

– Deixe-me adivinhar: Não tem obrigação nenhuma em permitir que eu passe no teste com facilidade, não é mesmo? - Concluiu Qlon, cerrando fortemente os punhos.

– Exato. - Lua sorriu. - Ao longo de nosso treinamento, diversas vezes eu lutarei contra você. Isso dará a você chances de achar meus pontos fra-cos e fortes, de analisar-me. Consegue lembrar das cinco regras?

– Sim, lembro.

– E posso adiantar também, meu querido aluno, que daqui a dez anos mais exatamente, estaremos tendo o nosso duelo final aqui. Em cima desse gelo. Então treine. Treine, Qlon. Se quiser um dia superar-me, terá de possuir força e inteligência extremas.

Lua colocou-se em posição de combate. Estava calma, serena. Sua respiração indicava confiança. Qlon olhou-a fixamente nos olhos. Aquela não seria apenas uma luta comum. Um poderoso embate estava para começar.

– Sente-se confiante por causa da armadura?

Lua, com uma velocidade sagaz, deu um golpe na altura do peitoral. A onda de choque varou a proteção e atingiu seu tórax, lançando-o metros para trás e quase quebrando seu esterno – mais uma vez. Ao bater no chão, o gelo ao seu redor trincou. Ele entendeu o recado. Ofegante, levantou-se e olhou para sua ini-miga. O dia apenas começara.

105

Page 106: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

Cap. 43 – O Primeiro Pecado

unca havia visto uma força como aquela, capaz até mesmo de atra-vessar uma armadura daquela espessura. Ao menos não uma força demonstrada daquela forma. Sentia seu peito doer como se a prote-

ção não importasse. Aliás, estava difícil mover-se com ela por motivos óbvios. Só conseguira treinar em uma gravidade dez vezes maior. Aquilo era o dobro do que suportava. Além do mais, seu peso não deveria chegar a metade da de um adul-to. Então, em uma gravidade vinte vezes maior, seu peso deveria chegar a, no máximo, uma tonelada. Ainda assim, a adrenalina que corria em seu sangue tor-nava o esforço suportável. Seus músculos estavam no limiar.

N

– Se está achando complicado agora, imagine depois da luta. - Provocou Lua. - Será obrigado a usá-la durante seus afazeres diários. Menos, cla-ro, durante os banhos. Ah, e esqueci de dizer! Se quiser libertar suas asas pode. Armaduras angelicais...

– Permitem que os usuários abram as asas por motivos de conveniência. - Completou Qlon.

– Podemos prosseguir? - Perguntou, aprumando o corpo.

Qlon não teve tempo de erguer os braços como defesa, sequer esquivar-se: o golpe acertou-o em cheio na altura do elmo, desequilibrando-o. Com esforço, manteve o calcanhar apoiado, mas recebeu um chute na barriga e voou mais um pouco para trás, caindo no gelo e trincando-o no local da queda.

– Como faz isso? - Perguntou o pequeno anjo, quase sem ar para respirar.

– Isso o quê? - Lua estava parada na mesma posição do chute, esperando seu discípulo colocar-se de pé.

– Dar golpes que não danificam a armadura, mas cujas ondas de impacto chegam até meu corpo. Pela potência deles, deveria ao menos amassar o metal.

– Bem notado. - Respondeu, abaixando a perna. - É uma técnica chamada de “Golpe Fantasma”. É gerado pela transferência da onda de impacto através de superfícies. Se o usuário for forte o suficiente, pode transferir

106

Page 107: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

esta onda através do próprio ar e destruir tudo que estiver em seu cami-nho. Não causa muitos danos ao aplicador nem ao oponente quando usado em pequenas escalas.

– Então, está segurando sua potência máxima contra mim?

– Em suma... Sim. Estou reduzindo velocidade, força... Quero antes que inicie a movimentação básica com sua armadura.

– Então... Qual é o sentido dessa luta?

– Quero que você aplique seu aprendizado, mesmo que erre, e note as fa-lhas de meus ataques, se é que já consegue. Isso aumentará ainda mais sua destreza e concentração.

Qlon forçou seu corpo a levantar mais uma vez, mas este permaneceu imóvel no chão.

– Acho que o treino acabou por hoje. - Disse Lua, curvando-se como sinal de respeito ao oponente. - Achei que duraria mais, mas o peso de sua ar-madura o venceu por enquanto. Até que se acostume com ela, acho que não haverá muito sentido em continuar com as lutas. Enfim, pode ir reali -zar suas tarefas diárias. E tome cuidado com o gelo. O solado de seu es-carpe é tão liso quanto o piso que toca. Lembre-se de manter os calca-nhares no chão.

Lua virou-se e sumiu com o archote, largando Qlon no escuro da caverna que habitava. O dia lá fora deveria estar encoberto por grossas nuvens mais uma vez, pois nem um raio de luz chegava àquele lugar. E ficou lá, lutando contra a gravi-dade por um longo tempo.

A bibliotecária cuidava dos pergaminhos sobre sua bancada, realizando algu-mas simples anotações. Ouvia um barulho metálico ao longe já fazia dez longos minutos. Um barulho irritante, como se algo se arrastasse pelo corredor. Estava quase no horário do almoço, quase no cume. O barulho chegava cada vez mais perto e estava atrapalhando sua concentração. Quando decidiu checar o corre-dor, viu uma armadura enorme e completamente fechada reluzente à luz dos ar-chotes nas paredes com uma bolsa pendurada em seu ombro direito. Quem quer que estivesse dentro dela, caminhava com dificuldade. Vários alunos ao redor acompanhavam a saga daquele imenso amontoado de prata, e alguns até faziam apostas e riam da situação, mas ninguém parecia saber quem estava dentro. Quem se atrevia a tentar ajudar era recusado. Por fim, o ser chegou perto daque-la que cuidava dos livros, ofegante, e perguntou:

– Há uma cadeira forte o suficiente para que eu possa sentar?

– Não, se quiser posso até encantar alguma delas, mas está no cume, per-

107

Page 108: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

to da hora da primeira refeição...

– Não importa. Reponho a refeição de agora na janta. Por agora, quero apenas descansar e estudar. E, se puder, beber um pouco de água. Es-tou completamente ensopado de suor dentro desta armadura, mesmo com o frio do lado de fora.

– Imagino seu esforço... Providenciarei uma jarra, pode ir para uma das mesas. - Sorriu sinceramente.

A bibliotecária, apesar de estranhar a atitude, considerou aquele jovem bastan-te dedicado. Deu passagem para ele entrar. Ele escolheu sentar ao fundo, e isso já dizia a ela quem aquele aluno era. Encantou a cadeira que ele costumava usar com algumas palavras mágicas e foi até a cozinha pegar uma jarra e um cálice para servi-lo enquanto o mesmo praticamente rastejava até seu lugar.

Foi difícil até mesmo segurar o copo. Era difícil virar as páginas do livro. Seus músculos tremiam, mesmo sentado. Descansava o quanto podia. A bibliotecária de nome Raquel o ajudara muito: além da água, pegou para ele o dicionário que ele esquecera de apanhar antes de sentar-se. Apesar da dor, precisava economi-zar energias. Dedicaria a tarde à leitura. Sentia que, aos poucos, o idioma celes-tial enraizava-se em sua mente. Algumas palavras não precisavam mais de tra-dução. Ao encontrar o ponto de parada, prosseguiu com a leitura:

Sob o reinado de Metatron e Sandalphon, os anjos evoluíram. Os sete céus cresceram como nunca, e a organização estava cada vez eficiente. Eles viam todas as raças trabalhar em harmonia, em conjunto, e os auxilia-vam. Até descobriram mais meios de criar novos anjos sem a ajuda dos deuses. E a paz imperou durante séculos. Até que Metatron criou uma serva de formas femininas: Eloa.

Nascida de uma das suas penas em junção com a essência de Yggdrasil, era a mais bela dos anjos. A ela foi dada a tarefa de espalhar a beleza pelos reinos mortal e espiritual. Sua beleza era tamanha que despertou desejos em Sandalphon, que durante muitas eras relutou contra suas vontades in-sanas. Sandalphon, mais do que ninguém, observava os humanos. Via como eles se amavam, como eles chegavam ao prazer carnal pela união de seus corpos. Desejava um dia saber como era o sabor de uma paixão.

Levado pela sedução dos prazeres terrenos, tomou a Eloa e fugiu para o reino mortal escondido dos olhos dos sete céus. Durante o tempo de uma noite, fornicou com ela. A fuga dos dois anjos para o reino dos mortais deu a eles órgãos genitais, presente apenas nos imperfeitos. Isso era obra de uma das milhares de maldições criadas por Metatron para impedirem os an-jos de atravessarem a fronteira dos céus. As genitais eram sensíveis ao ponto de proporcionar prazer, mas ao mesmo tempo dor.

108

Page 109: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

Neste meio tempo, haviam se passado muitos anos nos sete céus. Muitos e muitos anos. Metatron sentia falta de seu irmão. Procurou-o por todas as partes dos sete céus, onde ele costumava esconder-se e sentir um pouco da paz em sua dor. Mas em canto nenhum ele estava. Olhou então para o reino mortal. Viu a ele e Eloa fazendo amor, e pela primeira vez em sua exis-tência, sentiu raiva. Uma raiva mortal da traição de seu irmão. Uma raiva mortal de sua criada. Acordou os deuses de seu sono e contou-lhes o ocor-rido. Apesar de desejar perdoar o irmão e sua serva, os deuses mandaram que ele os exterminasse, e voltaram a seu sono.

Qlon sentia a cabeça doer, absorto na história. Não pararia de ler aquelas pági -nas por nada. Com toda sua concentração, prosseguiu nos versículos do livro que, à partir do dado instante, era seu favorito:

Com sua ira, ordenou aos dragões criarem equipamentos absolutos que pudessem matar até a um deus. Os dragões tiraram então parte da essência de suas vidas e parte da essência de Yggdrasil e aliaram ao mais perfeito metal do universo, o Mythril. De tal ato, surgiram uma espada, um escudo e uma armadura. A arma foi chamada de Sanctus, carregando uma lâmina ca-paz de cortar as dobras do universo. O escudo foi chamado de Sacrum. Além de gerar uma aura intransponível, era o único capaz de parar sua irmã, Sanctus. Por fim, a armadura completa recebeu o nome de Divinae. Ampliava o poder do usuário e podia conter e absorver a força de sua irmã, Sanctus.

Os dragões ficaram com medo de que nenhum ser em toda a existência seria capaz de empunhá-la corretamente, nem mesmo eles, seus criadores. Metatron tirou mais uma de suas penas, e proferiu que o anjo que surgisse daquele pedaço de seu corpo seria o único capaz de portar tais equipamen-tos. Deu vida ao novo ser, e este foi chamado de Midael. O primeiro dos guerreiros. A ele os equipamentos foram confiados para que matasse a Sandalphon e a Eloa.

A cabeça de Qlon ardia. Sentia-se misturado ao livro de alguma forma, e agora entendia. Midael foi o primeiro Warrior.

Após o ato dos pecadores, Midael apareceu diante deles, portando os equipamentos divinos. Sandalphon enfrentou-o e ordenou que Eloa fugisse para o plano divino. O embate durou muitas horas mortais, mas no fim, Mi-dael venceu, cravando Sanctus no peito de Sandalphon. Em seu último ato, o anjo negro conjurou uma maldição:

'Que pedaços de minha alma vivam dentro desta espada, vindos de meu sangue, e que meus descendentes vinguem-se por mim.', disse, antes de desfalecer por completo.

Midael correu para encontrar Eloa nos planos divinos. Por causa das ho-

109

Page 110: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

ras que se passaram no plano mortal, correspondente a muitos anos nos sete céus, nem estava certo de que iria encontrá-la. Mas achou-a presa por Cherubiel. O guardião de pedra prendeu-a por tentar entrar no Éden, o para-íso criado pelos deuses para a alma dos mortais. Naquele mesmo lugar, Mi-dael matou-a sem misericórdia.

Qlon sentia-se sufocado.

Metatron recebera as notícias do primeiro guerreiro. Uma tristeza inigua-lável tomou seu corpo. Deu últimas ordens a Midael:

'Nobre guerreiro, estes equipamentos são poderosos demais para qual-quer ser. Será recompensado com o posto de Serafim, mas precisa devol-ver estes equipamentos aos seus criadores. Eles possuem um poder muito perigoso. Que eles – os dragões – guardem tais artefatos por toda a eterni-dade. E quanto a mim, como última ordem, crave tal espada em meu peito e mate-me. Não posso suportar a dor de perder meu irmão.'

Em conflito interno, Midael matou a Metatron com a Sanctus. Uma morte rápida, cravando a arma letal na garganta de seu mestre. Ao desfalecer, Me-tatron também entoou um último cântico. Suplicou:

'Perdoe-me, irmão. Perdoe-me.'

E da junção de sangues residuais da morte de Metatron, Sandalphon e Eloa, surgiu da espada um último anjo: Galadriel, o anjo da guerra. Sem o auxílio da árvore da vida, surgiu quase que instantaneamente enquanto o sangue ainda terno de Metatron derramava-se por suas penas imaculadas. Um anjo que carregava a beleza de Eloa e a força de Sandalphon, com o in-telecto de Metatron. Na frente de Midael, que se encantou com tal beleza, pronunciou sua primeira frase:

'Tempos difíceis virão.' E este é o fim da primeira era.

A cabeça de Qlon estava prestes à explodir. Lágrimas escorriam de seus olhos, mas não tinha certeza se eram de dor. Não tinha certeza nem do que sen-tia naquele segundo. Queria gritar. Uma aflição sem proporções ganhava seu peito e empurrava o ar por suas cordas vocais, mas eram abafados por sua boca fechada e sua língua imóvel. Aquilo com toda a certeza estava relacionado aos seus poderes. Precisou acalmar-se.

Enfiou o livro na bolsa e, com dificuldade, pôs-se de pé. A bibliotecária já ia oferecer ajuda, mas Qlon recusou. Guardou o dicionário de angelical na pratelei-ra correspondente e saiu de lá mais rápido do que havia entrado – alguns minu-tos, mas não fazia tanta diferença. Ao passar pela porta, Raquel chamou-o:

– Verei você aqui amanhã novamente?

– Duvido muito. - Respondeu com um tom de tristeza.

110

Page 111: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

A refeição da noite logo chegaria. Precisava banhar-se e tirar tudo aquilo da cabeça antes de ir comer.

Seus músculos latejavam. Debaixo da água quente, podia sentir que aquele peso enorme que carregou o deixara com inchaço muscular. As veias saltitavam com o pulsar do sangue. Junto com a sensação de leveza, veio a sensação de força. Já sentira isso várias vezes ao escalar os céus, mas desta vez era dife-rente. A mudança nunca fora tão drástica, e talvez por isso era difícil acostumar-se. Lua estava certa... Apenas pensava que era forte. Secou-se com a toalha e voltou a vestir seus trajes sujos de suor e a pesada armadura. O banho servira mais para relaxar do que para limpar, pelo visto. Colocou a armadura e, mais uma vez, arrastou-se pelo corredor. Enquanto caminhava pelos corredores já quase vazios para o salão principal, encontrou um antigo amigo.

– Ah! Qlon! A quanto tempo não o vejo! - Dizia a voz de Heitor Kristal, acompanhado de perto por sua pequena irmã Jolie.

– Como sabia que era eu por baixo de sua armadura? - Perguntou Qlon, incrédulo.

– Passei a aceitar que coisas bizarras acontecem com você aqui dentro, ainda mais após o último resultado da premiação. Jamais imaginei que seria capaz de uma proeza deste porte... Vejo que é uma armadura de gravidade, não é? - Perguntou Heitor.

– Sim, é. - Respondeu secamente Qlon.

– Alunos mais velhos costumam usá-las antes de sair da base, mas ape-nas no treinamento. Andar com ela nos corredores deve provocar certa estranheza, não é? - Abafou um risinho forçado. - Quanto pesa? Duas vezes? Quatro, talvez?

– Vinte.

Heitor arregalou os olhos, como quem tivesse visto uma assombração. Jolie mal sabia o que aquilo queria dizer de verdade, e apenas continuou encarando os olhos quase invisíveis de Qlon com uma cara fechada, em silêncio.

– VINTE VEZES?! ISSO É IMPOSSÍVEL! - Gritou espantado.

O pequeno anjo ruivo retirou sua manopla e a entregou nas mãos de Heitor, que precisou fazer força para erguê-la.

– Pelos céus, isso parece pesar uma criança...

Os olhos do príncipe de Seal encontraram os de Jolie, que desviou o olhar. Heitor entregou a manopla de Qlon e notou o comportamento da irmã.

111

Page 112: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

– Não fique assim. Ela ainda está magoada por ter perdido para você no teste. Já disse várias vezes para não se culpar, mas ainda continua com este comportamento estranho.

– Eu seria a primeira mulher a vencer... - Resmungou entre dentes.

– Na verdade não seria, e expliquei isso para ela várias e várias vezes. De qualquer modo, ela está treinando sobre a tutela de Silverius a meu pedi-do. Isso me deixa contente, mas não muito nossos pais. Eles ainda insis-tem que ela é dedicada demais para isso... Mimaram-na tanto que acho que ela se revoltou, e por isso decidiu tomar esse rumo.

– Compreendo. - Disse Qlon enquanto, pela primeira vez, analisava os dois irmãos.

O rosto de Jolie era parecido com o do irmão. Mesmo cabelo negro, mesmos olhos esverdeados... Se não fosse pelo nariz um pouco mais empinado e o quei-xo um pouco mais redondo, seriam gêmeos de sexo e tamanho diferente. Ambos trajavam apenas o uniforme de frio comum com o casaco por cima.

– De qualquer modo, podemos comer? - Pediu Heitor.

– Ah sim, claro. Estou mesmo com muita fome. - Respondeu Qlon de ime-diato, sentindo seu estômago roncar.

– Imagino que sim. Deve estar completamente dolorido aí dentro. Enfim, vamos.

Acompanhado de Jolie, Heitor abriu a porta e entrou primeiro, deixando Qlon, que caminhava com dificuldades, para trás. Após os alcançar, comeu próximo a eles, melhorando um pouco suas quase extintas habilidades sociais e criando algo que ele nunca teve de alguém de mesma idade: amizades.

“Exausto, por mais uma noite dormi. Mais uma noite com um estranho sonho. Eu olhava por entre as nuvens e observava o mundo abaixo de mim. Podia ver civilizações antigas construírem casas, podia ver dragões e animais exóticos passeando e vivendo em harmonia com os homens. Eu estava deitado conforta-velmente quando senti uma mão em meu ombro. Não me voltei para ver quem era.

'Mais uma vez observando os mortais?', a voz perguntou.

'Sim. Eles não sabem como têm sorte... Enquanto estamos presos as nossas tarefas, eles podem viver sua vida como desejarem... Eu daria minha imortalida-de para ser como eles, apenas por um dia...', respondi inconscientemente.

'Que os deuses não ouçam seu apelo, irmão. Vamos, temos mais afazeres.'

112

Page 113: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

A voz carregou-me para fora do sonho e eu acordei com a cara enterrada no travesseiro. A mão de Lua estava pousada em meu ombro nu. Ela perguntou por que eu não dormira com a armadura usando uma voz carregada de um tom ameaçador. Mais um dia de pesados treinos viria.”

– Qlon, permita que eu faça uma pergunta. - Pediu Lua, já do lado de fora da cabana de seu discípulo, com o archote em mãos. - Quando esteve nos sete céus, teve a experiência de voar sob alta gravidade?

– Poucas vezes. - Respondeu Qlon, já imaginando o que viria. - Uma vez no segundo céu, mas durei pouco tempo no ar, era demasiado cansativo. Outra no quinto céu, o último andar que visitei. Esta foi ainda mais peno-sa, mas fiz por necessidade. Quase senti minhas asas se romperem.

– Entendo. - Lua alisou uma mecha de seu cabelo enquanto escutava. - Tenho uma informação importante para você: a maior parte do combate dos anjos combatentes é efetuada no ar. Apesar das flechas poderem acertar mais fácil, o ar proporciona uma infinidade de movimentos maio-res que o chão e um deslocamento muito mais veloz. Por isso, é impor-tante treinar a resistência do voo.

– Entendo, mas contando que eu tentei isso sob uma gravidade dez vezes maior que a daqui e não consegui direito, acha mesmo que 1600 quilos a mais farão com que eu voe melhor?

Lua saiu do gelo e ficou na terra destinada à cabana de Qlon com um sorriso discreto na face..

– Você disse que voou lá por necessidade, não é? - Perguntou retorica-mente com uma voz satânica. - Então voe agora por necessidade mais uma vez!

Dizendo algumas palavras, evocou uma magia de fogo de suas mãos que der-reteu todo o gelo em questão de segundos. Com dificuldades e muito medo, Qlon planou sobre a água.

– Poderá pousar agora quando o grosso gelo voltar a se formar. Vai demo-rar cerca de meia hora, não se preocupe, a temperatura está muito baixa. Lembre-se que o pouso precisa ser suave e precisa pisar com toda a su-perfície do pé ou poderá rachar o gelo.

Um pouco de luz começou a entrar pelos buracos e Lua apagou a chama que iluminava o local.

– Talvez um pouco mais. - Ponderou. - O importante é que não caia. Já dis-se que não vou resgatá-lo caso algo aconteça.

113

Page 114: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

Qlon sabia, e estava cansado de ouvir aquelas frases torturantes de sua mes-tra. Com todo seu esforço, voava a apenas alguns centímetros da água e, por ve-zes, seus escarpes tocavam a superfície do líquido que poderia decretar sua morte. Lua apenas passava o tempo observando-o com um sorriso sádico na face.

– Um dia, terei prazer em derrotá-la. - Disse Qlon, sem ar nos pulmões.

– Isso, sinta a raiva por mim crescer. Não que ela vá torná-lo mais forte, mas pode ser seu fôlego para manter-se vivo. Não queria tratamento es-pecial, príncipe? Pois agora o tem.

Lua falou como Silverius, e isso instigou ainda mais raiva. Com muita dificulda-de e sentindo os músculos da base das asas arder, continuou a voar para sobre-viver. Decidiu chamar aquilo de “jogo da morte”, pois estava longe de ser um trei-no comum para um anjo. Mas mal sabia Qlon que aquele era apenas o início de todo seu sofrimento naquele castelo amaldiçoado.

Deitado em sua cama após o término do treino, já pela noite, olhava para o nada, refletindo enquanto seu corpo se recuperava. Por certo, Lua tinha ido longe demais nos treinamentos. Além de fazer ele voar duas vezes naquelas condi-ções, uma ainda antes do término da prática diária, forçou-o a tentar correr sobre o gelo – tentar, pois ainda não se habituara ao peso do equipamento extra. Por vezes escorregara e, nessas ocasiões, era forçado a fazer dez abdominais como penitência. Ainda após, teve de repetir os exercícios de combate desarmado com a nova armadura. Estava tão dolorido que desejou que alguém desse comida em sua boca na hora da refeição. Mas, por certo, não era nisso que estava refletindo.

O Livro das Eras estava intocado em sua bolsa desde então. Aquela história... Ele passava a entende-la, aos poucos. Ele herdara a maldição que aquele peca-do custara. Mas estava negando aquilo, com todas as suas forças. Em sua cabe-ça confusa, não queria carregar o fardo por outro ser. Era, por certo, uma injusti -ça arcar com o erro dos outros. Ao mesmo tempo, não sabia se conseguiria li -vrar-se daquela maldição simplesmente por desistir dela. Mas uma coisa era cer-ta: estava cedo demais para que o impiedoso destino começasse a arquitetar algo relacionado a isso. Ou, ao menos, nisso queria acreditar.

“Estava cedo demais para eu entender que o destino, apesar de ser escrito a cada atitude diferente tomada pelos seres inteligentes, tinha uma forma cruel de arquitetar manobras e nos fazer seguir seus desejos mais insanos. Eu estava in-deciso se leria ou não mais daquele livro no dia seguinte. Isso é, se possível: Lua queria mesmo repor todo o tempo perdido nos três meses que estive caçando demônios em Mind. Mas, tudo que me importava no dado instante, era dormir. Meus músculos doíam, minha cabeça doía. Adormeci rapidamente assim que fe-chei os olhos, para viajar por um vazio contínuo.”

114

Page 115: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

Cap. 44 – Uma Pausa na Leitura

elo e neve surgiram e aos poucos iam embora. Durante longos dois meses, Qlon apenas procurara aperfeiçoar seu treinamento. Afastou-se do Livro das Eras. Os sonhos também pararam por um tempo e tal-

vez aquilo fosse um sinal. Se aproximou mais de Heitor e Jolie, que tinham se tornado seus maiores dois amigos ali dentro além dos mestres e de Raquel. A ar-madura logo não o incomodava mais. Graças aos treinamentos questionáveis eti-camente, Qlon aprendera a controlar melhor voo, movimentação, equilíbrio e ve-locidade. Podia até correr por alguns minutos com a armadura – não que deves-se orgulhar-se de tal proeza, pois teve de mergulhar diversas vezes em água fria para sanar a dor.

G

Lua o forçara a treinar no lago, dia após dia. Ao menos enquanto a espessura do gelo permitira, pois com a proximidade da primavera, que arrastava o calor em suas costas mais uma vez, a placa formada não suportaria mais o peso de seu pupilo, apesar de Qlon achar que isso não a impediria de dar suas sessões diárias de tortura. Passaram a treinar em terra firme, e o pequeno anjo ruivo sen-tiu a diferença. Alguns golpes de lua, apesar de terem força o suficiente para der-rubarem um touro, não abalavam mais a ele. Ela era louca, indiscutivelmente, mas sabia o que fazia.

“Retomarei a história em um evento importante: a premiação do inverno. Ape-sar de ter ganho as quatro medalhas de honra do ano, três delas eram apenas simbólicas. Afinal, de que adiantaria passar trabalhos aos outros alunos se eles não se veem na necessidade de fazê-los? O prêmio de melhor trabalho foi para um aluno a dois anos de se formar, mas isso não era o importante.

Após a cerimônia de premiação era também a cerimônia de formatura. Como novos alunos entravam cada vez que completassem aniversário, ao final de cada estação havia uma formatura diferente. Eu não havia acompanhado a formatura de outono, pois saí da cerimônia antes que pudesse ver seu fim. Já citei anterior-mente, o treinamento básico era concluído aos quinze anos. Quem quisesse aprofundar-se mais na arte da guerra deveria ficar até os vinte e um. Isso era uma melhora e tanto. Apesar de o conhecimento adquirido até os quinze anos ser importantíssimo, aquele que saísse da base com essa idade seria, se tivesse sorte, um soldado raso. Se saísse com vinte e um anos, poderia assumir um pos-

115

Page 116: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

to baixo de comando, como um senhor. Ah sim, ainda não expliquei a hierarquia da guerra das tropas celestiais...

Durante os séculos, muitas nomenclaturas foram usadas para definir cargos. Algumas perduraram por milênios entre os mortais. A hierarquia militar angelical não era diferente, apesar de ser melhor em seus detalhes. Em nível ascendente, os cargos são:

O Vigia: Guardião das cidades e dos postos de comando. Apesar de ser um cargo baixo, é de extrema importância. Sem eles, as cidades menores já pode-riam ter encontrado um fim.

O Soldado: A linha de frente da guerra e classe mais cheia em todo o exército. Apesar de ser a segunda categoria na ordem ascendente, os mais fracos que exercem essa função. Vigias de destaque que acabam subindo de posto passam direto por cima desta tarefa.

O Senhor: Classe que comanda um pequeno punhado de soldados ou de vi-gias, responsável pela organização e distribuição de recursos de suas tropas. A vivência de batalhas ainda é muito baixa para almejar um cargo realmente bom...

O Capitão: Encarregado superior de outros senhores. Comandam vilas e pe-quenas cidades, encarregados de articular estratagemas básicos e encaminhar aos superiores para aprovação. Apesar de ser um cargo alto, ainda não é o que desfruta de maiores responsabilidades.

O General: Encarregado-mor da guerra. Responsável direto pelas táticas de combate, autoridade única em batalha. Tem um respeito militar maior até mesmo do que o maior dos cargos. Responsáveis por cidades grandes e áreas diversas. Em Seal, eram 9 os generais: Um general para quatro cidades grandes: Halo, Prophecy, Wing e Truth. Um para cada área cardeal: Norte, Sul, Leste e Oeste, englobando apenas as pequenas vilas e áreas isoladas. E, o maior de todos, o general responsável pela área central de Aeria, a capital de Seal, e seus arredo-res. Sim, este era meu pai.

O Lorde, ou O Rei: Apesar de ser o maior posto, o uso em combate é nulo. O rei frequenta os campos de batalha e até combate algumas vezes, mas em raras ocasiões. O significado dele é mais simbólico do que prático.

Enfim... O fato é que Heitor estava de partida. Eu não cheguei a ser um grande amigo dele, mas ele era o único que me ouvia naquele lugar. Ele e sua pequena irmã, mas esta era sempre muito quieta, e parecia nutrir um ódio incondicional por mim. Após a premiação, fui ter uma conversa com Heitor.”

Heitor estava conversando com alguns outros amigos quando Qlon chegou em sua pesada armadura. Os outros afastaram-se, como quem não queria contato algum com o aluno recluso. Com palavras tímidas, Qlon perguntou:

– Então, é a última vez que nos veremos?

116

Page 117: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

– Aqui na Base, pelo menos, sim. - Respondeu Heitor, vacilante. - Mas quem sabe um dia não poderemos nos ver em batalha, não é? Espero que, um dia, o General Qlon me comande.

Qlon não gostava muito dessas brincadeiras com títulos, mas pelo nome que seu pai tivera feito em batalhas, não adiantava muito tentar esquivar-se.

– Achei que não sairia daqui tão cedo. Parece ter origens nobres, achei que ficaria para aprender mais além do básico. - Tentou desconversar Qlon.

– É... Minha família também quis convencer-me do mesmo, mas... Depois de dez longos anos de um árduo treinamento, o que mais quero agora é começar a lutar. Estou ansioso para duelar com demônios e arrancar suas cabeças.

– E descobriu ao menos como usar o poder de sua arma?

Heitor balançou a cabeça negativamente. Suas quatro grandes asas parece-ram encolher um pouco com sua tristeza. Era estranho como uma arma familiar não vinha com um manual de instruções. Claro que não tinha muito a reclamar sobre o assunto uma vez que a sua própria Sanctus era um mistério quase que indecifrável aos seus olhos, mas ainda assim achava estranho esse comporta-mento. Seria um teste para fazer os novos usuários decifrarem aos poucos os enigmas de seus equipamentos e, com isso, obterem um melhor manuseio? Um longo silêncio se abateu sobre eles, até que Qlon abriu sua boca mais uma vez:

– Obrigado, sabe... Por ser meu amigo quando mais ninguém aqui se inte-ressou em aproximar-se de mim. Ou quando todos me olharam como se eu fosse um enganador esnobe.

– Não se preocupe, não tem que agradecer a mim. Fiz isso pois nem todos são aquilo que aparentam ser, e tive uma agradável surpresa em saber que o futuro rei de Seal não é nenhum garotinho mimado que mal sabe segurar uma espada.

– E por que eu seria? - Perguntou Qlon enquanto lembrava dos reis do passado e tentava imaginá-los em suas infâncias. Com certeza não po-dia imaginar seu avô treinando na Base.

– Quando o poder sobe à cabeça de um mortal, isso o torna arrogante. Pelo que aprendi nas aulas de história deste reino, alguns reis foram ca-pazes de sacrificar outros anjos apenas para completarem seus objeti-vos. Se mesmo os anjos são capazes de serem tentados pelos pecados, então não sei se estarei cercado de inimigos ou de aliados. Mas é bom ver que a tradição não se perdera: que alguns anjos ainda carregam den-tro de si a pureza que as lendas tecem a nosso respeito. - Tocou com o punho fechado o peito da armadura de seu amigo.

117

Page 118: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

Qlon sorriu, inocentemente. Gostou do elogio, e agradeceu quase que sussur-rando. Heitor voltou a tomar a palavra, instantes após:

– Qlon, já que somos amigos, posso pedir um favor?

– Claro. - Concordou de imediato. - Considere um presente de formatura.

– Cuide de Jolie por mim. - Pediu com a face um pouco abatida. - Ela ainda é uma simples criança de cinco anos. Irritante, insistente, cheia de per-guntas e anseios. Você, por outro lado, é tão maduro quanto um adulto. Então, por favor, controle o ímpeto dela e não deixe que se meta em con-fusões. Ela já quis ser combatente por pirraça, não sei mais do que ela é capaz.

– Heitor... Acha mesmo que eu posso fazer isso? Digo, também sou uma criança de cinco anos, quase seis. Não creio que conseguirei colocar juí-zo em sua cabeça, mesmo que me considere maduro. Ela não teria res-peito algum por mim.

– Pelo contrário. - Negou Heitor balançando a cabeça. - Ela te admira.

– Admira? - Qlon ruborizou. - E por quê?

– Talvez por ter nenhuma noção de cavalheirismo e por ter ganho dela no torneio. - Disse entre risadas. - Desde aquele dia ela quis saber quem foi o “único garoto a ter coragem de enfrentá-la e sair vitorioso”. Creio que sim, poderá conter aquele espírito ativo que ela possui.

– Se acha que sim, então tentarei.

Heitor colocou a mão em seu ombro e despediu-se com uma reverência. Qlon estava triste, mas não choraria por uma pessoa que mal conhecera. Em seus pensamentos, desejava sorte a ele. Enquanto Heitor afastava-se pelo corredor, Qlon parou e observou. Ele carregava sua Swallow presa às costas. Quando não viu mais a luz dos archotes refletindo na arma, tinha certeza que havia ido embo-ra.

– Bem, Qlon, acho que já aprendeu o básico que deveria aprender de com-bate desarmado. - Proferia Lua ao seu aluno, que continuava com a pe-sada armadura após mais um árduo treino. - Se usar o que ensinei, pode derrotar mesmo anjos muito mais velhos que você que já tenham se for-mado aqui dentro.

Estavam do lado de fora do castelo. A primavera trazia consigo um ar morno, revigorante. Os cabelos dourados de sua mestra esvoaçavam livremente, en-quanto ela lecionava de pé ao dedicado discípulo à sua frente.

118

Page 119: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

– Por já ter aprendido o essencial sobre combate, acho que está na hora de aprender a usar magias.

Qlon estava ansioso por aquilo. Ela mudara um pouco o calendário, conside-rando o tempo com seu pupilo. Achou melhor lecionar o conteúdo de uma vez, e só então pular para outro. Estudar vários ao mesmo tempo poderia complicar a cabeça de seu pupilo, ou até mesmo ela. Não era um exemplo de organização... As últimas experiências que Qlon tivera com magias não foram muito agradáveis. De duas ele não se lembrava, e outras duas ele controlava razoavelmente bem, apesar de deixá-lo exausto – o teleporte e esconder as asas. Mas, apesar disso, estava disposto a aprender mais sobre artes ocultas. Pareciam muito úteis em várias ocasiões.

– Deve estar achando - Prosseguiu sua mestra. - que magias são apenas um punhado de palavras ditas em sequência, não é? Bem, se imagina algo assim está errado. As magias nada mais são que um próprio condi-cionamento da alma aplicado na realidade. É um conceito um tanto com-plicado, mas assimilará.

– Então de quê servem as palavras? - Perguntou Qlon, parecendo um tan-to decepcionado.

– Ótima pergunta. Algumas magias exigem uma concentração sobrenatural e uma reunião extrema de energia. As palavras servem apenas para que possa manter o foco ou para entrar em contato com outras entidades que ampliarão seu poder mágico, como os elementais.

– Então, quando usar palavras é necessário?

– Magias de invocação, rituais... Mas essas são magias mais extremas, não vou fazer que aprenda agora. Por agora, quero que mantenha em mente que alguns condicionamentos são necessários para o uso da ma-gia: respiração, força muscular e concentração. Principalmente concen-tração, mas os outros dois também são altamente necessários.

– Força muscular, em magia?

– A força que seus músculos fazem é dissipada em forma de energia pelo ar. Então sim, força muscular. Se usá-la sozinha, poderá usar golpes co-muns. Se aliar ela à sua concentração e a sua energia mágica dissipada pela concentração, poderá fazer coisas incríveis.

– Energia mágica? - Perguntou Qlon cada vez mais confuso.

– Sim, energia mágica. É isso que define se pode ou não usar magias. É um dom natural, mas também pode ser trabalhado e desenvolvido. Essa energia, como a energia muscular, tem um limite, e quando usada em ex-cesso gera exaustão ao corpo. Mas basta descansar que ela retorna.

119

Page 120: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

– Isso explica por que magias cansam tanto...

– Sim, e também explica por que nossos guerreiros não saem usando ma-gias como se fosse algo que nunca acaba. Da mesma forma que um guerreiro sem energia muscular é uma presa fácil, um mago sem energia mágica é como uma gazela aos leões. Magias devem ser usadas com cautela. Diferente da energia muscular, quando a energia mágica se es-gota por completo, não pode ser regenerada. Mas ainda há uma energia muito importante para a magia... a energia vital. Mana.

“A 'Mana' é conhecida como energia vital dos seres viventes. Todos carregam dentro de si uma parcela desta energia, e a soma de toda esta energia é o poder total de Yggdrasil.”

– Espere! Gastamos nossa vida para usar magias?

Lua andou um pouco de um lado para outro, buscando palavras para explanar, até que encontrou-as.

– Nunca imaginou por que existem poucos magos e, os que existem, traba-lham na guerra durante menos tempo?

“Ela estava certa. Magos eram raridade no reino, apesar de a magia ser bem difundida. Fora que, ao contrário dos soldados, estes trabalhavam menos: cerca de cem a trezentos anos, se muito.”

– Usar magia não é algo simples, Qlon. A energia mágica e a física, unidas, geram a energia vital. Elas que determinam o tempo de vida de cada um. Apesar de se regenerarem, aos poucos elas vão enfraquecendo. A morte natural de um mortal é determinada pelo esgotamento destas duas fon-tes. Quanto maior forem as duas fontes, mais tempo de vida um mortal possui. Isso explica por que nós, por exemplo, vivemos mais que huma-nos. Nos sete céus, estas energias são repostas pelos deuses, por isso jamais morremos. Mas aqui, elas se esgotam, se esvaem.

– Mas e a energia dos deuses, ela nunca acaba?

Lua sorriu com aquela pergunta inocente. Aquela pergunta cheia de significa-dos, cheia de filosofias, que muitos humanos passaram noites e mais noites ten-tando encontrar a resposta, mas que para aquela criança era uma simples dúvida natural. Assim como eles, os sábios, ela não encontrou resposta alguma.

– Ficarei devendo essa resposta. Mas, de qualquer forma: quanto mais das duas fontes você usa, mais as esgota. Se alguém nunca usa magia, por exemplo, essa fonte demorará a esgotar. Mas a física consumimos a todo tempo, todo segundo. Ela se esgotará normalmente, e quando ela se esgotar por inteiro, se energia mágica ainda existir, o corpo perecerá, mas uma alma ficará em seu lugar até que sua essência seja consumida.

120

Page 121: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

– Então, há vida após a morte.

– Não uma vida: uma sobrevida. O que os deuses fazem é pegar essa so-brevida e garantir que dure para sempre, no paraíso mortal. O Éden está repleto de almas de mortais que os deuses consideraram justas.

– Então almas são uma fonte de energia mágica. Isso?

– Exato. Alguns até se alimentam delas para prolongar suas vidas, sem sa-ber que estarão apenas prolongando uma sobrevida. Estes estão errados aos olhos dos deuses, e suas almas vagam pelo mundo até desaparecer.

– Entendo. Mas e quando ambas as essências acabam em uma pessoa? Digo, e quando as duas energias se esgotam, ao mesmo tempo?

Lua fechou os olhos e sorriu.

– Ela simplesmente deixa de existir, ou ao menos assim se pensa. O que posso responder é o que acontece quando um corpo perde toda a ener-gia mágica, mas não a física.

– E o que acontece?

– O ser vira um morto-vivo. Ele pode movimentar-se e agir de acordo com os instintos básicos, mas sem uma alma não passa de um corpo. Um morto-vivo.

Qlon achava aquilo tudo muito instrutivo. Ouvira falar que, durante milênios, os humanos buscaram respostas para coisas tão simples, tão básicas. Como eram tolos. Poderiam ter desenvolvido toda a física, mas jamais desenvolveriam a ma-gia enquanto não a entendessem. Um silêncio se abateu sobre eles. Durante al-guns minutos, ouviram a brisa soprar por entre as folhas das árvores que, aos poucos, brotavam. O vestido de Lua dançava de acordo com o ritmo ditado pelo soprar dos ares.

– Agora que aprendeu o básico sobre a magia, - Adiantou Lua. - precisa aprender o que irá estudar. Dentro da magia, existem vários ramos...

“São dois os ramos principais: o ramo dos feitiços e o ramo dos encantamen-tos. Feitiços são os mais simples, usados por manipular o que quiser através da própria energia. Magias como o teleporte, que eu já havia aprendido, eram as-sim. O ramo dos encantamentos era um tanto mais complicado, pois não neces-sitava apenas do conhecimento próprio, e sim do conhecimento da energia dos elementos com que se trabalha. Em suma, feitiços trabalham apenas com ener-gia própria aplicada sobre uma matéria. Encantamentos trabalham com o fluxo de energia entre aquele que aplica a energia e aquele que a recebe. Isso será melhor explicado mais à frente, mesmo por que ainda existem diversos outros sub-ramos dentro destes dois grandes troncos da magia...

121

Page 122: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

Naquele dia, não cheguei a treinar magias novas com Lua, apenas a ouvir suas explicações. Um assunto que não toquei até agora foi... E o Cloud, meu lobo? Bem, ao regressar para a Base, soube que não poderia manter animais domésticos dentro do castelo, mas não teria problema em deixá-lo nas planícies da ilha. Ele poderia sobreviver se alimentando de animais selvagens nos peque-nos bosques. Então, o libertei em um próximo ao castelo. Sentia pena por dei-xá-lo só no ápice do inverno, mas às vezes eu ia vigiá-lo e ter certeza que estava bem. Me sentia ligado àquele animal. Ele parecia sentir-se grato a mim, pois, apesar de tudo que fiz, ainda me recebia com alegria quando o visitava. Ele ca-çava pequenos animais, como raposas, esquilos, algumas aves... Estava indo bem. Não era comum um lobo naquele habitat, mas apenas um não faria tanta diferença assim... De qualquer forma, tornei a visitá-lo naquele dia. Estava maior, mais forte. Crescia aos poucos, e sua pelugem ganhava tons de cinza mais es-curos.

Passei algumas horas até o pôr do sol com ele dormindo em minhas pernas esticadas, com a cabeça sobre minhas coxas revestidas pelo frio metal. Acariciei seu pelo macio enquanto pensava...Não conseguia tirar a história de Metatron e Sandalphon da minha cabeça. Sabia que não teria paz enquanto não acabasse de vez com o livro de capa negra, então decidi continuar sua leitura...”

– Hora de treinar, Qlon. Levante-se.

A voz de sua mestra pela manhã não era uma das coisas mais agradáveis de ouvir, mas acostumou-se com o passar do tempo. Ergueu-se, colocou sua arma-dura e saiu de sua cabana. O lago do lado de fora já havia derretido por comple-to, apenas umas pequenas pedras de gelo flutuavam em alguns cantos, mas logo retornariam a forma líquida novamente. Da pequena plataforma elevada onde estava sua moradia, Lua, que exalava beleza naquela manhã iluminada pela luz do sol que penetrava por entre as rochas perenes, refletia na água e ba-nhava o ambiente, passou a ele as instruções.

– Bem, Qlon, antes de mais nada, para entender a magia é necessário en-tender como funciona o mundo. Tudo que existe tem um lado oposto, e é a partir deste ponto que começamos. Os elementos primordiais, Luz e Trevas.

Lua andava de um lado para o outro enquanto dava suas explicações, e gesti-culava com os braços. Estava mais dedicada do que de costume, e aquilo era es-tranho. Talvez gostasse mesmo de ensinar magias... Apesar de achar aquilo um tanto cômico, Qlon continuou ouvindo com atenção.

– A luz é a claridade, a presença de luminosidade. As trevas representam a ausência de luz. Esse é o mesmo conceito que pode ser aplicado a diver-sos outros pontos. Presença e ausência.

122

Page 123: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

– Sim, mas... - Qlon tomou a atenção de sua mestra mais uma vez para ti-rar uma de suas dúvidas, como fazia com frequência. - São apenas defi-nições, certo? Digo, quente e frio são definições de temperatura. A tem-peratura em si é algo absoluto, mas quente e frio são conceitos.

– Exato! Bem percebido Qlon. Sim, são apenas conceitos. Luz e Trevas são apenas indicadores de luminosidade. Mas, se pensar da mesma for-ma, o Bem e o Mal são absolutos ou são apenas conceitos ligados às ati-tudes, que podem ser relativos?

Qlon parou para refletir por alguns segundos. Tinha quase certeza que já ouvi-ra sobre aquilo antes. Isso o lotava ainda mais de perguntas. Será que ela queria questionar a benevolência divina e a malevolência demoníaca? Aquilo era muito estranho de se pensar com aquela idade e aquela experiência de vida. Deixaria para resolver quando tivesse capacidade de responder uma pergunta tão com-plexa quanto àquela.

Lua sorrira ao ver a cara de seu discípulo, confuso com tantas indagações que, provavelmente, nunca teriam soluções. Ou teriam. Não duvidava que ele era ca-paz de achá-las ao decorrer de sua vida. Na verdade, ela nem queria levantar tais questionamentos, fizera isso apenas por pura diversão. De qualquer forma, voltou a andar em círculos e gesticular enquanto explicava:

– Bem, deixando um pouco a relatividade de lado... Quero que entenda que cada magia possui seu oposto. Por exemplo, o teleporte. É uma ma-gia que tem como o foco principal a movimentação. Neste caso específi-co, a movimentação de seu corpo em relação a um objeto ou a um lugar, correto? Então a movimentação é absoluta, mas o que se movimenta é que define a magia. Poderia dizer o que é o contrário do teleporte?

– Movimentar alguma coisa? - Respondeu Qlon, indeciso.

– Sim, e esta magia também possui um nome. Telecinese. Movimentar um objeto em relação ao seu corpo. Parece divertido, não é? Como já ensi-nei, nos feitiços usamos apenas a própria energia. Se este também é um feitiço, só que inverso, então a energia usada ainda é apenas sua, mas concentrada em um outro objeto, não em você. Só passaria a se tornar um encantamento se o objeto trocasse de energia com você em respos-ta, mas isso ainda é um pouco avançado. Então você precisa transferir sua energia até o objeto e fazer com que ele venha até você. Imagina ser capaz? Pois é isso que iremos treinar hoje.

Qlon não se sentiu muito surpreso. Queria aprofundar seu conhecimento nas magias, então esperava por algo com aquele nível de dificuldade. Claro que o combate ainda era seu foco principal, mas não sentia que aquilo prejudicaria o desenvolvimento de suas artes marciais. Estava excitado em aprender magia... E para chegar o final do dia e continuar, finalmente, a ler o Livro das Eras...

123

Page 124: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

Cap. 45 – A Era dos Arcanjos

dificuldade dos treinamentos, ao que parecia, era inversamente pro-porcional às explicações de Lua. Treinamentos simples de combate haviam transformado-se em um inferno, enquanto o treinamento de

magia, que recebera uma explicação detalhada, era mais simples do que podia parecer. Ou Qlon tinha um dom mágico muito grande, ou a magia era algo muito simples. Para não engrandecer seu ego, preferiu acreditar na segunda opção. Lua apenas observava enquanto seu aluno, sem muitos esforços, levitava uma pedra do tamanho de seu punho fechado a alguns metros de distância de seu di-minuto corpo.

A

– Consegue perceber o esforço, Qlon? - Perguntava Lua. - Quanto menor o objeto, menor a força mental que deve fazer. A quantidade de energia gasta obedece a uma constante relacionada ao seu peso e seu tamanho. Se levitar algo de metade do seu tamanho e peso, vai gastar metade da energia que gastaria em um teleporte. Da mesma forma, o dobro de ta-manho e peso implica no dobro de esforço. Tente mover o objeto agora para alguns lugares ao invés de só levitar. Mova-o para cima, para os la-dos, para perto e para longe usando o que ensinei no teleporte.

Qlon esforçou-se em seu treinamento e, no final do dia, conseguia levitar pe-dras maiores até mesmo do que ele. Em compensação, estava exausto. Deitou-se no chão de rocha e sua mestra sentou ao seu lado e o deu um tapa carinhoso na testa.

– Esse cansaço significa que você usou bastante poder mágico. É um can-saço diferente, se parar para perceber. Apesar de ter envolvido um pouco da sua força física – muito, muito pouco, seu cérebro trabalhou como lou-co. Concentrou-se bem, e estou orgulhosa de você. Amanhã iremos con-tinuar o aprendizado de hoje, então esteja preparado. Pode ir fazer o que quiser agora.

O sol se punha aos poucos em Seal, como sempre. A luz que entrava pela gru-ta que Qlon morava aos poucos acabava, forçando-o a acender sua lamparina. Pegou então sua bolsa e partiu para a biblioteca.

124

Page 125: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

Qlon abriu o livro na página que havia parado. Só observar os selos de Meta-tron e Sandalphon tantas vezes durante a leitura, e apenas os deles, o dava des-confianças de onde poderia aquele livro ter vindo. Quer dizer, que livro teria os selos apenas de dois anjos, mesmo falando de mais? Não tivera problemas em ler os nomes de Midael, Eloa ou Galadriel, apesar de estarem em idioma celes-tial. De qualquer modo, prosseguiu com sua leitura.

Segunda Era

O surgimento de Galadriel acordou aos Deuses, que souberam, pesaro-sos, do sacrifício de Metatron e festejaram a morte de seu irmão. Midael foi renascido como serafim, como fora prometido, e Galadriel herdou a função de seus sucessores. Ora, eis que naquela época havia apenas treze sera-fins. Os deuses tentaram, mas, mesmo com seus poderes, não puderam criar algum parecido. Nem mesmo Galadriel, o sucessor legítimo do sangue de Metatron e Sandalphon, fora capaz de recriar um. Conseguiram criar an-jos com partes dos deuses e o poder da vida de Galadriel, mas eram anjos de cargos inferiores. O máximo que puderam fazer para igualar um outro anjo a um serafim foi criar um sistema de ascensão de cargos nos sete céus, dando mais e maiores asas a um anjo de castas inferiores. Mas pou-cos eram cargos vitalícios para o sistema divino. Eram eles:

Treze serafins, que foram chamados de “guardiões do selo divino”. Fica-vam ao lado dos deuses, auxiliando-os a preencher os buracos deixados por Metatron e Sandalphon.

Seis querubins, que guardavam as entradas mais importantes dos sete céus, como vigias eternos. Estavam dois na entrada dos sete céus, um na entrada do paraíso, dois na entrada do sétimo céu e um protegendo o salão dos deuses.

Oito tronos do julgamento, para garantir a justiça divina aos andares dos sete céus e ao planeta dos mortais. Serviam também para proteger cada um o selo de um andar e, um deles, protegia o selo do planeta mortal.

Dezesseis dominações, duas para vigiar cada andar e mais duas para vi-giar o planeta dos mortais, e garantirem o cumprimento das ordens que fo-ram passadas por seus superiores. Responsáveis por informar aos Tronos tudo que ocorria nos planos.

Quatro virtudes cardeais, que serviam como a “inspiração”, exalando sua perfeição nas demais formas de vida. Também estavam com a árdua tarefa de julgar os merecedores de entrar no paraíso.

Treze autoridades, para representar os serafins diante dos planos e guar-darem toda a história divina em suas mentes. Foram criados por Midael

125

Page 126: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

para, também, serem os guerreiros mais leais aos sete céus.

Quatorze princípios, cada um designado para cuidar de uma raça dife-rente de mortais e um deles das bestas, analisando e registrando sua histó-ria e, um, em especial para cuidar dos anjos. Tal princípio fora criado ape-nas por Galadriel e manteve sua origem secreta durante as eras que se pas-saram.

E os diversos, diversos anjos que cuidavam dos mortais. Mas, por mais que Galadriel e os deuses revisassem tudo, parecia que ainda faltava algo... Desde a morte de Metatron e Sandalphon, os anjos pareciam estar abatidos e sem vontade de continuar servindo aos seus criadores. Foi então que ele teve uma ideia:

“Vamos criar mais uma espécie de anjos, com poderes quase tão fortes quanto os de um serafim, mas com limites, e deixemos que eles governem os sete céus. Serão mais fortes e mais importantes que os anjos comuns, mas ainda serão nossos subordinados.”

E os deuses consentiram. Foram então criados sete seres de grandes po-deres, que receberam o nome de Arcanjos. Sete arcanjos supremos, cada um tornando-se o príncipe de um dos sete andares celestiais. Tais príncipes estavam acima até mesmo dos juízes de seus andares. Além disso, cada um deles tinha em seu poder três ministros, guardiões dos selos do equilí-brio.

Cada andar, além do seu próprio selo, possuía uma das sete partes do selo supremo do equilíbrio, que apenas os anjos de esferas superiores ti-nham conhecimento. Tais selos precisavam existir fisicamente para o equi-líbrio entre os planos ter sucesso, senão poderiam muito bem permanecer na mente de quem os criou para sempre, em segredo. E os sete arcanjos eram:

Uriel, príncipe de Shamain, ceifeiro das vidas que deixavam o plano mor-tal, líder dos anjos de menor escalão e regente do elemento Terra. Em seu andar, quem julgava era o Trono Hasmed.

Jofiel, príncipe de Raqia, detentor do conhecimento, treinador de novos anjos e regente do elemento Água. Em seu andar, quem julgava era o Trono Azbuga.

Haniel, príncipe de Shehaquim, detentor da história, ouvidor de orações, líder das virtudes e dos princípios e regente do elemento Trovão. Em seu andar, quem julgava era o Trono Atuesuel.

Michael, príncipe de Machen, detentor da força e perspicácia, líder das autoridades e regente do elemento Fogo. Em seu andar, quem julgava era o trono Hagios.

126

Page 127: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

Raphael, príncipe de Machon, detentor da magia, líder das dominações e regente do elemento Vento. Em seu andar, quem julgava era o trono Jeu.

Gabriel, príncipe de Zebul, detentor da lealdade, líder dos tronos e regen-te do elemento Trevas. Em seu andar, quem julgava era o trono Radueniel.

Lucifel, príncipe de Araboth, detentor da filosofia, líder dos demais arcan-jos, gêmeo de Gabriel e regente do elemento Luz. Em seu andar, quem jul-gava eram os Tronos gêmeos, Irin e Qaddisin.

Qlon parou sua leitura por alguns instantes e lembrou-se de Haniel. Um dos sete arcanjos... Sentia-se envergonhado por tê-lo visto sem saber dos seus pode-res, sem saber de quem ele realmente era. Se tivesse conquistado um inimigo naquele instante, poderia estar morto, por certo. Por sorte, Haniel fora gentil e o permitira até mesmo conhecer um dos princípios, Nisroc. Mas não havia visto seu nome ainda... De acordo com o que ouvira de sua própria boca, fora um dos “res-ponsáveis” pela grande rebelião que ocorreu nos sete céus e que deu origem ao inferno. Mas aquela parte não estava longe...

Pois eis que o princípio das bestas, Nisroc, aquele que representava a li-berdade, era um dos poucos e seletos anjos que voava livre pelos planos dos mortais e sem perder seu sopro de vida. Por milênios vagou, vigiando-os do alto na forma de uma águia com quatro asas. Sua forma inspirou po-vos e nações, tornou-se um símbolo. E, depois de muitos e muitos anos, voltou aos céus para contar tudo que havia visto e até mesmo presenciado quando andava entre eles.

Suas histórias chegaram aos ouvidos do príncipe do sétimo céu, Lúcifel. Ele gostava de ouvir sobre a liberdade, sobre como podiam decidir seus go-vernantes e como, por vezes, o povo se revoltara contra aqueles que eles próprios haviam confiado o poder. Como detentor da filosofia, passou mui-tos milênios nos sete céus refletindo sobre tudo aquilo. Em segredo, reuniu um pequeno exército e, acusando os deuses de tirania, travou uma batalha para escaparem dos planos celestiais. A batalha foi curta, mas muitos anjos foram ceifados. Gabriel teve um longo embate com Lúcifel. Lúcifel venceu e poupou seu irmão, e quando questionado pelo motivo da misericórdia, Lú-cifel respondeu:

“A minha luz é tão forte que precisarei cegar a todos para que vejam a verdadeira treva que tomou conta dos sete céus. Meu objetivo não é des-truir, é reconstruir. Se para isso vou precisar passar por cima de uma pilha de cadáveres, então assim o farei. Mas eu gostaria que você, meu irmão, me apoiasse quando a hora derradeira chegar. Sandalphon foi o primeiro a sa-ber, um dia você também saberá.”

Sem muitos esforços, a tropa que reuniu conseguiu atravessar os por-tões dos planos e entrar no reino mortal. Lá, criaram abaixo da terra um pla-

127

Page 128: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

no que imitava os sete céus. Sete infernos assim foram chamados. A maio-ria deles renunciou seus nomes originais e tomaram nomes novos. Menos Lúcifel. Ele quis continuar sendo lembrado como aquele que originou a re-volta, aquele que traiu os sete céus. Adotou um sufixo diferente em seu nome e passou a ser chamado de Lúcifer. Tais seres desprezíveis foram amaldiçoados por Galadriel, que conjurou:

“Qualquer outro ser que decidir rebelar-se contra os seus criadores deve-rá ter as asas tingidas de negras. Serão suas marcas de impureza. A marca do pecado, assim como o pecado de Sandalphon!”

E então nasceram os caídos.

Qlon parou um pouco e olhou para os lados. Raquel estava próxima, organi-zando os livros em uma prateleira. Esperou que voltasse à sua bancada para prosseguir lendo.

Galadriel colocou Gabriel para tomar conta dos dois andares, e a ele ce-deu poderes do elemento da Luz. Gabriel, a partir deste ponto, ficou conhe-cido como O Príncipe dos Príncipes. Seu título passou a ser o de serafim e fora instruído a batalhar contra seu gêmeo assim que chegasse a hora. E este foi o marco para o fim da segunda era.

Qlon olhou novamente para os lados. Raquel ainda estava em sua bancada, fazendo algumas anotações. Pelas poucas janelas daquele lugar, podia ver a pla-nície iluminada pela prateada luz da lua. Estava tarde, e ele estava cansado. De-cidiu parar com a leitura por ali e ir descansar. Amanhã o dia seria ainda mais longo. Despediu-se da bibliotecária e, a passos longos, desceu para comer algo no salão principal. Em seguida, foi para seus aposentos.

Durante a refeição – primeira do dia para Qlon – Jolie permaneceu calada. Sentava ao lado de Qlon, e mal conseguia comer sua comida direito. Por certo sentia falta de seu irmão, com quem implicava o tempo todo. Em uma tentativa frustrada de solidariedade, o anjo de cabelos ruivos afagou seus cabelos. Jolie reclinou a cabeça em seu ombro e passou a chorar. Apesar de a cena ter atraído mais olhares, Qlon não sabia o que fazer e permaneceu imóvel enquanto ela de-sabafava com lágrimas que escorriam continuamente de seus olhos.

– Me desculpe... Por aquilo... Na hora do jantar... - Gaguejava Jolie em uma mescla estranha de vergonha e timidez.

Eles estavam agora do lado de fora do salão. Qlon se apoiou no parapeito de uma das janelas e encarou o céu lá fora, com apenas algumas nuvens bem es-paçadas cobrindo as estrelas. Jolie tomou o lugar ao seu lado, fechando o espa-ço da ventana.

128

Page 129: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

– Tudo bem, não se preocupe com aquilo. - Respondeu sem muito vigor. - Está melhor?

– Um pouco... - Ainda soluçava enquanto limpava um pouco do catarro que corria de suas narinas.

– Olha... Seu irmão pediu para que eu tome conta de você aqui dentro... Então, se precisar de algo que apenas ele conseguia dar... Não se inco-mode em pedir, tudo bem?

Afagou os cabelos médios, sedosos e negros da pequena Jolie, que torceu um sorriso disforme em sua face para disfarçar a tristeza que sentia. Não disse mais uma palavra. Beijou o rosto da fria armadura de Qlon e disparou pelos corredo-res, voltando a engasgar-se com o pranto.

“Naquela noite, os sonhos voltaram com força total. Eu estava em um salão circular, rodeado por seres de um incomparável espectro luminoso. Não consegui contar ao todo quantos eram. Eles pareciam sussurrar em minha mente algo que já não me lembro. Eu tinha pena, tinha remorso. Sentia que era errado eu estar ali, que era errado eu estar falando com eles. Mas ainda assim eu falava, expli -cava. Implorava que mudassem de opinião, mas eram irredutíveis. As ordens eram claras. Eu saí do recinto e fui cumprir com meu papel.”

– Como assim não posso aprender todos os feitiços existentes? - Qlon re-clamava enquanto ouvia lua explicar.

– Simplesmente por não existir um número certo de feitiços, somente isso. - Tentava acalmá-lo Lua. - Veja bem, claro que existem feitiços pré-mol-dados, mas são apenas conceitos. Aliás, todo o campo da magia é um grande conceito.

– Conceito? Como assim?

Qlon a infernizava com tantas perguntas. Não o culpava, ele estava na idade em que todas as crianças questionam seus pais sobre o mundo. A diferença era que, com ele, certas coisas não precisava explicar e outras geravam dúvidas em cima de mais dúvidas. Buscando em sua mente as palavras certas, pôs-se a res-ponder a indagação:

– Qlon, vamos supor que a magia seja um livro de infinitas páginas ainda sendo redigido, certo? Alguns conceitos que já foram colocados em práti-ca algumas vezes foram escritos neste livro e ganharam um nome. Mas ainda há infinitas páginas em branco, com os mais diversos tipos de má-gicas a serem descobertas. Entendeu agora?

129

Page 130: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

– Creio que sim... - Tentava assimilar a explanação enquanto admirava o teto repleto de estalactites da caverna que vivia.

– Então não há por que aprender todas as magias existentes até agora. E por isso mesmo estou mais preocupada em ensinar os fundamentos da magia ao invés de ensinar as que já existem. Assim você poderá...

– Criar as minhas próprias. - Completou.

– Exato! É por isso que os ensinamentos básicos que recebe antes de vir para a Base são tão importantes... Com isso, você compreende os funda-mentos da magia. Bem, como estou passando os conceitos do feitiço de movimentação, acredito que esteja na hora de passarmos para o próximo nível. Qlon, por favor, relembre o que já aprendemos.

– Quanto a movimentação, a como eu me mover em relação ao objeto e como mover o objeto em relação a mim.

– Correto. Agora, e se for para movermos os dois, acha que tem como?

Após parar um pouco para refletir, Qlon respondeu:

– Enquanto eu me teleportava eu nem sequer vi o tempo ou o que estava ao meu redor passar... Não sei ao certo, mas imagino que não.

– Errado. Apesar de sua concentração durante o teleporte estar focada apenas em você, é sim possível focar o cérebro em duas atividades si-multâneas, e iremos provar isso agora. O primeiro nível de movimento si-multâneo é o feitiço de troca. É bem simples: você troca de posição em relação ao objeto. As regras anteriores ainda valem. Quanto maior o ob-jeto, maior o esforço. Tem alguma ideia de como iniciar essa magia?

– Sinceramente? Nenhuma.

– Imagine os dois corpos reduzidos ao estado fundamental dos átomos. Um terá de tomar o lugar do outro, mas os filetes de energia que os transferirão não poderão se tocar em momento algum. MOMENTO AL-GUM! Espero que tenha ficado claro, ou seu corpo se fundirá ao de uma rocha e não queremos coisas similares no momento.

“Pratiquei o feitiço de troca e, em seguida, aprendi a movimentar um objeto para qualquer direção enquanto eu estivesse em teleporte. Novamente me exau-ri. Magias são algo muito, muito divertido. Manipular a matéria em si é extrema-mente agradável, mas cansativo. O esforço que é feito para concentrar-se é tan-to que algumas horas de coisas básicas podem levá-lo a um colapso. Mas en-fim... Após o treinamento, sentei-me ao lado de Lua para descansar.”

130

Page 131: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

– Está indo muito bem, Qlon. Creio que estará dominando a feitiçaria em muito pouco tempo. - Elogiou-o Lua.

– Obrigado, mestra. Pena que a magia me exaure ao limite. Não há outra forma para manipular os elementos?

– Com certeza há, e eu vou ensiná-lo mais para a frente. Chama-se ciên-cia. - Explicou.

– E qual é a diferença?

– Na magia, você usa sua energia mental para manipular os elementos. Na ciência, você manipula com energia física. É muito mais complicado: ne-cessita de mais recursos, de mais conhecimentos... Fora que seu uso, em comparação com a magia, precisa de muito mais tempo. Mas, em compensação, não cansa tanto quanto o uso de dons psíquicos. E possui uma vantagem: se acabar ampliando demais essa área do conhecimen-to, a própria ciência feita poderá criar mais ciência. Isso é chamado de automatização. Os humanos, por exemplo, desenvolveram a ciência até um ponto extremo antes do apocalipse. Tanto é que as outras raças – mesmo os elfos, detentores de habilidades ainda maiores – foram repri-midas pelo poder humano e tiveram de se ocultar para evitar a rejeição. A vida estava quase toda automática para eles, com toda sua tecnologia. Claro que, então, veio o apocalipse e varreu todo o planeta...

– Não! Não me conte o que acontece em seguida! - Pediu Qlon quase gri-tando.

– Ah, claro. Está lendo seu livro de histórias, não é mesmo? - Perguntou Lua com um sorriso materno em seu rosto.

– Sim, estou. E, pelo pouco que sei da história angelical, acredito que essa é a parte que vem agora. Não quero que adiante a história e estrague a minha surpresa...

– Entendo... - Lua consentiu. - Bem, acabamos o treino de hoje. Caso quei-ra ir para a biblioteca estudar, sinta-se à vontade.

Qlon sorriu, mostrando todos os seus dentes. Correu para dentro de sua caba-na para pegar a bolsa com os livros e, quando estava quase entrando no bote, Lua chamou sua atenção.

– Qlon... Eu sei que livro está lendo. Aliás, todos os anjos que já passaram de certa idade sabem desse livro. É importante conhecer a história ange-lical, por certo, e não repreendo que o leia, antes de prosseguir. Mas... Qlon, leu a nota que fiz da tradução, não leu?

– Sim, com certeza. - Afirmou.

131

Page 132: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

– Então sabe dos selos... Qlon, estive pensando por um tempo e... Esse li-vro não é nem um pouco comum. Quando li a mesma história, os nomes de Metatron e Sandalphon vieram escritos normalmente. Além do mais, selos são algo muito pessoal. Muito, MUITO pessoal. - Enfatizou. - O en-sinarei o motivo mais além nas aulas de magia. Sugiro que tome cuidado com eles... Este e o livro de Raziel.

– Já leu o livro de Raziel também? - Perguntou Qlon.

– Sim, óbvio. Todo anjo que preza conhecer um pouco sobre ele mesmo e sobre o sistema angelical precisa ler este livro. Só tenho a impressão que o seu é um punhado mais grosso do que aquele que eu li. Mas isso não importa. Qlon, nunca mostre esse livro para mais ninguém.

– Ótimo, não pretendia. - Respondeu Qlon friamente.

– Não brinque, criança. Isso é sério. Se uma pessoa que sabe usar a ma-gia contida nos selos tiver acesso a esse livro, sabe-se lá que caos pode-rá ser gerado. Evite a todo custo ser visto com ele.

Qlon escondia-o bem quando estava na biblioteca. Colocava-o dentro de um enorme dicionário para ler e só frequentava o recinto quando o mesmo encontra-va-se quase vazio. Raquel não costumava sair de trás de seu balcão e, mesmo assim, não ia incomodá-lo em seu “estudo”. Mas prestou bastante atenção quan-do ouviu a expressão “magia contida nos selos”.

– Falei um pouco demais, como de costume. - Respondeu Lua quando questionada sobre o assunto.

Eles já estavam dentro do bote navegando e Qlon remava enquanto Lua ia sentada na parte de trás. Era muito comum os alunos fazerem este “favor” aos mestres, que pagavam a eles com os ensinamentos. A chama da lamparina de Qlon iluminava seu caminho. Lua deu uma enorme pausa na conversa e, quando estavam quase nas escadarias, completou:

– Os selos são a marca de um anjo. Neles estão concentrados suas essên-cias, suas energias vitais. O selo é único e reflete quem ele realmente é e qual o seu propósito nos sete céus. Claro que nem todo anjo possui um... Apenas os mais fortes e mais importantes recebem sua marca.

– Energia vital? Mas mesmo um anjo estando morto ele pode possuir ener-gia vital?

A pergunta de Qlon não necessitou de respostas. Lua permaneceu em silêncio esperando seu pupilo recordar o que aprendera. Ambos conheciam a história que cercava Metatron e Sandalphon. Ambos conheciam como a energia dos corpos funcionava. Ambos sentiram os pelos de suas nucas se eriçarem em um calafrio.

“Suas almas podem estar vivas”, pensou o jovem anjo.

132

Page 133: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

Cap. 46 – Seal

uitas e muitas vezes Qlon indagou-se como que os poderes de Me-tatron e Sandalphon poderiam ter adentrado seu corpo se eles esta-vam mortos, mas jamais imaginaria que fora assim. Não sabia se

estava feliz por ter descoberto tudo isso ou revoltado por terem escolhido logo seu corpo. Como será que era o critério de seleção?

M– Isso faz tudo muito sentido... Muito, muito mesmo. - Falava Qlon aos ven-

tos, remando com vagarosidade.

– É apenas uma hipótese, Qlon, não se esqueça disso.

– Eu sei que sim, mas permita-me acreditar ser essa a verdade. Afinal, é uma hipótese que faz muito sentido. Ainda há muitos enigmas que não decifrei e prefiro acreditar que este está resolvido.

– Creio que os enigmas restantes ao que se refere estão mais a frente nes-te livro. Ande para a biblioteca e leia o resto todo de uma vez. Se bem me recordo da história que ele contém, está quase na metade da leitura, ainda.

Não disseram mais uma palavra. Qlon aportou e amarrou seu bote. Apagou a lamparina, enfiou-a na bolsa e, com sua pesada armadura ornada pela espada em sua cintura, rumou à biblioteca.

Terceira Era

Após a queda de Lúcifel, Nisroc fora culpado por ter desencaminhado os anjos. Como penitência, fora obrigado a vagar pelo mundo mortal para ver o estrago que tinha causado.

Com a criação dos demônios e sua proximidade com os mortais, logo eles viram que dois caminhos restavam: obedecer aos deuses e ter a alma imortalizada no paraíso ou aliar-se aos demônios e ter sua alma utilizada contra os deuses. Indecisos, os mortais se perderam durante muito tempo. Principalmente os humanos.

133

Page 134: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

Naquela época em maioria absoluta, a humanidade prosperou aproveitan-do-se de alguns conhecimentos celestiais da ciência passado a eles pelos demônios. Mas, em contrapartida, isso fez com que eles atingissem seu li-miar. A sociedade decaiu. A fé se perdeu. Falsos profetas surgiram de todos os lados, ludibriando as pessoas em tempos difíceis. Os humanos não mais tinham um propósito, algo pelo que lutar. Nem mesmo eles mesmos. Isso os jogou em diversas guerras, uns contra os outros. Foram levados à quase extinção. Quando toda a raça humana havia perdido as esperanças, veio a época da batalha final.

O Primeiro Apocalipse.

Céu contra inferno. Os anjos fizeram sua investida. Os maiores soldados do reino, os Sete Arcanjos, guiaram as tropas celestiais ao encontro do in-ferno ascendente que tomou conta do planeta. Mas as tropas de Lúcifer es-tavam preparadas e o embate foi duro. As realidades entraram em choque e, assim que os humanos viram o embate entre dois planos, readquiriam sua fé. Foram salvos da extinção pelos deuses, que tiveram deles piedade.

O embate durou muitos e muitos anos, e muitos anjos foram perdidos. No final, houve um empate. Mesmo com o poder dos serafins, as tropas celes-tiais, cheias de confiança, encontraram oponentes à altura. Os dois lados partiram em retirada. Ao reavaliar o que fora perdido durante a guerra, os anjos se deram conta que alguns dos sete arcanjos haviam desaparecido. Uriel, Michael, Raphael e Gabriel estavam perdidos. Os únicos restantes, Joriel e Haniel foram recebidos como heróis de guerra.

Mas os deuses ficaram ainda mais furiosos com Nisroc, pelo que aquele princípio “inútil” havia causado. Decidiram executá-lo, ou enviá-lo para o plano mortal e deixá-lo morrer entre a nova humanidade que nascia. Mas Haniel intercedeu por ele. Com seu prestígio entre o conselho dos treze se-rafins, implorou para que sua vida fosse poupada. Nisroc não havia feito nada além de sua função, e que não era culpa diretamente dele se alguns dos anjos haviam se desvirtuado. Sua alegação foi o livre arbítrio.

O grande conselho decidiu poupá-lo, desde que o mesmo ficasse tranca-fiado até a batalha final. E, como preço, retiraram o posto de Haniel e o re-duziram a um mero princípio. Tomaria o lugar do princípio dos humanos, e este último seria designado à antiga tarefa de Nisroc. Sendo assim, sobrou apenas um dos sete arcanjos, um príncipe, para comandar todos os sete céus. E a Jofiel foi dada a missão de zelar pelos sete andares.

Lembrou-se da imagem de Haniel. Aquele, com certeza, era um anjo soberano e justo. Haviam todos os motivos para que ele recebesse o título de líder das vir-tudes. Que ser benevolente! Aceitara perder um grande posto nos céus apenas para salvar um inocente. Agora também entendia por que Haniel fizera aquilo por ele. Sentia-se honrado em ter estado em sua presença.

134

Page 135: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

Mas o conselho dos treze serafins ainda tinha uma importante tarefa para cumprir. Após o apocalipse, as grandes raças voltaram a igualar-se em nú-mero. E, com os caídos ainda influenciando suas vidas, não demorou muito até que os mortais lutassem por poder. As raças entraram em conflito. O mundo tornou-se o puro caos. Deveriam tomar uma atitude drástica.

Para estabelecer uma base de comando próximo aos mortais, decidiram mudar de planos e batalhar. Uma batalha que, se fosse necessário, acabaria se estendendo pela eternidade, até que um dos dois lados cedesse. Os deu-ses aprovaram tal decisão. Com a permissão concedida, os treze criaram um continente que vagasse sublime acima das nuvens, longe dos mortais. Um continente que chamaria os demônios até a batalha, pelo controle do mundo. E então, os treze criaram o continente do “Selo”.

“Seal”, pensou Qlon. E aquele número de serafins... Aquilo não era estranho. A explicação deveria encontrar-se a seguir.

Sua criação demorara séculos, e não sem motivos. O continente seria, agora, uma ligação entre os dois planos. Ou seja, os demônios tinham seu motivo para invadi-lo. Recebera esse nome por ser o selo final entre dois planos. O primeiro plano, Shamain, caíra. Serviria agora de uma base de an-jos sobressalentes. E a entrada de ouro, que antes era do primeiro andar, passou a ser do segundo andar. As almas teriam de passar pelo primeiro plano, serem julgadas pelas virtudes e guiadas ao portão de ouro dos sete céus, serem julgados uma segunda vez pelo trono Hasmed, que de Sha-main fora transferido, e só então proceder ao Éden.

Os sete céus tiveram de se reorganizar. Mas, no fim, a medida provisória estava completa. Os anjos relutaram ao ser enviados para o plano mortal. As lendas sobre Sandalphon... Eles acabariam tornando-se mortais. No pla-no mortal, a energia vital de um anjo pode durar até mil anos, mas nada além disso. Mas os deuses prometeram que, após 900 anos servindo na guerra, eles seriam recompensados nos sete céus e readquiririam sua vida eterna. Claro, nem todos os anjos foram designados a lutar. Apenas os an-jos de classes menores e os arcanjos por mérito. Haniel e Jofiel permanece-riam em seu lugar de origem.

Mas ainda era pouco. Se nem mesmo treze serafins foram capazes de derrotar as tropas do inferno, então a guerra não acabaria tão rápido assim. O conselho tomou então outra decisão. Batalhariam junto aos anjos e ar-canjos, para garantir, se não a vitória, ao menos a não derrota. Os céus con-sideraram essa decisão preocupante, mas não discordaram de seu ponto de vista. Tornar-se-iam eles os líderes da guerra.

Mas, eis que os serafins eram poderosos demais. Para evitar o descontro-le, cada um deles deixou um pouco de seu poder nos sete céus. Guardaram com suas leais autoridades em uma sala do sexto céu, que recebeu o nome

135

Page 136: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

de “Sala do Poder Infinito”. Apenas os treze serafins poderiam adentrá-la para retirar o que era seu direito. Para garantir tal sigilo, trancaram a sala com a segurança de oito chaves. Cada chave foi dada a um dos tronos e, acima disso, a entrada foi protegida por uma forte mágica e guardada por dois querubins.

Sendo assim, os treze partiram então para Seal e criaram a cidade de Ae-ria. A primeira cidade. Cada serafim teve direito a constituir uma família, e cada família tinha direito a um castelo. Castelos que se encontravam dis-postos em forma circular, com o 13º ao seu centro. E, após estabelecida essa base, a terceira era chegou ao fim, sendo o marco do início de uma era de guerras entre céu e inferno.

O livro estava quase em seu fim. Qlon fechou-o. Estava na hora de sua refei-ção. Com o livro na bolsa, despediu-se de Raquel e tomou seu rumo pelos corre-dores do castelo.

– Ótimo. Já treinamos feitiços de movimento. E esses são a introdução das demais magias. A cinemática. Para a física, a cinemática é o início da compreensão da ciência. Assim também funciona com a magia. A feitiça-ria é a cinemática que o faz compreender o resto do mundo mágico. Mas, claro, os feitiços não são resumidos apenas nisso. Lembra-se do feitiço que ensinei para que escondesse suas asas?

– Lembro. Estou usando ele ainda agora, afinal.

– Diga: ele é relacionado com movimento? - Perguntou Lua, testando os conhecimentos de seu pupilo.

– Sim.

– E é resumido apenas nisso?

– Não. Eu preciso compactar as moléculas de minhas asas em um formato tão minúsculo que elas fiquem aderidas às minhas costas. - Explicou o fundamento.

– Exato. Então, feitiços também significam posicionamento das moléculas. Já aprendemos a movimentar essas moléculas, e você já aprendeu um pouco sobre posicioná-las, compactando-as. Bem, se já aprendeu a “apertar” as moléculas, o que acha que é o próximo nível?

– Uma magia de... Descompactação? - Perguntou, com receio de errar.

– Exatamente! E é isso que vamos estudar hoje. Se pode achatar molécu-las, compactá-las, também é possível espalhar essas mesmas molécu-las. O princípio já está explícito, não é? E Qlon, diga-me: no que isso

136

Page 137: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

acaba se diferenciando de um encantamento?

Qlon não queria responder àquela pergunta, então ficou calado enquanto es-perava Lua responder sozinha.

– Se no encantamento é necessária uma troca de energia entre aquele que faz e aquele que recebe a magia, por que é chamado de feitiço então? Ande, responda! Mesmo que erre, adquirirá conhecimento! Estou testan-do o que já aprendeu.

– Eu apenas manipulo a energia, mas não recebo um fluxo oposto...?

– Exato! Nossa, para quem não tinha ideia de como responder antes, aca-bou formulando uma resposta digna de livros de magia. Além do mais, - Complementou. - está aplicando a energia em seu próprio corpo, não precisa de um fluxo oposto. Mas estou apenas adiantando algo que aprenderá mais à frente... Uma magia que manipule um organismo opos-to precisa de um fluxo de energia correspondente. Agora, tenho mais uma charada para testar seus conhecimentos já adquiridos: por que ma-nipular elementos precisa de um fluxo de energia e esta prática é chama-da de encantamento? Senão, telecinese poderia ser considerada um en-cantamento, não é mesmo?

Lua era repetitiva no que ensinava, mas seu discípulo acreditava que fazia isso para que ele fixasse em sua mente aquilo que aprendia.

– Pois utilizamos da energia dos elementos para manipulá-los em encanta-mentos, e não apenas a matéria em si. Se manipularmos apenas a maté-ria mas sem utilizar sua energia, é um feitiço.

– Ótimo. Vejo que ainda lembra o que ensinei no primeiro dia. E eu sei que deve estar sendo enjoativo repetir isso, mas acredite: a prática de um en-cantamento é milhares de vezes mais difícil. Enfim, podemos começar? Vamos, descompacte as moléculas de uma rocha!

O final do dia chegou. Qlon estava muito mais exausto das outras vezes.

– Vai acabar de ler seu livro? - Perguntou Lua como quem já conhecia a ro-tina de seu aluno.

– Não, hoje não. Vou apenas jantar e ir dormir. Acabei não me movimen-tando muito, mas estou exausto.

– Sim, faça isso. Precisa recompor suas energias mágicas. Treinaremos isso por mais algumas poucas semanas. Ao contrário do combate, isso não é tão complicado e demorado de ensinar. Depois ministrarei algumas aplicações práticas. - Repassou em voz alta seu planejamento. - No co-

137

Page 138: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

meço do verão poderemos praticar um pouco de arte.

– É mesmo... - Ponderou. - Havia esquecido que ainda existe este ramo a ser estudado...

– Não fique triste. A arte é um ramo necessário, sabia? Estimula conheci-mento, lábia... Você é de uma família nobre, então por certo precisa sa-ber um pouco, ao menos. E relaxe. Com o tempo terá a arte como diver-são. Enfim, vá fazer sua refeição. Amanhã continuamos.

Lua pegou seu lampião e voou sobre as águas, desaparecendo no escuro. O dia lá fora estava acabando, e a luminosidade da caverna caía aos poucos com o céu parcialmente nublado. Qlon pegou uma toalha e rumou ao banheiro primeiro. Precisava de um longo banho.

O salão estava cheio de murmúrios e, desta vez, não eram sobre ele. Qlon es-tava sentado ao lado de Jolie mais uma vez. Pelo que conseguiu absorver dos comentários, os alunos de Silverius haviam recebido suas tarefas trimestrais. E se não estava enganado, Jolie era uma delas. Ela estava cabisbaixa enquanto fazia sua refeição. Como a criança curiosa que era, Qlon questionou o motivo.

– A missão que recebi de Silverius...

– Posso ver o papel?

Jolie moveu a cabeça afirmativamente e mostrou o pequeno bilhete à Qlon. Es-tava escrito:

Jolie Kristal

Sua missão é acabar com a infestação de Goblins, os duendes nascidos da terra que já expliquei em uma das aulas lecionadas, nas cavernas da passagem para a Base. Pode escolher, caso queira, um aluno para ser um acompanhante.

Atrás do papel estava a assinatura de Silverius: apenas um punhado de rabis-cos ilegíveis.

– Nossa. E já tem ideia de quem levará como parceiro?

Ela deu um tímido sorriso. Suas bochechas ruborizaram e ela encolheu o pes-coço entre os ombros de pele suave e branca. Qlon sabia o que queria dizer e também ficou meio que sem resposta. Queria continuar seu treino, ainda mais agora que estava aprendendo magia... Mas Heitor o pedira. Não poderia negar.

– Vai ser uma honra ajudá-la com sua tarefa, caso queira.

– Obrigada, Qlon. - Disse com sua voz fina e aguda. - Acho que a ajuda de um anjo que derrotou sozinho um anjo caído merece destaque especial.

138

Page 139: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

“Derrotou sozinho”. Aquela frase bateu nos ouvidos de Qlon e gerou um eco em sua mente. Não, não havia sido sozinho. Os poderes de Metatron o ajuda-ram. Mas daquela vez era diferente. Seriam apenas Goblins. Tinha certeza que era capaz de dar cabo daquilo, ainda mais com o treinamento recente.

– Amanhã o levarei até Silverius para que ele possa ver meu parceiro. Que horas estará livre amanhã? - Perguntou Jolie, parecendo um pouco mais animada.

– Ao anoitecer, pode ser?

– Sim, claro! - Respondeu imediatamente, não ocultando seu entusiasmo. - Poderia anunciar hoje mesmo, mas me sentiria envergonhada de anun-ciar isso aqui, com toda essa gente...

Seu sorriso aumentava. Qlon era inocente demais para entender o que aquilo significava, mas gostava de saber que ela estava superando a partida do irmão. Após terminarem seus pratos, despediram-se e retiraram-se, cada um para seu aposento.

– COMO É?! COMO ASSIM AJUDAR OUTRA ALUNA EM UMA MISSÃO?! - Lua estava indignada com a atitude de Qlon. - Por acaso acabou se es-quecendo que temos um treino rigoroso e que estamos com um crono-grama extremamente apertado?

– Mestra, você mesma disse que estou adiantado com magias. Além do mais, é algo que pode facilmente ser resolvido em algumas semanas, até mesmo dias. Por favor, deixe-me ajudá-la.

Lua lançava um olhar severo à Qlon. Um olhar frio como o gelo e penetrante como uma agulha. Mas, ao olhar para aquela face tão infantil, com olhos pratea-dos quase em pranto, não sentia forças para negar.

– Treinaremos hoje e amanhã darei um descanso para que você ajude a tal aluna... Jolie, acho que esse é o nome que mencionou. Mas tem ape-nas sete dias para isso, estamos entendidos?

– Sim senhora!

– E deixe que ela mate Goblins também. Se ela é aluna de Silverius e ele deu essa missão, então ela provavelmente possui meios de combater. E se quer uma dica de alguém que conhecia aquele lugar como a palma da mão, sigam os rastros de ossos.

Qlon não entendeu de imediato, mas sabia que iria assim que entrasse no emaranhado de túneis. Amarrou novamente seus fios, colocou seu elmo e, mais uma vez, treinou magias com sua mestra.

139

Page 140: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

O dia já havia caído. Qlon repousava sentado na grama aproveitando a doce fragrância da primavera. Pela primeira vez em muito tempo não usava sua arma-dura. Lua queria que ele sentisse como fora o treinamento e que se acostumasse com sua nova força. Estava com mais massa muscular. Muito mais para um ga-roto de sua idade. Seus bíceps e o abdômen estavam definidos, e o inchaço foi tanto que sua camisa estava apertada. Suas coxas e panturrilhas torneadas da-vam forma às calças que vestia. Quando Jolie e Silverius se aproximaram de onde estava, até pararam por alguns segundos. Estava completamente diferente do menino normal, de braços e pernas finas, que entrara a alguns meses.

– Vejo que o treino de Lua o fez bem, Qlon. - Disse Silverius, aproximando-se a passos curtos. - Este é o parceiro que decidiu carregar consigo, se-nhorita Kristal?

– Sim, é. - Disse Jolie sorrindo.

– Eu prometo tomar conta de sua discípula, senhor Darian. - Disse Qlon, intrometendo-se no assunto. Como reverência, curvou-se.

– Olhe só! - Surpreendeu-se Silverius. - Usou meu sobrenome, que formal. Bem, Jolie, creio que seja uma excelente decisão carregar consigo o anjo prodígio que conseguiu matar um caído. Ele com certeza poderá salvá-la caso entre em perigo.

Qlon sentiu a ironia nas palavras de Silverius, mas preferiu não brigar por tão pouco. Continuou curvado, aguardando a decisão do vice-diretor.

– Muito bem, possui minha permissão, Kristal. Mas lembre-se: quem está sendo testada aqui é você. Goblins são monstros fracos, então espero que acabe, ao menos, com mais da metade deles. E você, - Dirigiu a pa-lavra à Qlon. - lembre-se que estará lá apenas como suporte. Pode aju-dá-la a matar um ou dois Goblins, mas isso não contará em nenhum pon-to extra para você. Estamos entendidos?

– Claramente, senhor Darian.

– Ótimo. - Silverius virou as costas. - A missão de vocês começa amanhã. Por hoje, acampem aqui.

– Aqui fora? - Perguntou Qlon, espantado.

– Sim. Será um ótimo exercício buscarem por alimento e aprenderem a le-vantar acampamento. Lições básicas de sobrevivência. E Qlon, não sei qual o motivo do espanto. Se esteve mesmo em uma missão de caça por três meses, deveria saber melhor do que ninguém como levantar acam-pamento e buscar mantimentos. Agora os deixarei a sós. Boa sorte.

140

Page 141: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

Silverius acenou de costas enquanto rumava voando até o bote que trouxera os dois. Ele estava certo. Talvez fosse uma boa forma de ensinar a Jolie como fa-zer essas coisas básicas. Armar uma fogueira, buscar frutas ou carne, levantar uma tenda ou mesmo dormir próximo a raízes, reclinado em troncos. Podiam até mesmo usar os galhos das árvores. Mandou que ela buscasse por frutas ou pe-quenos animais enquanto ele procuraria por galhos secos.

Ao redor de uma fogueira bem montada, estavam alimentados. Como estava cedo demais para que as árvores dessem seus frutos – afinal, mal haviam chega-do na época de flores – precisaram recorrer a alguns esquilos e coelhos das ma-tas. A carne não era muita, mas o suficiente para que não passassem fome. Ago-ra, em baixo do céu estrelado e de nuvens dispersas, esperavam o sono chegar. Não demoraria muito para Qlon, o treinamento o exaurira. Ainda assim, tentou puxar conversa por algum tempo:

– Então, o que aprendeu sobre os Goblins? - Indagou Qlon, quase boce-jando tamanho seu cansaço.

– Aparência, comportamento, táticas de ataque que usam quando sozi-nhos, quando em bando, como atacá-los, como contra-atacá-los... - Enu-merou Jolie.

– Uau! Silverius é mesmo um professor dedicado. - Interessou-se.

– Bastante. Diz ele que também nunca conheceu uma garota como eu. Não sei até agora se é um elogio ou uma ofensa. - Deu curtas risadinhas.

– Tratando-se dele, não duvido que sejam ofensas.

– Não estou tão certa. - Ponderou Jolie. - Reparei que quando ele costuma ofender os outros alunos, eles se enchem de raiva e faz com que treinem mais...

– Quer dizer que a falta de educação dele é o combustível para aprimorar o aprendizado?

– Não entendi metade do que quis dizer, mas pelo seu tom de voz, creio que sim... - E riu abafando a boca com a própria mão.

– Quis dizer que... Ah, esqueça. Vamos dormir, está tarde. Amanhã tere-mos um longo dia pela frente. Você trouxe seu material básico de sobre-vivência? - Perguntou olhando para a bolsa que ela portava junto ao in-separável uniforme que todos os alunos eram obrigados a trajar.

Jolie ergueu as sobrancelhas como quem estivesse em dúvida. Por certo, ali dentro só estavam suas armas. Crianças... Seria uma longa missão dada para duas crianças: uma racional até demais e outra completamente imatura.

141

Page 142: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

Cap. 47 – Força Monstruosa

lvorada. O sol nem mesmo raiara no distante horizonte e eles já esta-vam de pé. Iluminados pelo lampião de Qlon, seguiram rumo à caver-na. A guarda tinha turnos, então o anjo ruivo não chegou a reconhe-

cer o novo segurança do portal. Jolie retirou o papel de sua bolsa – papel que dava permissão de sua passagem – e entregou ao guardião da passagem. Ele leu e, sem demais palavras, retirou-se do caminho, deixando-o livre. Apesar do crescimento muscular que tivera, Qlon ainda sentia-se muito insignificante ao olhar para os adultos. Era psicológico ver seus semblantes muito acima de sua estatura encarando-o de olhos baixos. Ao olhar para o guarda, mesmo sabendo em seu íntimo que poderia vencê-lo com alguns movimentos, sentiu-se pequeno, ínfimo. Estava ansioso por crescer. O quanto antes possível.

A

“Eu seguia na liderança com Jolie em meu encalço. Logo no penhasco, pude ver a diferença entre minha força e a de minha parceira. Pude alçar a outra parte com um simples pulo. Nem sequer fiz muita força. Jolie ficou boquiaberta e veio logo atrás, voando. Andamos pelo longo corredor de archotes e, por fim, alcança-mos a passagem estreita cercada de cavernas em todas as paredes.”

– E agora? - Perguntou Jolie. - Voar?

– É uma opção. Mas lembre-se que estamos em uma caverna cheia de enormes estalactites e que elas podem cair com o mais leve ruído. É mais seguro procurarmos uma entrada mais próxima do nível do caminho e eu vou dá-la impulso com meus ombros.

A luz do archote não iluminava todo o ambiente, mas era possível ter uma no-ção do que estava na penumbra em um raio de cinco metros, se muito. As pare-des estavam infestadas de buracos não muito grandes. Um metro de diâmetro, talvez. Por serem crianças, seria mais fácil arrastarem-se por eles. Provavelmen-te a missão era por conta disso. Adultos ficariam entalados ali dentro. Além do mais, eram Goblins. Ninguém tem medo de Goblins ou sequer se preocupa com eles, a não ser aventureiros fracos. Eles eram, em si, mais uma fonte de teste para alunos. Facilmente capturáveis, facilmente mortos. Eram bestas razoavel-mente evoluídas, que podiam brotar em qualquer lugar. Tendo animais pequenos ou até mesmo vermes para que se alimentassem, aqueles pequenos e deforma-

142

Page 143: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

dos humanoides poderiam criar imensas colônias rapidamente, como coelhos. Diziam as lendas que tais repugnantes corpos foram criados através de cruza-mentos... Nada convencionais, por assim dizer. Aliás, a maior parte dos monstros – vale ressaltar que as bestas selvagens, animalescas por natureza, não se en-quadram neste grupo seleto – fora originada assim. Fruto de pecados devassos entre seres de espécies diferentes. Mas esse não era o foco.

Ao chegarem perto de uma das cavidades mais próximas do estreito caminho que os levaria para o lado de fora da Base, Qlon entregou a lamparina à Jolie. O buraco estava a cerca de dois metros e meio do chão.

– Ande, suba em meu ombro. Eu darei impulso. - Disse o jovem anjo, aga-chando-se.

– Está mesmo tudo bem? - Perguntou sua parceira, receosa.

– Não se preocupe. Minha armadura era muito mais pesada, lembra?

Com as pernas trêmulas, lutou para equilibrar-se o suficiente no curto espaço de terra abaixo de seus pés entre uma enorme parede e o vazio. Apoiou a perna esquerda sobre o ombro direito de seu acompanhante e pegou impulso para co-locar o outro pé. Qlon ergueu-se com incrível facilidade.

– Está alcançando? - Perguntou Qlon abaixo dos pés de Jolie.

– Quase. Só consigo me apoiar em meus dedos.

Ficou então na ponta dos pés e Jolie conseguiu escalar.

– Ótimo. Agora vire-se com a lamparina e deixe-me ver onde o buraco está para que eu possa pular.

– Vai ser meio difícil, Qlon. O buraco é muito estreito. Mesmo assim, não está iluminado o suficiente para que possa ver?

Apesar de parte da luz ser visível, mesmo encoberta pelo corpo de Jolie, a in-clinação não era a mais favorável para o jovem herói perceber qual era a cavida-de que deveria entrar. A parede do desfiladeiro fazia quase um ângulo reto. Esta-va acima dele, e disso estava certo. Virou-se de frente para a parede e, com um impulso fraco, chegou ao buraco e deparou-se com as nádegas de Jolie viradas para ele.

– Já estou aqui, prossiga. - Pediu, sentindo-se um tanto desconfortável.

“O uniforme das meninas era um pouco mais diferente dos meninos, ao menos quando os meses quentes chegavam. Ao invés de continuarem usando calças, como os meninos, que eram obrigados a isso, podiam colocar saias ou bermu-das mais curtas. Não, ela não usava saia, apenas uma bermuda que chegava aos joelhos. O que não deixava a situação menos constrangedora. Por que moti-vo contar isso? Fins descritivos.”

143

Page 144: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

Rastejaram pelo longo e sinuoso caminho por horas, até chegarem a uma ga-leria subterrânea um pouco maior.

– Os Goblins fizeram tudo isso? Impressionante! - Exclamou Qlon ao ob-servar a cavidade de mais de dois metros de diâmetro.

– Na verdade, ainda não viu nada. Goblins que habitam regiões montanho-sas costumam fazer verdadeiros labirintos. - Explicava Jolie.

– Você estudou muito sobre eles, não é mesmo?

– Mas é claro! Um bom lutador deve conhecer seu oponente, é o que di-zem. - Respondeu com sagacidade.

“Acho que foi neste exato e singelo ponto que comecei a nutrir algum bom sen-timento por aquela criança que chorava ao sentir a ausência do irmão maior. A pureza e naturalidade com que ela dizia aquelas palavras de sabedoria, como quem entendesse do que fala ao invés de ser apenas mais um aluno que diz tais citações por repetição para, talvez, conquistar algum falso apreço de seus supe-riores... Não. Ela sabia o significado do que dizia. Mesmo sendo vezes mais ino-cente e menos intelectual do que eu (que a modéstia vá aos infernos), ela colo-cava sentimento nas palavras. Eu podia sentir isso no seu tom de voz fino e, por vezes, irritante.

Também senti alguma consideração – mínima – por Silverius. Estava conhe-cendo ele de outra forma. Uma forma que eu ainda não havia visto, ou não que-ria ver pelas traumatizantes experiências passadas. Apesar de sua aparência com uma entonação de superioridade, sempre menosprezando seus alunos, ele fazia isso por um motivo. E lecionava bem. Talvez tenha realmente ficado frustra-do em não ser meu mestre. Em sua visão, eu poderia ter sido o aluno ideal para moldar. Apenas talvez.”

Qlon tocou a Sanctus com a ponta dos dedos. Pôde sentir o pano que laçava seu cabo. Ouvira ruídos ecoando pelo ambiente. Fez sinal para que Jolie silen-ciasse. Sussurrou:

– Pode ouvir?

Sua parceira balançou a cabeça negativamente. O som parara e, aos poucos, o anjo ruivo voltava a colocar uma expressão normal em seu rosto.

– O que acabou de ouvir são ecos. Eu acho.

Qlon consentiu. Se aquelas criaturinhas moravam abaixo do solo em um gran-de complexo de túneis, muito provavelmente escutariam ecos de suas atividades.

– Vamos continuar. - Liderou Qlon. - E procure por ossadas no caminho.

144

Page 145: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

– Ossadas?

– Sim. Minha mestra me aconselhou. Isso deve deixar o rastreamento mais rápido. Vamos logo, quero acabar isso ainda hoje, se possível.

Jolie soltou leves risadinhas com a mão tapando sua boca.

– O que é tão engraçado? - Qlon perguntou, confuso.

– Nada. Só o fato de você ser um tanto apressado. Enfim, vamos.

E Qlon foi na frente, tomando a lamparina das mãos trêmulas de Jolie.

Um longo e incômodo silêncio se abateu sobre eles. Até mesmo suas pegadas eram abafadas pelo ambiente. Qlon seguia com a mão sobre sua arma. Jolie mantinha as suas guardadas em sua bolsa. Quebrando o silêncio, o ruivo per-guntou:

– O que Silverius ensinou sobre o comportamento dos Goblins?

– Não muito. Vivem em bandos, como animais. Dividem certas tarefas em grupos. Alguns caçam os alimentos, outros vigiam a “cidade”. Machos e fêmeas desempenham as duas funções. Fêmeas prenhas são mantidas em repouso absoluto. Podem ter duas gestações por ano, e geram de três a cinco crias por ninhada. E Silverius disse que promovem orgias na época do acasalamento, mas não sei o que significa.

Qlon pensou em explicar a definição que encontrara no dicionário, mas não queria poluir a mente de sua parceira com a terrível cena gerada por sua imagi-nação. Deixou o silêncio cair entre eles mais uma vez por algumas horas.

– Olhe, Qlon! Ossos! - Exclamou Jolie em um tom alto o suficiente para ge-rar uma ressonância.

Qlon examinou os ossos largados no solo. Quebrou um deles.

– Ossos de pássaros. - Ponderou.

– Como sabe, Qlon?

– Ensinamentos básicos de biologia. Os ossos são pneumáticos, com cavi-dades em seu interior, mais leves, deixando o voo mais simples. Se eles caçam aves, devem possuir armas de longo alcance.

– Nossa... Brilhante dedução lógica! Parece um detetive!

Qlon olhou para os lados sem dar atenção aos elogios. A trilha seguia por um outro túnel menor na parede. Examinou-o com a lanterna. Ele parecia descer

145

Page 146: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

bruscamente.

– Devemos escorregar por aí? - Perguntou Jolie com uma expressão de nojo. Não era para menos, o túnel estava repleto de uma camada de muco amarelado e o odor proveniente era demasiado forte.

– Bem, pelo que parece... Sim. A não ser que tenha uma pista melhor para seguirmos. Caso contrário, podemos ficar dando infinitas voltas por aqui esperando encontrá-los na sorte.

Jolie calou-se, mas ainda sentia certo nojo em descer por ali. Não tinha ouvido falar nada sobre um muco amarelado de Silverius.

– Qlon... Sem querer menosprezar seus conhecimentos, mas... Isso parece mais um túnel de dejetos. Vamos seguir a trilha no caminho inverso, po-demos ter um lugar menos nojento para entrar.

“Aceitei tal observação. Também não queria entrar por aquele túnel asqueroso. Com isso, seguimos a ossada na direção oposta.”

Por vários outros túneis tortuosos, de diversos tamanhos, entraram. Já deveria estar anoitecendo e ambos estavam com fome. Conseguiram se alimentar de al-gumas frutas que guardaram na bolsa de Jolie, mas não fora o suficiente para sa-nar seu desejo. Precisavam encontrar logo o tal esconderijo e finalizar suas mis-sões o quanto antes.

– Ouviu isso? - Perguntou Qlon, novamente parando em um túnel grande o suficiente para andar de cócoras.

– O quê?

Qlon não a culpava. Depois de passar semanas trancafiado e sofrendo algu-mas torturas em uma prisão completamente escura e silenciosa, adquirira senti-dos sobrenaturais.

– Há algo nesta direção. - Afirmou com exatidão.

– E agora? - Jolie parecia preocupada.

– Agora entramos lá e os dizimamos. Ande, apague o lampião.

– Mas se eu apagar...

– Eu sei, não poderá enxergar mais nada. Mas, ao contrário de você, eu poderei guiar-me pelos meus sentidos. Apague o lampião e segure minha camisa, eu a guiarei até o esconderijo deles. Precisamos pegá-los de surpresa.

Hesitante, Jolie apagou a fonte de luz e agarrou forte a blusa de Qlon. Ele a

146

Page 147: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

puxou por muitos metros de um caminho cheio de curvas, até que avistaram uma fraca luz ao fundo. Qlon parou. O ruído que aqueles seres desprezíveis faziam era relativamente baixo. Mas audível se prendesse sua respiração para escutar. Com cautela, andou ainda mais devagar. A medida que a luminosidade aumenta-va e os cegava, eles podiam avistar a cavidade que alçavam. Qlon esguiou sua cabeça para vislumbrar o local de repouso dos Goblins.

Era uma enorme cúpula de mais de cinquenta metros de diâmetro, sustentada por dois troncos de árvores gigantes e com meio metro de espessura. Do topo ao solo, cerca de vinte metros. As paredes ao redor tinham mais buracos que um pedaço de queijo. A dica fora realmente útil. Poderiam ter ficado exaustivamente perdidos naquele complexo subterrâneo. No chão, uma enorme fogueira crepita-va. Folhas secas revestiam o solo para que eles dormissem. Carcaças de ani-mais mortos estavam jogados pelos cantos em estado pútrido e um animal quei-mava no fogo enquanto os nojentos esverdeados faziam uma dança tribal ao re-dor das chamas.

– Eles só comemoram assim quando a caça foi bastante proveitosa. - Sus-surrou Jolie ao ouvido de Qlon. - Devem ter pegado um grande animal.

A espinha de Qlon gelou. Estava torcendo para que seu estimado lobo não fos-se o prato principal de criaturas tão repugnantes. A raiva subia em sua cabeça quando, para sua sorte, percebeu que aquilo girado no espeto por dois goblins mascarados não parecia passar de um macaco.

– Como vamos atacar? - Chamou-o à atenção Jolie.

– Temos duas opções. Esperar que todos durmam e assassiná-los a san-gue frio quando se cansarem e dormirem ou...

– Ou? - Fez um semblante de preocupação.

– Ou podemos pular agora ali dentro e acabarmos com todos eles em uma batalha sangrenta.

– Qual você prefere? - Perguntou Jolie, prevendo a resposta.

Qlon sacou a espada e balançou a cabeça para ela, como quem a convidasse para participar.

– Mas... - Hesitou.

A criança de cabelos pretos tomou um longo suspiro de olhos fechados e en-cheu seu pequeno ser de coragem. Balançou a cabeça em resposta, afirmativa-mente, e retirou seu arco de combate da bolsa.

– As bolsas ficam, buscaremos depois. - Ordenou Qlon. - No três?

– No três. - Consentiu.

147

Page 148: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

Qlon tomou fôlego. Contou rápido e alto, prendendo a atenção dos pequenos duendes verdes, para irem com a adrenalina no sangue. Ele foi o primeiro a to-mar impulso. Com um salto voraz que deixou um pouco de poeira para trás, em um piscar de olhos pousou no solo, com a cabeça do goblin a suas costas saindo do minúsculo corpo, deixando o sangue gosmento pulsar pela ferida. Os outros duendes recuperavam-se do susto inicial e tentavam colocar-se em modo de combate, pegando suas espadas, machados, adagas e arcos rústicos. Qlon di-vertia-se em ver eles correndo, instintivamente tentando manter-se vivos em meio ao perigo. Jolie foi mais lenta e desceu planando. Parou ao lado de Qlon enquanto os soldadinhos ainda se aprumavam.

– Consegue lidar com aqueles às minhas costas? - Perguntou Qlon.

– Sim, só não sei defender as flechas.

– Então vamos eliminar os arcos primeiro, certo? Ataque! - Gritou com todo seu fôlego.

Correram em direções opostas, brandindo suas armas. Qlon nem se voltou para ver se Jolie estava em perigo. Com sua Sanctus em mão, deu início a carni-ficina. Estava tão rápido e forte que tudo o que fazia era deslizar “suavemente” a espada pelos corpos dos inimigos e estes tinham suas metades separadas. Os-sos quebrados e sangue espesso e esverdeado, um pouco mais escuro que suas peles enrugadas. Cabeça, pernas, braços. De vez em quando cravava a arma, parava por alguns segundos para respirar e continuava com a chacina. Não pou-pava fêmeas prenhas, filhotes, ou até mesmo os que aparentavam maior idade. Aos poucos, passava a se sentir, acima de tudo, um monstro, assim como eles. Mas, no fim, ordens eram ordens. Alguém precisava cumpri-las.

“Lembrei-me então da pergunta sobre o bem ou o mal que Lua me fez e, antes dela, de Justiça me perguntando algo semelhante. Afinal, o que é certo e bom para nós deve ser certo e bom para os outros ou não passa de egoísmo? Tantas perguntas assombram minha mente até hoje... Sentia que meus conceitos muda-vam aos poucos. Ainda não sabia se tornavam-se melhores ou piores.”

A espada azulada incinerava a carne e soltava no ar uma fumaça cinzenta. Qlon perdera as contas ao passar do quinquagésimo, e eles não paravam de vir. Quanto mais matavam, mais saiam do buraco nas paredes. Olhou para Jolie pela primeira vez em três minutos. Ela estava cercada, mas mantinha a concentração e, aos poucos, eliminava os montes que cercavam-na. Sentindo que a luta estava demasiado simples, Qlon pensou em tentar criar uma nova técnica. Mas, em sua imaginação, precisaria de uma espada maior.

“Naquele instante eu descobri um dos maiores mistérios de minha arma. Ao pensar em criar uma técnica que necessitasse de uma espada razoavelmente maior (do tamanho de uma montante), pensei em expandi-la usando o pouco de

148

Page 149: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

feitiçaria que conhecia. Em tese era possível com uma espada comum, mas sua lâmina ficaria tão fina quanto uma folha de papel. Ainda assim, em meio aquele massacre fácil, não deixei de tentar. Reuni um pouco de concentração me afas-tando dos demais. Com minha mente procurei reorganizar as suas moléculas. E foi então que eu descobri o que Nisroc me falara anteriormente: minha arma pos-suía matéria infinita. Ou seja: eu poderia reconfigurá-la na escala que eu quises-se, da forma que eu quisesse. Ela ia manter sempre a mesma massa e a mesma quantidade de matéria. Não sabia até então se havia um certo limite. Ainda as-sim, era uma invenção grandiosa. A melhor arma já criada, sem sombra de dúvi-das.

Após tê-la transformado no armamento que eu queria, dei início a minha 'técni-ca': matar uma grande fila de goblins com o mesmo golpe. Tudo bem, eu sei. Mi-nha criatividade não era lá das maiores com essa idade...”

Após ouvir o estrondo, Jolie voltou-se para Qlon. Ele empunhava sua espada, ou o que parecia ser ela. Era uma montante enorme, deveria ter o dobro do ta -manho de seu amigo apenas com a lâmina. O golpe havia tocado o solo e, com sua força assombrosa, rasgado dez goblins. Após a “técnica especial”, ele fez a espada voltar ao tamanho original. Em seu segundo de distração, ela sentiu uma pontada de dor forte na barriga. Um goblin cravara a faca em seu abdômen. Pen-sou em gritar mas o ar deixara seus pulmões em um gemido sem som. Passou a lâmina de sua arma no pescoço de seu atacante e deixou-o com a cabeça por cortar, apenas com metade do pescoço dependurada sobre seu peso para trás. O suficiente para matá-lo, mas ainda assim uma cena desnecessária.

Recuando, ela se aproximava de Qlon. Tirou a faca do abdômen e uma quanti-dade considerável de sangue jorrou da ferida. Qlon virou rapidamente os olhos para checar quem se aproximava. Notou que sua companheira estava lesionada. Não restaram muitos oponentes. Precisava acabar com os que restaram o quan-to antes para socorrer sua parceira posteriormente.

“Eram apenas oito deles. Quatro usavam simples adagas. Dois usavam ma-chados pequenos e outros dois algo que eu poderia descrever como... Um 'proje-to' de espada. Grandes demais para serem adagas, pequenas demais para se-rem espadas de uma mão. Ao menos adequavam-se aos seus tamanhos. Não havia tempo para esperar contra-ataques: deveria usar uma investida total! Corri para o mais próximo deles, que segurava um machado. Abaixei o corpo e o cor-tei ao meio. De um salto peguei impulso para o próximo, à minha direita. Girei so-bre meu eixo e o decapitei com minha lâmina, sem dar tempo que reagisse. Mi-nha velocidade aumentara tanto que eu podia fazer tais movimentos tão rápido quanto eu pensasse em realizá-los.

Um deles tentou atacar-me. Com sua adaga tentou perfurar uma de minhas coxas. Chutei a ele para longe com força, fazendo com que batesse em uma das paredes e lá ficasse. Para completar, atirei minha espada, que cravou no centro

149

Page 150: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

de sua testa e lá ficou fincada. Já não me sentia desconfortável sem ela. Havia aprendido a matar apenas com as mãos e os pés. Técnicas de contusão, torção e imobilização. Não há arma mais perigosa que o próprio corpo. Afinal, é ele que move todas as outras armas, não é mesmo?

Um outro tentou montar em minhas costas, mas enfiei minha mão em sua bar-riga enquanto ainda estava no ar e retirei-a, agarrando suas entranhas, antes que ele começasse a cair. Morto antes de sequer tocar em mim. A metade já ha-via sido facilmente vencida. Os quatro restantes encolhiam-se cada vez mais à sua insignificância. Dois deles vieram juntos. Como estavam lado a lado, decidi amassar seus dois crânios, um contra o outro. Minhas mãos ficaram sujas com aquilo que deveria ser seu sangue. Restavam apenas dois. Um ficou em cima dos ombros do outro e tentaram atacar-me como uma dupla. Conveniente, pois só assim poderiam se aproximar de minha estatura. E mais conveniente ainda pois poderia matá-los em conjunto. Reunindo forças, usei os dois braços para golpeá-los de cima até em baixo em uma vertical perfeita com os punhos cerra-dos um contra o outro. O que estava em cima partiu o crânio instantaneamente e morreu mais rápido. O que suportava seu igual acabou morrendo mais lentamen-te. Primeiro os ossos de suas pernas cederam. Em sequência foram sua coluna e seu crânio. Tempo decorrido: cerca de vinte segundos.

A cena não era das mais belas. Goblins eram oponentes fracos, e aquela vitó-ria não me trouxera prazer por sua facilidade. Céus... Eu fui acometido pela mes-ma insanidade temporária de meu pai... Retirei a espada de meu progenitor da cabeça do goblin cravado na parede, limpei a lâmina na flanela que sempre car-reguei comigo e embainhei-a novamente, sentindo vergonha de mim mesmo.”

– Ai! Isso dói! - Gritava Jolie enquanto Qlon dava pontos no buraco em sua barriga.

– Estou quase acabando. Não seja fraca agora.

Qlon precisou criar uma agulha dos destroços de armas largadas pelo chão, resultado do choque das armas dos oponentes contra sua virtuosa espada. Para arrumar linha ele apenas desfiou um pouco de sua calça. Os primeiros socorros que Lua ensinara para cuidar de suas feridas durante os treinamentos certamen-te foram úteis. Ao acabar o serviço, deixou-a em repouso e reduziu as chamas da lareira retirando um pouco de madeira de sua base. Agora a luminosidade não mais atrapalharia seu sono. Mas, mesmo deitado sobre as folhas e com o calor da lareira impedindo que o frio noturno tomasse conta de seu pequeno corpo, Qlon não conseguia dormir. Sentia-se enojado de si mesmo. Distraiu-se exami-nando o local enquanto refletia sobre seu estado selvagem de antes. As paredes não eram repletas apenas de buracos, mas também de inscrições. Em enoquia-no. Cada vez menos as coisas faziam sentido. Mas, bem no fundo, pensava que estava tudo interligado. O destino se encarregara de carregá-lo até ali...

150

Page 151: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

Cap. 48 – Encontro Destinado

ombras dos cadáveres projetadas nas paredes escavadas limitavam a compreensão daquilo que estava gravado, além de dar ao ambiente um cenário ainda mais tenebroso. Parte das letras ainda fora coberta por

terra ou fora arrancada nas escavações. Eram runas escritas em rocha e pinta-das com uma tinta amarelada, já toda encardida e descascada. Mas, do pouco que conseguiu ler, traduziu:

SAqui... sacrificou... Aeria... difíceis.

Aqui... lutou... seus dias... justiça.

Aqui... fez... sete céus... retribuído.

Aqui... igual... esta inscrição.

Aqui jaz Filipos, o anjo que caiu e ressurgiu. O guardião dos tempos es-quecidos.

Esta última, e mais importante frase, parecia estar intacta dada a sua proximi-dade ao nível do solo. Qlon não entendeu nada do que aquilo significava, mas... “Aqui jaz”. Aquele lugar era, por certo, um túmulo. Olhou para Jolie. Dormia cal-mamente enquanto recuperava suas feridas enfaixadas com pedaços de suas vestes. Por certo ela perceberia agora o quanto era importante andar com itens de sobrevivência. Decidiu explorar o lugar por si só.

“'Aqui jaz'. Por certo, aquela era a câmara mortuária. Mas além da terra e dos corpos mortos, nada mais havia acima do solo. Palha cobria o chão. E ainda ha-via o enorme tronco de árvore para sustentar o teto. Tantos lugares para procu-rar... Pensei: 'Se eu fosse criar um túmulo para um herói, colocaria acima ou abaixo da cripta? Parecia mais óbvio que eu colocasse acima, em uma posição de honra. Tomei meu lampião e o acendi nas chamas da fogueira. Voando silen-ciosamente, vistoriei o teto: o único lugar que parecia não ter muitas cavidades. Ao examinar com cuidado, notei que, ao contrário do que eu pensava, o tronco não estava lá para apoiar o teto. Estava para fechar um buraco. A minha explora-ção silenciosa acabaria ali se eu não tivesse uma boa ideia o quanto antes. E, para minha sorte, ela veio.”

151

Page 152: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

Sacou a Sanctus o mais silenciosamente possível, suavizando o movimento para que a lâmina não ruísse na desembocadura da bainha. Com um golpe sur-do, cortou o tronco o mais rente possível ao teto na proximidade de seu encaixe e, com destreza e força inigualáveis, empurrou a metade de baixo com tenacida-de. Quando alguns centímetros da superfície da metade superior ficaram visíveis, precisou usar sua agilidade. Empurrou a metade superior para cima e segurou a de baixo, impedindo que ela caísse.

“Com o máximo de cuidado que pude, administrei uma descida da parte de cima com o reclinar da parte de baixo em alguma parede. Tive de ajeitar com cui-dado para que o grosso tronco não despencasse e esmagasse Jolie em seu sono. A parte de cima era bem pequena. Cerca de vinte, trinta centímetros de al-tura. Coloquei-a no chão e me dirigi ao novo caminho que eu tinha encontrado. Quando passei pelo buraco, me deparei com um corredor.”

O corredor se estendia em apenas uma direção. Ao lado da entrada, uma es-cada de cordas jazia enrolada no chão, presa a duas estacas na parede. O cami-nho à frente se resumia em escuridão plena. Sua lamparina iluminava o suficien-te apenas para revelar uma canaleta de óleo. Ela seguia pela extensão do corre-dor que deveria levar aonde o corpo repousava. Acendeu o líquido inflamável cautelosamente para não queimar as mãos. Aos poucos, o caminho com um forte odor de querosene queimada revelava-se. Parecia apenas uma antecâmara co-mum, mas bem extensa. Era um corredor esculpido dentro de uma forte rocha, talvez o principal motivo para os Goblins não terem esburacado aquela parte de seu esconderijo. Suas paredes e teto eram adornados por imagens gravadas nas rochas perenes. Apagou sua fonte de iluminação.

A medida que Qlon seguia com seus passos, as imagens formavam uma histó-ria. Apenas imagens. Sem palavra ou runa qualquer, a vida de um anjo, provavel-mente a de Filipos, era descrita ali. Ele nascia cercado de chamas, ascendia aos céus, matava dezenas de demônios sozinho e então morria atacado por um anjo. Antes de uma espessa porta de madeira, com cerca de cinco metros de altura e três de largura, uma estátua de Filipos guardava o final do caminho. Nem sequer se movia. Uma manta rasgada cobria apenas suas partes íntimas. Seu braço di-reito erguia-se acima de sua cabeça, e sua mão fazia o formato de uma concha, como se estivesse segurando algo. Aos seus pés, um anjo caído parecia rogar por perdão, deitado, levantando seu braço esquerdo enquanto seus dedos esta-vam dobrados e abertos, indicando uma possível dor.

Qlon abriu a porta, que rangeu e gerou um grande eco naquela galeria subter-rânea. Uma luz forte recheava o novo recinto, com uma espessa poeira levanta-da no ar após ter sido aberta. Era uma sala semiesférica – quase como uma abó-bada – com um pequeno buraco em seu topo. A luz solar entrava por ali e espa-lhava-se, iluminando um caixão de pedra de tampa entreaberta. Entreaberta. Com cuidado, aproximou-se. O recinto, ao contrário dos anteriores, não portava inscrições ou desenhos esculpidos em seus muros de rocha natural, com uma

152

Page 153: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

provável infiltração dado os musgos em um certo canto. Apenas o caixão em seu centro e nada mais. Colocou-se na ponta dos pés e olhou para dentro do esquife, tremendo. Nem mesmo os ossos estavam ali dentro.

– Se está procurando algo, Qlon, saiba que meus ossos não estarão ali dentro. - Uma voz espectral soou e Qlon virou-se imediatamente. - Meu corpo foi completamente desintegrado e seu único resquício... Sou eu.

A voz vinha de um vulto de longa capa negra. Não possuía pés. Flutuava com o final rasgado de sua manta esvoaçando como se estivesse pegando fogo em pleno ar. Suas mãos estavam cobertas por uma longa luva de couro negro. O rosto estava coberto pelas sombras e apenas seus brilhantes olhos avermelha-dos e longos cabelos brancos estavam visíveis.

– É uma honra receber sua visita, apesar de parecer um tanto inesperada e prematura pela sua idade. - Prosseguiu. - Presumo que já saiba sobre mim. Precisamos ter uma longa conversa. Vi que estava lendo o Livro das Eras.

– Na verdade... - Disse, ainda desconfiado. - Não devo ter chegado nesta parte ainda, pois de nada sei sobre sua vida.

– Ah, é uma lástima... - Disse o vulto com uma voz pesarosa. - Então, eu deveria contá-lo o final do livro ou prefere que leia?

Qlon ainda estava tentando associar as novas imagens em sua mente infantil enquanto aceitava o fato de um morto estar – possivelmente – falando com ele. Por fim, um estalo em sua cabeça fez com que recordasse:

– Você! - Disse de súbito. - Foi você que me salvou no segundo céu!

O vulto deu uma gostosa gargalhada.

– Creio que sua mente está pregando peças, Qlon. Acha mesmo que foi eu que o salvou? - Filipos aproximou-se dele e passou o braço em seu cor-po. Sua forma etérea atravessou-o. - Como poderia eu ter salvado sua vida se sequer posso tocá-lo? Aquele que o salvou ainda permanecerá um mistério para você por algum tempo.

As informações vinham em quantidade significativa e o jovem herói não conse-guia assimilá-las ao mesmo tempo.

– Como... Como assim?

– Em minha forma etérea eu não posso tocar em ninguém, apenas entrar em sonhos e possuir corpos já existentes. É um tanto desconfortável, mas é a única forma que tenho de comunicar-me com o outro plano.

– Que plano? - Perguntou, mais confuso que tudo.

153

Page 154: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

– O terceiro plano, o plano dos vivos. No momento, estou em um encontro do quarto com o terceiro plano, apenas para falar com você. - Deu uma pausa em sua fala. - Você. A criatura mais importante deste mundo, mas uma das poucas que ainda não possui pleno conhecimento disso. Eu sou o final do Livro das Eras, Qlon.

Percebeu então que o invasor de seus aposentos finais nada estava entenden-do. Com um sorriso sincero e uma voz suave, pediu desculpas e também para que ele se acalmasse, pois explicaria tudo aos poucos desde o início.

– Por onde deveria eu começar...? - Indagava o espectro sem mover-se um centímetro de sua antiga posição. Qlon sentou-se próximo ao esquife, ainda parecendo desnorteado.

– Comece pelo princípio. A sua história.

– Ah, a minha história... - Uma pausa dramática se fez no ambiente. - Ela foi perdida a tantos e tantos anos... Dez milênios não foram o suficiente para apagá-las?

– Dez milênios? - Lembrou-se da conversa dos diretores tempos atrás. O fato do aluno com classe tripla perfeita. Seria ele?

– Qlon... Sei que será difícil de acreditar, mas... Eu fui o último filho de Lú-cifer com Lillith. Eu nasci no inferno como um anjo caído.

Qlon não ficou tão surpreso. Até fazia certo sentido dada a forma espectral dele – em um julgamento apenas pela aparência. Mas absorvia a história com calma, para que não perdesse nenhum detalhe.

– Como o último príncipe do inferno em uma linha de sucessão, meu trei-namento fora dedicado ao combate. Seria, no futuro, um general. Mas, em trinta anos de treinamento, nunca fui ensinado a questionar...

– Espere! - Pediu Qlon com urgência. - Antes que continue sua história... Conte-me: como era Lúcifel?

– Lúcifer. O sufixo “el” ele abandonou após a queda. Bem... Eu nunca o vi.

– Como assim?

– Restritos eram os demônios que podiam vê-lo. Nem mesmo generais mantinham contato direto. Lillith era sempre a intermediária de suas or-dens expressas. Então não posso dizer como ele era. Mas ouvia de mi-nha mãe que ele era um anjo caído muito autoritário e impetuoso. Posso prosseguir?

– Pode.

154

Page 155: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

Filipos virou as costas para Qlon e contemplou o vazio. Retomou do ponto onde havia parado, prosseguindo com uma voz ainda calma:

– Nunca havia sido ensinado a questionar. Apenas a seguir ordens. Algo em que diferimos muito, você foi condicionado a pensar por si só e fazer suas próprias escolhas. Eu não. Fui obrigado a matar, torturar... E tam-bém já fui muito torturado de maneiras impróprias para uma criança como você ouvir, mesmo após passar aquele sofrimento nos sete céus.

– Acompanhou-me para lá também?

– Não, não posso entrar em nenhum dos planos espirituais ou vagarei o resto de minha vida por lá. Apenas li sua mente.

– Seus poderes são incríveis para uma alma errante. - Surpreendeu-se.

– São os mesmos que os seus. A diferença é que tenho dez mil anos de experiência, e você apenas cinco – quase seis. Um dia aprenderá a usá-los, estou certo. Mas, prosseguindo com meus relatos... Como já devo ter revelado sem querer, possuo os mesmos poderes que você. Os de San-dalphon e Metatron.

– Então como é possível coexistirmos com os mesmos poderes únicos?

– Qlon, eu estou morto. Melhor: em uma dimensão diferente que eu mes-mo me isolei.

– Como assim?

– Se parar de me interromper, poderei continuar meus relatos e então po-derá entender. A escolha é sua.

Qlon calou-se e voltou a engolir suas dúvidas. Muito provavelmente estariam todas resolvidas antes do final daquela longa conversa.

– Após matar alguns anjos em guerras seguintes, comecei a perguntar, de forma espontânea, o motivo de meu nascimento e por que eu demonstra-va poderes tão estranhos em reflexos momentâneos. Após pesquisar um pouco, vi que não encontraria a resposta junto aos caídos. Então...

– Ascendeu. - Completou Qlon.

– Exato. Foi algo único. Fui o primeiro a ascender para os céus, e até ago-ra, o último. No começo foram receosos, mas eu demonstrei realmente desejar a redenção. No começo, fui para os sete céus ser torturado em Machen – nem sei quanto tempo fui enclausurado por lá, parecia uma eternidade. Depois, passei algumas décadas em exílio para pagar por meus crimes contra os anjos. Quando voltei para Seal, a sociedade rejei-tou-me. Mal conseguia conversar com os mercadores. E então, fui para a

155

Page 156: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

Base. O aluno perfeito. Por já ter tido uma formação inicial em combate, pouco treinei neste ramo. Desenvolvi muito meus dons mágicos e aper-feiçoei minhas habilidades sociais – algo que demorou bastante por con-ta de minha origem. Aos poucos, virei um lorde.

– Isso que é superação de verdade...

– Talvez. O real problema começou quando fui para os campos de batalha defender os anjos. Os demônios, que até então haviam dado a mim como desaparecido, viram minha traição. No primeiro ano, a batalha foi fácil. O segundo foi um dos mais difíceis de minha vida. Acredite ou não, o caído Gabriel, meu tio, foi pessoalmente aniquilar-me.

– Espere! Pare aí mesmo! - Qlon gritou. - Gabriel? O irmão gêmeo de Lúci-fer que havia desaparecido durante o apocalipse?

– Ele mesmo. A lábia de meu pai era impressionante. Os dois irmãos que supostamente se matariam voltaram a lutar pelo mesmo ideal. No caso, um ideal diferente. Gabriel era um dos sete arcanjos, então deve imagi-nar o trabalho que tive para acabar com ele.

– Você o matou? Nossa... - Espantou-se.

– Matar eu não consegui, mas venci. Apesar disso, não fique tão surpreso. O poder que antes corria – e de certa forma ainda corre – por minhas veias é o mesmo que preenche seu corpo. Quando der conta disso, po-derá realizar feitos incríveis. Mas seu poder ainda não é pleno, precisa desenvolvê-lo. E a vida o ajudará... Mas enfim... Após matá-lo, os céus decidiram recompensar-me por ser o exemplar soldado que eu era, e en-tão eu a recebi. Sanctus, a espada sagrada. Estranhei de início por não ser da descendência de Midael. Mas, por possuir parte dos poderes de Sandalphon e Metatron, as coisas se esclareciam. Durante uma década de batalhas, Seal conquistava boas vitórias. Mas após o fim de um perío-do de glória, sempre chega o período de decadência. Assim como você, questionei-me sobre os sete céus e sua justiça. Foi então que eu vi... Os dois lados estavam mais sujos que uma praça cheia de pombos.

– E então? O que fez?

– Pedi para Midael tirar minha vida com minha arma e permanecer com ela. Afinal, os céus nunca mantiveram um controle muito bom sobre este continente, então jamais saberiam que a espada retornaria para seu dono original. Eu sentia que... Minha missão verdadeira não estava em vida. Morri como um herói.

Qlon não engolira direito aquele final e aquela desculpa, mas percebeu que não adiantaria questionar de uma forma mais aprofundada sobre sua morte.

156

Page 157: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

– E qual acha que é sua missão hoje?

– Você.

Qlon não moveu os músculos faciais por não ter uma expressão a demonstrar. Ensaiou algumas palavras, mas o ar estava preso no pulmão e, ao não passar por suas frágeis cordas vocais, não emitiu som algum. A única coisa que conse-guiu expressar após um momento de dúvida foi:

– Por quê?

– Qlon, sabe o que é o quarto plano?

– O tempo? Ou o plano espiritual?

– Sim e não. Aqui o tempo é o mesmo que o seu, mas o plano é realmente um que apenas espíritos podem entrar, mas não é o mesmo que o dos sete céus. Bem, sabe o que são a primeira, segunda e terceira dimen-são, certo?

– Claro.

– Imagine uma esfera. Esta esfera, então, é largada sobre uma folha de papel e a atravessa, mas sem rasgar sua superfície. Se alguém pudesse ver do segundo plano, ou seja, o pedaço de papel, o que veria?

Após pouco pensar, deu a resposta que Filipos esperava ouvir:

– Um ponto que aos poucos vai se expandindo em um enorme círculo, e então começa a regredir e, depois, desaparecer.

– É a mesma coisa para nós, do quarto plano. Atravessamos esta “folha”, que é o terceiro plano. De nossa visão superior, podemos analisar tudo que acontece no terceiro plano, como para você seria um estudo de figu-ras bidimensionais. Aqui podemos compreender o verdadeiro sentido de nossa existência e analisar a vida alheia.

– Então, basicamente, a forma que está agora permite que possua um co-nhecimento maior sobre nós, os vivos, do que nós mesmos?

– Exato. Para você, somos os fantasmas. Invisíveis aos olhos mas que, vez ou outra, atravessam a linha de seus olhos. Enquanto estamos nesta forma de quantidade existencial indefinida, temos o privilégio de analisar tudo que se passa com vocês, e nos mínimos detalhes. E, para ser sin-cero, acredito que existam mais dimensões além da que estou agora, en-clausurado por mim mesmo, mas não sei como as mesmas funcionam.

– Então pode analisar o fluxo de nosso mundo? E o que descobriu?

– Várias coisas, e por isso moldei o tempo o melhor possível para que ti -

157

Page 158: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

véssemos esse encontro. Invadi sonhos, me apoderei de corpos tempo-rariamente... Tudo para que pudesse vê-lo. Eu tenho um pedido, Qlon. Deixe-me ser seu mentor espiritual.

– Mentor... Espiritual?

– Sim. Quero acompanhá-lo e ensinar os meus conhecimentos. Estou cer-to que poderá recebê-los!

– Isso seria... Magnífico, e ao mesmo tempo estranho. Mas... Já que pode analisar as almas, diga: analisou as almas de Sandalphon e Metatron?

– Desculpe, mas elas são impossíveis de ser analisadas. Ou acha que também não tentei encontrar a origem de todo este caos? Formulei algu-mas teorias: eles podem estar em um plano ainda superior ao quarto pla-no... Ou...

– Ou...?

– Podem nunca ter existido.

– A segunda hipótese pode ser descartada, não é?

– Qlon... Imagine comigo algo que não está em nenhuma das dimensões que podemos conhecer... E ao mesmo tempo parece estar em todos os cantos. Como poderia analisar algo tão complexo e tão disperso? É im-possível. Mesmo que nós cumpramos nossa missão aqui, neste universo de prováveis planos e dimensões infinitas, corremos o risco de jamais sa-ber o que os impulsionou e o que nos levou a estar onde estamos. As en-grenagens que nos manipulam são complexas demais até para um co-nhecimento inacabável.

– Isso foi profundo...

Um longo silêncio se fez sobre eles. Meditaram cada um nas palavras que fo-ram assimiladas enquanto inspiravam e expiravam um ar sujo. Por fim, Qlon fez as perguntas que sentia necessidade de fazer:

– Bem, e o que acha que eu deveria aprender agora, meu guia espiritual?

– Em primeiro lugar, é uma honra que permita eu ser o seu guia espiritual. O que eu queria ensiná-lo hoje... São poucas coisas. Aos poucos vou passá-lo mais ensinamentos, e somente quando minha presença for ne-cessitada. É muito difícil comunicar-me com o seu plano. Por hoje, quero que entenda dois conceitos.

– Quais?

– Uma tem relação com sua arma e outra possui intimidade com sua vida. Qual desejaria saber primeiro?

158

Page 159: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

– Sobre aquilo que possui relação com minha vida, claro!

– Seus poderes – originados de Sandalphon e Metatron – ficarão mais for-tes à medida que for envelhecendo. Não apenas por sua experiência. Fiz uma conta e... Seu poder máximo se manifestará exatamente um dia an-tes de sua morte, corporal e espiritual. Até lá, poderá ter apenas alguns lampejos do que é o poder real que está reservado para você.

– Bem... O problema é descobrir o dia que vou morrer.

– Isso é algo que não posso responder, é apenas algo originário de meus intermináveis cálculos, frutos de dez milênios de estudos. E agora? De-seja ouvir sobre sua arma?

– Sim, claro.

– Ela não é apenas uma arma. Mas vai muito além do que já conhece. Ela funciona como um espelho e recipiente de almas. Não sei se foi o pro-cesso de forja ou o sangue derramado sobre ela. Sei que ela pode engo-lir almas e revelar a forma verdadeira da alma dos seres. E... Acho que está na hora de contá-lo... Qlon, a sua alma – sua verdadeira alma – já não habita mais o seu corpo.

– COMO É? - Gritou surpreso, sem preocupar-se com os ecos.

– Qlon, para as almas e os poderes de Metatron e Sandalphon tomarem seu corpo, elas precisam de um espaço vazio.

– Mas são duas almas em um único recipiente!

– Na verdade três. - Continuou explicando Filipos. - Para que mais de uma alma tome um “recipiente”, como mencionou, é necessário que elas este-jam fundidas. Lembra-se quando olhou para a lâmina da Sanctus pela primeira vez?

As vagas imagens de seu reflexo sumindo, mesmo que por um instante, toma-ram suas memórias.

– Sua imagem desapareceu, não é? Em uma fração de segundo, como um piscar de olhos, a Sanctus sugou sua alma, fundiu com as almas dos pri-meiros gêmeos e jogou esta mistura para o corpo que está usando. Só pude ver essa cena uma vez, então fui cauteloso em estudá-la. Estranho mesmo é uma arma ter vontade própria, acho que os gêmeos ainda pos-suem poder sobre ela de alguma forma.

Lágrimas de uma mescla de ira e tristeza encheram os olhos de Qlon, cuja re-volta gritava por seus dentes cerrados. Sentia que suas crises existenciais ape-nas agravavam com o passar daquela interminável e torturante conversa. Con-testava, cada vez mais, a necessidade de sua existência.

159

Page 160: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

Cap. 49 – Aceitação

azio. O único estado capaz de descrever a força de vontade do jovem anjo. Uma tristeza imensurável unida a um profundo vazio. Saber que “perdera” a alma o abalara profundamente, como se recebesse um

soco na altura do esôfago e, de uma vez só, perdesse todo o ar dos pulmões.V– E... Como saberei se eu ainda sou eu mesmo? - Perguntou Qlon, de ca-

beça abaixada entre os joelhos, quase entrando em prantos.

– Como assim?

– Há mais de uma alma fundida à minha neste exato instante! Como vou saber se o que eu sinto é aquilo que eu sentia antes? Como vou saber se a vida que estou vivendo é a minha verdadeira vida? Céus... Eu sou uma aberração...

– Ah, crianças... - Resmungou Filipos. - Você está pensando agora? Você está respirando? Você ainda possui suas antigas memórias? Se a res-posta para todas as perguntas for sim, você ainda existe e está no con-trole deste corpo, então acalme-se. - Completou, resoluto.

Qlon usou sua manga para secar as lágrimas que aos poucos brotavam em sua branca face suja de uma mescla de terra e sangue esverdeado. Sentia falta de um banho quente para botar os seus pensamentos em dia.

– Isso é tão complicado... - Resmungava Qlon enquanto começava a sentir frustração.

– Na verdade, é simples. Pense que duas almas acabaram se unindo à sua, mas que, mesmo com esta fusão, a alma dominante é a sua. Como os genes de suas células que determinam suas características. Pode en-tender assim?

As lágrimas saíam, mas Qlon apenas fungava. Não gemia ou ruía. De maneira adulta, secava-as com sua roupa suja, ainda frustrado.

– É estranho... - Dizia.

160

Page 161: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

– Estranho... O quê? - Perguntou Filipos, sem saber como lidar com uma criança.

– Sentir que fui, de certa forma, violado.

– Está é uma palavra muito forte e com diversos significados, Qlon. - Disse entre dentes. - Digamos que foi apenas... Uma possessão temporária. Temporária e necessária.

– Temporária? - Resmungou, quase soluçando. - E por acaso eles preten-dem devolvê-la?

– Sim. Antes que morra. - Respondeu. - Ou acha que tais almas poderosas vão deixar que sua alma as arraste para onde quer que seja? Eu não te-nho mais as almas deles junto à minha, apenas alguns resquícios, como se fossem rastros de sua passagem por mim... Justamente por isso en-trar em contato com seu plano é tão difícil.

– E se eu for imortalizado nos sete céus? - Foi uma pergunta tão randômi-ca e de probabilidade tão remota que nem mesmo pensou no que saía de sua boca.

– É mais provável que morra antes pela vida que está destinado a levar. Qlon, você consegue mudar seu caminho, mas nunca seu destino. Esta-rá destinado a levar uma vida sangrenta, ver tudo desmoronar ao seu re-dor, todos os seus amigos morrerem... E tudo isso por algo que você nem pediu. E que nem mesmo nós, que partilhamos dessa mesma car-ga, ainda descobrimos o final.

– Não... Não posso fugir disso, posso?

– Não. - Novamente, resoluto.

“Foi então que, ao me sentir possuído, finalmente o que restava cair da minha ficha... Caiu. Eu não tinha – e jamais teria – controle total sobre minha vida e so-bre minhas ações. Ao contrário de todos os outros, eu estava destinado a fazer coisas que eu não queria, a assumir uma responsabilidade que eu não pedi. A vida em si é assim a maior parte do tempo, mas nos dá uma falsa ideia de liber -dade. Podemos escolher nossas roupas, andar para onde quisermos e, em tese, fazer o que queremos. Mas sempre estamos atados a responsabilidades. Poucas ou muitas, pequenas ou grandes. No meu caso, a minha responsabilidade era apenas uma desconhecida, mas tão grande e pesada que me puxava para o fun-do de uma fossa abissal... Mas ainda estava longe, muito longe, de eu conseguir aceitar tudo isso.”

– Achei que havia aceitado isso. - Dizia Filipos. - Achei que após sua via-gem aos sete céus e após ler os primeiros capítulos do Livro das Eras, estava pronto para aceitar aquilo que era imposto. Não acredito que errei

161

Page 162: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

ao ler sua mente. Achei que estava pronto.

– E o que o faz acreditar nisso? O que o faz acreditar que eu estaria pronto para carregar tal fardo? - Perguntou Qlon, claramente atordoado. - Acha que por eu estar destinado a ser rei de Seal algum dia eu deveria estar acostumado a assumir uma responsabilidade tão grande quanto doar a minha vida por uma causa... Por... Por algo que nem é minha culpa? Eu deveria gostar e aceitar sem qualquer tipo de reclamações que minha vida seja usada para uma vingança? Por uma história que nada tem a ver comigo? Então, o que o fez achar que eu estava preparado?

– Não levante sua voz com arrogância, jovem insolente!

Filipos jogou o capuz para trás em um acesso repentino de fúria. Seu rosto de linhas suaves e finas pôde, finalmente, ser visto. Um rosto pálido, de nariz alon-gado, base fina e ponta arrebitada. Quase não possuía maçãs do rosto. Suas bo-chechas eram ossudas. Queixo fino e curto, testa longa e solene. A parte direita de seu rosto era gravada por uma grande cicatriz, que cortava parte de sua ore-lha e parava apenas um pouco abaixo do lábio inferior. Provavelmente adquirida em um confronto. Seus olhos rubros soltavam faíscas e pareciam arder como o fogo do inferno que o dera a luz.

– Tolo! - Ergueu ainda mais a voz. - Não me desafies. Apesar de eu encon-trar-me apenas como um espírito nesta forma, ainda possuo muito mais experiências do que sonharias adquirir em um século de vida. Posso possuir seu corpo, invadir seus sonhos e dar-te pesadelos de cenas que não veria nem mesmo no inferno. Sou capaz de possuir cada nervo seu e fazer com que sintas uma dor tão lacerante que rogues pela morte!

Seu corpo etéreo e flutuante aos poucos incinerava-se. Mas, ao ver seu com-pleto estado de fúria, acalmou-se. Sentiu-se envergonhado de ter liberado suas emoções para uma criança que, mesmo sendo racional, ainda infantil.

– Desculpe. Como pôde ver, a raiva é algo que ainda não posso controlar com perfeição. Uma vida no inferno possui seu preço. - Ajeitou suas ves-tes e recolocou seu capuz. - Qlon, eu também não pude escolher. E, se não pode fazer isso por dois seres que jamais conheceu, arrume um mo-tivo mais nobre para tal.

– Que motivo eu deveria usar, então? - Perguntou, ainda assustado com a demonstração de ira mais aterrorizadora que já havia visto.

– Não sei. Busque um. Se eu contasse o motivo que usei para seguir em frente, provavelmente se aproveitaria dele. É você que deve decidir como vai seguir. Mas dou uma dica: Se não pode prosseguir apenas por você mesmo, não poderia prosseguir pelos outros? Aqueles próximos de você?

162

Page 163: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

– Este foi seu motivo?

– Não preciso contar, preciso?

Qlon finalmente levantou-se do chão imundo e bateu em suas nádegas tentan-do limpar o pó que aderiu às suas vestes. Caminhando sem rumo e mantendo a cabeça baixa, começou a entoar com a voz fraca, como se falasse para ele mes-mo:

– Antes eu vim para cá pensando em virar um soldado poderoso, como meu pai. Pensava em ajudar não somente meus entes queridos, mas também a todos do reino. Talvez, acabar esta guerra e ajudar todo o pla-neta. Fazer justiça, por fim. Após ir para os sete céus e retornar de lá com vida – algo que até mesmo me surpreendeu – eu já não sabia mais quem eu era ou o qual era o meu objetivo, então passei a adaptar meus sonhos de tal forma que, independente do que viesse, eu poderia seguir com meu plano original. E agora isso...

– Mas, o que isso tem de mais? Do mesmo jeito poderá tornar-se um sol-dado! Do mesmo jeito vai poder lutar pelo que queria lutar antes! Qual é a grande diferença?

– A grande diferença é que eu não sei mais o que é primário ou secundá-rio. Não sei meu destino real, nem o que sou. Se você, que estava no mesmo lugar que estou agora, está morto e ainda não sabe de que valeu sua vida, por que raios eu saberia?

– A grande diferença é que pensa demais para um garoto de sua idade, por mais prematuro que seja. A diferença é que, apesar das frases bem trabalhadas e das palavras selecionadas cuidadosamente, ainda é muito jovem e inexperiente. As perguntas que deveria fazer agora são se não seria bom aliar um prazer, em primeiro lugar, a uma obrigação. Ou se, após a fusão, você realmente mudou tanto quanto, parecendo um hipo-condríaco, acha que mudou. Não culpe seus gostos por aliarem algo que passaria um dia a ser obrigatório, mesmo que não soubesse disso em dado instante. Você está vivendo, e se acha que não pode tomar suas próprias decisões, então eu estava errado. Errado em achar que estaria pronto e seria digno de receber meus ensinamentos, meus conselhos.

Qlon apenas escutava o sermão de seu novo guia em silêncio, enquanto cada palavra era absorvida no mesmo passo em que seu coração batia. Sabia que ele estava certo e que, no fundo, estava dramatizando demais.

– Quando olho para você, sabe o que eu vejo? Eu vejo a criança que eu nunca fui, mas desejei ser. Eu vejo uma criança esperta, que poderá crescer e chegar próxima a um deus. Eu vejo uma estrada ampla aberta à sua frente. Vejo alguém que possui todas as chances do mundo para

163

Page 164: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

realizar feitos heroicos. Vejo um ser que pode superar-me, tanto em po-der quanto em realizações. Eu vejo alguém que pode acabar com os ci-clos. Tanto o das guerras, promovendo a paz, como o da justiça, punindo os verdadeiros culpados por toda a desgraça. É isso, exatamente isso, que eu vejo quando olho em seus olhos.

“E aquele era meu novo juramento: aceitar todas as imposições da vida sem ti-tubear daquele dado instante em diante. Inflei meu peito e sequei resquícios de lágrimas em minhas vestes, onde também assoei o nariz, estava árduo respirar. Filipos olhou para mim, provavelmente imaginando que eu encontrara a respos-ta. Não o motivo para seguir em frente, ou a solução de um mistério. Mas eu fi-nalmente sabia responder o caminho que iria seguir, e sem titubear. Eu estava vivo. Eu estou vivo.”

– Filipos, como a sua alma sobreviveu tanto tempo para que pudesse con-tatar-me? E onde está meu pai agora, pode responder?

Filipos abriu um sorriso por debaixo das sombras que cobriam sua face.

– Minha missão aqui está terminada.

– Espere, não respondeu minha pergunta. E... Quando voltarei a vê-lo? - Perguntou Qlon, pesaroso.

– Assim que precisar. Estarei contigo até o teu fim. Por enquanto, é um breve adeus, Qlon Warrior Eros.

Uma repentina escuridão abateu-se sobre a sala sepulcral e logo a luz solar re-tornou. Ele havia sumido. Qlon olhou para sua cintura, onde sua espada repou-sava, majestosa. Sim... Ainda restavam muitas perguntas sem respostas. Muitos mistérios para decifrar. Por agora, aqueles eram motivos suficientes para que continuasse a lutar.

– Qlon, onde você estava? Pensei ouvir mais alguém. Estava conversando com quem? - Perguntou Jolie quando Qlon retornou. Ela aparentava es-tar acordando naquele instante. Conveniente.

– Ah... Creio que estava sonhando. - Tentou disfarçar. - Eu saí para explo-rar os túneis enquanto dormia.

– E encontrou algo? - Sua voz ainda estava carregada de sono.

– Um longo túnel e uma outra galeria, mas nada que mereça sua atenção. Por agora, volte a dormir. Amanhã iremos voltar para casa.

Não precisou repetir a sugestão. Jolie voltou a reclinar sua cabeça no pequeno amontoado de feno que usara como travesseiro. Qlon fez o mesmo. Trouxe a bol-sa para perto do corpo, abraçando-a, e caiu em um profundo sono.

164

Page 165: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

– E então, Qlon? Como foi na missão?

Lua estava no salão principal quando encontrou-a, com os cabelos presos e concentrada em sua refeição: grãos de arroz e um enorme pedaço de presunto defumado. Vestia trajes informais. Uma camiseta azul-celeste de botões aperta-da, que definia ainda mais os seus seios, uma saia de seda branca, com baba-dos e sem estampa e uma sapatilha, fixa aos seus pequenos e delicados pés com uma meia, também branca, que chegava à altura de seus joelhos, por baixo. Por certo, deveria ser estranho vê-la em trajes tão comuns.

– Fui bem, eu acho. - Olhou para ela com um olhar enigmático, e proferiu uma pergunta. - Mestra... Por acaso teve algum sonho estranho antes que me permitisse ajudar Jolie?

Lua pareceu não dar muita atenção àquela pergunta. Apenas meneou a cabe-ça negativamente, como se aquilo não importasse. Olhou então para Silverius, que tinha sua refeição afastado dos demais. Ele retribuiu o olhar. Um olhar neutro e ao mesmo tempo penetrante, como quem invadia sua alma. Ele. Logo seu olhar retornou à Jolie, que estava à sua frente apresentando o relatório da tarefa que concluiu.

– Os treinos... - Dizia pausadamente sua mestra, de boca cheia. - Retor-nam apenas... Amanhã. Por hoje, tome um banho. Está fedendo como fe-zes de goblins.

Ela estava certa.

– Lembra-se de onde paramos o treinamento?

“Como era bom estar de volta naquela minha casa solitária, no subsolo de um grande castelo. Aquela caverna nunca havia significado tanto para mim. O sol batia na água límpida e seu reflexo iluminava aquelas rochas perenes, esbran-quiçadas e cheias de lodo. Passei a admirar mais o pouco que possuía e o pou-co que conquistei e, aos poucos, era impulsionado pelo desejo de conquistar ain-da mais. De significar mais. De ser mais.”

– Ei, Qlon! - Chamou-o à atenção sua mestra. - Está sonhando? Ande, di-ga-me onde paramos com os treinamentos.

– Acho que foi com feitiços. - Pensou. - Aprendi a compactar e descompac-tar objetos.

– Oh! É mesmo. - Exclamou, surpresa por lembrar. - Bem... Acho que já aprendemos demais sobre feitiçaria. Depois voltamos com isso se neces-sário... Vamos para o castelo! É hora de finalmente treinar suas habilida-

165

Page 166: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

des sociais e, quem sabe, torná-lo um pouco menos chato. - Sorriu. - Ah, e pode retirar sua armadura por hoje.

– Muito bem. Qlon, quando falo de “habilidades sociais”, qual é a imagem que se forma em sua cabeça infantil?

Lua o arrastara para uma sala com alguns instrumentos. Um cavalete, ferra-mentas de artesanato, alguns aparelhos musicais, como um piano no canto, latas de tinta e potes com pincéis, uma forja antiga, ainda com uma bigorna e um mar-telo, instrumentos de pesquisa, um telescópio voltado para uma das janelas... E uma grande bagunça. Quadros antigos cobertos por pedaços de panos encardi-dos pelo tempo, papéis jogados pelo chão e pela única grande mesa da sala, grande e circular, vários banquinhos de madeira caídos no chão e dispersos pelo recinto.

– Não sei. Prática de conversação? - Respondeu devagar e receoso.

– Não está de todo errado. Ainda assim, incompleto. Que tipo de conver-sas? Qual é o significado de conversa?

– Comunicação. - Respondeu de pronto seu aluno, sem muito entusiasmo.

– Exato. Mas, de que formas podemos nos comunicar?

Ao olhar para a sala com mais atenção, ele podia ver o que ela queria dizer.

– Os mortais não estão restritos apenas às palavras para que possam inte-ragir entre si. Podemos usar, também, a arte. A ciência. Tudo que possa transmitir uma mensagem. Aumentar suas habilidades sociais está muito além de melhorar sua conversação. Tem a ver com melhorar todas as suas perícias que possam ter uso em uma sociedade, que possam ser usadas de uma forma comunicativa.

Como a louca que era, Lua passou a bailar pela sala com piruetas enquanto dava suas explicações.

– Está tudo bem, mestra?

– Não pode sentir, Qlon? - Dizia ela de forma prazerosa.

– Me perdoe, mas... Da última vez que passou a bailar assim, nos colocou em uma bela enrascada...

Lua soltou uma sonora gargalhada, mas não se importou com o sarcasmo de seu aluno. Ela parecia estar aproveitando cada segundo de sua dança maluca enquanto abraçava o vento, seu parceiro.

– Sinta, Qlon, toda a arte deste ambiente. Sinta, relaxe e inspire-se. Hoje

166

Page 167: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

eu quero que crie algo. Qualquer coisa. Um discurso, uma carta, um de-senho, uma música... Quero que se deixe levar por este ambiente que é uma folha em branco.

– Mestra... Realmente gosta de arte, não é? - Estava ficando razoavelmen-te assustado.

– Ah, Qlon... Fui obrigada por Freutz a aprender diversas coisas que não fazia questão. A como me defender através da luta, a como usar meus poucos e adoráveis poderes... Mas nada me dava mais prazer do que sentar em um destes bancos de madeira e deixar a minha imaginação fluir. Isso relaxa, acalma a alma. Faz com que eu me sinta mais... Mais... Eu mesma. Minha verdadeira eu.

Qlon olhou-a com as sobrancelhas arqueadas. Era realmente estranho ver a mudança de temperamento de uma mulher rigorosa e exigente para uma anja completamente calma e, de certa forma, livre.

“Quando eu ouvia falar de arte, imaginava quadros antigos que foram resgata-dos da humanidade antes do apocalipse. Alguns eram lindos, retratando belas paisagens que enchiam os olhos. Algumas eram apenas rabiscos cheios de cor. Nunca entendi os do segundo tipo. A arte, a meu ver, envolvia técnica. Apesar de aquele ramo não me ser muito familiar pois nunca antes havia sequer considera-do seguir por ele, era algo prazeroso. Algo que mesmo distante da guerra, dava um sentido à vida. Retratar a complexidade de uma mente através de meios de comunicação é algo que deve ser respeitado, pois eu aprendia não ser fácil.”

A tarde acabou em um piscar de olhos. Lua estava em um canto, olhando um dos quadros antigos já a mais de uma hora. Qlon estava sentado, reclinado so-bre a mesa, enquanto tentava desenhar. Lua olhou pela janela. O sol partia por detrás das montanhas. Levantou-se de um salto e foi verificar o que Qlon fazia.

– E então? Aca- … - Parou a frase no meio ao reclinar-se sobre seu pupilo para ver o que este desenhava. - Qlon... Você é um artista natural...

– Por quê?

No instante em que ele se distraiu de seu desenho, ela pegou-o rapidamente e o puxou com uma de suas mãos. Olhou melhor para os traços de um vulto de ca-belos alvos que voava acima do solo. Era, por certo, assustador. Uma cicatriz no rosto dava a ele feições maléficas, junto com seu fino rosto, quase élfico.

– Qlon... Isso é magnífico... Sério, como aprendeu a desenhar assim?

Ele estava envergonhado e tentava a todo custo tomar seu desenho de volta das mãos de sua professora, mas ela o segurava um punhado mais alto e seus pulos – controlados para que não batesse a cabeça no teto – não surtiam efeito.

167

Page 168: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

O desenho era feito somente com a pena e o nanquim.

– Não... Sei... - Dizia entre os saltos. - Apenas tentei desenhar o que me veio a mente, como fui instruído.

– Ficou, realmente, magnífico. Desenha como um profissional. Sabe usar técnicas de luz e sombreamento... Nossa. Estou realmente entusiasma-da. Acho que as aulas aqui serão as mais curtas... Venha, quero mostrar algo.

Devolveu a arte de seu pupilo em suas mãos e se dirigiu a um dos quadros. Pegou-o em suas mãos e, colocando na frente de seu corpo, mostrou-o ao seu protegido.

– E então? O que sente ao ver esse quadro?

Era uma pintura quase viva. Um bosque de nitidez incomparável, de um verde intenso, com as copas das árvores carregadas de frutos, flores crescendo entre os arbustos e a grama alta e um córrego pequeno de águas reluzentes.

– Este desenho é tão real... Parece que posso tocá-lo.

– E quanto a assinatura? - Questionou Lua com expectativa.

– Assinatura?

– Olhe no canto direito inferior da tela.

Uma tímida lua – minguante ou crescente – estava próxima a uma estrela.

– Não me diga que...

– Sim, é uma arte minha. - Concluiu. - Quero que veja esta intensidade que apliquei. E quero, ainda, que aprenda a aplicar uma assinatura no final de cada obra sua. Qual é o sentido em criar algo e não ser reconhecido pelo que faz? Ande. Assine seu desenho. Pode ser um desenho, seu nome... Apenas coloque sua marca nele.

“Refleti um pouco e fiz o que ela mandou. Uma marca minha, que me tornasse único, era disso que eu precisava. Não apenas na arte. Saquei minha arma e, confiante, fiz um pequeno corte no canto esquerdo superior, que foi consumido de leve por uma chama azulada, deixando marcas roxas no desenho. Aquela se-ria a minha marca. Minha assinatura. Um pintor fala por seus pincéis. Um escritor fala por sua pena. Um ferreiro fala por seu martelo. E um guerreiro... Este fala por sua espada! E o motivo de ela ter mostrado a pintura? Se fosse só pela assi-natura, ela poderia dar a ordem para tal. Acredito que ela queria exibir-se... De qualquer forma, passei a aproveitar a arte e, principalmente, entender o artista ao olhar para sua arte. Arte é muito mais do que belos quadros ou excitante poesia. Admirei mais ainda minha arma que, por si só, já era uma arte.”

168

Page 169: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

Cap. 50 – O Final do Livro

pós a conversa com Filipos, Qlon não sentia mais a necessidade de ler o Livro das Eras. Ele ficou guardado em sua cabana acumulando poeira em sua capa. Enquanto isso, os meses se passaram... A pri-

mavera chegou ao fim e logo veio o verão. Qlon treinava cada vez mais ardua-mente. Sua armadura não mais importunava. Aprendeu, neste meio tempo, a criar odes, pinturas, forjar instrumentos básicos... Até mesmo como criar algumas poções e remédios. Apenas o básico para sua sobrevivência – e para melhorar sua convivência social.

A

Debates com Lua tornaram-se comuns. A filosofia da liberdade, da sociedade, regras de etiqueta... Basicamente, ela o ensinava a ser um anjo livre. Citava anti-gos filósofos já mortos, de uma antiga pátria chamada Grécia, outros que viveram em épocas de transição da humanidade, como o renascimento e o iluminismo. Apenas o pensamento feito por grandes mentes já mortas e, ainda assim, inspira-doras. Dentro daquela pequena e, com a chegada do calor, abafada sala, Qlon passava momentos alegres ao lado de sua mestra. Ela sentia-se aquilo que de-veria ser desde o retorno dos sete céus: seu amigo. Seu confidente. Ainda assim, um fato marcou a nova estação dentro daquele “reformatório”. Ele viu uma imen-sa quantidade de alunos formando-se. O verão era o ápice das guerras. Tropas auxiliares sairiam às pressas para fortificar o exército. Qlon apreciava, de uma das janelas da sala de artes, a imensa quantidade de alunos que batiam os pés em sincronia com suas armas em riste, enquanto um mago abria caminho nos céus entre as bestas que guardavam os céus da base e os levava ao campo de batalha. Lua estava ao seu lado.

– É um pouco triste, sabia? - Disse ela, olhando com pesar para aqueles que partiam.

– Por quê? - Perguntou seu aluno, com inocência na voz.

– Esses formandos são os mais prejudicados. A maioria deles faz agora a sua última viagem. São crianças de quinze anos que, ao formarem-se precocemente, irão enfrentar demônios mais fortes e, em consequência, terão menos chances de sobreviver. Apenas alguns poucos sortudos – e competentes – soldados terão a capacidade de sair vivos desse massa-

169

Page 170: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

cre. Eles que irão ganhar experiência e sobreviver.

Qlon instantaneamente lembrou-se de Heitor. Como ele estaria agora? Mas aquilo não importava naquele instante. O dia já estava em seu fim. Enquanto o som do bater de asas desaparecia no céu laranja de poucas nuvens, Lua encer-rava sua aula.

– Qlon venha aqui. - Ela chamou enquanto punha um dos cavaletes usa-dos na aula encostados na parede.

– Chamou-me? - Respondeu de pronto, aproximando-se daquela que mi-nistrava aulas.

– Sim. A partir de hoje vou encerrar as aulas de arte por algum tempo. Está muito adiantado nas lições. Aliás, por acabar comportando-se como um adulto, não há muito o que ensinar, só tentar moldá-lo um pouco mais. Enfim, acho que vou dá-lo uma folga de três dias. Estamos progredindo muito mais rápido do que eu esperava. Enquanto isso, poderá fazer o que quiser. Neste meio tempo farei... Algumas coisas que não são de sua alçada.

Qlon olhou-a com um olhar de repreensão, ironizando o fato de haver um se-gredo dela que fosse ainda pior do que aquele que já sabia. Ainda assim, não questionou.

– Quando voltarmos, retornaremos ao seu treino de combatente. Até lá, quero que relaxe um pouco.

– A arte já foi um bom anestésico, - Respondeu com um sorriso. - mas vou tentar centrar um pouco mais do meu tempo em mim mesmo.

– Ótimo. Vá visitar aquele seu lobo... Como é mesmo o nome? Cloud, isso. Vá visitá-lo e ensiná-lo alguns truques. Sei que costuma ir periodicamen-te, mas já que ele é seu mascote... Ah, e aproveite para terminar aquele seu livro.

– O Livro das Eras? Como sabia que eu não tinha terminado? - Perguntou com um pouco de receio de estar sendo espionado.

– Se tivesse terminado de ler, com certeza estaria lotado de perguntas. E já teria despejado-as em quem? - Perguntou com um tom sarcástico.

– Está certa. Bem, acho que faltam poucas páginas... Terminarei de ler hoje e vou tomar o resto dos dias para lazer.

– Ótimo. Bem, estou de partida hoje. Há algo mais que queira perguntar antes que eu vá?

– Não, mestra.

170

Page 171: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

– Esplêndido. - Aproximou-se de seu pupilo, afagou seus cabelos e deu um terno beijo em seus lábios, confundindo-o. - Então nos veremos em três dias. Até!

Ao dizer isso, saiu rápido da sala e bateu a porta, deixando para trás um garoto com dúvidas, que tocava com a ponta dos dedos o local que fora beijado, com o rosto ardendo em chamas.

Ajeitou-se em sua cama, cobrindo-se com uns poucos lençóis. Com o calor que estava, decidira dormir nu. Estendeu a mão para o lado e pegou o Livro das Eras. Limpou a capa empoeirada passando sua mão e limpando-a, em seguida nas colchas. A página marcada com uma pequena orelha em sua parte inferior ainda estava lá, indicando onde parara de ler. O livro parecia um pouco mais grosso, mas não se preocupara com aquilo. Sentia-se confiante para ler sem a ajuda do dicionário. Já sabia interpretar nomes em suas runas de escrita e co-nhecia inúmeras palavras por conta de sua experiência.

“O capítulo seguinte falava apenas da história de Filipos, então, para apressar o desfecho, decidi avançar as próximas páginas.”

Quarta Era

Após a morte de Filipos, as guerras estenderam-se. A família Warrior, que encantara a Sanctus para passar seu uso de geração em geração, tornou-se a principal referência em poderio militar. Ou, como era conhecida a linha-gem de Midael, a “família do meio-dia e meia-noite”.

Mal começara e já parara a leitura. Tinha certeza que isso se referia a algo que já ouvira falar... A memória surgiu de um estalo. Os doze castelos haviam sido construídos no formato de um relógio, com o castelo dos Warrior sendo as “doze horas” que apontavam para o norte geográfico. Ouvira isso de seu avô materno, o rei, há muito tempo atrás, não achava que lembraria. Prosseguiu com a leitura.

A linhagem de Galadriel, o primeiro rei, ficou com o castelo ao centro e foram conhecidos por Eros. Dele que surgiam as ordens para que as tropas se movessem e a defesa de Seal fosse erguida. As outras onze famílias eram, de acordo com seus progenitores e em ordem horária:

– A família Solar, descendentes de Haarez;

– A família Mirror, descendentes de Weatta;

– A família Lotus, descendentes de Achaiah;

– A família Truth, descendentes de Lepha;

– A família Bolt, descendentes de Haggedola;

171

Page 172: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

– A família Storm, descentes de Jeliel;

– A família Snow, descendentes de Haggo;

– A família Rugiet, descendentes de Jeduthun;

– A família Valkyre, descendentes de Vehuiah;

– A família Gladius, descendentes de Geburael;

– A família Lunar, descendentes de Camael;

Então, além de Midael e Galadriel, estes eram os outros serafins. Nunca ouvi-ra, até dado instante, os nomes dos ancestrais de tais linhagens. De qualquer jei-to, prosseguiu com a leitura.

As treze famílias precisavam de descendentes pois a guerra seria perpe-tuada por muitas gerações. Mas se acabassem mesclando com anjos de classes inferiores parte dos poderes reais das famílias aos poucos se per-deriam. Fora que aquele era o pecado original, o pecado de Sandalphon. Encontraram-se em um dilema moral: fazer o que era necessário, mesmo que isso significasse sua culpa e seu exílio dos sete céus, ou prosseguir puros e imaculados e perecerem sem linhagem naquela terra nova? Opta-ram pela primeira opção.

Haggo tomou sua gêmea, Haggedola, e fizeram três filhas. Uma tomou a linhagem dos Bolt, outra tomou a linhagem dos Snow. A terceira filha foi ca-sada com o filho único da união de Jeliel e Achaiah, descendente dos Storm. Foi então gerado também um filho único desta junção, que passou a ser o sucessor da família Lotus. Quatro casas já haviam ganhado descen-dência.

Lepha foi esposa de Haarez e Camael, e a cada um deu dois filhos. Os mais velhos de cada pai tomaram as casas de seus progenitores. Os mais novos tiveram de duelar pela sucessão da casa de sua mãe. E com isso, sete casas haviam achado linhagem.

Weatta desposou Jeduthun e Geburael, e deu luz a duas filhas, uma de cada pai. As filhas, por sua vez, foram desposadas pelo filho de Lepha que não havia encontrado casa para estabelecer linhagem. Esta união gerou dois filhos e uma filha. Os dois meninos tomaram as casas de Gladius e Mirror, e a filha ficou com a casa Rugiet. Eis que dez castelos haviam en-contrado descendência.

Vehuiah, a mais bela de todas as serafins de sexo feminino, foi disputada ardentemente por Midael e Galadriel. Nenhuma das orgulhosas casas acei-tava dividir sua esposa. Midael venceu a disputa pela mão de Vehuiah, que deu a ele apenas um filho antes que fosse morto em uma sangrenta guerra. Este filho ficou sendo o sucessor da casa Warrior. Galadriel, ao saber da

172

Page 173: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

trágica notícia, desposou Vehuiah o quanto antes. Vehuiah o deu inúmeros filhos. Mas os dois primeiros, um menino e uma menina, foram os sucesso-res do legado de seus pais. O menino ganhou o trono de seu pai e o título da linhagem Eros. A menina, por sua vez, iniciou a tradição dos Valkyre: apenas as mulheres, em toda a história, governariam tal casa.

Deste ponto, as linhagens passaram a se desenvolver. Mas quando os deuses descobriram tais crimes de poligamia, incesto e orgias que foram realizados para criar a linhagem de Seal ficaram desapontados. Como pena aos crimes que cometeram, os treze serafins originais morreriam naquela terra sem poder retornar para os sete céus.

Por cuidados de sua mãe, Qlon não sabia o significado daqueles três crimes cometidos. Ainda assim, podia imaginar do que se tratavam apenas pelo texto que acabara de ler.

E estas linhagens foram progredindo... Durante milênios, muitos anjos nasceram. Mas, em comparação com os demônios, seu número ainda é muito escasso. O número era compensado em poder, mas algum dia o nú-mero do exército oposto seria tão grande que ultrapassaria a qualidade. Se-ria algo inevitável. E então, em meio ao total caos da guerra, ele surgiu. Um descendente de duas casas, que possuía o mesmo estranho poder de Fili-pos. Qlon Warrior Eros, descendente das casas dos últimos serafins cria-dos.

“Tantas perguntas surgiram ao mesmo tempo que entrei em choque momentâ-neo. Com os olhos arregalados, folheei as páginas seguintes. Cada grande mar-co sobre minha história estava escrito ali dentro. No final do livro, uma página com apenas sua metade preenchida. O último grande evento ali descrito era meu encontro com Filipos. Fechei o Livro das Eras. Olhei perplexo para ele enquanto buscava respostas no fundo de meu âmago. Nada que eu vira até aquele instan-te poderia explicar aquilo. Guardei aquele livro com cuidado e assoprei a vela, que enfumaçou o ambiente por alguns segundos, deixando o cheiro de barbante queimado em todo meu quarto. Fechei os olhos ainda sem ideia do que pensar, sem que houvesse notado, ainda, a complexidade daquilo. Alguém havia escrito em meu livro? Quem? Perguntas demais recheavam minha mente infantil, mas tratei de descansar o quanto antes. Estava cansado demais para pensar nelas.”

Acordou. Pegou uma toalha para fazer suas higienes diárias. Colocou uma tú-nica amarelada para cobrir seu corpo nu e, antes de ir tomar seu café e fazer sua higiene diária, olhou para o livro de capa negra. Contemplou-o por cerca de dois minutos enquanto mantinha o ferrolho da porta preso à sua mão, na iminência de girá-lo. Perplexo, ergueu uma de suas sobrancelhas, expressando a confusão que estava enfrentando mentalmente. Abriu a porta, saiu rapidamente, e fechou-a com um baque forte o suficiente para fazer cair poeira das fendas da madeira

173

Page 174: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

de sua moradia.

– Raquel, sabe de algum livro que... Possa escrever-se sozinho? - Sussur-rou Qlon para a bibliotecária atrás do balcão.

Raquel respondeu de pronto:

– Oras, Qlon! Por que tanto segredo quanto a isso? Lógico que existe. His-toriadores angelicais costumam usar esse encantamento para escrever o que pensam sozinhos. Aliás, é algo muito simples, o difícil é acostumar-se a usar um encantamento assim... Por quê? Encontrou um livro assim?

– Sim. - Respondeu sem pensar muito.

– Ah, então fique tranquilo e não estranhe. As anotações são poucas e bem espaçadas, e só acontecem enquanto o autor original estiver vivo. São necessárias para manter certos livros atualizados, como livros sobre ciência. Quando uma nova descoberta é feita, para não precisar reformu-lar todos os livros impressos, é usado este encantamento. Ele pode apa-gar páginas antigas e escrever páginas novas, adicionando folhas ilimita-das à edição.

– Interessante... Espere! - Qlon exaltou. - Você disse TODAS as edições?

– Sim, geralmente os escritores adicionam o encantamento em todos os seus livros, a não ser que um livro seja exceção. Nossa, Qlon, por que tanto espanto?

– Acho que por nunca ver algo parecido... - Não era mentira. - Bem, obriga-do pela informação.

– Ah, Qlon, posso fazer uma pergunta?

“Naquele instante, a única coisa que se passava por minha cabeça era: 'Sobre os livros não, por favor! Sobre os livros não!'. Dar uma 'meia verdade' é conveni-ente, mas minha mente não é um poço de criatividade infinito de onde tais des-culpas brotam a qualquer momento. Meu maior medo naquele instante era da ca-lada Raquel intrometer-se demais e desconfiasse de todas as conversas que ti-vemos.”

– Lua tirou uma folga? - Perguntou com uma voz tranquila ao anjo ruivo, que já estava com a testa completamente suada.

– Ah... Sim. Mas por que a pergunta? - Respondeu, relaxando todos os músculos do seu corpo ao mesmo tempo.

– Não tenho visto-a desde ontem, durante as refeições... E você está sem a sua armadura, apenas com uniforme e espada. Aliás, fazia tempo que

174

Page 175: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

não vinha aqui, senti sua falta. - Sorriu com sinceridade.

– É... Eu parei um pouco com o estudo de idiomas antigos e estava dedi-cando um pouco mais do meu tempo à arte. - Explicou. - E como já acos-tumei-me com seu peso, ela permitiu que eu usasse-a apenas em treina-mentos físicos.

– Interessante. Mas lembre-se de manter seus músculos sempre traba-lhando. Se relaxar demais eles atrofiarão. Biologia básica. - Aconselhou.

– Obrigado pela dica. Agora vou dar uma volta pelos campos... Estou com tempo livre em excesso, preciso espairecer por um tempo.

Despediu-se de sua amiga com um aceno e um sorriso e desceu as escada-rias do túnel de rochas que o guiavam ao porto subterrâneo.

Já era noite. Afagava a cabeça de seu lobo enquanto ele lambia suas patas su-jas de sangue da presa que havia caçado. Ele havia crescido bastante: estava do tamanho de Qlon e já podia ser usado até como montaria pelo seu adestrador. Aprendera alguns truques: sentar, atacar, esperar, avisar, amedrontar. Qlon pen-sava em usá-lo quando estivesse maior. Poderia ser de grande ajuda. E apesar da mata nos arredores do castelo da base ser escassa, ele alimentava-se bem. Quando Qlon ia visitá-lo, lambia sua mão e acariciava suas pernas com as cos-tas, quase como um felino. Passou o resto do dia fazendo companhia ao seu ani-mal de estimação enquanto refletia.

“E se todos os Livros das Eras estivessem atualizando-se naquele instante? Difícil determinar, mas eu sentia medo que sim. Desejava que meu livro fosse único, mas o próprio Viruel disse que tais livros eram muito comuns nos sete céus. E mais: quem escrevera esse livro? Era um livro apenas com um título, mas não com um autor a ser identificado. Aliás, quantos anos passaram-se lá desde que deixara aquele reino? Muitos, por certo. E ninguém havia procurado-me ainda. Nada. Nem mesmo as virtudes fizeram algum movimento. A calmaria que antecedia a tempestade estava em seu limite, quase rompendo em nuvens negras. Eu tinha a certeza de que, mais cedo ou mais tarde, algo aconteceria. Reclinei-me ainda mais nas raízes da imensa árvore com Cloud deitando a cabe-ça em minhas pernas. Mal imaginava o que estava para acontecer...”

O som de uma explosão ao fundo. Qlon assustou-se. Pôs-se de pé aos poucos e tentou olhar a origem da explosão. Não vinha do castelo, para seu alívio. Saiu do bosque com Cloud em seu encalço e olhou ao redor. A explosão vinha da en-trada da base, ao fundo. As bestas no céu da base estavam sendo atacadas bru-talmente por demônios. Do castelo, alguns anjos saltavam das janelas com ar-mas em riste. Mas poucos. Nove, para ser exato. Apenas os mestres.

– Cloud, fique! - Qlon ordenou para seu lobo, que sentou e, em seguida,

175

Page 176: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

voltou para seu bosque.

Qlon correu como o vento na direção de Silverius, que conseguia avistar de longe. Com sua velocidade, os trezentos metros que os separavam não significa-ram nada. Ao chegar próximo a ele, já recebeu um sermão:

– O que está fazendo até tão tarde aqui fora? Ah, esqueça. Qlon, volte para a base. Agora. - Ele segurava sua bela espada com sua mão direita enquanto o escudo repousava na direita.

– Poderia antes dizer o que está acontecendo? - Perguntou Qlon, questio-nando sua autoridade.

– Os demônios estão tentando invadir esse lugar, como sempre fazem nos verões. Então, para sua segurança, sugiro que entre. AGORA. - Ordenou novamente.

Qlon já ia virando as costas, quando foi chamado novamente.

– Espere! Já que está aqui, talvez possa dar o paradeiro de sua mestra. Ande, diga!

– Eu não sei! - Gritou, enquanto um lampejo vermelho no céu foi seguido de um forte estrondo. - Ela disse algo sobre uma folga.

– DESGRAÇADA! - Rugiu Silverius de fúria.

– Sem querer parecer inconveniente, senhor, mas já sendo... Por que não há soldados lá fora para proteger esta área?

– Pois não é necessário! - Berrou o mais alto que pôde para competir com o som das explosões, que estavam cada vez mais próximas. - Designa-mos poucos guardas de patrulha para avisar-nos da proximidade do ini-migo e então nós, mestres, honramos nossos títulos! Você vai ver por que é tão difícil ser um mestre, Qlon! E Lua... Droga, ela era uma das mais poderosas – senão a MAIS poderosa! Ela guardava a entrada pelas montanhas, agora não há ninguém por lá! Não sei se uma magia de es-cudo vai adiantar muito! Os guardas já devem estar mortos!

As explosões ficavam cada vez mais sonoras e magias atravessavam os céus. As bestas iam caindo uma a uma e o escudo mágico que formava o teto da “cú-pula” criada pelas montanhas trincava-se.

– Deixe-me tomar seu lugar! - Gritou Qlon, agarrando o braço de Silverius que estava com a espada.

– Está maluco por acaso?! - Berrou Silverius.

Os olhares se encontraram enquanto luzes de cores fortes tomavam o ambien-te pelas magias lançadas e eram refletidos pelo líquido que lubrificava seus gló-

176

Page 177: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

bulos oculares. Qlon emanava confiança em seu olhar firme. Silverius lembrou-se de Ronan no mesmo instante.

– Não vai parar mesmo que eu o impeça, não é? - Perguntou Silverius.

– Não. - Respondeu Qlon com uma voz grave.

– Então empunhe sua espada e tome o lugar de sua mestra. Mas esteja ci-ente: não é só por ser um príncipe que vou protegê-lo ou dá-lo tratamen-to especial. Se morrer, não dou a mínima. É sua responsabilidade se qui-ser mesmo assumi-la.

– Eu sei.

Qlon desembainhou sua espada e correu para o túnel de acesso. Enquanto se aproximava, olhou para trás e viu o escudo cair. Dezenas de demônios desceram rapidamente. A única cena que teve tempo de ver antes de ser tomado pela es-curidão da caverna foi Silverius brandir sua espada e cortar o ar. Isso gerou uma onda cortante no vento que, assim que foi propagada, fez sangue de demônios ser jorrado por todos os lados. Corpos caiam aos milhares enquanto os mestres mostravam por que aquele era o pior lugar a ser invadido no reino de Seal. Aque-le flanco estaria seguro.

Mal podia enxergar dentro da caverna sem o uso do seu lampião. Ainda assim, contava com o intenso brilho azulado de sua arma, que podia clarear alguns pou-cos metros próximos a ele. Parou antes do penhasco e brandiu sua arma em po-sição de combate, mesmo sem saber o que estava vindo do outro lado. Ouviu passos na escuridão. Estavam distantes, mas os ecos ressoavam pelos longos corredores. Não pareciam ser muitos. O barulho espaçado indicava que apenas um viria por ali. Algum comandante? Estava para descobrir. Após um tempo, uma sombra começou a formar-se em seu campo de visão. Um anjo de seis asas ne-gras, alto e musculoso. Longos cabelos loiros, arrepiados e despenteados, que chegavam aos seus ombros e olhos horrivelmente azuis, que pareciam unir-se à luz emanada por sua espada. Portava uma espada de cor vermelho-sangue, in-tensa, segura apenas por sua mão direita. Seu peitoral estava nu, deixando à mostra seu abdômen musculoso. Usava apenas uma calça em frangalhos, quei-mada. Nem mesmo botas calçava. Qlon parecia lembrar-se dele de algum lugar, talvez uma pintura... Olhou para o anjo ruivo de cima a baixo, com uma expres-são interessantemente triste. Com palavras pesadas como sua voz, proferiu, fa-zendo Qlon tremer as pernas:

– Filho... Jamais imaginaria vê-lo tão cedo...

Lágrimas surgiram e secaram nos olhos de Qlon que, em choque, perdeu suas forças e deixou que a Sanctus caísse no chão. Sem sombra de dúvidas era ele. Ronan havia retornado, mas não como esperava.

177

Page 178: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

Cap. 51 – Decepção

mpossível... Aquele seria mesmo o grande Ronan Warrior? Não... Só podia ser um sonho... Qlon ainda estava em choque. Não sabia que reação to-mar, sequer que expressão poderia esboçar em sua face que aparentava o

pânico que ele sentia por dentro.I– P-Pai...? - Perguntou, ainda incrédulo.

– É uma vergonha que me veja assim... - Disse de cabeça baixa, sem en-carar os olhos de seu filho. - Sim, sou eu. Seu pai, Ronan Warrior.

– Impossível... Impossível! - Qlon rompeu um brado de fúria e pegou sua arma do chão. - Só pode ser um demônio, um demônio que assumiu a forma de meu pai... Eu... Eu não acredito!

Com um pulo forte, rapidamente alcançou o outro lado. Mirou um soco com sua mão direita na face de seu pai, que segurou seu punho com a mão nua.

– Esta força... Não... NÃO! É MENTIRA!

Lágrimas escorriam livremente por sua face vermelha de raiva enquanto usava a mão nua para tentar golpeá-lo com sua supervelocidade. Nem mesmo com o auxílio de suas pernas era capaz de danificá-lo. Evitaria usar sua espada até ter certeza de quem ele era. Se fosse mesmo o seu pai... Não queria nem pensar no que faria. Para sua infelicidade, todos os golpes foram bloqueados ou esquiva-dos facilmente. Ronan – ou aquele que aparentava ser – não contra-atacou se-quer uma vez, mantendo a cabeça sempre baixa. Qlon aos poucos cessava seus movimentos e se afastava, mantendo o olhar naquele impuro que atestava sua paternidade.

– Não espero que entenda agora... - Disse. - Mas isso é para seu bem. Eu preciso passar!

– Como pode isso ser para o meu bem?! - Gritou Qlon deixando que saliva escapasse de sua boca no auge de seu descontrole emocional. - Atacar a própria raça que um dia defendera... Trair todos os seus ideais! VOCÊ NÃO É O MEU PAI!

178

Page 179: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

Estalactites despencavam do teto com o tremor das explosões ao fundo.

– Filho, não há tempo para isso... - Murmurou o anjo caído. - Logo o ata-que será controlado. Preciso invadir o castelo o quanto antes.

Ronan chegou ao outro lado em um pulo tão rápido quanto o de Qlon, mas Qlon parou à sua frente e abriu os braços. Ronan parou.

– Ainda não estou convencido que é meu pai. - Ao dizer isso, o anjo ruivo fincou a espada no chão, tão fundo que apenas a guarda e o cabo fica-ram de fora. - Apenas os verdadeiros donos da Sanctus podem manuse-á-la. Pegue-a se tiver coragem.

Ronan deu um breve sorriso. Seu filho era, por certo, muito sábio. Com uma mão, puxou a espada da terra e a entregou ao seu filho, cada vez mais incrédulo.

– Essa prova basta? Ande, saia de meu caminho. Eu não tenho tempo.

Qlon assistiu, atônito, a cena. Não acreditava que seu ícone maior estava agin-do para o outro lado naquele instante. Sequer passava por sua cabeça que seu primeiro encontro seria assim. Tantas perguntas invadiam sua cabeça, mas não conseguia soltá-las pela sua boca, como o costumeiro. Apenas ficou com a boca entreaberta, sentindo o gosto de suas lágrimas, enquanto ficava com os braços estendidos, segurando sua arma com as duas mãos.

“Creio que não havia palavras para descrever aquele momento único de triste-za. Uma amargura sem tamanho preencheu meu ser, tomando conta de cada centímetro cúbico de meu corpo. Aquele intitulado Ronan Warrior estava parado ali, na minha frente, me olhando de cima com um ar de superioridade único. Ele pedia que eu saísse do caminho, mas eu estava imóvel. Minhas pernas não obe-deciam. Aliás, nenhum músculo obedecia. Enquanto ele aguardava alguma rea-ção, eu deveria decidir uma atitude. E de tudo que eu poderia falar ou fazer, es-colhi algo que me arrependo até hoje...”

Abaixou a cabeça e deixou que as gotas salgadas caíssem no chão. Cerrou os punhos com força no cabo da Sanctus, que atingiu um brilho descomunal, cla-reando todo o ambiente. Seus sentimentos de amargura, de tristeza e de dor iam, aos poucos, sendo substituídos por uma incontrolável fúria. Afinal, como poderia ele, seu próprio pai, um herói de guerra e general das forças celestiais, estar tra-indo sua própria raça, seu próprio propósito e sua própria família?

– Você... Não é mais... O meu pai. - Murmurou baixinho, de uma forma quase inaudível.

– Oras, filho! Pare de besteiras! Sou sim o seu pai! Mas não há tempo para explicar...

– Não há explicação. Você é um traidor. Um demônio. Não mais o meu pai.

179

Page 180: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

Ronan abria a boca para falar algo, mas seu filho já não ouvia. Um chiado ha-via tomado conta de seus ouvidos. Um chiado forte que o ensurdecia. Talvez fos-se o eco gerado pela caverna com o som das explosões, não tinha certeza. Mas, ao voltar os olhos para seu pai, com um cinza que assumira um tom metálico fos-co, ele recuou. Sua expressão denotava preocupação – sim, talvez essa fosse a palavra correta. Seu filho com certeza era muito forte, e havia mudado bastante desde a última vez que o vira, quando ainda era um pequeno recém-nascido.

– É assim que deseja? Batalhar com seu próprio pai? - Ronan perguntou com um tom de surpresa. Seu filho não respondeu. - Se é assim que quer, então é assim que vai ser.

Ronan afastou-se e aprumou seu corpo, deixando-o em posição de batalha. A mesma que seu filho aprendera a usar e a mesma que usava agora. Dois espa-dachins, pai e filho, separados por um hiato de dez metros e por cinco anos de vida. Entreolharam-se por pouco mais de um minuto, um esperando pelo movi-mento do outro. Qlon tinha medo de atacar, seu pai possuía receio. Algo precisa-va tirá-los da inércia. A pressa de Ronan ou a fúria contida de seu filho. Em um piscar de olhos, o antigo general dos anjos partiu com sua espada escarlate para cima de seu próprio filho em um corte vertical. O golpe foi fraco e lento, Qlon es-quivou arqueando o corpo para o lado.

“Ele estava subestimando-me? Avaliando-me? E se eu fosse uma criança co-mum sem as capacidades de combate que eu já possuía? Ou estaria ele apenas sentindo remorso? Qualquer que fosse a opção, eu tinha recebido uma ordem. Proteger a passagem. E naquele instante, o ser na minha frente não passava de um demônio. Querendo eu ou não, ouvindo seus motivos ou não, sendo ele meu próprio pai ou não... Ele era meu inimigo.”

Qlon contra-atacou com sua espada sagrada em um corte horizontal na altura da cintura de seu inimigo enquanto seu pai ainda recompunha-se de seu movi-mento. Com extrema flexibilidade, Ronan arqueou o corpo para trás no exato ins-tante e viu o fio da lâmina de sua antiga arma passar centímetros acima de seus olhos.

– É mesmo o meu filho, sem dúvidas! - Disse Ronam, apoiando um dos braços no chão e dando um mortal para trás.

Parou em posição de combate novamente. Encarou seu filho nos olhos e es-tampou um sorriso no rosto. Parecia estar tirando um certo proveito da situação.

– Sempre imaginei ter meu primeiro duelo de espadas, um ritual da família Warrior, com você, filho. Mas jamais imaginaria que seria de tal forma...

Qlon aprumou seu corpo, preparando-se para atacar. Seu pai permaneceu com o sorriso de lábios fechados, olhando atentamente para ele. Mais um ata-que, tão rápido que seus olhos quase nem acompanharam. Seu filho quase colo-cou a espada em sua garganta. Não fosse pelo rápido reflexo de colocar sua

180

Page 181: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

arma para bloquear o golpe, seria degolado. Os olhos de Qlon demonstravam, cada vez mais, uma chama interna incontrolável.

Os golpes iam e vinham. A chama azulada da Sanctus encontrava-se com o brilho avermelhado da espada inimiga e ambas soltavam faíscas ao encontra-rem-se. Chuvas e mais chuvas de golpes eram defendidos e esquivados em mi-lésimos de segundos. Ronan mantinha o sorriso no rosto, um sorriso que se abria um pouco mais a cada golpe deferido por seu filho, a cada esquiva que ele realizava. Talvez fosse o orgulho falando dentro de seu peito. De súbito, com cer-ca de dez minutos de luta. Chutou seu filho na barriga, empurrando-o com força para trás. Qlon caiu no chão de joelhos sendo arrastado com a força do golpe, com a mão esquerda no local que o chute atingira e a direita segurando sua arma com mais força do que nunca.

– Filho... Desculpe. Mas preciso mesmo avançar. É hora de nos despedir-mos. Até mais, Qlon.

De seu rosto, encardido e com uma rala barba não feita, lágrimas de alegria escorreram. Ele desapareceu no ar, como que por mágica.

“A última coisa que pude sentir foi sua mão pesada tocando em minha nuca de uma forma suave, quase carinhosa, mas me colocando para dormir. Apaguei por tempo suficiente para acordar e ele não estar mais ali. Mas a guerra ainda conti -nuava lá fora. Pensei em sair do meu posto, mas provavelmente seria tarde de-mais. Ajoelhei-me e chorei tudo o que ainda não havia chorado. A noite passou, e mais nenhum demônio veio. E minhas lágrimas acabaram.”

Quando a luz do sol surgiu, Qlon saiu da caverna. Corpos de demônios se es-tendiam de um lado ao outro no vale, e alunos os empilhavam para serem quei-mados. Carregam os pedaços – braços, pernas, troncos, cabeças – em carri-nhos-de-mão. Silverius e os outros mestres estavam sentados em roda, limpando suas armas ou simplesmente descansando. Qlon aproximou-se deles para repor-tar como foi a guarda.

– E então, Qlon? Como foi? - Disse Silverius.

– Nossa, que olheiras horríveis! - Exclamou uma das mestras. - Deve ser o sono. Quer que eu dê um jeito nisso, criança?

– Não será necessário. Senhor...

– Já sei. Não houve invasões pelo túnel, não é?

– Não, senhor, é que... - Tentava contar Qlon.

– Não se preocupe. Parece que os demônios resolveram fazer uma investi-

181

Page 182: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

da total pelos céus esse ano. Meio atípico, mas tudo bem. Acabou dando sorte, Qlon. Agora pode descansar, por sua bravura em prestar ajuda no combate, não será necessário na limpeza de corpos. Dispensado.

Qlon pensou em abrir a boca para tentar mencionar sobre seu pai ter invadido o lugar durante sua guarda, mas, além da estranheza que seria provocada, pre-feria manter aquilo em segredo. Ao menos naquele momento.

“Naquele dia eu jurei que aquele que acabaria com a vida de meu pai... Seria eu. Deve ser estranho o filho ter desejo de matar o pai, mas... A decepção que sentia, o ódio por ver sua traição...Nem sei se minha mãe suportaria saber aqui-lo. Deixaria tudo em segredo. E pensar que um dia o tive como herói...”

O sol da tarde iluminava seu quarto com seus raios sendo refletidos pelo lago daquela caverna. Não era pela luminosidade que ele não dormia. Estava cansa-do o suficiente para isso, mas toda vez que fechava os olhos, eram as mesmas cenas que surgiam. Afinal, o que ele fora fazer ali? E por que ele havia virado um “deles”? Nada fazia sentido ainda. Por fim, chegou um momento que desmaiou de cansaço. Não fosse por suas necessidades fisiológicas, poderia passar sema-nas em claro meditando sobre aquilo.

Após acordar, permaneceu imóvel na cama. Contemplava o teto quando pegou em sua espada e passou a encará-la. Seu reflexo ali estava. Mesmo com Filipos dizendo que sua alma não era mais a mesma, via seu reflexo normalmente na brilhosa lâmina de sua arma. Filipos.

“Me veio de estalo. Filipos havia declarado, quando nos encontramos, que ele havia feito meu pai sair de casa. Mas não dissera o motivo. Decidi invocá-lo. Se ele disse que estaria sempre ao meu lado, e me vigiando, então com certeza es-taria naquele momento também.”

– Filipos! Venha aqui! Sei que está vigiando-me!

O vulto apareceu de súbito ao lado da cama de Qlon, ajoelhado “no ar”.

– Chamou-me? - Disse Filipos com seu tom sempre indiferente.

– Sim. Havia dito antes que havia feito meu pai sair de casa. Quero AGO-RA a sua resposta. Ande, responda. Por quê?

Filipos permaneceu em silêncio enquanto formulava uma resposta. Levantou-se e virou de costas para Qlon.

– Não posso contar. É um segredo.

– Como assim um segredo?!

182

Page 183: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

Em um acesso de raiva, Qlon atirou seu Livro das Eras em Filipos. O livro atra-vessou-o e bateu na estante do outro lado.

– Se ao menos eu pudesse tocá-lo...

– Qlon, controle sua raiva. Para tudo há um motivo. Entenda. Os fios que controlam a marionete, você, foram tecidos a muito mais tempo do que qualquer um de nós já viveu. Um dia saberá o motivo, não tenha pressa. O que aconteceu estava predestinado, eu apenas dei o empurrão.

– E você sabe por que aconteceu? - Perguntou Qlon, calmo, mas quase chorando novamente.

– Não. O destino é um, os caminhos são infinitos, e não há como ter noção de todos eles.

– Então a batalha com meu pai foi um dos destinos?

– Não, foi um caminho. Destino existe apenas um.

– O que está querendo dizer, basicamente, é que não tem nenhuma noção do que aconteceu e por que aconteceu. Isso?

– O que estou querendo dizer é que eu não controlo tudo que vai aconte-cer e todas as consequências dos meus atos. Além do mais, eu apenas calculo probabilidades, não adivinho o futuro. Já que quer ser tão adulto, pare agora de agir como uma criança que perdeu o doce. Você não vai mudar nada ficando aí deitado para sempre.

Qlon calou-se e olhou profundamente para Filipos, que estava de costas para ele.

– Deseja mais algo de mim? - Perguntou em seu tom fúnebre.

– Não... Nada.

O vulto sumiu assim como chegou. Silenciosamente e em um piscar de olhos. Qlon voltou a contemplar o vazio de seu teto, deitado as costas de uma mão so -bre sua testa e a outra segurando a lembrança de seu pai. Ou da idealização que tinha sobre ele.

Estava chovendo lá fora. Lua estava sentada no balcão de uma taverna beberi-cando incansavelmente seu licor. Apoiava a cabeça no alto com o cotovelo apoia-do na bancada meio molhada pelos inúmeros fregueses que passaram por ali e desastrosamente deixaram cair sua bebida. Com a volta das guerras, os cida-dãos lotavam as tavernas. O álcool ajudava a esquecer os horrores dos comba-tes. Lua estava ali mais para fugir um pouco das exaustivas obrigações de ser uma mestra. Não bastava apenas ensinar, também precisava fazer relatórios diá-

183

Page 184: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

rios de progresso, ir a reuniões dos mestres... Ao menos a folga de três dias ao ano cairiam bem naquele instante. Pagou as bebidas e partiu. Seus três dias de folga haviam chegado ao fim. Havia aproveitado bebendo bastante licor e vinho, perambulado bêbada pelas ruas da quase vazia Aeria. Se é que isso pode ser chamado de algo prazeroso... E, claro, tinha mexido alguns pauzinhos para seu próximo grande ato. O caminho até a Base estava cercado por tropas. Uma das principais táticas em uma guerra é defender as rotas comerciais. A rota para a Base não tinha tamanho significado econômico, mas negociações de mantimen-tos eram feitos com a capital. E que espécie de exército deixaria seu principal for-mador de soldados desprovido de mantimentos? A noite estava tranquila, apesar da chuva grossa que caía. Os raios que cruzavam os céus iluminavam mais do que as tochas colocadas provisoriamente para iluminar a estrada. Por aquele ca-minho longo pelas planícies caminhava.

Com as roupas terrivelmente encharcadas pela água da chuva, chegou no lago que rodeava o castelo. Ao longe ouvia um barulho de algo cortando o ar em meio àquela chuva. Quando aproximou-se da colina para ver, viu Qlon treinando, ao fundo, com sua espada.

– Qlon, o que está fazendo? - Perguntou com a voz mole.

– Treinando.

– Posso ver, mesmo bêbada. Quero saber o motivo. - Ria de forma abafa-da para não provocar seu pupilo, que parecia estar empenhado.

– Uma certa decepção.

Pela primeira vez estava com receio de falar com aquela criança. Os golpes varavam o ar. Treinava com a armadura para fortalecer-se ainda mais, e para se habituar a usá-la novamente. Mesmo com ela, seus movimentos eram fluídos e vorazes. Deveria estar imaginando golpear alguém, ou algo.

– Qlon... Está chuvoso, e é seu último dia de folga. E eu preciso de um tempo para curar a ressaca. Pode ir descansar...

– Não, obrigado, mestra. Se não está em capacidade para me treinar, pode deixar que continuarei sozinho. Pode ir descansar se assim preferir.

Lua assustou-se com a petulância que Qlon apresentava. Algo de realmente muito ruim deveria ter acontecido para ele estar daquele jeito. Será que era por sua ausência? Não custava perguntar:

– Qlon, o que está transtornando-o tanto?

– Justo esses três dias... Justamente esses... De todos os 326 dias do ano... Justamente nesses três... Lua... Você sabia do ataque que ia ser

184

Page 185: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

realizado à base, não sabia?

“A título de curiosidade, algo que ainda não mencionei: Os anos apresentavam exatos 326 dias. Era uma conta simples: cada mês possuía 28 dias, marcado pe-las fases lunares. Uma fase lunar dura sete dias, uma semana. Quatro fases fe-cham o ciclo, que fecham o mês. Quatro estações ao ano. Cada estação durava repetidos três ciclos lunares. Ou seja, quatro estações de três meses de 28 dias.”

Lua ficou atônita. Tanto pela raiva com que ele dizia aquilo quanto pela insinua-ção, completamente caluniosa. O que diabos havia acontecido naquele curto es-paço de tempo?

– Seu... Moleque! - Rugiu, louca de raiva por seu próprio aluno ter declara-do tais absurdas palavras.

Interrompeu o treino do garoto dando uma onda de impacto no peitoral de sua armadura e, antes que ele pudesse voar para trás, chutou-o de cima para baixo, fazendo sua armadura afundar na lama.

– Como ousa? Acha que estou fazendo o quê? Trabalhando para os demô-nios agora? Acabo de chegar de uma folga completamente casual, que fiz de última hora, e nem sabia que sequer houve um ataque de demô-nios aqui. E mesmo que isso tenha acontecido, o que aconteceu a você para ficar tão ignorante assim? Algum demônio estuprou-o, é isso? Per-deu sua virgindade para uma besta?

“Com toda a certeza, se eu fosse mais adulto estaria ofendido com aquilo que ela disse. A minha insinuação vergonhosa me fez apenas aceitar ouvir a aquele discurso bêbado inteiramente calado.”

– Desculpe, mestra. Isso não irá se repetir.

– Eu espero mesmo que não! - Disse, e ainda cuspiu na armadura pratea-da de seu estimado e único aprendiz. - Agora continue o que estava fa-zendo! Aproveite e receba um raio nessa carcaça de metal! Ou pelo me-nos que pegue um resfriado! Criança prepotente!

Lua saiu de cena cambaleando, quase arrastando os pés. Conseguiria ela re-mar – ou até mesmo voar – até o castelo?

Acordou de ressaca. A cabeça latejava, os olhos queriam permanecer fecha-dos. A barriga clamava por comida e a garganta clamava por água. Parecia que sua bexiga ia estourar. Como sempre, prometia a si mesma que “pegaria leve” da próxima vez. Ainda era madrugada quando levantou-se e saiu de seus aposentos em uma das torres do castelo para sanar sua necessidade. Foi ao banheiro e “assaltou” a cozinha com uma furtividade única. Com uma jarra de água gelada em mãos e dezenas de pãezinhos murchos e frios que trazia na alça de seu bra-

185

Page 186: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

ço junto ao corpo, seguia de volta para seu quarto quando ouviu. O mesmo baru-lho irritante de uma espada cortando o ar. Talvez sua audição estivesse aguçada demais por conta da ressaca alcoólica, ou talvez fosse apenas ecos do que ouvi-ra mais cedo naquele mesmo dia. Ainda assim, decidiu verificar. De uma das ja-nelas do castelo, olhou para o vale. Ele ainda estava lá, praticando com a espa-da. Apesar dos movimentos meio desengonçados, ele parecia apresentar certo teor de técnicas. Ficou ali parada alguns minutos admirando sua determinação enquanto engolia os pães secos com água para ajudar sua passagem na gargan-ta. Mas ainda estava preocupada com o que dava a ele tanta vontade de treinar. A chuva ainda caía lá fora.

Amanheceu. Qlon ainda treinava. Sentia que aquela era a única forma de ex-travasar seus sentimentos. Mesmo que o único a “sofrer” ali fosse o vento. A chu-va já tinha ido embora. Apenas um sol entre nuvens restava agora.

– Qlon, posso ajudá-lo a treinar? - Lua apareceu do nada, trazendo um copo com um líquido escarlate e algumas frutas em uma bacia. - Não vai conseguir melhorar com a espada apenas usando o que já sabe.

Por baixo do enorme elmo, Qlon sorriu. Queria chorar um pouco pela única compaixão demonstrada com ele após o incidente, mas decidiu que ia chorar apenas para si mesmo.

– E então, vai dizer para a sua mestra... Amiga, o que aconteceu? Quanto mais rápido disser, mais cedo iniciaremos seu treinamento com armas.

“E então eu desabafei. Tudo. Desde o incidente com Filipos até o que aconte-cera algumas noites antes no fatídico encontro com meu pai. De tanto já ter cho-rado da situação, decidi que não choraria mais. No final do meu depoimento, Lua ficou em silêncio sentada ao meu lado. Ficamos ali, na sombra de uma nodosa árvore, durante toda a minha declaração. Deitou minha cabeça em seu colo e fi-cou pensativa. Até mesmo retirou meu elmo e fez um leve roçar em meus cabe-los, penteando-os com os dedos de sua mão delicada. No final, após um ago-niante tempo sem ouvir nada além das altas conversas dentro do castelo e do canto dos pássaros, ela pediu para que eu me levantasse. Peguei meu elmo, co-loquei em minha cabeça e pus-me de pé.”

– É uma tragédia o que aconteceu, Qlon, e eu entendo seus motivos para querer treinar arduamente. Parece que balançar sua espada o faz esque-cer do resto do mundo e todos os seus problemas, não é? Me sentia as-sim com meus quadros. Mas, acredite: há problemas que nem mesmo o álcool nos faz esquecer. Há dores que nem mesmo o tempo sana. Du-rante toda a sua vida irá conviver com essa amargura em seu peito, e de-verá acostumar-se. Espero que consiga lidar com isso. Apenas confie em si mesmo e faça o que deve ser feito. Agora, vamos treinar...

186

Page 187: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

Cap. 52 – Apenas Um Dia Qualquer

om o pôr do sol, mais um dia ia embora. Qlon estava exausto. Deitado na grama, contemplava o céu de nuvens acinzentadas que, aos pou-cos, iam cobrindo o céu antes alaranjado. Apesar da exaustão física do

treino – que só foi movimentado mesmo antes das enormes explicações de sua mestra, sua mente trabalhava como nunca.

C– Mestra... Que interesses teriam os demônios nesta Base? - Qlon pergun-

tou em um tom inocente.

Lua, que estava de pé, encostada em uma árvore e de braços cruzados, sabia que ele perguntaria aquilo, hora ou outra. E já tinha preparado a resposta. Afinal, ser mestre de uma criança precoce requer cuidados:

– Oras, Qlon. Aqui é a escola que forma soldados para o exército dos an-jos. Que interesse acha que eles teriam aqui?

– Eu também pensei nisso de início. - Respondeu, sentando o corpo no ex-tenso pasto. - Mas então eu refleti... Se fosse assim, o que meu pai que-ria fazer em uma infiltração? Afinal, não havia mais demônios com ele. E, para finalizar, ninguém parecia saber que ele havia entrado aqui. Sabe o que pode ter acontecido?

– Você é muito perspicaz... Bem, Qlon... Certa vez ouvi Freutz falar sobre um segredo quanto a esse castelo, mas eu era muito pequena e ouvi apenas de relance. Ele comentava algo com Silverius, mas não consigo recordar o que era.

– Nem se acabar esforçando-se um pouco? - Perguntou na esperança de arrancar alguma lembrança reprimida dela.

– Qlon, eu tinha cerca de sete anos, estava em um quarto desenhando e só lembro dele conversando com Silverius, pelos vultos e vozes que via e ouvia pela porta entreaberta. Se quer saber mais, vá pedir a eles e não a mim, tudo bem?

– Tudo bem, desculpe se fui persistente. Mas é que... Pensando melhor, não faz muito sentido. Por que ele estaria aqui?

187

Page 188: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

Lua observou Qlon vaguear a imensidão do lago com os olhos, como quem buscasse algum sinal, alguma resposta. Por fim, sorrindo, disse:

– Ou talvez esteja só buscando um conforto.

– Como assim? - Perguntou Qlon, confuso com aquela insinuação.

– Simples. Talvez ainda não tenha aceitado o fato de seu pai ter traído os anjos. Qlon, digamos que ele realmente veio infiltrado para pegar algo daqui. Ainda assim, isso não seria roubar algum artefato dos anjos? E ele daria para quem? Isso mudaria o fato da aliança que ele fez?

Qlon engoliu aquilo em seco. Virou novamente o pescoço para contemplar o lago, onde pequenas torrentes de vento formavam ondinhas. Tentando buscar uma possível explicação, uma possível resposta para aquele sentimento que sa-bia estar presente, passou alguns minutos em silêncio. Por fim, disse, tomando um grande fôlego:

– É que... Eu sempre ouvi tantas histórias sobre ele... Em todas ele era o grande herói. É tão estranho agora ver ele tornando-se o vilão... É inacre-ditável... E mesmo que ele tenha aliado-se ao inimigo, e se foi por um motivo nobre? E se houver algo a mais escondido por todas essas atitu-des desprezíveis? É tão duro... É tão... Frustrante não saber de tudo.

Lágrimas iam se juntando em seus olhos mais uma vez, mas ele as secou com a palma da mão antes que manchassem seu rosto. Lua olhava para ele com um pouco de pena. Não sabia direito o que era ter um pai. O mais próximo que teve disso foi muito mais um mestre do que um pai. Aliás, não tinha nem mãe. Mas sa-bia o quanto era frustrante acreditar em algo com todas as suas forças e ver sua esperança sendo destruída aos poucos. Do outro lado, Qlon sentia-se quebran-do, pedaço por pedaço. Se sua alma fosse um vidro, ele estaria rachando, e as lascas iam caindo vagarosamente. As pequenas antes, as maiores depois. Ele havia sido sua grande inspiração. Sempre fora sua meta ultrapassá-lo. Mas aquele que parecia correr antes ao seu lado, incentivando-o a continuar, mesmo com os milhares de obstáculos que surgiam, agora estava tentando impedi-lo de continuar.

– O seu objetivo não era ser ainda melhor que ele, Qlon? - Perguntou Lua, tentando encontrar a resposta que seu pupilo tanto ansiava. - Então ago-ra tem um motivo a mais para isso. Supere-o para derrotá-lo. E Qlon... Já faz quanto tempo que não dorme?

– Tempo o bastante para querer dormir aqui e agora.

– Então vá tomar um longo banho, comer e descansar. Amanhã acordarei você cedo. Nosso treino voltará ao...

Não dava mais tempo de falar. Ele havia desmaiado ali mesmo, e Lua o deixa-

188

Page 189: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

ria do jeito que estava. Dormiria no gramado do imenso vale a noite toda, mas dormiria com um sorriso em seu rosto.

– Vamos repassar o que aprendemos ontem.

Lua queria repassar a lição do dia anterior. Eles treinavam do lado de fora. Nu-vens acinzentadas, mas sem perigo de precipitação. Na verdade, Lua nem havia passado tantas lições assim no dia anterior. Ela apenas falou bastante e deixou que Qlon mostrasse seus movimentos amadores. Não a surpreendia que ele ha-via perdido para o pai. Apesar dos estilos semelhantes, podia ver os erros de po-sicionamento. Mesmo que a força e velocidade dos dois se equiparasse – o que era impossível, Ronan ainda teria muita vantagem.

– As armas são uma extensão do corpo. - Repetia Qlon aquilo que gravara no dia anterior. - Existem diversos tipos de armas, mas os grandes gru-pos são dois: armas de curto alcance e armas de longo alcance. As de curto alcance são divididas em armas de contato, armas curtas, armas médias e armas longas. As de longo alcance são divididas em armas de projéteis e armas de arremesso.

– Muito bem, aluno. - Elogiou-o sua mestra. - Agora dê exemplos de todas as armas e diga onde cada uma se enquadra, por favor.

“Apenas para listar os exemplos mais detalhadamente...

• Armas de Curto Alcance:

◦ Armas de Contato: Armas que são usadas junto ao corpo e só po-dem causar dano ao inimigo se o corpo fizer o mesmo movimento que a arma. No caso, soqueiras e garras. Aliás, qualquer coisa que estiver presa ao corpo e cause mais dano do que o corpo nu. Até mesmo botas podem ser consideradas armas de contato. Joelheiras, cotoveleiras...

◦ Armas Curtas: Armas cuja extensão não passa do tamanho do ante-braço. Como punhais, adagas, facas, tonfas...

◦ Armas Médias: Armas cuja extensão varia de um antebraço comple-to ao tamanho de um braço. Espadas, machados, martelos, maças...

◦ Armas Longas: Também chamadas de armas de haste, são armas que possuem um longo cabo de controle e apresentam um contato de ataque mais distante. Lanças, alabardas, foices, swallows – como a de Heitor, machados e martelos de haste longa e espadas montan-tes habitavam esse grupo. Ou mesmo mais simples. Os bastões também são uma arma significativamente potente. Armas como manguais ou chicotes entram nesse grupo, apesar de possuírem

189

Page 190: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

uma zona mínima de contato para o ataque.

• Armas de Longo Alcance:

◦ Armas de Arremesso: Como o nome diz, são armas arremessáveis e descartáveis de um certo ponto de vista. Adagas, espadas curtas, machados, martelos e lanças de arremesso e até mesmo agulhas podiam ser usadas. Não era um método de ataque muito rotineiro, mas ainda assim bem perigoso se usado com perícia.

◦ Armas de Projéteis: Como o nome diz, armas que usam projéteis para alcançar o alvo à distância. O arco é o mais comum. Não o mesmo arco de Jolie, que, aliás, é uma arma de médio alcance, mas sim o arco que utiliza flechas. Sua gêmea, a besta – um arco mecâ-nico, também entra no grupo. Potencialmente perigosas. E claro, as armas criadas pela humanidade a muitos milênios atrás, cuja tecno-logia era restrita aos dessa raça pelo domínio de um material chama-do pólvora: armas de fogo. Usavam canos de mira e projéteis de me-tal para acertar o alvo. Raras, caras e não muito eficiente contra monstros grandes, se querem minha opinião.

Esses eram os armamentos básicos.”

– Ótimo. Mas um guerreiro, um verdadeiro combatente, não dá importância apenas às suas armas. E equipamentos de defesa?

– Escudos e armaduras. - Respondeu de pronto. - Mantas também ajudam bastante, confundem o inimigo com seu movimento e, consequentemen-te, aumentam as chances de esquiva. Mantos e vestimentas mais leves, mas reforçadas com couro, são usadas por combatentes que não com-batem corpo a corpo. Magos também as usam. Vale lembrar que quanto mais pesado o equipamento, menor a velocidade do combatente em uma luta.

– Excelente. E as partes da armadura? Espero que tenha gravado. Coloca-rá sua armadura na mesma ordem das partes que eu citarei, está bem?

– Sim, senhora.

“Minha armadura jazia ao lado de meu corpo antes do treino, como fora o pedi-do de minha mestra. Eu usava apenas meu uniforme. Aos poucos, coloquei as peças indicadas. Começando pelas pernas, de baixo para cima, escarpes, gre-vas, caneleiras, joelheiras, coxote, fraldão e saiote, na ordem. Depois veio a peça mais importante, a couraça. Após ela, manoplas, canhões de braço, cubitei-ras com asas, canhões de antebraço e ombreiras. Por fim, as proteções para a cabeça e o pescoço: gorjal, gargalheira e o elmo com viseira.

Lua, na ocasião, usava uma armadura leve. Uma armadura leve possui algu-

190

Page 191: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

mas aberturas a mais como, por exemplo, espaços entre coxotes e grevas. A dela nem mesmo apresentava os canhões de ante braço e deixava a sua barriga bem definida à mostra. Como o aço é mais denso de acordo com a resistência do equipamento, mais pesado o conjunto fica. Certas aberturas diminuem a quantidade de metal usado, tornando a armadura mais leve e, consequentemen-te, menos eficiente. Mas eu não estranhava o fato de ela usar uma armadura com aberturas, e dourada, para completar, e sim o fato de ela usar uma vesti-menta diferente da que ela usava habitualmente para lecionar. Mas logo eu des-cobriria o motivo.”

– Incrível. Realmente gravou tudo que ensinei ontem. Bem, já que é assim, podemos prosseguir com o treino prático. Está pronto?

– Sim, senhora! - Disse Qlon com um fervor incomum em sua voz.

– Deve lembrar-se, então, que da última vez que treinamos lutamos sobre o gelo, e já havia aprendido a golpear com eficácia, mas desarmado. Agora irá ser armado. MAS não será com sua espada. - Pronunciou an-tes que Qlon criasse falsas esperanças. - Como costumo ensinar de uma forma progressiva, então precisará, antes de mais nada, aprender a con-trolar armas mais simples. Não usaremos armas de contato, já que aprendeu a usar o corpo. Pense nelas apenas como algo preso ao seu corpo que aumentará o dano causado. Então pularemos primeiro para as armas de curto alcance. Qual acha que vai ser a primeira a utilizarmos?

– A arma mais curta o possível? - Respondeu após ponderar por alguns segundos. - Como seu método é progressista...

– Bastou apenas dizer qual é a arma de curto alcance mais curta: o punhal. Agora diga, qual é a grande diferença de uma arma de curto alcance e uma arma de contato?

– Armas de contato são fixas. - Repetia com voz de monotonia, como se fosse a milésima vez que dizia a mesma coisa. - Armas curtas podem ser movimentadas livremente nas mãos.

– Exato. Lembre-se que cada ponto que o cabo de sua arma entra em con-tato com seu corpo funciona como uma nova articulação, como um coto-velo. Então diga, se a arma funciona como uma extensão de seus mem-bros, como cada arma vai funcionar?

Qlon calou-se. Ela não havia dado a resposta para aquilo, então ele deveria tentar formular algo. Após alguns minutos confabulando em silêncio, chegou a um veredito:

– Armas curtas funcionam como um novo ante braço, médias funcionam como um novo braço... E longas seriam como pernas arrancadas que se-guramos?

191

Page 192: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

Lua gargalhou. Era uma resposta, por certo, ousada e inovadora.

– Gostei do princípio, é quase isso. - Disse, tomando o fôlego perdido com as sonoras risadas. - Em um linguajar mais simplificado, as armas curtas são como novos dedos, as armas médias são como novos braços e, de acordo com um antigo mestre dos combates aqui nesta Base – conhece-o como Freutz, “armas longas são como novos corpos”.

– Interessante, mas e as armas de longo alcance? Onde elas se encaixam.

– Bem... Com uma visão “Qloniana”, armas de projéteis são como cuspir ácido a distâncias extremas, e armas de arremesso são como dedos ar-rancados que atiramos aos oponentes!

Lua chegou a curvar-se com as risadas. Qlon sentia-se ridicularizado, mas abriu um sorriso para não demonstrar sua insatisfação. Retomando o ar aos pul-mões, Lua desculpou-se:

– Perdoe-me, eu não resisti. - Disse, enquanto secava lágrimas com as pontas de seus dedos, revestidos por sua manopla dourada. - Bem, po-demos começar com o treino?

– Certamente.

Lua tomou certa distância, sacou um escudo de duas mãos que carregava pre-so às costas por alças que cruzavam nos seios de sua armadura e colocou-se em posição de defesa.

“Nota: Há certos tipos de combatentes que não atacam, apenas defendem ou-tros soldados, para que estes possam usar seu poder máximo. Esses combaten-tes são chamados de 'iscas'. Entre tais soldados, comumente é usado o escudo de duas mãos. São feitos com uma liga de aço tão extrema e densa que é quase impossível trespassá-los. Fora o tamanho: O de lua cobria apenas seu tronco, mas comumente os escudos eram maiores do que os corpos de quem os usava!”

– Como deve ter percebido, a minha armadura especial é um pouco aber-ta, então parte do meu corpo está à mostra. A sua missão do dia é cortar, mesmo que superficialmente, alguma dessas partes de meu corpo. Cra-var a arma não conta, fora que seria perigoso para mim. E não, não es-tou demonstrando medo. Mas ainda não ensinei toda a anatomia angeli-cal voltada aos combates. Certas áreas são mortais e muito sensíveis. Enfim. Sem mais delongas... Venha até mim, criança!

Qlon transformou a Sanctus em um punhal curto. Aprendeu como usar o poder de sua arma, e isso surpreendeu sua mestra. Mas infelizmente, apenas aquilo não era o suficiente para concluir o treino.

192

Page 193: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

Mais da metade do dia já havia passado. Qlon não conseguira nem passar da defesa bem elaborada de Lua. Por mais pesado que seu escudo parecesse e que fosse difícil para ela movê-lo, todas as investidas que ele fizera tinham para-do naquela carcaça de metal e ouro retorcidos.

– Tudo bem. Que tal uma pausa? - Lua disse, abaixando a defesa ao notar o extremo cansaço de seu pupilo.

Qlon assentiu. Sentaram-se os dois à beira do lago, na sombra de uma árvore. Comeram marmitas preparadas pelos cozinheiros da Base e trazidas, convenien-temente, por Lua, que já havia antecipado tal necessidade. Enquanto dividiam o fraco vinho de um odre, Qlon perguntou:

– Como estou?

– Acho que os meses de treino longe de sua armadura fizeram mal. - Res-pondeu friamente. - Está lento e acaba cansando mais rápido do que no final do treino de combate desarmado. Mas tudo bem, irá acostumar-se novamente durante o verão.

– Ou talvez seja o verão que está cansando-me tanto. - Disse, tomando um longo gole de sua caneca. - Não imagina o quanto está quente dentro deste pedaço de metal.

– Na verdade, imagino. Minha vontade é de ficar nua. Mas não farei isso para preservar sua virgindade. - Disse, cobrindo a boca com a mão para abafar uma risada. - No mais, acostume-se com isso. O frio e o calor ex-tremo dentro de uma armadura. Enfrentará os dois. Até cobriria um peda-ço de terra com palha e faria arder em brasas. Afinal, pode acabar indo para o inferno algum dia, enfrentar seu pai ou até mesmo tornar-se al-guém igual a ele.

Qlon fechou o rosto por dentro de seu elmo. Não havia gostado da insinuação de sua mestra e tratou aquilo como uma ofensa. Mas não queria comprar uma briga por tão pouco, então relevou.

“Aos poucos, eu passava a detestar meu progenitor. Se antes eu já guardava um certo ressentimento por nunca tê-lo visto ou por ele ter abandonado a nossa família, a traição acendeu ainda mais este sentimento obscuro, coberto pelo or-gulho que dele eu sentia.”

Acabada a refeição, os dois voltaram a lutar. Qlon investia em movimentos fluí-dos, mas era sempre bloqueado por lua. Visando suas coxas desprotegidas, ata-cava. Pulava para o lado com velocidade e tentava atacar sorrateiramente pelas laterais, mas aquele imenso escudo era usado com a sagacidade de um gênio. Apesar da movimentação “bruta” de sua professora, suas defesas eram extrema-

193

Page 194: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

mente eficientes. A lâmina pequena de sua arma encolhida batia no escudo e re-cuava. Ele tentava adequar seu corpo ao movimento de sua arma e fazer acroba-cias para compensar o retrocesso. Compensava com uma grande movimenta-ção, mas os ataques não eram efetivos. Antes fosse uma adaga, já que a única coisa do punhal que pode causar um ferimento é sua ponta. Uma arma típica de perfuração, e não de corte. Em um determinado momento do treino, Lua deu um comando para cessarem os movimentos. Visivelmente entediada com as fracas-sadas tentativas de seu aluno, resolveu aconselhá-lo. Aproximou-se dele e deu batidinhas em seu elmo, dizendo:

– Há alguém dentro deste pedaço de metal? Sinto que estou lutando com uma máquina de movimentos repetitivos, e não contra um semelhante que possua massa cefálica.

– O que estou fazendo de errado, afinal? - Perguntou, ofegante, o jovem anjo de cabelos ruivos.

– O que está fazendo de errado? Qlon, eu aprecio sua inteligência, então use-a! Se não puder perceber sozinho, mesmo após a minha enorme dica, então o seu intelecto não passa do de uma criança de mesma ida-de, realmente.

Um lampejo em sua mente fez com que entendesse. Meneou a cabeça afirma-tivamente e Lua retornou para a sua posição de combate, afastado dele por cer-ca de vinte metros.

“Se um ataque não funcionar uma vez, não há sentido em continuar usando-o repetidamente até a exaustão do adversário. Mesmo porque defender é muito menos exaustivo do que atacar, ainda mais defender um mesmo golpe. Pena que minha mente calculista ainda não havia pensado nisso. Por uma reta ser a menor distância entre dois pontos, sempre procurava visar a economia de movi-mentos. Variar as formas de golpear visando um mesmo ponto. Esse era o reca-do que ela queria passar. Mesmo que gaste mais energia, mesmo que seja mais difícil realizar tais movimentos. Afinal, o importante é passar da defesa inimiga!”

Lua encarava-o. Sua armadura leve, composta de uma couraça que cobria apenas os seios, grevas e escarpe, manoplas e um elmo que protegia apenas sua região cerebral, sem sequer uma viseira, induzia-o ao ataque com aquele bri-lho dourado e reluzente. Como a fruta no alto de uma árvore, que por ser mais di-fícil de alcançar, provavelmente é a mais suculenta. E correu. Correu para cima de Lua com toda sua anormal velocidade, mesmo usando uma armadura muitas vezes mais pesada que o seu próprio corpo. De ombros, jogou todo o seu peso em cima do escudo, desequilibrando sua mestra. Com o braço encostado em seu escudo, empurrou-o com ainda mais força para cima, tirando-o do caminho. Só não contava com uma coisa: Ao perceber que sua defesa havia ido embora, Lua soltou as alças de seu escudo e, com as duas mãos, usou seu golpe da onda de impacto, jogando Qlon muitos metros para trás. O jovem anjo caiu com o punhal

194

Page 195: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

em mãos, com um dos joelhos apoiados no solo.

– O que queria ensinar com isso, mestra? - Perguntou gritando, claramente irritado. - A como provocar a ira de um aluno que finalmente conseguiria concluir sua missão?

Lua levou as duas mãos à cintura, relaxando o corpo e soltando o ar dos pul-mões. Por fim, respondeu:

– Não, mas gosto do seu jeito de pensar. Quis ensinar uma das mais pre-ciosas lições em um duelo que poderá aprender na sua vida. Nem sem-pre aquele que mais ataca sairá vitorioso. Gostei que tenha entendido o meu recado, mas aqui está a outra parte: uma postura ofensiva não o le-vará a lugar algum em um combate contra apenas uma pessoa. Defenda e depois ataque, esse é o segredo da vitória em um duelo. Além do mais, não firmamos nenhum contrato sobre eu ficar apenas na defensiva e so-bre eu usar apenas o escudo, firmamos? E por céus, como esse escudo é pesado... - Reclamou, massageando os ombros. - Quer continuar ten-tando até o final do dia?

Era verdade, e Qlon sentia-se um inútil com isso. Por fim, acalmou-se e con-cordou em continuar com as tentativas.

E mais um pôr do sol. Mais um singelo dia de treinamento ia embora. Nova-mente sentados no gramado às raízes de uma grande árvore, conversavam. Em um determinado ponto da conversa, Qlon indagou:

– Mestra, o que pretende passar-me como tarefa na chegada do outono?

Lua abriu um sorriso de orelha a orelha. Sua folga não tinha sido em vão.

– Já arrumei isso, mas por agora é uma surpresa. Por que quer saber?

– Eu quero mais uma tarefa difícil. Quanto mais árdua melhor. Quero mais uma medalha que valha por quatro. Quero, mais uma vez, ser reconheci-do como o melhor aluno da Base, indiretamente falando.

– Então aprendeu a apreciar o trabalho duro, não é? Bem, posso garantir que a tarefa que vou dar vai ser muito, muito difícil. Quatro medalhas vão parecer muito pouco para o esforço que precisará fazer. E estará arris-cando sua vida extremamente mais do que arriscou da última vez. Satis-feito com a resposta?

Curioso como só, imaginou o que deveria ser. Queria ganhar tantas medalhas quanto possível e superar seu pai até mesmo no menor dos detalhes, inclusive os marcos que ele estabelecera enquanto treinava. Seria difícil, mas se queria superar essa traição, era o melhor caminho a ser tomado...

195

Page 196: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

Cap. 53 – Motivos

esitação. Qlon tomou um longo fôlego. Já estavam treinando aquilo a muitas semanas e Qlon nem sequer conseguiu tocar em sua mestra. Ele decidiu não usar magias, já que aquilo avaliaria sua capacidade

única de combater. Arrependia-se da decisão. Apesar disso, estava voltando ao seu vigor inicial. Aumentando-o, inclusive. Deveria ser a criança de quase seis anos mais musculosa do universo.

H– Tudo bem, chega por hoje. - Parou-o Lua, aparentando um grande can-

saço. - O sol já se pôs.

Os últimos três dias estavam extremamente quentes, abafados. Isso indicava que uma tempestade estava a caminho. Por vezes, o céu não mostrava nuvens. Apenas aquela bola de fogo caminhava pela grande abóboda celestial. Qlon reti-rou a armadura. Suas vestes estavam ensopadas de suor. Foi até a beira do lago e pegou água com as mãos em concha para beber. Lua apenas sentou-se e lar-gou o escudo de lado.

– Você está progredindo. Pelos céus Qlon, parece que sua força e conheci-mento crescem em medida exponencial. Se continuar nesse ritmo, pode-rá ser um general com dez anos de idade, quem sabe menos!

Qlon sorriu enquanto molhava seu pescoço com água gelada. Os poucos elo-gios que Lua fazia deixavam-no bastante feliz. Ele progredira muito com o uso do punhal, e sabia até mesmo segurá-lo de forma mais eficiente. Assim que os trei-nos acabavam, ele fazia a Sanctus voltar à sua forma de espada. Aquele poder era muito conveniente. Poderia treinar com qualquer arma de contato corporal, bastaria moldar sua espada para tal fim.

– Quando chegar a hora de seu desafio final, batalhando contra mim, espe-ro que faça com a mesma voracidade que faz agora. Quanto empenho! Apesar de ainda ser jovem e inexperiente, poderia derrotar um grupo de soldados altamente treinados, não tenho dúvidas! - Prosseguiu sua mes-tra com os elogios.

– Obrigado, mestra, mas creio não ser para tanto. Parece estar menospre-zando a qualidade de nossos soldados. - Tentou pará-la, antes que ficas-

196

Page 197: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

se ainda mais encabulado.

– Pelo contrário. Por superestimá-los, sei exatamente o que falo. Qlon, com mais alguns anos de treinamento, poderá derrotar um exército intei-ro em um piscar de olhos.

De súbito, recordou-se de Filipos. Ele fora treinado entre os demônios, mas passou para o lado dos anjos. Também fora um potente soldado, e se possuía a mesma quantidade de força que Qlon e a mesma origem dos poderes... Não fa-zia sentido cometer suicídio. Ele poderia ter acabado com tudo e ter feito com que aquela maldição não houvesse alastrado-se até o tempo em que vivia. Não, alguma peça do quebra-cabeças estava mal-encaixada. Simplesmente desistir de sua vida para auxiliar a próxima geração... Não fazia sentido. De qualquer for-ma, aquela não era a hora ou o lugar para pensar naquilo. Estava cansado e fa-minto, mas ainda tinha um compromisso naquela noite.

– Obrigada por vir. - Dizia Jolie em seu vestidinho camponês de cor lilás. - A ocasião não é tão formal assim, mas... Já que somos os únicos aqui que ainda recordam de meu irmão...

Jolie, que estava elegantemente vestida para uma criança naquela noite, fala-va como se Heitor estivesse morto. A ocasião era o aniversário do soldado que acabara de formar-se. Como ele e a irmã nunca haviam comemorado um em companhia do outro, já que quando Jolie nasceu Heitor estava em treinamento e ele conhecia ela apenas um pouco por cartas que recebia, ela havia decidido co-memorar o aniversário do irmão mais velho. Não seria a mesma coisa com sua ausência, mas era apenas algo simbólico para sentir-se mais próxima dele.

– Não fale assim. Ele não é apenas uma lembrança. - Repreendeu Qlon. - No mais, vamos aproveitar a noite.

Jolie ouviu a barriga de seu amigo roncar.

– Não jantou ainda, não é? Tudo bem, temos bastante comida!

Os dois jantaram em uma toalha estendida na grama do lado de fora do caste-lo. Banqueteavam-se com carne assada e um coquetel de frutas com gotas de li-cor. Passaram o resto do dia conversando.

– Foi difícil, Qlon. - Puxou assunto Jolie, com um pouco de vergonha. - Difí-cil demais conhecer seu próprio irmão através de cartas. Nunca pude es-tar ao lado dele nos eventos com nossa família, mas eu sentia sua falta. Eu podia sentir suas emoções nas suas palavras. É tão difícil... Passei tão pouco tempo com ele...

197

Page 198: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

Qlon sabia do que ela falava. E como sabia. Ao menos ele esperava que Heitor não se tornasse uma decepção para a irmã em um futuro próximo. Ele não sabia o que dizer, então apenas passou a mão em seu cabelo, afagando-a. Ela conteve o choro com pequenos soluços. Sentia um pouco de inveja. Jolie apoiou a cabe-ça em seu ombro e passou a vislumbrar o céu noturno, que ao fundo estava com um estranho brilho alaranjado.

– Jolie, corra para dentro. - Pediu Qlon.

– Por quê? - Perguntou, confusa, olhando para Qlon, cujos olhos ainda fita-vam o céu noturno.

– Corra e avise Silverius. Mais uma batalha está por vir.

Qlon esperava por algum movimento na saída da principal entrada da Base en-quanto Lua estava lá dentro. Ele viria mais uma vez. Estava quase certo que vi-ria. Dois ataques em um curto espaço de tempo a um antro de mestres? Os de-mônios não seriam burros o suficiente para gastar suas tropas com motivos ba-nais, ao menos acreditava que não. O que quer que seu pai havia ido buscar aquela vez, provavelmente não havia conseguido. Lua ordenara que ficasse no castelo, mas ele não deu atenção. Além do mais, ela era a guardiã da caverna que Ronan usara como passagem pela última vez. Ele entraria, por certo, pelo mesmo lugar. E quando ele adentrasse o território da Base, seu filho o seguiria de longe. Tinha apenas um medo: de seu pai matar Lua no meio do processo.

Sons metálicos na caverna. Qlon, que estava esperando sentado, já quase dormindo, colocou-se em estado de alerta. Escondeu-se atrás de algumas árvo-res ao longe e ficou espiando a entrada. Enquanto os mestres davam cabo do exército que vinha pelo ar, Lua conseguia, aparentemente, deter a invasão por terra. Os sons eram rápidos e fortes, como se acontecessem do seu lado. A bata-lha lá dentro estava, por certo, muito feroz. De súbito, os sons cessaram. Apenas as explosões do combate principal podiam ser ouvidas ao longe misturados ao som do vento daquela noite de céu sem nuvens. Esperou. Esperou... Uma rápida sombra passou correndo em direção ao castelo. Não pôde enxergar com perfei-ção, mas sabia quem seria o único capaz de derrotar Lua. Com passos furtivos, seguiu-o em meio às sombras.

Eles adentraram o castelo pelo lago, justamente como previu Qlon. Seu pai planou com mestria pela cristalina superfície da água e subiu pela escadaria prin-cipal, entrando pela porta da frente. Quem diria. Ao passar, nocauteou três guar-das que, pelas expressões que mantinham em seus rostos desacordados, nem sequer viram o que os atingira. Seguiu pelo saguão principal e passou por dúzias

198

Page 199: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

de corredores. Sua nova manta negra balançava de uma forma espectral, dando impressão que as próprias sombras se moviam nas paredes. Mas Qlon não per-deu o foco. Corredor após corredor, dava passos leves e controlava a distância.

Por fim, seu pai havia chegado em um beco sem saída. Qlon pousou o punho sobre o cabo de sua arma, preparando o bote. Mas, antes de atacar, observou mais um pouco. Ele não parecia perdido. O lugar que ele adentrara era um dos muitos becos sem saída do castelo. Nele, duas estátuas de anjos ajoelhados mantinham as mãos juntas, com suas faces voltadas ao teto, de olhos fechados. Ronan colocou sua mão sobre a cabeça da estátua da direita e abaixou-a, fazen-do com que olhasse para o chão. Um conjunto de engrenagens foi ouvido ao lon-ge e um alçapão surgiu no meio da sala. Ronan abriu-o e pulou, deixando a porta aberta. Qlon contou alguns segundos e foi atrás dele. Olhou pelo alçapão. Nada. Apenas um profundo escuro. Olhou para os dois lados para ter certeza que não haveria alguém olhando. Abriu suas asas e pulou dentro, planando.

O duto era escuro, longo e estreito. Cerca de dois metros quadrados, se muito. Suas asas, que já estavam enormes, mal cabiam ali dentro. Elas estavam quase com o mesmo tamanho de asas de um adulto, e isso surpreendia. Estava caindo a cerca de dois minutos e o solo não chegava. Provavelmente já teria passado até mesmo do nível de seu humilde quarto. Se estivesse com sua bolsa, até teria acendido sua luminária, apenas para ficar um pouco mais confortável. A luz pro-veniente do castelo, vinda da abertura do alçapão, já era apenas uma pequena fagulha ao longe. Por fim, viu algo abaixo de seus pés. Uma luz de um verde azu-lado. Com cuidado, foi planando cada vez mais devagar, até atingir o piso.

– Eu sabia que viria, filho. - Disse Ronan, de costas para ele. - Está bus-cando suas respostas, não é? Eu já disse, não tenho tempo suficiente para tal.

O lugar em que estavam era bem... Atípico. O solo era de vidro. E abaixo dele... Muito, muito abaixo dele... O oceano. Era a primeira vez que via-o com seus próprios olhos. A luz da lua batia em suas águas e criava uma iluminação de cor azulada, que fundia-se com... Olhou novamente para onde seu pai estava para ter certeza que não estava enganado.

Ronan estava na frente de um altar gravado por inúmeras escrituras. Um altar simples, com mais nada ao seu redor. Apenas um pedestal de pedra de cerca de quarenta centímetros quadrados. Segurava sua espada avermelhada na altura de sua cintura, mas não parecia que poderia usá-la mais uma vez: sua lâmina estava completamente rachada. Na frente dele, em cima do altar de pedra, flu-tuando a apenas alguns centímetros da rocha, parecia brotar a raiz de uma plan-ta, que contorcia-se até chegar a uns quinze centímetros de altura. Uma raiz es-verdeada, que emanava um brilho incomum. Sim, raiz de Yggdrasil. Sabia que já havia visto aquela cor em algum lugar.

199

Page 200: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

“O piso de vidro não fazia muito sentido no começo, mas após ver a planta de Yggdrasil ali... Meu cérebro fundiu parcialmente. Já não entendia mais nada.”

– Dê-me sua espada, Qlon. É apenas um empréstimo. Após cortar um pe-daço desta raiz, eu devolverei.

Qlon estava mais cheio de perguntas do que antes, mas, mantendo a calma, respondeu secamente:

– Não. Dê-me antes um bom motivo.

– Já disse que não possuo tempo para explicações, filho. Ande, tempo é uma regalia que não possuo!

– Já disse que não. Se quiser, tome-a de mim. - Disse Qlon tentando con-ter emoções, sacando-a de sua bainha.

O rosto de seu pai contorceu-se em uma feição de irritação, mas, logo após, ele respirou fundo e voltou ao estado normal.

– Filho, não temos tempo para isso. Confie em mim!

– Confie em mim? - Qlon soltou uma risada irônica. - Torna-se um demônio ao abandonar sua família, ataca seu próprio filho sem sequer dar motivos para tudo que está acontecendo... E pede confiança? Ronan...

Ronan sentiu uma estranha dor no peito. Seu filho chamava-o pelo nome. Sim. Tinha ido longe demais com seus planos originais. Se ele apenas não tivesse crescido com tamanha curiosidade... Contendo as lágrimas em seus olhos, es-tendeu a mão.

– Dê-me por bem, ou realmente precisarei tomá-la à força.

– Eu sugiro que, antes, tire sua mão daí ou acabarei por cortá-la. - Respon-deu seu filho, colocando-se em postura de combate.

– Tem certeza que é isso que quer? - Perguntou seu pai, dando uma nova chance.

Qlon nada respondeu, apenas continuou a olhá-lo fixamente nos olhos.

– Novamente... Se é assim que deseja... Então é assim que terá!

Partindo com grande força, usou sua espada para golpear Qlon. O golpe foi lento e sem força. Qlon pôde pará-lo com a mão nua.

– Não entendo como pode existir um demônio que tenha piedade de suas presas. Você consegue. - Qlon disse, olhando o rosto de seu pai. - Não espere o mesmo de mim.

– Não espero. - Respondeu friamente seu pai. - Espero é que não se ma-

200

Page 201: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

chuque, filho.

Ele queria dizer o quanto seu filho era importante para ele, mas tais palavras não sairiam tão cedo de sua boca. Demonstrar emoções poderia comprometer seus planos. Apenas recuou em um pulo. Sua lâmina desgastada não sobrevive-ria àquela batalha.

– Que tal uma batalha sem armas? - Sugeriu Ronan. - Se pretende matar-me, que a batalha seja justa ao menos, não concorda?

Qlon percebeu o que ele queria. Ainda assim, colocou a espada em sua bainha novamente.

– Não tirará a arma de sua cintura? - Perguntou seu pai.

– E dá-lo a chance que a pegue no meio da luta? Esqueceu-se que não te-nho motivo algum para confiar em você? Vamos, se queria lutar desar-mado contra mim, essa é sua chance.

Ronan atacou-o com um soco na barriga. Qlon defendeu com os dois braços cruzados e deslizou alguns metros para trás no vidro. O vidro rachou um pouco, mas regenerou-se sozinho. Estranho. Qlon contra-atacou com um chute forte na altura da cabeça de seu pai dado com o calcanhar, girando sobre seu eixo. O golpe pegou em cheio, fazendo seu pai rodopiar e cair de joelhos.

– Ora, ora... - Disse, limpando o canto de sua boca, por onde um curto file-te de sangue escorria. - Faz tanto tempo que não uso os punhos para lu-tar que acabei esquecendo os movimentos de ataque e defesa...

Levantou-se e olhou para seu filho, que usava uma postura de combate um pouco diferente de quando estava com uma espada em mãos. Sua base estava muito aberta, com os joelhos bem flexionados. Um de seus braços estava dobra-do, com o punho fechado na altura de seu peito. O outro braço estava completa-mente estendido na altura de seu ombro, e sua mão estava aberta com a palma voltada para seu inimigo.

Qlon atacou novamente. Um pulo e um potente soco na barriga vindo com o braço de trás, que seu pai segurou com uma mão, apresentando certas dificulda-des. Com a perna de trás, girou o corpo e, com um movimento semelhante ao do chute anterior, fez com que seu calcanhar atingisse o topo da cabeça de seu pai. Com a potência do impacto, seu pai soltou seu punho e, como resultado, ia cair de boca no chão. Na metade do caminho, Qlon girou seu corpo para trás, apoian-do as mãos no chão, e usou a perna oposta àquela que atacou para chutá-lo no queixo, enquanto completava o movimento. Ronan envergou-se para trás e caiu no chão.

– Filho... Você é forte... - Disse, desnorteado. - Muito, muito forte. Mas eu não... Não tenho tempo para gastar aqui.

201

Page 202: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

Apesar dos golpes em pontos críticos, Ronan não fora nocauteado. Pelo con-trário, parecia estar bem até. Seu filho sentiu vergonha de ter apagado com um simples encostão em sua nuca da vez passada, E parece que foi o mesmo movi-mento que Ronan voltaria a usar. Dessa vez Qlon não cairia no mesmo truque. Antes que a mão de seu pai, que rapidamente se moveu para trás do seu corpo, tocasse a parte posterior de seu pescoço, ele abaixou-se e, como um animal, deu um coice na barriga de seu pai, arremessando-o para trás.

– Belo movimento. - Elogiou. - Já vi que não sairei bem nessa luta.

Cambaleante, levantou-se. Qlon mantinha sua postura de combate, e cada vez mais fechava a sua cara. Seu pai apenas testava-o, e ele sabia disso. Infelizmen-te para ele, era impossível testar os limites de alguém que sabia ser mais forte. Nunca se sabe quando a superioridade do inimigo vai surgir e superar a sua for-ça. Nesse caso, é melhor lutar com todas as forças logo de início. Ronan, para sua surpresa, pegou sua espada do chão e sorriu para ele, cuspindo um pouco de sangue ao lado. Enrolou-se em sua capa – criada com mágica elementar – e, antes que seu filho esboçasse qualquer reação desapareceu no ar.

Qlon suspirou aliviado. Ao sair daquela estranha sala e fechar o alçapão, gra-vando como chegara até ali, dirigiu-se para sua cabana, onde encontrava-se agora. Deitado em sua cama, suspirava aliviado. Sua espada fora atirada em um canto ao chegar. Jogou-se em sua cama, completamente exausto. Antes de dor-mir, preocupou-se com Lua. Deveria ter verificado, antes, como ela estava.

– Acorde aluno! - A voz de sua mestra falava em seus sonhos, mais uma vez.

Qlon abriu os olhos, ainda no torpor de ter acabado de acordar. Lua estava em sua frente, com seu corpo completamente enfaixado. Olhou assustado para ela e perguntou:

– Mestra! … Está bem?

– Oras, Qlon! - Respondeu com um tom firme. - Eu pareço bem para você?

– …

– Seu pai parece um vulto. Ele não está em lugar nenhum. Posso afirmar que foi a luta mais difícil que já tive, e perdi. Ao menos deixei minha mar-ca nele.

– Deixou? - Perguntou Qlon, tentando lembrar de alguma cicatriz que seu pai carregava na batalha de ontem.

– Bem, não foi uma marca externa... A batalha estava parelha. Aliás, pare-

202

Page 203: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

lha não. Seu pai estava dando-me uma surra, para ser sincera. Ele pare-cia estar poupando forças, ou apenas evitando me atingir seriamente. De qualquer jeito, nem minha força máxima foi capaz de dar um jeito. Usar magia contra ele era impossível. Teleporte, controle de matéria, magias elementais... Ele defendia, esquivava, evitava, tirava minha concentra-ção. Ele realmente sabe como lutar, não me dava tempo para nada. Quando eu estava quase desmaiando de cansaço, consegui reunir o res-to de minhas forças e aplicar um golpe fantasma nele. Atingiu-o em cheio nas costelas e ele urrou de dor. Deve ter ficado com o pulmão perfurado. Sem magias de cura, ele morreria logo. Deve apenas ter estancado o sangramento com a força de seus músculos...

“Sim. Ele estava lutando comigo debilitado, e por isso eu consegui quase ven-cê-lo. Sabia que aquela era a única explicação lógica que havia para que eu ti-vesse derrotado-o. Eu sabia que minha força não teria ficado tão maior assim em um curto espaço de tempo. Ainda assim, eu tinha capacidade latente para derro-tá-lo. Mesmo com uma ferida daquela gravidade, ele conseguiria derrotar um ba-talhão de demônios se quisesse.”

– Eu tive que ir até a enfermaria e enfaixar-me sozinha para que os outros mestres achassem que eu estava bem. - Continuou. - Esperei que um CERTO ALUNO me socorresse, mas eis que me deparo com ele dormin-do. Não é?

Deu um sorriso penetrante com um olhar rancoroso, que significava apenas uma coisa: “aguarde pelo treino de hoje”.

– Vai contar-me o que aconteceu hoje ou não? - Arfava Lua ao final de mais um treino concluído.

Qlon estava caído na grama. Mal podia sentir suas pernas, seus braços... Seu corpo. Lua ainda estava de pé, mas sentia quase o mesmo. No treino daquele dia, Lua resolveu intensificar as lições. Ou seja, ela também tinha o direito de ata-car.

“Pode parecer estranho mencionar ataques com um escudo de duas mãos, mas eles são possíveis, ainda mais levando em consideração o peso do equipa-mento. Mesmo dentro da armadura eu sentia os impactos. Gastei mais tempo es-quivando do que atacando. Fora que com aquele punhal seria praticamente im-possível alcançar minha mestra e acabar com o teste.”

– Bem... Mestra, sabe alguma coisa sobre um compartimento secreto nes-te castelo?

– Um? Qlon, este é um castelo. - Dizia, quase fazendo graça de seu pupilo. - Está cheio de passagens e câmaras secretas. Achou alguma em espe-

203

Page 204: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

cial? Já achei uma que dava acesso a um jardim secreto certa vez...

– E uma que desse acesso a uma sala centenas de metros abaixo do solo, com um piso de vidro que mostrasse o oceano abaixo de nós e um altar especial que portasse um pedaço da sagrada raiz de Yggdrasil, que esti-vesse flutuando no ar?

Lua olhou espantada para ele.

– Existe isso aqui? - Perguntou, ainda incrédula.

– Sim, existe. E se quiser posso mostrar o lugar depois. Eu simplesmente não entendo. O que algo assim estaria fazendo aqui? Como veio parar aqui? Não faz sentido.

– Qlon... Eu não faço ideia do que responder.

– É... Mas eu faço. - Disse Qlon, surpreso por não ter pensado nisso antes.

Era noite. Mais uma vez estava deitado em sua cama. Olhava o reflexo em sua espada. O reflexo de sua alma. Tentava enxergar algum detalhe, qualquer deta-lhe, que também mostrasse Metatron e Sandalphon. Nada. Apenas o reflexo de seu rosto. Já estava tarde. Ele deveria chamá-lo o quanto antes. O dia seguinte seria ainda mais cansativo.

– Filipos! - Ergueu o tom de sua voz para chamá-lo.

De uma forma aterrorizante ele surgiu das sombras, dando a impressão de que fosse um conto de terror.

– Eu tenho dúvidas. Perguntas que precisam de respostas, e dessa vez não aceito que negue-as.

– A decisão de negar ou não é minha. Entenda: certas coisas ainda não está pronto para saber. Eu, como seu guia espiritual, estou aqui justa-mente para dar tudo ao seu devido tempo. No mais, para quê precisa de minha ajuda? É para saber sobre a raiz de Yggdrasil no subterrâneo des-te castelo?

A espinha de Qlon gelou. Ele realmente estava ao seu lado o tempo todo.

– Acho que o plano original não vai dar certo. - Disse um elegante anjo caí-do de fraque enquanto Ronan curava suas feridas com magia. - Deve-mos alterar a estratégia?

Ronan meneou a cabeça afirmativamente. Na situação que estava, não podia ter o luxo de errar.

204

Page 205: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

Cap. 54 – Elos de Ligação

stava perplexo. As perguntas pareciam multiplicar-se em sua cabeça. Ele queria respostas imediatas. Do outro lado, Filipos mantinha a única expressão que costumava fazer. Talvez a história de que os mortos não

sentem nada fosse verdade. Qlon até acreditaria caso não tivesse visto a ira de seu mestre espiritual anteriormente.

E– E então? - Perguntou Filipos. - Faça suas perguntas. Estou aqui para

responder aquelas que estiver pronto para sorver.

Qlon pensou bem naquilo que perguntaria. Filipos não deixaria escapar nem por um segundo o que mandara Ronan fazer, então deveria pensar em outra coi-sa para perguntar, o quanto antes.

– O que a raiz de Yggdrasil faz nesta dimensão? - Perguntou lentamente, observando a expressão de Filipos como quem esperasse por um sinal se aquela era a pergunta certa. Sem sucesso.

– Qlon, para responder sua pergunta, eu faço mais duas. Primeira: Como acha que o continente de Seal vaga acima das nuvens?

Qlon pensou por alguns segundos e, obviamente, a resposta veio nítida na sua mente:

– Magia, obviamente.

– Claro. A regra gravitacional ordena que todo corpo exerce uma força de atração sobre outro corpo. Essa força de atração depende de sua massa. A massa do planeta abaixo de seus pés é infinitamente superior à massa de Seal, e estamos em seu campo gravitacional, ou campo de atração. Apenas magia poderia içá-lo nessa altura, ou uma tecnologia incrivel-mente complexa. Mais simples usar a magia. É uma magia muito avan-çada para que aprenda agora, mas pode ao menos saber seu nome.

– E o que de mais tem essa magia? - Perguntou, demonstrando amplo in-teresse.

– Ela manipula a gravidade. É uma magia muitíssimo complicada. Poucos

205

Page 206: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

são aqueles que exercem controle sobre tal poder.

– Deixe-me adivinhar...

– Sim. - Completou Filipos. - Você possui esse dom herdado por Metatron e Sandalphon. Prosseguindo... Tal magia demanda uma quantidade ex-trema de energia. Uma quantidade tão brutal que um ser comum gastaria toda sua energia espiritual em apenas três dias ao içar esse continente. Claro que os anjos não iriam conseguir suprir tal demanda. E, claro, para sua missão seria impossível misturar-se aos mortais. A única coisa em toda a existência que teria a capacidade de suprir a necessidade...

– Era a própria árvore da vida! - Exclamou Qlon, com sua visão tão clara quanto um céu ensolarado. - A Yggdrasil é uma fonte infinita de energia!

– Exatamente. Com isso, Galadriel fez um pedaço de sua raiz vir para este plano. Apenas um pequeno pedaço seria suficiente. Ao seu redor, cria-ram uma sala ampla com a magia seladora. É isso que sustenta o conti-nente no ar. Agora, a segunda pergunta: Por que acha que a guerra acontece aqui? Os demônios poderiam muito bem tentar voar para a Lua com seu teleporte e invadir por lá. Mas por que não o fazem?

Para isso Qlon não sabia a resposta. Por mais que se esforçasse para tentar explicar, sua expressão contorceu-se em uma dúvida.

– Qlon, se iríamos montar uma base aqui, seria também necessária uma isca. Uma isca para que os demônios tenham o desejo de atacar esse continente, e então os anjos montar sua defesa. Apenas o poder ilimitado da Yggdrasil não seria suficiente. Primeiro, pois é impossível cortar Ygg-drasil. Apenas sua arma pode conseguir tal feito. Segundo, e mais impor-tante, sabe o que acontece quando um objeto está atravessado entre duas dimensões?

– Não, mas algo me diz que a resposta está na minha cara...

– E está. - Concordou Filipos. - Um portal é necessário para que duas di-mensões possam ser atravessadas. Logo...

– A raiz também guarda um portal!

Filipos assentiu, meneando a cabeça. As peças aos poucos eram encaixadas, como em um enorme quebra-cabeças que, infelizmente, estava longe de ser ter-minado.

– Mas não entendo ainda...

– Se for em relação ao seu pai, desista de pergunta. - Advertiu-o Filipos, in-terrompendo a próxima pergunta. - Já disse que qualquer assunto rela-cionado ao seu pai está fora de questão no dado momento. Ainda é cedo

206

Page 207: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

demais para que saiba.

– Apesar da minha imensa vontade de perguntar sobre ele, eu já entendi o recado e estou contendo-me. Eu quero é saber... Por que na Base? Por que não no castelo da família real em Aeria?

– Ótima pergunta. Qlon, Aeria é nossa última linha de defesa. Se a chave para a entrada dos sete céus fosse guardada lá e a cidade fosse tomada, eles chegariam aos sete céus tão rápido que não haveria tempo de mon-tar reforços para afastá-los. A Base é, além de uma rota de fuga para so-breviventes, o último ponto de resistência. Aqui estão os maiores mestres que, apesar do poder para virarem generais, decidiram guardar este lu-gar com suas vidas, mesmo sendo poucos.

– Quantos sabem desse segredo? - Perguntou Qlon, um tanto quanto intri-gado. Aquilo, afinal, não parecia ser de conhecimento geral.

– Apenas aqueles que buscam o saber. - Respondeu seu mestre espiritual. - Entenda: o conhecimento é livre, o que falta é interesse. Por exemplo, muitas dessas coisas eu que contei ao seu pai e...

Filipos ficou calado. Percebera. Havia falado demais. Ainda assim, não daria espaço para mais perguntas.

– Deseja mais alguma coisa de mim? Mais alguma resposta?

– Só mais uma: se o poder ilimitado da Yggdrasil é usado para manter esse castelo no ar, por que não utilizá-lo para combater os demônios?

– Pelo mesmo motivo que aprendeu que os serafins tiveram parte de seu poder removido. A Yggdrasil é poderosa demais. No caso do continente, sua infinita energia está sendo usada de uma forma não danosa. Mas se concentrada em um ataque, pode imaginar o estrago?

– Sim... Bem, acho que não tenho mais dúvidas. E as que tenho sei que ja-mais dirá. Então... Obrigado pela ajuda, Filipos.

Filipos sorriu e curvou-se como reverência. E, da mesma forma que veio, su-miu. Toda vez que ele aparecia, dava mais perguntas do que soluções. Mas tudo bem. Cedo ou tarde, ele descobriria sozinho as respostas.

– Já está quase conseguindo! Isso é formidável!

Lua surpreendia-se a cada movimento dado por Qlon. Passara a usar fluidez nos movimentos. Investia mais em seu jogo de corpo do que em golpes, e aquilo aumentava ainda mais seu potencial. Seus golpes eram rápidos e certeiros. Se não fosse a capacidade defensiva de Lua, com certeza ele já teria passado no

207

Page 208: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

teste.

O dia estava em seu fim. As nuvens distantes mal tapavam o sol, que caía hori-zonte, por detrás das montanhas. As estrelas e a lua já podiam ser vistas no céu de um azul oceânico. Qlon cessou a movimentação. Pouco ofegava. A essa altu-ra, a armadura não era mais um empecilho. Aprendera até mesmo a usar seu peso como um benefício, quando pegava impulsão de um movimento para outro – algo que sua mestra explicou chamar-se “movimento em cadeia”.

– Que tal uma aposta, Qlon? - Perguntou sua mestra, visivelmente excita-da vendo o fruto de seu trabalho árduo.

– Aposta? E o que apostaremos?

– Você tem até o pôr do sol para conseguir acabar com esse teste. Se con-seguir, realizarei um pedido seu. Claro, um que estiver ao meu alcance. Se eu vencer... Você fará uma poesia de amor para Jolie!

Qlon sentiu seu rosto ferver por debaixo da carcaça de metal que o cobria.

– Por que apostar isso? - Perguntou o inocente anjo, visivelmente irritado com a “recompensa” de sua mestra.

– Por que não? - Perguntou ela de volta. - Além do mais, vou concedê-lo um desejo qualquer. Sua recompensa não é alta o suficiente para equi-parar-se com a minha? E ande logo, em menos de cinco minutos o sol desaparecerá completamente.

Qlon pensou por alguns segundos e aceitou, meneando a cabeça. Lua sorriu e colocou-se em posição de combate.

“Afastei meus pés e escondi a adaga em minhas costas com as duas mãos. Aprendi com o passar dos dias que a melhor tática para usar armas curtas como aquela era escondê-las nas costas. Apenas em um raio de ação curto o suficien-te para o oponente ser atingido, determinado pelo tamanho do braço, a mão e a forma de ataque eram decididas. Na teoria parecia simples para funcionar, mas eu era muito menor que minha mestra. Ainda assim, olhei em seus rosto que, guardado pelo escudo, deixava à mostra apenas seus claros olhos.”

Qlon correu. Inclinou o corpo para frente e manteve os olhos fixos no alvo, como Lua ensinara. Aproximou-se o suficiente para tomar mais um golpe de Lua com aquele imenso instrumento de defesa. Deixou-se abater pelo golpe, que nada mais foi que sua mestra empurrando o escudo para frente, e agarrou seu escudo com uma mão. Lua ficou surpresa. Antes que ela puxasse seu escudo de volta, Qlon deu as costas para a arma defensiva de sua mestra e rolou por sobre ele, caindo entre o escudo e Lua. Quando Lua deu-se por si, seu pupilo tinha uma abertura imensa em sua defesa. Precisava atacar. Mirou um de seus golpes fantasmas no peito de Qlon, mas, mesmo com a onda de impacto, este não retro-

208

Page 209: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

cedeu e nem diminuiu a velocidade. Antes que a ponta da Sanctus parasse a apenas um centímetro de sua barriga, ela arregalou os olhos. Seu golpe fantas-ma não era mais eficaz.

– Qlon, preciso fazer uma pergunta. - Disse Lua, encostada no tronco da árvore do mesmo lugar de treinamento que usaram por bastante tempo enquanto seu aluno retirava a pesada armadura e a abandonava no solo ao seu lado, empilhando-a. - Você esteve guardando sua força de mim por todo esse tempo?

Qlon sorriu com aquela pergunta. Se ele havia fortalecido ao ponto de preocu-par sua própria treinadora, estava no caminho certo.

– Não. - Respondeu com a voz confusa. - Você está ferida, percebi que seu rendimento caiu. Além do mais, senti que havia muita coisa em jogo naquele momento.

Lua riu. Aos poucos, seu aluno a ultrapassava. Bem aos poucos, mas já podia ver o que aconteceria em poucos anos. Talvez em um ou dois. Ele já estaria tão forte que nem mesmo ela seria capaz de treiná-lo. Talvez ninguém mais seria. Ele deveria começar a progredir sozinho, cada vez mais.

– E então, já decidiu qual será seu desejo?

Qlon havia pensado nisso por algum tempo. Talvez a bastante tempo. Sim, ti-nha um pedido.

– Gostaria de, no começo do outono, poder visitar a minha família. Ao me-nos por um dia.

“O tempo que passara nos sete céus, a recente leitura do Livro das Eras e o encontro com seu pai me levaram a essa decisão. Eu sentia falta de minha mãe. Sentia falta de meus avós. Queria vê-los. E, como complemento, queria saber do que se tratavam as cartas que minha mãe recebera. Também queria conversar com meu avô sobre as treze famílias, as funções dos castelos... Se fosse apenas por um dia para matar saudades e fazer certas investigações, que fosse um dia proveitoso.”

– Hummm... - Lua meditou por alguns segundos. - Acho que posso arrumar isso. Contudo, precisará encobrir isso como parte de sua próxima mis-são. Sabe como são as regras. Vou dar um jeito nisso.

O céu ganhava, cada vez mais, a tonalidade negra da noite. E mais um dia de treino ia embora.

“Aos poucos, o verão foi passando. Meu pai não retornou mais durante aquele

209

Page 210: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

período de guerra. Eu tinha esperanças de vê-lo novamente e, com a força e mestria que havia adquirido, arrancar dele algumas respostas. Claro, apenas em minha tola imaginação. Ele ainda era muito mais forte que eu. Minha mestra foi retirando seus curativos durante o resto da estação. Cura com magia era uma opção, mas ela preferia deixar o tempo encarregar-se de suas feridas. Dizia que a cura por métodos mágicos era um pouco exaustiva e dolorida. Preferia a magia medicinal das poções e ervas. No mais, treinei o uso de armas de curto alcance, mas ainda não havia preparado-me com armas maiores. No máximo, cheguei ao ponto de usar uma espada curta, que era um pouco maior que uma faca de com-bate e menor que uma espada de uma mão. Leve e mortífera. O treino seguinte seria avançar no ramo da magia. Mas, antes disso, era hora da nova missão. Eu esperava uma que me rendesse inúmeras medalhas novamente. E, um dia após o retorno do exército, eu recebi o papel das mãos de lua. Foi após a janta, um pouco antes de eu ir aos meus aposentos.”

Qlon abriu o bilhete, excitado. Aguardou por aquilo durante muito tempo. Ao acabar de desdobrar o pedaço de papel amarelado, a surpresa. Qlon levou a mão à boca, demonstrando preocupação. Lua mantinha um olhar sério sobre ele.

– Você sabe que algo dessa magnitude vai demorar muito mais do que uma simples estação, não sabe? - Perguntou Qlon, tentando ainda pro-curar palavras para descrever sua nova missão.

– Sim, sei. Mas apenas faça. Estou com um plano em mente.

– Um plano? - Qlon franziu o cenho. - Bem, espero que esteja calculado em seu plano a probabilidade de eu não voltar vivo.

– Sim, está. Mas entenda: tive de conciliar uma missão difícil ao fato de você precisar encontrar a realeza. Ah, já enviei uma carta para seu avô, o rei Irving. Sua partida será amanhã pela manhã. Terá três dias com sua família.

– Bem... Obrigado. Mas creio que não serei capaz de cumprir essa missão.

– Qlon, você é um pequeno anjo que já deveria estar acostumado a trans-formar o impossível em realidade. Olhe para tudo o que já fez. - Elogia-va-o, tentando reconfortá-lo. - É sim capaz, e acredito nisso. E olhe pelo lado bom: terá os dias que queria com sua família.

– E se eu não tivesse desejado aquilo? - Perguntou inocentemente.

– Teria recebido a mesma missão, posso garantir.

Qlon ainda estava meio chocado com aquela ordem, mas dobrou novamente o papel e colocou em seu bolso.

– Ah sim! - Lembrou-se Lua antes que seu protegido desse as costas e de-

210

Page 211: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

saparecesse nos corredores. - Enquanto estiver em casa, aproveite para pegar algumas roupas mais comuns, irá precisar. Servirá como parte do disfarce.

Qlon entendeu a instrução e concordou, balançando a cabeça positivamente. Em seguida, dirigiu-se ao seu leito para dormir. Ou tentar.

– E então? - Perguntou Lua, tentando puxar assunto. - Despediu-se de sua namorada?

– Ela não é minha namorada. - Respondeu Qlon secamente, enquanto co-locava a alça de sua bolsa no ombro. - E não, não o fiz. Não deu tempo. Poderia avisá-la por mim?

– Sim, posso.

– Tome conta dela, também.

– Vou fazer o possível. - Respondeu sua mestra enquanto via o aluno aca-bar de atar a espada à cintura. - Boa sorte, Qlon.

– Obrigado. Dessa vez, só ela poderá salvar-me.

Tera estava em sua casa quando recebeu a notícia. Corria agora o mais rápido que conseguia para chegar a tempo para o almoço no castelo de seus pais. Ele chegaria logo. Precisava apressar-se. Atravessou a extensa ponte que separava o centro do lago principal. Passou correndo pelos guardas que vigiavam a entra-da e adentrou o corredor principal que levava à sala do trono. O estandarte da fa-mília se erguia por detrás dos assentos dourados coberto por joias e almofadas azul-real. Seus pais já não estavam lá. Subiu as escadarias e foi até o salão de refeições. A cúpula de vidro deixava que a luz do sol mostrasse a mesa já posta, cheia de inúmeras iguarias. Apenas seis cadeiras estavam postas para o ban-quete. O piso, forrado com um tapete totalmente bordado com um desenho que representava a batalha do apocalipse, estava impecavelmente limpo. Seus pais também não estavam lá. Será que haviam ido recepcioná-lo nos portões da cida-de?

– Ah, lady Tera! É uma honra! - Chamou-a a serviçal, colocando uma jarra em cima da mesa. - Posso ajudá-la?

– Onde... Meus pais... - Ofegava, visivelmente cansada.

– Sua majestade foi buscá-lo na estrada que leva à Base com sua carrua-gem, e sua rainha está em seu quarto, acabando de pentear os cabelos com a ajuda das serviçais. Devo oferecê-la um aposento para que seja

211

Page 212: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

devidamente aprontada?

– Vai demorar muito? - Perguntou, preocupada com o tempo.

– Nem um pouco. A princesa Tera está aqui, serviçais, vamos arrumá-la! - Gritou a servente, ajeitando um lenço em sua cabeça.

Irving esperava dentro da carruagem, guiada por seis pégasos, comandados por dois cocheiros. Já devia ser meio-dia quando um deles voltou-se para a pe-quena janela no topo da cabine, usada para os comandos serem passados aos guias, e avisou ao seu mestre:

– É ele, sua majestade. Ele está vindo.

– Recepcionem-no. - Ordenou em um tom autoritário.

Segundos depois, um dos cocheiros se ofereceu para carregar a bolsa de Qlon, que recusou e adentrou a carruagem. Deparou-se com seu avô, vestido so-lenemente, carregando consigo a Espada do Herói, uma arma simbólica que re-presentava a linhagem real. Seu cabo era feito de puro ouro, adornado com dia-mantes, e sua lâmina era curta, típica de uma espada de uma mão. Trajava a capa azulada, com bordas esbranquiçadas graças às penas de grifo, usada, ge-ralmente, em eventos reais e guerras. Por baixo, o manto prateado, preso à cin-tura por uma faixa dourada. Botas do mais fino couro revestiam seus pés. Em sua cabeça, a coroa. O principal símbolo de poder de um rei.

– Meu neto! Como é bom revê-lo! - Disse seu avô, abraçando-o. - Vamos voltar para Aeria! - Ordenou ao cocheiro.

Qlon desvincilhou-se do abraço de seu avô e sentou-se de frente a ele.

– Pelos sete céus, a quanto tempo não nos vemos! Um ano passa muito rápido. Conte-me: anda saindo-se bem nos treinos? Foi difícil de arrumar aquela armadura, espero que esteja sendo útil.

“Meu avô era muitíssimo ligado a mim, e não apenas pela aparência física. Ele dizia que éramos iguais. Ambos tivemos de assumir grandes responsabilidades aos cinco anos de idade. Ele a de comandar o reino, e eu de ser o homem da casa. Claro que não era comparável, mas era apenas um motivo qualquer para ligar-nos. Ao contrário de Ulisses, meu avô paterno, que adorava brincar de lutas comigo, Irving gostava de me dar desafios lógicos. Lembro que ganhei dele um antigo brinquedo humano chamado de cubo mágico. De mágico não tinha nada. Era um cubo que cada face tinha uma cor diferente e era dividida em nove pe-quenos quadrados, que podiam movimentar-se na vertical e na horizontal. O ob-jetivo era deixar todas as faces com a mesma cor. Só descobri como completá-lo em duas semanas. Senti vontade de contá-lo como foi tudo, e partilhar todas as experiências que tive com ele. Infelizmente, sabia que boa parte das coisas ain-

212

Page 213: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

da deveria ser um segredo. Resumi apenas o básico: que estava muito aplicado nos treinos e que todos me consideravam um prodígio. Era o suficiente para que ele ficasse feliz. E, aliás, agradeci pela armadura.”

– São ótimas notícias. - Disse ele, bagunçando os ruivos cabelos de seu neto. - Será um excelente guerreiro como toda a família de seu pai. É ex-celente saber que ao menos um rei será um bom combatente.

Ambos riram. A família Eros não era conhecida pelo poder em combate. Era uma família de magos, tradicionalmente. Irving não saíra diferente. Apesar de usar sua espada como um símbolo durante a guerra, sabia apenas usar mágica de fogo, que era especializado. E, ainda assim, não era tão forte com isso. A tro-pa real entrava em guerra apenas para o primeiro e último dia. Era composta pelo rei e poucos guardas reais, que apenas acompanhavam e davam as ordens. O cargo de rei limitava-se à burocracia.

– Mas, deixando isso de lado, Qlon... Conte-me: qual é a sua tarefa nessa estação?

– Eu... Eu prefiro não comentar. Não agora, ao menos.

– Foi estranho receber um pedido formal de sua mestra para que pudesse descer formalmente ao planeta. É um tanto complicado até para solda-dos comuns fazer isso. A ajuda dos sacerdotes de Colossus é escassa, por isso a maioria de nossos homens apenas desce e volta quando preci-sa. Fora que uma tarefa que envolva isso é incomum para um garoto de quase seis anos.

Era verdade. Em dois dias, faria seis anos. Não se sentia nem um pouco mais velho ou mais adulto, mas ficou perplexo ao perceber que, em meio àquele turbi-lhão que foram os últimos meses, estava perto de completar mais um ano de vida.

– A minha mestra é... Digamos, incomum. Ela prefere que eu tenha o máxi-mo de experiência em campo que puder. Ela acha que a melhor forma de confirmar o aprendizado é usando na prática.

– E está certa. - Disse Irving. - Como é mesmo seu nome? Lua?

– Exato.

– Providenciarei para que seja condecorada quando o seu treinamento for finalizado. Ela parece uma ótima anja.

Se ele soubesse o que ela tinha feito com seu neto no ano anterior, provavel-mente não estaria dizendo aquilo. De qualquer modo, conversaram alegremente matando as saudades de avô e neto, uma relação separada por um ano de inten-sos acontecimentos. Mas estava com ainda mais saudades de sua amada mãe. Precisava sentir seu carinho mais do que nunca.

213

Page 214: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

Cap. 55 – Família

alopavam pelas grandes estradas. Os muros de Aeria já podiam ser vistos no horizonte. Qlon olhava pela janela, saudando sua cidade na-tal com um belo sorriso no rosto. Seu avô o admirava. Esperava ele

que seu sucessor, mesmo que não de sangue Eros completamente puro, fosse um rei maior que todos que o antecederam. Melhor até do que ele.

G– Minha mãe estará presente? - Perguntou Qlon, colocando a cabeça para

dentro da carruagem novamente e ajeitando seus cabelos.

– Sim, espero. Enviei um mensageiro para ela assim que soube das boas novas. Ah! Caso queira, podemos providenciar um cabeleireiro para que arrume seu cabelo. Parece que foi cortado por um amador...

As pontas do cabelo de Qlon estavam um pouco disformes desde a visita aos sete céus. Seu cabelo chamuscara um pouco, e com isso precisou cortar os fios queimados. Aquilo resultara em um penteado completamente “exótico”, com me-chas um pouco maiores que as outras.

– Não será preciso. - Respondeu. - Afinal, parte da honra dos Eros não está em seu cabelo que não é cortado desde a nascença?

– Ora, Qlon, olhe meus cabelos curtos! - Respondeu Irving, rindo. - Isso é apenas um costume qualquer que alguns antepassados criaram para preservar sua imagem “diferente” do resto da sociedade. A maior parte é assim. Não poder misturar famílias, não poder cortar os cabelos... Nada disso conta. Só casar-se com anjos de ordens mais fracas que realmente importa um pouco. Não pelo ato, e sim pela perda de poderes de uma geração para outra.

– Ainda assim. Gosto de meus cabelos. Vou deixá-los como estão.

– Então está bem. Aliás, percebi que aprendeu a guardar as asas. Não é costumeiro que anjos andem assim livremente, mas como estamos den-tro de um espaço pequeno, é útil. Apenas faça questão de exibi-las com orgulho no jantar, tudo bem?

A espinha de Qlon gelou. Esperava que a ajuda de Lua com feitiçaria desse

214

Page 215: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

um jeito naquilo. Os dois ficaram calados novamente. Apenas o som dos cascos dos cavalos chocando-se contra a terra batida podiam ser ouvidos.

– Diga Qlon. - Chamou-o seu avô. - Já pensou como será quando for rei?

– Sim, já. - Respondeu imediatamente. - Mas não gosto muito de pensar nisso.

– Ué, e por que não? - Ficou confuso seu avô.

– Não acho que eu queira envolver-me com política. Parece entediante.

O rei soltou uma risada abafada, arqueando o corpo para a frente. Apoiou as mãos nos joelhos enquanto deixava o ar sair de seus pulmões rapidamente, fa-zendo com que os músculos de sua barriga tivessem uma leve ardência.

– Que é entediante, eu devo concordar completamente. Mas só por isso não gostaria de se envolver? Só por parecer algo cansativo?

– Também. Mas, se quero ajudar meu reino, não vejo utilidade em me tran-car em um castelo e ser rodeado de mimos enquanto as pessoas sofrem nas ruas.

– Ah, Qlon... - Seu avô sorriu brevemente, surpreso com a visão política de seu neto. - Ainda há muito sobre política para que aprenda. Apenas guar-de em sua mente uma coisa: enquanto os mais poderosos fazem as re-gras, os mais fracos tratam de obedecê-las. Acredite ou não, infelizmente sou um funcionário. E o método que adotamos aqui não é muito diferente do que acontece nos sete céus...

– Os anjos de classes mais baixas servem aos anjos de classes mais altas. O sistema é óbvio, e não estou questionando o sistema de regras. Estou mais interessado no sistema de governo do rei.

Realmente. Ele seria um rei muito melhor. A Irving restou sorrir e sentir um pro-fundo orgulho dentro de seu peito. O futuro de Aeria estaria garantido.

A carruagem chegara ao seu destino. O filho pródigo retornava ao lar. Qlon saiu da carruagem, ajudado pelos cocheiros e Irving veio em seguida. Nos por-tões do castelo flutuante – o apelido dado a ele por estar no centro do lago – seus parentes aguardavam. Sua mãe olhava para ele, quase chorando. Sua von-tade era de correr e abraçá-la, mas a etiqueta o impedia. Opal aguardava ao lado de sua filha, com um olhar de orgulho estampado. Ulisses abraçava Yuna pelo ombro, que estava quase chorando. Ela desvincilhou-se de seu esposo e correu para abraçar Qlon, que instantaneamente tivera todo o ar de seu pulmão rouba-do. Ela nunca ligava para a etiqueta convencional.

215

Page 216: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

– Meu neto! Como sentimos sua falta! - Ela berrava, aos prantos.

– Vamos, Yuna, solte-o. - Pedia Ulisses, retirando-a de lá aos puxões. - Terá bastante tempo para seus carinhos mortíferos mais tarde.

Yuna conseguiu ser contida e acalmada por seu marido, que levou-a ao lugar que estavam. Após o rei entrar seguido de seu neto, os outros familiares segui-ram-nos, e atrás deles os empregados.

– Ande, Qlon, estenda as asas! - Incentivava-o Irving, antes que fossem para a mesa.

“Não costumo pedir ajuda à sorte, mas eu esperava que, ao menos daquela vez, eu conseguisse fazer corretamente o feitiço que Lua havia ensinado. A colo-ração nada mais é do que a luz refletida em uma frequência de ondas. Logo, poucos são os métodos para alterar uma cor. Um deles é usar tinta. Algo que ja-mais daria certo. A segunda opção, e mais simples, era alterar a frequência de onda refletida através de um feitiço. A última opção seria alterar a imagem perce-bida pelas pessoas do recinto através de uma magia avançada de controle cere-bral. Traduzindo, algo fora de meu alcance.”

Qlon abriu as asas, usando a magia de imediato. Tera, que estava perto, teve de recuar. Os presentes não se surpreenderam com as cores que, apesar do medo de Qlon, ficaram como o desejado, e sim com o tamanho das asas. As asas de um anjo adulto medem, da junção nas costas até o final da articulação de cada, cerca de dois metros. Chegam a três, quando muito. Qlon parecia ter al-cançado mais de dois metros, com quase seis anos de idade. Todos os cercaram com perguntas, e a concentração estava cada vez mais difícil de ser mantida.

“Anjos de minha idade, naquela época, pouco chegavam a um metro de asas. Ao nascer, as asas ficam ocultas nas costas do recém-nascido e, nos primeiros anos de vida do anjo, crescem muito pouco. Óbvio, não? Como achavam que eram os partos angelicais?”

Após a surpresa, Qlon guardou as asas e todos tomaram seus lugares à mesa, ainda comentando o ocorrido. Ele esperava que aquela fosse a única vez que precisasse mostrá-las. Era difícil demais concentrar-se naquele feitiço, fora o fato de serem espaçosas.

A mesa de jantar estava agitada. Empregadas iam e vinham, enchendo jarras e retirando pratos sujos. Tera aproximara a cadeira do seu filho à sua e limitou-se a afagar seus cabelos e enchê-lo de beijos no rosto. Irving comia calado, apenas escutando as diversas perguntas. Duas vezes havia engasgado, ouvindo sobre os treinamentos nada convencionais que passara. Quando Qlon falou sobre usar

216

Page 217: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

uma armadura vinte vezes mais pesada que o corpo de um adulto quase cuspiu seu vinho mais saboroso. Yuna e Opal ficaram espantadas, e Ulisses gargalhou. Até pedira um duelo com seu neto no dia seguinte, aceito com prazer por parte do jovem anjo. Durante todo o jantar, Qlon conseguia concentrar-se apenas em uma coisa: seu pai. Os acontecimentos recentes haviam rompido completamente a imagem que ele carregava, e agora estava em dúvida sobre contar para todos ou não. Talvez eles soubessem mais do que Qlon sabia, então decidiu calar-se, ao menos até colocar as mãos nas cartas de sua mãe. No mais, aproveitou a noi-te, dormindo logo após a refeição em um dos quartos destinados aos hóspedes.

– Seus movimentos são rápidos e prec- OPA!

Ulisses descuidara em um segundo para abrir a boca e a espada de madeira que Qlon usava quase o acertara na testa. Yuna, que assistia ao duelo no pátio, sentada nas escadarias, ria da péssima atuação de seu esposo. Ela queria ser a próxima, e aguardava ansiosamente ao término da peleja. As empregadas, que carregavam jarros de água e copos em suas bandejas e toalhas na outra mão, cochichavam algo sobre a beleza do pequenino e sobre o mesmo ser um “bom partido”, o que quer que aquilo fosse. Os músculos de Qlon faziam-se visíveis por sua camiseta branca de algodão, empapada de suor. Ulisses também suava para manter Qlon afastado. O garoto era rápido. Muito rápido. Nem conseguira atacar desde o começo do duelo, e sua defesa estava aos poucos sendo penetrada. As regras eram simples: o primeiro a ser tocado pela arma do oponente perderia, in-dependente de onde acontecesse o golpe. Ulisses estava quase sendo derrota-do, para divertimento de sua esposa. Por fim, Qlon tocou seu braço com a ponta da espada de madeira, ofegando.

– Uau! Cerca de uma hora! Qlon, não sei quem é sua mestra, mas ela ope-ra milagres, por certo! Inacreditável. Que tal uma rodada com a sua avó?

– Claro. Posso tomar um fôlego de cinco minutos e um copo d'água antes?

O dia se arrastou sem muitas novidades. Yuna e Ulisses, derrotados, mas or-gulhosos, retornaram ao castelo dos Warrior após o almoço. Irving oferecera o castelo como estadia por mais uma noite, mas Qlon recusara. Queria voltar ao lar. Tinha interesses lá. O rei consentiu e disse que uma carruagem iria buscá-los no aniversário do pequeno príncipe de cabelos ruivos. Então Tera e seu filho vol-taram andando para sua casa, não muito distante dali.

Qlon atirou-se em sua cama.

– Qlon, tome banho antes de deitar-se. Desde o duelo com seus avós você

217

Page 218: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

está com esse cheiro desagradável de suor!

– Desculpe, mãe!

Como era agradável ouvir sua mãe dando broncas novamente. Sem muitos ro-deios, arrancou a roupa suada e a jogou em um dos cantos de se quarto. Foi para o banheiro da casa, encheu a banheira de água quente e deixou o corpo afundar, mantendo apenas a cabeça fora d'água. Lavou o corpo com as finas es-sências de rosas silvestres e passou uma loção de lavanda no cabelo, enxaguan-do-se em seguida. Há muito tempo não tinha um banho tão completo. A Base dava apenas um sabão inodoro e nenhuma loção capilar. Apenas o básico para ficarem limpos. Mal conseguia imaginar como seria o cheiro de um soldado por seis meses na guerra. Ao acabar, secou-se e esvaziou a banheira. Vestiu seu an-tigo pijama, que agora estava apertado devido ao seu crescimento muscular. Ati-rou-se novamente na cama. Sua espada estava recostada no criado-mudo ao lado direito, e a bolsa estava segura pelo cabideiro atrás da porta. Nada havia mudado naquela sua pequena cápsula do tempo.

– Desça! O jantar está pronto! - Gritou sua mãe.

A comida de Tera era insuperável na visão de seu filho. Ele não trocaria o sa-bor de seu peru assado por nada do mundo. Apesar da comida da Base ser igualmente excelente, a da sua mãe tinha um sabor especial. Um sabor que não podia explicar.

– E então mãe... - Chamou Qlon de boca cheia, em determinado ponto da conversa. - Está tendo notícias do papai?

Tera fechou o sorriso, trocando sua expressão de contentamento por uma pre-ocupada. Algo a abalava.

– Não, filho. Ele enviava cartas a cada mês, você sabe, e parou a cerca de sete meses atrás. Não sei o que aconteceu ainda, mas estou preocupa-da.

– E o que ele estava fazendo?

Tera respondeu com um olhar censurador, que dizia claramente que ele não poderia saber. Qlon deixou a conversa de lado e voltou a saborear sua suculenta comida. Estava sendo indiscreto demais e sua mãe, esperta como só, desconfia-ria. Precisava, mais do que nunca, encontrar as cartas.

Estava escuro lá fora. Algumas nuvens negras começavam a cobrir os céus, mas nada que indicasse uma grande tempestade. Qlon estava em sua cama, de-vidamente aconchegado. Sua mãe viera e o dera um beijo de boa noite a mais

218

Page 219: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

de duas horas, e desde então apenas aguardava de olhos semiabertos.

– Se eu pedisse para não olhar as cartas, adiantaria algo?

O coração de Qlon quase parou ao ouvir a voz de Filipos vindo de uma penum-bra próxima. O susto fora tão grande que quase urinara nos lençóis.

– Filipos! … Claro que não. - Desistira de perguntar por que ele estava ali. - Deve saber que quero aquelas cartas a todo custo.

– Qlon, não faça isso. Não sabe o buraco que está cavando aos poucos. Entenda algo: no tempo certo, EU MESMO darei as respostas que quer. Até lá, saiba ser paciente. Certas coisas você ainda não pode saber!

– E por que não? - Qlon contia-se para não falar mais alto do que podia.

– Qlon, ao morrer eu quis construir o cenário perfeito para meu sucessor. Tive de fazer certas coisas questionáveis para isso, mas os atos refleti-rão no futuro, tenho certeza.

– Não é possível programar o futuro. - Disse Qlon com um tom de frieza na voz. - Nem tudo que quer sairá como o planejado. Tudo se resume a um infinito labirinto de probabilidades.

– Qlon, você quer ou não cumprir seu destino, criança tola? - Filipos apro-ximou-se do corpo de seu pupilo deitado e curvou o rosto sobre o dele, aproximando os dois narizes e deixando que uma mecha de seu cabelo espiritual caísse sobre sua face.

– É óbvio que quero!

– Então deixe-me construir o cenário para isso. Eu estou aqui apenas para tal. Até lá, procure construir seu corpo. Procure construir sua mente. Eu construirei tudo ao seu redor. Eu não sou apenas o primeiro descendente dos poderes de Metatron e Sandalphon, sou também um filho de Lúcifer. E se tem uma coisa que aprendi no inferno, é que tudo pode ser manipu-lado para a minha vontade.

– Até mesmo a mim?

Filipos afastou o rosto, mas sem tirar os olhos de Qlon.

– E se estiver manipulando-me para que eu tenha um destino macabro? E se eu for apenas mais uma de suas peças? E se você não está exata-mente do meu lado? - Qlon gritava cada pergunte em um som mudo, quase inaudível. - Suas histórias são muito mal-explicadas e, ao contrário dos anjos, você não possui a obrigação de dizer a verdade. Então por que eu deveria continuar acreditando em você?

– Por que você não tem muitas escolhas se quiser chegar ao fundo disso

219

Page 220: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

vivo. Sua viagem aos sete céus foi um erro, e logo descobrirá. Tive de criar inúmeros mecanismos e inúmeras engrenagens para que possa sair dessa situação no futuro, e acredite: não foi nada fácil. Eu vou dá-lo duas simples escolhas: confie e mim e consiga respostas dadas na hora certa sobre este e o próximo plano da existência, sobre o que fazer e como al-cançar seus objetivos, ou não confie, faça tudo como quiser e não consi-ga chegar a metade de sua jornada.

Qlon engoliu em seco. Aquilo não anulava seus motivos para que não confias-se em Filipos, mas era uma ameaça poderosa.

– E você está certo. - Completou o espectro. - O futuro não pode ser 100% previsto, mas pode ter partes moldadas com cuidado desde remotas par-tes do passado. Eu vivi uma sobrevida apenas para concretizar o nosso destino. Não deixe meu sacrifício ser em vão por suas criancices madu-ras, jovem velho tolo.

E Filipos sumiu em meio às sombras da mesma forma que surgira.

– Filho, está bem?

Qlon estava com profundas olheiras, lutando para manter os olhos abertos en-quanto apoiava a cabeça em sua mão e via a tigela de frutas ser posta na mesa. Após Filipos sumir naquela noite, ele passou-a em claro, pensando se deveria ou não ler as cartas secretas de sua mãe. Decidira que não tarde demais. O sol já havia raiado e, após dez minutos de sono, sua mãe foi acordá-lo. Antes não ti-vesse dormido: ter conseguido dormir apenas 10 minutos o deixara pior.

– Sim, mãe, não se preocupe. Ficarei melhor após lavar o rosto.

– Tudo bem então. - Ela pegou um cacho de uvas e foi comendo-as aos poucos enquanto encarava seu filho comer, sem muita vontade, uma das peras. - Sabe, essa casa perdeu a vida assim que você partiu. Achei que poderia suportar a vida sozinha, mas me enganei. Seu pai deveria ter da-do-me uma filha antes de partir. É bom que esteja de volta, nem que seja por alguns dias.

– Também acho. - Deu a resposta quase que automaticamente enquanto mastigava sua fruta, que parecia insossa.

Tera deu um sorriso tímido.

– Eu estava pensando em passarmos um tempo de mãe e filho juntos hoje. O que acha?

– Acho uma boa ideia. - Qlon deu uma longa pausa, tomando fôlego para manter seu corpo acordado. - Senti sua falta, mãe. Senti muito sua falta.

220

Page 221: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

Era tudo o que Tera queria ouvir. Que ele sentira saudades, que ele sentia sua falta. Bastou isso para que desatasse um choro contido. Um choro que parecia estar guardado por um ano inteiro. Qlon finalmente pareceu acordar e foi tentar conter o choro de sua mãe, sensibilizada pela habitual solidão.

O cenário não era dos mais perfeitos para um passeio de família. Os soldados retornando às suas casas, os hospitais e enfermarias lotados de pacientes... Logo na saída de casa já haviam notado três enterros simultâneos. A guerra cei-fava cada vez mais vidas, e o cenário estava cada vez mais caótico. Qlon não parava de pensar em seu pai. E Tera... Ela mantinha um sorriso feliz na face, mesmo com tudo aquilo ao seu redor. A felicidade de poder passar alguns dias com seu filho era essencial para o momento.

– Diga, Qlon, alguma menina na Base já chamou sua atenção? - Pergun-tou sua mãe, tentando puxar assunto.

– Do que está falando? - Tentou despistá-la.

– Acho que você já sabe do que estou falando.

– Queria não saber. Mas não, mãe, não estou apaixonado por nenhuma menina. Por favor, tenho cinco anos, quase seis. Não é hora para eu vi -ver um romance.

Tera abafou uma risadinha com a mão. A maturidade de seu filho e a forma com que falava da própria vida amorosa era, no mínimo, cômica.

– Nem mesmo achou alguma bonitinha? - Insistiu no assunto sua mãe.

– Mãe, se está pretendendo arrancar alguma coisa de mim, desista. Mes-mo por que não há muito para ser escondido. Eu tive contato com pou-cas garotas lá dentro, além de minha mestra. Uma para ser exato. E não estou certo se ela é meu arquétipo favorito de beleza.

– Qlon... Você sabe o que é um arquétipo? - Tera contorcia-se rindo. - Es-queci-me do quanto é engraçado ouvir suas frases assim, com palavras escavadas do fundo do dicionário.

Enquanto Tera secava as lágrimas no canto de seus olhos, Qlon fazia uma cara de birra única, inflando suas bochechas rosadas. Como estava a muito tem-po sem ver sua mãe, acreditava que não faria mal deixar que ela se divertisse um pouco com suas “infantilidades avançadas”, como nomeava Ulisses. Caminha-ram de mãos dadas pelas ruas e ruelas durante várias horas, parando algumas vezes em pequenas lojas de doces para comer alguma coisa. Visitaram o “Tem-plo das Nuvens”, onde os sacerdotes faziam sua comunicação com o mundo abaixo do continente flutuante, a “Fonte dos Heróis”, uma praça com uma enor-me estátua de um anjo guerreiro empunhando uma lança e apontando-a para o

221

Page 222: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

céu, mesmo lugar que Qlon fora batizado, e o “Memorial de Guerra”, uma enorme rua de pedras, onde o nome de todos os soldados mortos de Seal desde sua fun-dação estavam gravados, um em cada rocha no solo. A rua ia se ampliando, com sua base próxima ao lago, até as fronteiras da cidade, onde terminava em um dos quatro grandes portões que eram a passagem entre Aeria e o resto da ilha flutuante. Aproveitaram o dia apenas como mãe e filho, colocando os assuntos em dia e trocando carinhos inocentes cercados de sentimentos.

Os dias passaram tranquilamente. Qlon esqueceu, por um breve momento, de tudo de ruim que o acontecera no ano que passou. Ainda sonhava estar com seus quatro anos, quase chegando aos cinco, a idade em que fora retirado de casa e as coisas começaram a complicar-se ao seu redor. Sua vida era tranquila, mesmo que usasse seu tempo para estudar coisas de comum conhecimento ou que apenas vagasse com a mente distante ao olhar da janela de seu quarto para o céu. A forma como tudo aconteceu aos poucos até o dado instante o frustrava. As mudanças foram rápidas demais e não tinha tempo para aceitá-las. A única coisa que fazia, quase que de forma automática, era seguir em frente. Mas aque-les dias serviram para acalmar seu espírito, colocar sua mente no lugar. Como o despertar de um pesadelo sem fim.

– Qlon, filho, acorde!

Tera o chamava no leito de sua cama. Ainda estava demasiado cedo, os raios do sol pouco se faziam visíveis no horizonte.

– Bom dia, mãe. - Falou bocejando.

– Bom dia, meu querido aniversariante! - Sua mãe deu um doce beijo em sua testa, lotado de carinho. - Parabéns por seus seis anos.

Com delicadeza, ela depositou um pequeno embrulho no colo de seu filho ain-da deitado em seus dois travesseiros. O papel não era enfeitado ou especial, mas uma fita vermelha de seda estava amarrado nele e fazia um belo laço deco-rativo.

– Obrigado, mãe! O que é? - Qlon perguntou com uma luz renovada em seus olhos.

– Abra e descobrirá! - Disse, levantando-se da posição de cócoras que fa-zia ao lado do leito da criança e retirando-se de seus aposentos. - Ah sim! Haverá uma festa para você no castelo da família de seu pai, então sugiro que use a roupa mais bonita que tiver em seu guarda roupas.

Assim que Tera saiu, Qlon desatou o nó do laço e abriu o pacote. Uma peque-na caixinha preta pôde então ser vista, do tamanho de uma caixa de sapatos. Chorou ao perceber que sua mãe dera o que ele já havia desistido de procurar.

222

Page 223: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

Cap. 56 – O Certo a ser Feito

inda não entendia o motivo. Uma generosidade repentina de sua mãe? Talvez fosse. Pensou também se Filipos havia impedido o furto por prever que isso aconteceria. Secou as lágrimas. As coisas ainda

estavam confusas demais e, por estar apressado para sua festa, não leria as car-tas no dado instante. Guardou-as na bolsa. Agora que elas estavam sob sua pos-se, poderiam esperar. Gastou alguns poucos minutos arrumando-se e colocando uma roupa formal. Não demorou muito até que uma carruagem parasse em fren-te à sua casa. Logo ouviu os gritos de sua mãe oriundos do primeiro andar, cha-mando-o.

A

Durante o caminho, sua mãe nada falou. Sentada de frente para ele e usando um vestido pérola de festa e uma bota de couro branco que tocava seus joelhos, com o cabelo amarrado em uma trança, olhava pela janela a cidade ganhar vida enquanto o príncipe fazia seu aniversário de seis anos. E pensar que, durante anos, escondia seu filho daquelas enormes festas que paravam toda uma cidade apenas para glorificar o nome de uma pessoa. De que adiantava toda uma cida-de parar para comemorar o aniversário de uma criança de seis anos, que nada ti-nha feito ainda pelo reino? Achava aquilo um absurdo sem tamanho, mas não poderia evitar que fosse assim dessa vez. Ele finalmente teria uma ideia do que é ser um membro da família real. Do outro lado, Qlon sentia-se culpado de uma for-ma muito peculiar. Pensava que sua mãe o ignorava por tê-la pressionado a en-tregar as cartas de uma maneira subjetiva. Trajando um pequeno terno de cor vi-nho, com sapatos sociais pretos e apertados fitando seus pés e luvas brancas de seda em suas delicadas mãos, mantinha o olhar fixo no chão, repleto de vergo-nha. Por onde passava, rosas adentravam as janelas, atiradas pelo povo de Ae-ria.

– Tinha esquecido de como era uma vida de nobre... - Disse Qlon.

– Que bom. - Respondeu sua mãe. - Não gostaria que ficasse acostumado a mimos como esses.

– Mas e quanto aos seus?

223

Page 224: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

– Eu tenho motivos para amá-lo, os cidadãos não. - Disse com o rosto ru-borizado pela excelente observação de seu filho. - Além do mais, eu nun-ca te mimei a esse nível.

– É... Não. Acho que eles me tratam assim por ser filho de quem sou.

– Com certeza. - Disse sua mãe, abrindo um sorriso. - Filho de uma prince-sa e de um herói. Quase como um conto de fadas, não é? Por falar nis-so... Leu as cartas? - Sua voz mudou para um tom pesaroso.

– Ainda não. - Respondeu de imediato. - Vou deixar para fazer isso mais tarde.

Sua mãe voltou a contemplar o lado de fora, calada, com um sorriso forçado no rosto sendo exibido para os cidadãos.

– Nem acredito que meu neto já está fazendo seis anos! - Sua avó Yuna apertava suas bochechas, deixando-as rosadas. - Ah, como o tempo voa! Parece que foi ontem que precisamos levar sua mãe às pressas para o hospital...

– Obrigado, vovó.

Todos os familiares reuniram-se para a celebração. Até mesmo sua tia Ülle, que só viu duas vezes na vida. Ela possuía estatura mediana, com cerca de 1,70 metro. Cabelos lisos e castanhos eram presos em um coque no topo de sua ca-beça. Olhos negros como o do pai davam a ela um olhar penetrante de caçador. Tinha um belo corpo, de seios pequenos e quadris perfeitos. Ela era a filha que mais deu descendentes aos Warrior. Tinha três filhos. Um deles estava lutando em um dos esquadrões superiores, já com 81 anos. Chamava-se Romeo, e era um guerreiro promissor. A filha do meio, Yuna, em homenagem à avó, estava em Wing fazendo apresentações como odalisca no auge de seus 44 anos. E a filha mais nova, Undine, quase da mesma idade de Qlon, estava em treinamento na base para virar uma maga. Ülle até perguntou para Qlon se já não a havia visto nos corredores e dado um oi, mas ele não costumava andar pelo castelo, tam-pouco conversar com outros alunos. Ela provavelmente seria mais uma do grupo que gostava de falar mal dele pelas costas. Ainda assim, prometeu para sua tia que iria procurá-la para dar um oi para sua prima. Se conhecia bem a mentalida-de dos Warrior, Ülle provavelmente queria forçar um romance para criar a nova dinastia da família, já que Yurius não deu sucessores legítimos com ela e Ronan casou-se com uma serafim de outra família. Estava acompanhada de seu esposo e seu filho mais velho. Yuna, sua filha, pedira desculpas pela ausência pois, exa-tamente na mesma data, faria uma grande apresentação para as tropas que sa-íam do embate.

224

Page 225: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

Recebeu vários presentes. De seus avós maternos ganhou um livro enorme in-titulado “A História da Humanidade”, que contava os passos das civilizações atra-vés das eras, com suas evoluções tecnológicas e sociais. Era um livro muito raro, achado apenas na estante de alguns escassos estudantes de história. Qlon não o leria tão cedo, a leitura do Livro de Raziel ainda estava atrasadíssima. Mal aca-bou o Livro das Eras, pulando determinadas partes. Ainda assim, prometeu apro-veitar a leitura e agradeceu seus avós, que cederam o castelo para a festa na-quele ano. As festas de seu aniversário eram revezadas entre o castelo dos War-rior e o castelo real.

De sua tia recebeu uma arma lendária entre os mortais: o Arco de Perseu. De acordo com ela, jamais teria problemas nos treinos ou combates que precisasse de arcos, já que as flechas geradas pela arma nova eram mágicas, feitas de energia. Qlon jamais tentara transformar a Sanctus em um arco, mas imaginava que não daria certo. Flechas de Mythril não seriam infinitas, provavelmente. Agra-deceu muito o presente. Yuna, a avó, deu um bocado de roupas que, dizia ela, serem comuns entre os humanos. No total, duas grandes malas. Roupas de frio, capas de chuva, calçados, roupas de baixo... Qlon imaginava que sua avó pediria um desfile de roupas mais tarde, mas ainda assim agradeceu.

Ulisses entregou a ele uma bolsa nova com um kit de sobrevivência melhora-do. Uma enorme corda já com nós, um novo lampião a óleo, um cantil maior re-vestido de couro cozido, um isqueiro, uma bússola e um pequeno estojo médico com ataduras e alguns remédios e antídotos. Agradeceu e planejou passar as pedras de breu para a bolsa nova assim que chegasse em casa. O resto do povo também enviou presentes. Além da comida da festa, enviaram alguns adornos como joias, roupas novas... Cada comerciante enviou um de seus produtos feitos especialmente para a data festiva. Até mesmo equipamentos diversos o aniver-sariante ganhou, mas por ter a Sanctus e uma armadura própria, deixou que fos-sem doados para o exército. O resto da festa resumiu-se a comer, ouvir inúmeros elogios, conversar com a família e citar como foi o treinamento na base com mais detalhes. Muitos perguntaram sobre sua nova missão, mas Qlon negou respon-der. Ainda era cedo demais para que soubessem, por certo. Estava com uma vontade maior de chegar em casa e ler as cartas de seu pai. E, com esse pensa-mento, passou o resto de sua própria festa de seis anos apenas esperando que acabasse. Tera apenas olhou-o de perto, sentada ao seu lado. Sabia o que ele pensava e o que ele queria. Por certo, havia precipitado-se ao entregar as cartas de Ronan para seu jovem filho.

– Filho, onde eu devo guardar esse arco? Ele é pesado... - Sua mãe per-guntava do andar de baixo.

– Pode deixá-lo aí mesmo, eu o carregarei para meu quarto mais tarde. - Respondeu Qlon gritando do alto da escadaria. - Agora vou tomar um ba-

225

Page 226: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

nho e trocar de roupas, se não se importar.

Tera sabia qual era sua pressa e ficou calada quanto a isso. Havia entregado as cartas, não poderia simplesmente voltar atrás. Bem, antes ele soubesse o que houve com seu pai do que permanecer com as dúvidas em sua cabeça durante sua longa jornada. Talvez não fosse o tempo apropriado, mas por ter lido o papel de sua missão, talvez fosse a última oportunidade.

O banho estava agradável. Mergulhado em água quente até o pescoço, deixa-va a cabeça do lado de fora e olhava para o teto, vagando em pensamentos. Uma sombra surgiu ao seu lado.

– Você sabia disso, Filipos? - Perguntou em um tom baixo, quase inaudí-vel, para Filipos.

– Não. Não sabia. Foi algo completamente imprevisível... Ainda assim, vim aconselhá-lo para que devolva as cartas.

– Devolvê-las? Está louco? Sempre quis saber o que houve com meu pai, ainda mais após os acontecimentos recentes. E elas foram entregues a mim de livre e espontânea vontade.

– Qlon, eu já disse isso uma vez, mas não custa repetir: o aprendizado deve condizer com o tempo. De nada adianta o conhecimento se não souber o tempo certo de usá-lo. E está cedo demais para certas explica-ções. Está cedo demais para saber de certas coisas que complicariam seu entendimento.

– Já sei, já sei. Não é a primeira vez que ouço esse sermão. - Pegou água em concha com as mãos e jogou em seu rosto. - Mas entenda, eu...

– Qlon, a curiosidade é uma benção e uma maldição. Há coisas que já sabe, há coisas que vai saber e há coisas que nunca deverá saber, para seu próprio bem. Eu sou um ser que está apenas na quarta dimensão, mas sei do que estou falando. Por enquanto, deixe esses assuntos comi-go. Quando for a hora certa, saberá por minha própria boca.

– E o que sugere que eu faça com as cartas? - Perguntou enquanto passa-va sabão em seu jovem peitoral definido.

– Já disse, devolva-as para sua mãe. A coitada está sofrendo longe delas. Ela fez aquele movimento de forma apressada por certo. Ela também sabe que não é a hora.

– Por quê? Por acaso teve uma conversa com ela também? - Perguntou exalando um pouco de raiva de suas palavras.

226

Page 227: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

– Não, não me atreveria. Os únicos de sua família que entrei em contato são você e seu pai, ninguém mais.

– E ele sabe mais do que eu posso saber?

– Ele sabe apenas o que deve saber. Tenho certeza que está vendo a mim como um carrasco por agora, mas vai chegar a hora que reconhecerá meu esforço. Acredite: Eu e você lutamos pela mesma causa, mesmo que eu seja filho do mais famoso dos caídos. Por favor, confie de uma vez em mim e siga minhas sugestões.

– Sugestões? Parecem ordens?

Filipos aproximou o rosto do dele. Quando exalava, vapor d'água parecia sair de suas narinas.

– Qlon, já falei. Sou apenas um conselheiro, não um mestre, não um chefe. A única coisa que posso fazer é mostrá-lo os atalhos que criei para aju-dá-lo. Esperei sua vinda por eras, procurando por todos os lados. Entre os mortais, entre os demônios, entre os anjos. Durante esse tempo eu planejei tantas coisas para que não passasse pelo que passei, tantas ar-timanhas para ajudar sua missão...

– E meu pai? É mais um de seus atalhos?

Filipos virou o rosto encapuzado e ergueu o corpo curvado. Olhou Qlon de lado, com a sombra de seu capuz cobrindo os olhos.

– Ainda não é hora de saber. Apenas entenda: certos sacrifícios sempre se fizeram necessários. Não sou salvador de seus desejos, não sou aquele que garantirá seus melhores sonhos. Sou aquele que vai ajudá-lo a cum-prir seu maior objetivo. Deveria ser, no mínimo, grato.

Qlon calou-se. Mesmo que tivessem aquele tipo de conversa infinitas vezes, ele jamais aceitaria. Jamais aceitaria decisões serem tomadas por suas costas, mesmo que o beneficiassem. Jamais aceitaria segredos. Iriam repetir aquela dis-cussão mais inúmeras vezes, por certo.

– Devolver as cartas para minha mãe seria uma boa ideia?

O sorriso de Filipos foi visto por detrás do manto antes que sua presença desa-parecesse, dizendo:

– É a melhor delas.

Qlon olhou-o até que a sombra sumisse de suas vistas. Tomou um grande fôle-go e mergulhou sua cabeça na água.

227

Page 228: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

Tera levantou-se de sua cama. Os sonhos não foram agradáveis. O sol baten-do em seu rosto despertou-a. Espreguiçou-se, alongando os músculos dos bra-ços e costas. Ela estava preparada desde a hora que fora dormir. Preparada para as questões da manhã seguinte. Sabia que seu filho teria milhares delas ao ler as cartas, ainda mais com seu gênio questionador. Abriu a porta do quarto. Sur-preendeu-se ao ver as cartas de seu esposo, Ronan, amarradas por um barbante na saída para o corredor. Tomou-as em mãos. Procurou por Qlon. Ele não estava mais em seu quarto. Desceu as escadas e foi para a cozinha, onde encontrou-o tomando café da manhã: cereais ao leite e suco de frutas.

– Qlon, o quê... Por quê? Já leu por acaso? - Perguntou sua mãe, com tan-tas perguntas quanto seu filho teria.

– Não, mãe... Só percebi que... Ainda não é a hora. E além do mais, não gostaria de roubar seu tesouro mais precioso.

Lágrimas surgiram nos olhos de sua mãe. Ela largou as cartas na mesa e ajoe-lhou-se, abraçando seu filho com força, acariciando sua nuca enquanto repousa-va sua cabeça no ombro esquerdo de Qlon.

– Filho... Meu tesouro mais precioso é você. Você é a lembrança perma-nente que tenho de seu pai, e nenhum pedaço de papel gravado com le-tras poderá mudar isso um dia... Sim, aquelas cartas são preciosas, mas você é mais... Por... Por isso... - Sua mãe passou a gaguejar.

– Mãe, há coisas que ainda não estou pronto para saber e coisas que você ainda não pode perder seu apego. Por isso, guarde as cartas até eu es-tar pronto. Um dia eu voltarei para buscá-las...

Sua mãe desatou ainda mais em prantos. Seu filho amadurecia cada vez mais... Mal parecia que a alguns poucos anos atrás estava aprendendo a falar... Ele seria, um dia, um excelente soldado e um excelente rei.

– Seu pai... Seu pai estaria muito orgulhoso.

Qlon sentiu as lágrimas molharem sua camisa nova, dada por sua avó, mas não importava. Afastou sua mãe e secou seus olhos. Não sabia se deveria levar aquela última frase como uma afronta ou como um elogio, mas optou pela segun-da alternativa.

– Agora vamos. Temos poucos dias juntos ainda. Se quiser aproveitá-los comigo, sugiro que sejamos rápidos.

A hora chegara. Um vento gélido corria pelas ruas da cidade enquanto o sol raiava aos poucos no horizonte. Qlon colocou roupas de frio e esperou com sua bolsa e sua espada embainhada próximo à porta. Deixara a pesada armadura dada a ele por Lua na base. Não seria louco de ir com algo tão pesado para

228

Page 229: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

aquela missão. As roupas foram indicação de Irving, que dissera que o lugar para que seria enviado era coberto por neve todo o ano. O teleporte para Colossus di-retamente não seria mais possível, então seria enviado para o local mais próxi-mo. Luvas, botas, cachecol, casaco, touca, botas... Tudo que poderia usar para combater o frio. Sua mãe aguardava pela carruagem real que iria buscá-lo.

– Filho... Sei que vai partir mais uma vez, então prometa que...

– Eu prometo que retornarei são e salvo para casa. Igual prometi quando fui para a Base.

– Mas que destino cruel. - Sorriu sem jeito sua mãe, afagando os cabelos ruivos de Qlon. - Os dois homens de minha vida precisam partir, e a úni -ca coisa que posso fazer é esperar.

Sua mãe choraria mais uma vez. Tinha certeza. Foi assim por toda a manhã enquanto ela ajudava-o a escolher as roupas que usaria.

– Mãe... Eu voltarei assim que puder. Prometo.

– Eu sei que sim. Bem, seu pai poderia ter deixado uma irmãzinha para você antes de partir. Sinto-me tão sozinha aqui... Enfim, seu dever é seu dever.

A carruagem fazia a curva na esquina mais próxima, guiada por dois pégasos.

– Chegou minha hora mãe.

– A quase um ano atrás eu deixava você nos portões da Base... E agora aqui... - Tera ajoelhou-se e abraçou-o. Com uma voz terna, sussurrou em seu ouvido. - Sua mãe sempre estará aguardando seu retorno.

Qlon retribuiu o carinho, dando tempo para a carruagem aproximar-se e para o cocheiro abrir a porta.

– Estou orgulhosa. - Falou Tera por fim.

Qlon sorriu enquanto uma tímida lágrima correu por seu rosto rosado. Entrou na carruagem e Irving deu o comando para o cocheiro, que passou a guiar os ca-valos.

– Então... Chegou a hora, meu neto. - Disse Irving, mantendo sua postura real. - Pronto para contar-me o que irá fazer no mundo inferior?

– Vovô, o que sabe sobre os quatro dragões deuses?

Irving parou para pensar um pouco. Era uma pergunta um tanto estranho para as circunstâncias. Após muito pensar, respondeu:

– Não muita coisa. Mesmo que eu seja o rei, o que sei sobre eles veio grande parte por lendas e, em pedaços, de livros sobre a história dos an-

229

Page 230: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

jos. Ainda assim, sei muito pouco.

– Certo. Mas sabe seus nomes e o que cada um deles representa, certo?

– Sim, claro que sei. Juggernaut, dragão dos trovões e do fogo. Leviathan, dragoa da água e dos ventos. Behemoth, o dragão da terra. E, claro, Tia-mat, dragão da luz e das trevas e, de acordo com alguns registros, o úni-co ser em todo o universo que ainda controla elementos fora do globo de Mana.

– Certo. E se eu dissesse que, de acordo com outras lendas, os demônios conseguiram criar um dragão que é a fusão desses quatro?

– Sei. A lenda de Vindictus. De acordo com ela, Lúcifer, com uma de cada escama dos grande quatro dragões, arrancada em seu embate de fuga, criara a arma suprema de destruição. Mas o tiro acabou errando o alvo. O dragão era tão forte que nem mesmo ele podia controlá-lo. Então, apri-sionou sua criação no mais profundo dos sete infernos em uma jaula es-pecial. No apocalipse ele foi liberado e, de acordo com muitos livros, foi esse dragão uma das causas do empate entre céu e inferno. Mas Lúcifer não conseguiu prendê-lo novamente, e ele está livre entre os mortais desde então. - Irving era um bom contador de histórias.

– Exatamente. Quando minha mestra contou essa história a mim, achei mi-rabolante demais e custei a acreditar. Se tal arma infernal estivesse livre do jeito que foi relatado, o mundo deveria estar em ruínas.

Qlon então entregou o papel ao seu avô, que olhava para seu neto com um olhar de estranheza. Aos poucos, foi lendo o que estava escrito na caligrafia de sua mestra:

Sua nova missão é localizar o dragão Vindictus e matá-lo. Traga sua ca-beça e seu coração como prova de seu feito.

Ao acabar de ler, seu queixo quase caiu. Seus dedos, que seguravam forte o papel, amassavam o bilhete.

– Céus... Sua mestra é insana!

– Calma, vovô. Eu sei disso. Mas... Se quer bem saber da verdade, acho que esse treino será muito útil. E o melhor de tudo: tenho tempo ilimitado para a missão. Poderei aperfeiçoar-me durante a viagem e atacar ape-nas quando for mais prudente.

– Ainda assim! Qlon, é um dragão que fez toda a diferença durante o pri-meiro apocalipse. Se nem mesmo grandes serafins ou os sete arcanjos conseguiram acabar com a fera, como acha que uma criança de seis anos poderá fazer isso? É loucura! Desista agora e eu farei com que sua mestra seja expulsa de imediato!

230

Page 231: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

– Não precisa, vovô. Quanto maior for meu desafio, mais posso aprender. Além do mais, quero saber como é esse dragão. Quero vê-lo com meus olhos.

Irving estava visivelmente inconformado, mas preferiu conter suas emoções. Qlon era o aluno, e sua mestra parecia saber o que fazia durante os treinamentos de seu herdeiro. Deixaria as coisas por alto, ao menos no momento. O cocheiro parou os cavalos. Desceu de seu banco e abriu a porta. Haviam chegado ao pon-to de teleporte. A catedral do cristal vítreo, ao sul da cidade.

“Esta catedral era imensa. Nela era realizada apenas uma cerimônia especial: a coroação. Após isso, o rei saia em uma cavalgada em um pégaso branco cir-cundando Aeria. Do piso até o alto do teto do altar cerca de vinte e cinco metros. A torre do sino do lado de fora tinha quase o triplo. Bancos eram espalhados por todo o saguão e um tapete vermelho estendia-se ao altar principal de pedra, com runas em idioma angelical gravadas em sua forma. No alto do monólito, um enor-me cristal transparente flutuava. No centro do cristal, uma fraca luz branca ema-nava. Tal cristal era tão raro quanto Mythril, e só podia ser encontrado em minas muito profundas, chegando a tocar o magma.”

– É sua última chance. - Chamou Irving. - Ainda pode desistir.

– Para seu azar, vovô, sou como meu pai: não fujo de um desafio. Fique tranquilo, eu estarei bem. Prometo.

Qlon dirigiu-se ao altar, subindo as grandes escadarias. Seu avô ia no seu en-calço, sendo escoltado pelo cocheiro, que portava uma espada curta na cintura. O sacerdote aproximou-se dos dois já a meio caminho do altar e ajoelhou-se.

– Majestades... - Tomou a mão direita do rei e beijou-a, fazendo o mesmo com a mão de Qlon. - Os preparativos estarão prontos.

– É bom saber. - Disse o rei sem conseguir esconder a expressão de preo-cupado. - Qual é a cidade para que ele será enviado mesmo?

– Na verdade, alteza, não é uma cidade... É para o mosteiro abandonado do norte... Apenas alguns poucos sacerdotes ainda guardam o cristal na-quele lugar inóspito...

– Entendo. - Irving então voltou os olhos ao seu neto. - É sua última chan-ce. Ainda pode...

– Mas não vou. - Qlon sorriu, retribuindo o olhar.

O sacerdote puxou o jovem anjo pelo braço delicadamente, acompanhado pelo rei, e o deixou em frente ao cristal. Qlon olhou para seu avô e, mentalmente, des-pediu-se dele. Irving acenou com a cabeça, como quem consentisse. Nada para-ria o ímpeto de seu neto. Ao pronunciar de algumas palavras em celestial, o cris-tal brilhou e soltou um raio em Qlon. Em um clarão, ele havia desaparecido.

231

Page 232: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

Cap. 57 – Jornada ao Sul

essoava um zumbido por seus ouvidos. Mantinha os olhos fechados durante o teletransporte do cristal. Era um método de transporte entre dois pontos muito rápido, assim como a magia que Qlon aprendera

quase um ano atrás. A diferença era que tais pontos não precisavam estar ao al-cance visual de quem fazia a magia. Independente dos lugares do espaço, basta-va que o encantador pronunciasse um encantamento que fizesse os dois cristais certos ressoarem o mesmo tom. Por isso o zumbido. O frio era intenso. Sentia a ponta de seus dedos esfriarem rapidamente e seu nariz ficar morno. Abriu os olhos aos poucos. Sua visão estava um pouco embaçada. Conseguiu distinguir alguns vultos encapuzados de longas barbas cercarem-no, alguns com grandes barbas grisalhas. Um deles veio ao seu encontro e apoiou as mãos magras e os-sudas nos seus ombros. Disse algo, mas o zumbido ainda atrapalhava sua audi-ção. Aos poucos, passou a distinguir os sons:

R

– Criança... Criança! Pode ouvir-nos? - Uma voz velha e rouca perguntava.

– Sim... Sim, acho que posso. - Respondeu Qlon, ainda um pouco atordoa-do. - Onde estou?

– No seu destino, eu presumo.

Sua visão voltou ao normal e pôde notar as feições idosas do sacerdote. Ru-gas ao redor dos olhos, bochechas finas que mostravam seu contorno cranial, orelhas e narizes longos, pele branca como a neve e repleta de pequenas man-chas... Ao menos possuía belos olhos verdes.

“Nunca antes havia visto alguém tão velho. Com certeza aquele sacerdote não poderia ser um anjo. Olhei mais ao meu redor. Apenas mais cinco outros sacer-dotes, alguns tão velhos quanto ele e outros pouco mais jovens, acompanhavam-no, segurando archotes para iluminar um grande salão em ruínas coberto pela neve que caía frequentemente de um buraco no teto.”

– Pelos céus... Já fazem duzentos anos desde que vimos um anjo descer neste mosteiro. - O velho dizia. - Meu nome é Trivium. Sou o sumo-sa-cerdote deste lugar esquecido. Seja bem-vindo, anjo Qlon.

232

Page 233: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

– Obrigado. - Respondeu Qlon um pouco sem jeito.

O sacerdote puxava-o carinhosamente para um corredor estreito enquanto os outros seguiam-no.

– Desculpe pelo estado de nossa moradia. - Disse o homem, pesaroso. - Como pode ver, não temos mais tantos homens para ajudar com a manu-tenção. Estamos em um ponto muito isolado do planeta, no extremo nor-te da civilização. Raramente algum reino manda novos sacerdotes para cá...

– Entendo. - Respondeu Qlon, adentrando um profundo corredor escuro, iluminado apenas pelas tochas dos outros homens. - Vocês serão meus guias?

– Guias... - O velho pensou por alguns segundos enquanto continuava ca-minhando. - Não, não creio que estamos tão atualizados com o mundo externo assim para saber como podemos ajudá-lo, meu jovem. - Tossiu, colocando a mão na boca. - Seremos intermediários entre você e a cida-de de Colossus, no momento.

Após curtas escadarias, o corredor acabava em um pátio de um velho mostei-ro, quase completamente abandonado. Alguns padres tomavam conta de escas-sos auroques, que se alimentavam de liquens em algumas rochas. As fêmeas eram ordenhadas e davam um leite espesso. Outros cuidavam de uma estufa, provavelmente sua única fonte de vegetais frescos em meio àquele inverno cons-tante. Quando viram-no, dois deles foram tocar um grande sino com marteladas. Logo, todos os padres dirigiram-se ao mosteiro. Não deviam ser mais de dez, fora os que estavam acompanhando-o.

– Nós o hospedaremos por hoje e prepararemos as coisas para sua partida amanhã em direção ao sul. - Seu latim era fraco e possuía um certo sota-que, mas nada que atrapalhasse seu entendimento. - Lá você conseguirá as informações que quer a respeito de sua missão.

– Poderia informar-me o motivo de meu teleporte não ter sido direto para a cidade neutra? - Perguntou Qlon vagarosamente, dando tempo para que ele entendesse sua língua.

– Não, infelizmente não sabemos. - Respondeu o ancião. - Quando chegar na cidade poderá perguntar. - Novamente tossiu, cobrindo a boca com a palma de sua mão. - Por hoje, aproveite a estadia. E não se incomode com os olhares dos outros sacerdotes. Já é raro um anjo vir para a nossa terra realizar missões, ainda mais em nossa cidade. Um anjo da família real do reino superior então... Todos estão honrados e curiosos. Espero que entenda.

– Não se preocupe com isso. - Qlon disse calmamente. - Ser da família

233

Page 234: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

real em meu próprio reino já é algo que deixa todos curiosos... Estou acostumado com olhares.

O velho sacerdote sorriu para ele e deu duas palmadinhas em seu ombro, acompanhando-o para dentro do velho mosteiro. Atravessou o pequeno pátio e abriu as portas da minúscula capela. Os outros monges olhavam para ele en-quanto sentados em pequenos bancos de madeira. A capela era pequena. Ape-nas um altar ao fundo, próximo a uma grande lareira, e poucos bancos, com por-tas adjacentes que davam para os outros espaços utilizados pelos moradores da-quele inóspito lugar, como dormitórios, cozinha, depósito... Qlon atravessou o ca-minho até o altar. Os sacerdotes que o acompanhavam ajoelharam-se diante dele ali, e os outros seguiram o exemplo.

“Entre os mortais, anjos eram a representação divina. Mesmo que não soubes-sem quem eu era, o que havia feito ou de como era a situação nos céus, eles re-verenciavam-nos como se reverenciassem a nossos superiores. Foi interessante ser tratado com tamanho prestígio pela primeira vez, apesar de não ter entendido o que aquela cerimônia representava e ter tentado levantar o bondoso ancião por duas vezes, temendo que ele passasse mal. Após uma simples celebração de boas vindas, deixaram-me dormir em um dos leitos. A cama era desconfortável e fedia a mofo, mas aquele lugar estava repleto de apreço. Dormi rapidamente, pensando estar cansado pelo teleporte.”

Um dos monges selava sua montaria. Montaria em um auroque enorme. De acordo com eles, era o melhor método de transporte, apesar da lentidão. Cavalos não resistiriam ao frio intenso. Qlon teve vontade de ter seu lobo por perto numa hora dessas, o Cloud, mas havia decidido deixá-lo aos cuidados de Lua pois não queria que algo acontecesse a ele.

– Deste ponto, siga para o sul. Possui uma bússola, certo?

O dia estava acinzentado e nevava. Não com tanta força quanto a nevasca da noite anterior, mas o suficiente para ser incômodo. Qlon pegou a que foi dada na nova bolsa que seu avô dera. Era feita por um joalheiro, por certo, com a tampa prateada e os detalhes dourados. Olhou para a ponta da bússola, que apontava sempre para o norte. Tomou o referencial e olhou para o sul. Apenas uma longa capa de gelo e neve estendia-se infinitamente no horizonte. Ao que seria o norte e oeste, uma terra tomada por uma cordilheira de montanhas. O mosteiro estava na base da cordilheira, em uma colina.

– Trivium, obrigado pela hospedagem. Posso pagá-la de alguma forma?

– Ah, garoto... Não se incomode com isso. Apenas vá cumprir sua tarefa. A cidade de Colossus te espera. Ah, e esconda sua forma original das pes-soas normais.

234

Page 235: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

– Por que eu deveria ter tanto cuidado com minha identidade? - Perguntou inocentemente o anjinho.

– Qlon, anjos são incomuns neste planeta... - Explicou o ancião com sua voz pausada, como de costume. - O apocalipse aconteceu eras atrás, e ainda assim as pessoas têm um certo medo de anjos e demônios, tratan-do-os como presságios de uma nova guerra... Tanto medo acabou regre-dindo nossa civilização a um novo e pouco modificado feudalismo... Se virem um anjo andando entre nós, capaz de acabar com a nossa civiliza-ção, que já não é hegemonicamente humana... Por isso os altos sacerdo-tes são encarregados de proteger sua identidade desde o surgimento do reino de Seal... - Tossiu mais uma vez e, juntando o catarro da garganta, cuspiu, virando a cabeça para o lado. - Ah! Quase esqueci...

Das dobras de suas vestes, o idoso retirou uma bolsinha de moedas e jogou para Qlon.

– Acha que 79 moedas de ouro serão o suficiente?

– O sistema financeiro daqui é o mesmo de Seal?

– O de Seal é o mesmo que o nosso. - Riu Trivium da situação. - Aí tem moedas suficiente para as despesas de viagem e, quem sabe, de toda a sua jornada. É meu antigo tesouro, mas, como pode ver, não tenho mais com o que usar neste lugar isolado...

– Não posso aceitar. - Disse Qlon educadamente, tentando retornar a bolsi-nha de couro ao bondoso ancião.

– Ora, vamos... - Insistiu Trivium. - Entre os seus pode viver de seu status, somente, mas aqui isso não vai ser possível. Ainda mais sendo uma criança... Por falar nisso, sugiro que contrate algum mercenário para to-mar conta de ti.

– Por quê?

– Uma criança andando sozinha pelas cidades? No melhor dos casos será tratado como órfão. - Trivium tossiu novamente, cobrindo a boca com um lenço desta vez. - Ao passar pelo Istmo Glacial ao sul, siga pela estrada que margeia a floresta de pinheiros e logo chegará a uma pequena cida-de de nome Bistol. Vá para a hospedaria, onde também funciona a taver-na, e procure contratar algum mercenário por lá. Ah, não preciso dizer para revelar sua identidade, não é? E pode deixar o auroque por lá e comprar um cavalo por umas três moedas de ouro. Mando um dos mon-ges buscar no próximo verão, deixe-o com o vendedor de cavalos.

– Entendido. - Qlon esforçava-se para manter todas as lições dentro da ca-beça desde que chegara no dia anterior.

235

Page 236: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

– Qualquer dúvida, basta olhar no seu mapa e... - As tosses ficavam mais frequentes. - E achará o caminho certo.

– Mais alguma instrução? - Perguntou Qlon montando nas costas do enor-me animal.

– Apenas uma: o latim não é usado por pessoas de fora da igreja... Sabe mais alguma língua?

– Sim, os anjos aprendem a língua mortal mais utilizada, o inglês arcaico. Esta servirá?

– E eu aqui forçando meu velho latim... - Disse o ancião, agora em inglês. - Antes do apocalipse essa era a língua mais usada, e acabou tornando-se a língua oficial da humanidade, apesar de alguns povos ainda usarem suas línguas nativas... Mas estará tudo bem, em Colossus todos sabem falar o inglês. É impossível sobreviver naquela cidade sem ele.

– Bem... Obrigado por tudo, senhor Trivium, estou de partida.

– Checou os mantimentos? - Perguntou Trivium ao monge que selava o animal para o anjo.

– Sim senhor, está tudo checado. Há comida e água pura o suficiente para cinco dias, para ele e sua montaria, como o ordenado, mesmo que a via-gem dure apenas dois. - Respondeu o mais jovem sacerdote do mostei-ro, que deveria ter não mais que vinte anos como humano.

– Então está tudo certo. Qlon, - Trivium voltou-se ao seu visitante. - estive-mos honrado em tê-lo aqui em nosso humilde mosteiro em ruínas. Espe-ramos que volte a visitar-nos algum dia antes de nossas mortes. Até lá, tome cuidado, jovem senhor dos céus, voz dos deuses.

Os dois sacerdotes curvaram-se novamente, dando prestígio ao anjo que pas-sara a noite ao seu lado.

– Prometo voltar algum dia, quem sabe. - Disse Qlon, batendo as botas na barriga do auroque de leve para que andasse. - Obrigado por toda a hos-pitalidade.

Qlon virou o corpo para trás e acenou até que ambos desaparecessem em meio ao vento e a neve. Ficaram os dois ali, ajoelhados, no mesmo lugar, até que o jovem anjo de cabelos avermelhados sumisse no horizonte.

A viagem durou dois dias, como fora dito. O auroque pouco parava, mas em compensação, era razoavelmente lento. Quando parava, precisava ser alimenta-do com líquen por meia hora para seguirem novamente viagem. Próximo ao Ist-

236

Page 237: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

mo Glacial, o cenário mudava aos poucos. O líquen tornava-se uma grama baixa, e pinheiros de folhas alaranjadas já podiam ser avistados ao longe. Seguiram en-tão uma estrada de terra que terminava no fim da estreita passagem entre os dois continentes. Poucas horas depois, chegaram à cidade de Bistol.

O sol estava escondido por muitas nuvens cinzas de tempestade. Os arredores da cidade eram puramente pastoris. Colinas delimitavam pequenas propriedades de fazendas que criavam ovelhas e búfalos. Suas plantações eram pequenas, mal deveriam abastecer suas próprias famílias e gado. O centro da cidade tinha apenas uma praça com um poço artesanal em seu centro. Ao seu redor estavam apenas a casa do prefeito e a hospedaria. Qlon desmontou de seu animal e per-guntou a uma pessoa que passava ocasionalmente pelo lugar.

– Onde eu posso encontrar o estábulo? - Perguntou com o melhor inglês que conseguia usar.

– Está no fundo da hospedaria. - O fazendeiro barbado respondeu com todo seu sotaque, segurando uma pilha de feno. - Vou para lá agora, pode seguir-me se quiser, garoto.

Qlon seguiu o fazendeiro puxando seu auroque pelas rédeas. Ao chegar na hospedaria, um elfo alto e esguio agradeceu ao homem e depositou o feno em uma grande pilha.

“Esta foi a primeira vez que vi um elfo pessoalmente. Eles são um pouco mais altos e eretos que os humanos comuns. Esse em especial deveria ter mais de dois metros. Possuem a ponta de sua orelha afinada, assim como queixo e olhos. O tratador do estábulo usava uma camiseta branca de mangas longas e uma calça amarronzada que chegava apenas à metade de suas canelas, presa em sua cintura por um cinto negro de couro. Botas fitavam seus pés, cobertos por grossas meias de lã até onde a calça não podia chegar. Suas mãos eram como as de um humano, mas com dedos mais longos e finos.”

– Em que eu posso ajudar, garoto? - Perguntou o elfo de aspecto jovial, com longos cabelos castanhos que estavam presos em um rabo-de-ca-valo.

– Eu vim das terras ao norte... - Disse Qlon olhando em seus profundos olhos âmbar.

– Terras ao norte? - Perguntou o elfo, desconfiado. - Estranho, achei que lá só tinha um mosteiro... Certo, cliente é cliente! Em que posso ser útil?

– Preciso deixar esse auroque para um dos monges buscar no verão e de um cavalo para seguir viagem.

– Não quer passar a noite na pousada? - Perguntou o elfo, agora animado. - Já vai escurecer, e é perigoso retomar uma viagem pela noite. Ainda

237

Page 238: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

mais você, uma criança indefesa contra feras da floresta... É uma espé-cie de órfão? Olha, se for, digo para partir logo. Não vivo de caridade.

– Não, não sou órfão. - Respondeu, tirando a bolsa de moedas que ganha-ra de um dos bolsos de seu casaco. - E olhe, tenho dinheiro.

– Nesse caso, ficarei grato em servi-lo. O quarto custa vinte moedas de prata por noite, e terá café da manhã na taverna, que também é minha. O cavalo custa duas moedas de ouro, e cuidar do auroque vai custar mais uma.

– Tudo bem. Pago adiantado.

Qlon tirou quatro moedas de sua bolsa e deu ao hospedeiro, que mordeu-as para verificar sua legitimidade. O elfo então pegou o auroque e colocou em uma vaga no estábulo, dizendo:

– Quando partir amanhã eu selarei seu cavalo e darei seu troco de oitenta moedas de prata, caso não utilize de mais algum serviço de nossa hos-pedaria. Agora me siga, vou mostrar seu quarto esta noite.

Qlon seguiu a ele, carregando a mala que trouxera em sua viagem de Aeria, sua bolsa e espada.

– Este será seu quarto. - O elfo dizia enquanto abria a porta do quarto 205. - E pode chamar-me de Yuliano.

– Obrigado, Yuliano. - Qlon pegou as chaves do quarto de sua mão.

O nanico viajante entrou no quarto tirando o casaco, que a essa altura já não era mais necessário, e colocou-o no cabideiro junto de sua bolsa. Depositou a mala sobre a cama, enfiou a bolsinha de moedas nas dobras de sua camisa e atou a bainha da Sanctus na cintura. O quarto era razoavelmente pequeno. Uma suíte, com uma aconchegante cama de casal, uma lareira com tábuas cruas aguardando para ser acesa no meio da noite, um armarinho e uma pequena cô-moda com um vaso de petúnias em cima. O quarto tinha uma lamparina ao lado da porta e outra no banheiro. Além disso, uma grande janela, de frente para a cama, iluminava o recinto. O piso era forrado com um carpete azul-celeste, con-trastante com o tom vinho da colcha da cama.

– Vai sair, senhor...

– Warrior. E não precisa tratar-me com cordialidades.

– Gostaria de algo? Se quiser, posso indicá-lo os melhores serviços da ci-dade. Não que seja grande o suficiente para tal.

– Gostaria de jantar na taverna. Preciso contratar um mercenário.

238

Page 239: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

Yuliano olhou para ele com certa desconfiança.

– Um mercenário? E para que precisa de um? Deixe-me adivinhar: Viaja sozinho pois sua família foi morta, sua cidade natal foi dizimada e está em busca de vingança. Foi recolhido pelos monges do norte entre os destroços de seu antigo vilarejo e foi treinado no caminho espiritual, mas sua alma não descansará enquanto não retomar a honra de sua família. Por isso, fugiu do mosteiro com a espada de sua família após roubar mantimentos e dinheiro e, agora, trama sua vingança contra o cavaleiro negro que matou todos os seus entes queridos.

– Não passou nem perto. - Disse Qlon entre gargalhadas. - Mas possui uma bela criatividade. Se serve como consolo, acertou a parte da espada ser uma peça de família.

– Só poderia. Crianças não costumam portar armas que não sejam de ma-deira. Bem, não vou insistir em perguntar seus motivos, devem ser pes-soais. Mas aviso logo que esta cidade é muito isolada. Nossa taverna costuma abrigar fazendeiros exaustos e, raramente, alguns marinheiros sobreviventes que tentam sem sucesso atravessar o Cabo da Honra a oeste. Garanto que não achará mercenários aqui. Talvez na cidade mais ao sul, Nautilus, que fica na costa. É o mesmo lugar que os marinheiros se reúnem no mar do norte e arriscam cruzar os mares glaciais.

– Ainda assim, não custa tentar, não é mesmo? - Disse Qlon, dando de ombros. - Quem sabe eu esteja com sorte.

– Pouco provável. Mas enfim, quem está cuidando da taverna é minha fi-lha, Üme. Basta descer as escadas e dirigir-se à direita do saguão. Ela prepara uma ótima sopa de galinha, se aceita como sugestão.

– Fico grato.

– Agora vou voltar ao estábulo. Nessa cidade pequena, as chances de eu receber outro hóspede hoje são tão baixas quanto a de ser atingido por um raio. Com sua licença

Dizendo isso, Yuliano desceu as escadas que subira para guiar seu hóspede enquanto o mesmo trancava seu quarto e colocava as chaves em um de seus bolsos.

– Boa tarde, nobre visitante. - Cumprimentava uma simpática adolescente meio-elfa por detrás do balcão. - Vai pedir o quê?

– Seu pai recomendou a sopa de galinha que faz. Gostaria dela cozida com batatas, se não se incomodar. - Qlon pediu, aceitando a sugestão de

239

Page 240: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

seu anfitrião.

– Incômodo algum. E para beber? Aviso logo que não servimos bebidas al-coólicas para crianças, ainda que viajem independente da companhia dos pais.

– Suco de maçã é uma opção?

– Sim, é. Temos ótimas macieiras dando fruto nesta estação. Bem, aguar-de que logo virei com seu pedido, certo?

A adorável garçonete, de longos cabelos ruivos encaracolados e sardinhas no rosto celestial, retirou-se para a porta atrás do balcão, provavelmente a cozinha. Qlon encantou-se com ela. Deveria ter quinze, se muito dezesseis anos. Ao me-nos aparentemente, por ser uma elfa. Como o pai, tinha profundos olhos âmbar que podiam ser vistos através das lentes de seus óculos de lentes finas. Usava um vestidinho preto e branco com um corpete por cima para dar forma à sua cin-tura. Botas que chegavam aos seus joelhos podiam ser vistos pelo tamanho de sua saia, que chegava na metade das coxas. Vestia-se bem demais para estar em uma cidade rural... Logo ela voltou com sua bebida.

– A sopa vai demorar mais uns vinte minutos. Espero que não esteja com pressa. - Sua voz era delicadamente fina.

– Ah, não se incomode. Por enquanto, esperarei.

A jovem senhorita foi novamente para cozinha e, do balcão, Qlon olhava para as outras mesas. Como Yuliano havia dito, apenas fazendeiros frequentavam o recinto. Alguns iam acompanhados de suas famílias, inclusive. Aquele não tinha o mesmo aspecto de uma taverna de cidade grande, frequentada por bêbados arruaceiros e mercenários em busca de serviços. Pelo contrário. Seu aspecto era puramente familiar. Pôde ouvir em alguns cantos murmúrios a respeito de sua vinda. Foi chamado de criança abandonada, órfão, sobrevivente... Inúmeras coi-sas que não condiziam com sua situação. Tão logo sua sopa chegou, tratou de devorá-la. Os mantimentos que os monges enviaram eram bons, mas estava cansado de comer frutas quase congeladas. Era bom ter algo quente para forrar seu estômago.

“Lá fora já era noite e chovia forte quando recebi a notícia. Uma chuva cheia de relâmpagos e, aparentemente, neve. Afinal, chegava o outono naquele lugar próximo ao polo norte. Estava sentado, ainda no balcão, conversando com a jo-vem meio-elfa sobre assuntos triviais, quando um fazendeiro esbaforido bateu a porta da hospedaria e entrou correndo. Correu de imediato para a taverna, e cha-mou seus amigos com um urro apressado.”

– Rápido, gente! Mais um navio naufragou na costa! Vamos!

240

Page 241: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

Cap. 58 – Jhon, o Mentiroso

tempestade estava forte. Os ventos rugiam próximos à costa, criando ondas pavorosamente enormes. A floresta que circundava a cidade de Bistol e era cortada pela única estrada de terra que levava ao sul

também circundava a parte norte do continente, próxima aos precipícios. Os al-deões olhavam para o navio que afundava aos poucos dentro de um redemoi-nho, ao norte. Os mais fortes e corajosos fazendeiros pulavam, ainda vestidos, ao mar, de uma altura superior a cinquenta metros, que separavam as íngremes escarpas das ondas que rebentavam violentamente contra as rochas litorâneas.

A

“Eu não confiava o suficiente na minha habilidade de nado para tomar tal atitu-de. Provavelmente alguns daqueles aldeões jamais iriam voltar de sua arriscada tentativa heroica. Eu deveria tomar uma atitude para evitar o maior número pos-sível de baixas. Ao mesmo tempo eu deveria ocultar minha identidade. Deixei mi-nha espada encostada no tronco de uma árvore e retirei minhas botas e meias. Sem que notassem, pulei de um canto isolado de um penhasco e abri minhas asas. Não me preocupei com sua cor, salvar vidas era a prioridade no momento. Ainda assim, jamais me notariam em todo aquele alvoroço.”

Pouco antes de tocar na água, deu um rasante e voou para cima. Estava difícil controlar o voo em meio ao turbilhão de vento. Ainda assim, voou o mais rápido que podia para os escombros do navio.

O estalo da madeira partindo ao meio ainda podia ser ouvido. Qlon olhava para a água em busca de sobreviventes. Não via sequer um tripulante do navio. Claro que, em meio ao vento, raios distantes, escuridão e gotas geladas de água, po-deria estar perdendo algum detalhe. Vasculhou novamente com os olhos a vasti-dão oceânica e, bem ao longe, pôde avistar alguém agarrado a um pedaço de madeira, sendo dragado para dentro do redemoinho gigante. Não pensou duas vezes. Em um rasante, voou para dentro da água, ocultando suas asas em segui-da. Salvar ao sobrevivente como um anjo não daria muito certo, a não ser que ele estivesse inconsciente. Mergulhou e abraçou seu corpo por trás.

– Ei! Está acordado? - Perguntou Qlon ao náufrago enquanto tentava man-ter a cabeça para fora d'água.

241

Page 242: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

– Sim, estou! Você veio ao meu resgate? - Perguntou o homem com uma voz rouca.

– Digamos que sim. - Na verdade, parecia que era o náufrago que ajudava Qlon. - Fica meio difícil nadar com essa correnteza.

– Ah, ótimo... O meu herói é alguém que não sabe nadar. Que patético...

Qlon não podia enxergar nada além de vultos, que só se faziam razoavelmente visíveis após clarões. Não podia verificar a aparência do estranho, mas pela voz, a indignação se fazia presente. Foi então que teve uma ideia.

– Está bem agarrado à tábua? - Perguntou Qlon, fazendo uma checagem.

– Óbvio, não quero morrer ainda! Que pergunta mais imbecil!

– Olha, se quiser continuar reclamando, vá em frente. Mas tive uma ideia para tirar a gente daqui. Continue agarrado firmemente. Se ficarmos mui-to mais próximos do redemoinho, não funcionará.

Qlon tomou fôlego, submergiu e, tateando o corpo do sobrevivente, chegou aos seus pés.

“Agarrei-me às suas solas e nadei com o máximo de força e velocidade que podia. A correnteza era forte, mas conseguia, com muita dificuldade, vencê-la. Quem diria que, mesmo com meu duro treinamento, eu estava quase sendo ven-cido pelas forças da natureza...”

– Ninguém aqui viu você pular e nadar tão rápido, garoto... Como você chegou até ele antes de nós?

Alguns dos fazendeiros estavam indignados. Qlon passou por aqueles que na-davam com o sobrevivente ao seu lado, que gritava para voltarem, pois era o úni-co que tinha sobrevivido. Já fora de perigo, ambos jogaram seus corpos sobre a tábua e nadaram mais calmamente até um ponto da costa leste da baía de Nauti-lus onde fosse possível subir em terra sem precisar escalar, seguidos pelos de-mais aldeões de Bistol que se lançaram ao mar. Demoraram cerca de meia hora procurando, e só encontraram uma praia rochosa.

– É mesmo! - Disse outro fazendeiro indignado enquanto Qlon descansava deitado sobre o úmido solo coberto por lama. - Uma criança normal não nadaria assim tão rápido. Além do mais, senhor... - Voltou-se para o so-brevivente, que ainda tomava fôlego após meia hora de natação forçada.

– Jhon... Jhon Moltern. E eu sei porque... - Tomou um longo fôlego.- Eu matei todos lá dentro.

242

Page 243: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

Jhon tomava da reconfortante sopa de galinha enquanto todos o observavam, curiosos. Ele tinha prometido contar por que matou os tripulantes do navio assim que estivesse alimentado e em segurança. Uma boa troca. Qlon, já de banho to-mado para tirar a salinidade do corpo, olhava para ele de uma mesa mais afasta-da. Como ele havia feito e porque havia feito era de seu interesse no momento. Se precisava contratar um mercenário, seria ainda melhor se fosse forte e conhe-cesse o continente. Claro que tinha o mapa, mas alguém que conhece a área para mostrar os caminhos é sempre bem-vindo. Ele tomou um longo gole do cal -do, esvaziando a tigela.

– Poderia servir um pouco mais, garota? - Perguntou o abusado senhor.

– Eu tenho nome, sabia? E sim, posso pegar um pouco mais.

Enquanto Üme ia encher novamente o vasilhame com uma concha, os cida-dãos pressionavam-no com o olhar.

– Já sei, eu vou contar...

“Jhon era um senhor de idade, com cabelos em uma mescla de preto, sua cor original, e cinza. Uma curta barba da mesma cor cobria apenas seu buço e quei-xo, deixando o rosto enrugado abaixo dos olhos um pouco mais limpo. Seus olhos eram de um castanho profundo e sua pele era um pouco queimada de sol, em um tom mais moreno. Suas vestes, uma túnica e uma capa negra, estavam empapados de água, e foram retirados antes que ele entrasse na pousada. Um confortável robe de seda cobria seu corpo e em seus pés agora estavam duas simples sandálias. Em sua bainha estavam duas adagas, uma com cerca de 25 centímetros de uma lâmina cheia de pequenas curvas, e outra, aparentemente um punhal, com menos da metade. Fez questão que ambas ficassem com ele ao tomar de banho e trocar de roupa. Apesar de seu jeito um tanto quanto arrogan-te, era simpático e engraçado.”

– Eu estava em Nautilus, a cidade portuária ao sul, cuidando de minha vida na taverna da região, quando ouvi alguns homens conversando algo so-bre sair da grande baía de Nautilus para o oceano, passando, claro, pelo Cabo da Honra.

– Nada de estranho. - Disse um dos aldeões. - Por mês já tivemos um re-corde de dez barcos tentando a travessia, e apenas uns dois consegui-ram a proeza.

Qlon voltou-se para Yuliano, que estava na mesa ao seu lado, e perguntou:

– Não há outra rota para os navios?

– Na verdade, não. O nosso continente é circundado por um relevo irregu-lar com enormes escarpas, baías rochosas, montanhas... Acho que mais ao sul do continente há até alguns vulcões. A única forma de entrar e sair

243

Page 244: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

do continente é passando pelo Cabo da Honra e entrando pela baía de Nautilus, a única cidade portuária em toda essa enorme massa de terra.

– É, mas eles queriam roubar um dos navios! - Disse Jhon, continuando o seu relato. Claro que não pensei duas vezes, precisava pará-los. E mais! Eles eram de uma famosa gangue de piratas!

– Nossa! - Um dos aldeões surpreendeu-se. - E então, o que você fez?

– Eles não iriam conseguir tal proeza sozinhos, então imaginei que tivesse mais subordinados. Infiltrei-me na organização substituindo um de seus comparsas, pegando suas roupas – as que estão sendo lavadas agora – e entrando no navio roubado. Eles zarparam pela manhã, e havia muito trabalho a ser feito. Então esperei pela noite pelo momento de atacar... Em meio a tempestade, matei enquanto dormiam. Pena que calculei mal a posição, e já estávamos em cima do Cabo da Honra.

Qlon sorriu levemente. Ele dava tanta emoção ao seu discurso que até parecia verdade. Os aldeões, caipiras como só, acreditaram, mas parece que o jovem anjo e Yuliano não...

Já era quase manhã quando Qlon desceu as escadas da hospedaria na mais profunda escuridão. A tempestade havia cessado no meio da noite e o sol logo nasceria. Sentia-se incomodado com algo. Sabia que a história de Jhon não en-caixava... Quando foi verificar o quarto, ele não estava mais lá. Hábitos noturnos? Não contava com isso. Olhou para a taverna. Ouvia ruídos vindos da cozinha. Pela fresta da porta atrás do balcão, olhou para dentro.

– Tomates malditos... De todos os ingredientes necessários para uma boa salada, é o único que não cabe em um bolso...

– Deixe-me adivinhar. - Disse Qlon, pegando o gatuno de surpresa. - Está estocando mantimentos para a viagem, certo? Eu não gostaria de usar o termo extraviar.

– Ótimo, pois eu não sei o que significa. - Apesar do susto, o larápio sequer parou seu ato. - E bico calado, garoto. Crianças deveriam estar em suas camas uma hora dessas.

A cozinha era pequena e um pouco apertada, sendo usada como depósito com seus montes de armários. Um enorme fogão à lenha ocupava o resto do espaço junto com as bancadas impecavelmente limpas onde eram preparados os ali-mentos. Qlon encostou-se em uma das paredes e ficou observando enquanto o larápio continuava a furtar ingredientes da cozinha.

– E então, o que realmente aconteceu ontem à noite?

244

Page 245: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

– Eu já contei. - Disse Jhon, engolindo em seco. - Eu afundei um barco com piratas mortos dentro.

– Não acha que eu realmente acreditei naquela historinha mal contada, não é? - Disse Qlon, abrindo um largo sorriso. - Piratas não zarpam à luz do dia, não conversam alto em tavernas civis e não são reconhecidos apenas por suas roupas, geralmente possuem tatuagens em seus corpos para indicar qual sua gangue. E você, com apenas duas adagas, matar uma tripulação inteira...

– O que foi? - Resmungou Jhon, parando o roubo e olhando para Qlon com os bolsos de suas roupas cheios de iguarias. - Acha que não tenho habilidade o suficiente para tal?

– Só acho que um poderoso combatente não estaria furtando cozinhas de hospedarias. Isso significa que também não possui riquezas que disse ter, isso é ótimo...

Após gabar-se de ter eliminado, sozinho, um contingente de trinta piratas bem armados apenas com o auxílio de suas adagas, também gabou-se de possuir uma pequena mansão em Colossus com alguns criados. De acordo com suas histórias, tornou-se rico com uma série de lojas de armas, contratando os melho-res ferreiros em todo o reino. Algo que também não fazia sentido por Colossus ser uma cidade neutra.

– Ótimo? - Jhon estava cada vez mais confuso. - Olhe garoto, esqueça o que viu aqui e volte para sua cama. Só me deixe em paz. Vou roubar o máximo de comida que eu puder carregar e partir antes do raiar do sol.

– Essa é uma vila puramente pastoril. Acha mesmo que os aldeões que en-ganou já não estão acordados?

Jhon esbarrou esbravejando em Qlon e seguiu para a porta da hospedaria, mas, ao tocar em sua maçaneta, ouviu Qlon finalmente propor:

– Espere, não vá. Você é um mercenário? - Qlon perguntou com um “quê” de inocência que só uma criança conseguiria colocar na entonação.

– Digamos que, de vez em quando, hipoteticamente, eu possa fazer traba-lhos de origem duvidosa para conseguir um pouco de dinheiro e sobrevi-ver. Claro, hipoteticamente. Por quê? Em que isso interessaria uma criança como você?

– Você sabe mentir bem, e eu preciso contratar uma pessoa mais velha e com moral duvidosa.

– Esqueça garoto. Eu jamais trabalharia para alguém que nem sequer tem idade para entrar em um cabaré.

245

Page 246: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

Girou a maçaneta.

– Eu pago bem.

Jhon tomou um profundo fôlego. Virou-se para fitar Qlon, que segurava sua pe-quena bolsa de moedas.

– Bem quanto? - Seu olhar demonstrava o interesse naquela pequena bol-sinha de couro.

– O suficiente. - Respondeu Qlon sem ter ideia do preço que seria para contratar os serviços daquele homem desconhecido.

– E o trabalho?

– Fácil. Basta guiar-me até Colossus e acompanhar-me lá por alguns dias, fingindo ser meu pai.

Jhon lançou um olhar estranho para Qlon, que o pequeno anjo não sabia o que significava.

– E por acaso você não tem pais?

– Tenho. - Respondeu firmemente. - Mas não estão aqui.

– Entendo... Os deuses decidiram levá-los...

– Não, eles não estão mortos.

– Aceite, criança, é o primeiro passo. - Jhon ajoelhou-se na sua frente e abraçou-o pelos ombros.

– Você ainda não entendeu. Eles estão vivos.

– Sim, claro que estão. Em seu coração e suas lembranças, sempre esta-rão. - Jhon começava a forçar um tom choroso que Qlon sabia ser puro fingimento. Por precaução, colocou sua bolsa de moedas novamente nas dobras de suas vestes.

– Que seja. - Respondeu secamente. - Vai aceitar ou não o serviço?

– Ainda não disse quanto recebo por isso. - Jhon desvincilhou-se do abra-ço e ergueu-se novamente, secando as lágrimas de crocodilo com as longas mangas de sua túnica.

– Dez moedas de ouro, estadia, alimentação e transporte pagos.

– Garoto... Você sabe como contratar um homem. E então, quando come-ço? - Perguntou com seu sorriso amarelado.

– Agora mesmo. - Disse Qlon. - Partiremos ao meio dia, esteja preparado.

246

Page 247: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

Qlon já ia subindo as escadas quando parou e virou-se:

– Ah, e faça o favor de devolver as coisas que pegou para a cozinha. Pri-meiro, eu tenho dinheiro para comprar mantimentos. E, segundo, não quero partir desta vila com um estranho que acabe criando-me má fama por tabela...

– Obrigado por sua estadia, senhor Warrior... Digo, Qlon. - Dizia Yuliano ao acabar de montar a sela dos dois cavalos.

A bolsinha de moedas de Qlon dada a ele por Trivium ficar cada vez mais va-zia. Ao total, tinha gasto cinco moedas de ouro, com provimentos para cinco dias, os dois cavalos, a garantia que o auroque seria bem cuidado, a estadia dele e de seu novo “amigo”, a comida... E ainda tinha vindo com um desconto generoso por ter ajudado com o resgate. A vila toda havia ido despedir-se de seu novo “herói”.

– Volte qualquer dia. - Dizia Üme, despedindo-se de seu amigo um tanto mais novo. - Sentirei sua falta nesta vila pequena.

– Um dia, quem sabe, eu apareça aqui mais uma vez. - Respondeu Qlon com um pouco de pesar na voz. Afinal, odiava despedidas.

– Vamos logo, Qlon. - Chamou Jhon, já montado em seu cavalo. - O cami-nho até Nautilus é longo.

Tinham optado por uma viagem com escala em Nautilus. O caminho até Colos-sus seria enorme e demandaria o dobro de mantimentos, algo que nem mesmo os cavalos poderiam suportar. Qlon, com ajuda de Yuliano, montou em seu cava-lo e, mantendo as rédeas firmes, seguiu Jhon, que já galopava vagarosamente na frente.

– E então, vai contar a verdade agora?

Já era a oitava vez que Qlon pedia a mesma coisa. A paciência de seu contra-tado não duraria mais muito tempo. Recusou das três primeiras e ignorou as ou-tras quatro, mas não poderia fugir para sempre dos pedidos incessantes de uma criança.

– E em que isso o interessa, chefe?

– Apenas por curiosidade. Vamos, diga, o que aconteceu de verdade na-quela noite?

– Qlon... - Mais um longo suspiro. Se não fosse pelo dinheiro de seu con-tratante, não teria aceitado trabalhar para uma criança de seis anos de idade. - Os adultos nem sempre fazem coisas moralmente aceitáveis... E

247

Page 248: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

além do mais, é uma história muito longa.

– O caminho até Nautilus também.

– Se essas quatro horas são uma mostra do que está por vir pelos próxi-mos sete dias, creio eu ter aceitado o emprego mais fácil e, ao mesmo tempo, mais difícil de todo o mundo... Você não se acha insuportável, ga-roto?

– De vez em quando minha mestra fala isso de mim...

– Mestra? Agora que falou, estou reparando nesse pedaço de metal nobre que leva em sua cintura... - Tentou puxar outro assunto para desconver-sar, na esperança que surtisse efeito. - Por acaso é filho de nobres?

– É... Pode-se dizer que sim. Como soube? - Usou mais uma vez de seu tom inocente.

– Roupas elegantes, uma bela espada na cintura, uma bolsa com moedas de ouro o suficiente para comprar uma casa... Não é algo difícil de se su-por. Se bem que, da primeira vez que vi essa bolsinha, achei que fosse um anão saqueador...

– Interessante teoria. Agora é sua vez de contar o que aconteceu e como foi parar nessa vida.

Jhon puxou as rédeas de seu cavalo, parando-o bruscamente. Qlon fez o mes-mo e pareou o cavalo com o dele. O senhor mantinha um olhar distante, que cor-ria a estrada por entre a aparentemente interminável floresta de pinheiros.

– Está tudo bem? - Qlon perguntou com seu tom inocente, quase que pe-dindo desculpas com o olhar.

– Qlon... Admito que seja meu patrão, estou fazendo isso pelo dinheiro... Mas, por favor, pare com as perguntas intrusivas, tudo bem? O passado de um mercenário diz respeito somente a ele.

Bateu as botas na barriga do cavalo e, a trotes curtos, seguiu caminho com Qlon mantendo certa distância, arrependido de ter perguntado demais.

A noite caiu. Ainda estavam no meio da floresta e decidiram levantar acampa-mento. Coletavam galhos secos nas redondezas, deixando os cavalos amarra-dos em uma pequena clareira.

– Mais dois dias e chegaremos até Nautilus. - Disse Jhon. - Basta seguir-mos pela estrada e tudo ficará bem.

– Não há animais selvagens nessa floresta?

248

Page 249: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

– Claro que sim. Ursos, lobos e até mesmo tigres. Quem sabe alguns monstrinhos aqui e ali. - Respondeu Jhon com uma foz firme e tranquila.

– E está tudo bem para nós acamparmos aqui? - A voz de Qlon começava a ressoar certa preocupação.

– Com certeza... Não.

– E como você pode falar isso com tamanha despreocupação? Não tem medo de sermos devorados no meio da noite?

– Ué, claro que tenho! Que pergunta mais idiota... Só estou velho demais para me preocupar com o dia que vou morrer...

Qlon deu uma risadinha e viu Jhon sofrer de dor nas costas ao abaixar-se para pegar alguns gravetos.

A fogueira crepitava tímida no meio do acampamento. Fora acesa com uma certa dificuldade já que alguns galhos ainda estavam molhados da tempestade na noite anterior. Os cavalos já dormiam, descansados da longa cavalgada, e Qlon ainda tentava recuperar-se da dor nas nádegas.

– E então? Trouxe alguma panela ou caldeirão? - Jhon perguntou. - Acho que ouvi um riacho a algumas jardas daqui, podemos pegar água potável de lá...

– Panela? Mas trouxemos ração e frutas e...

– Corrigindo: VOCÊ trouxe ração. - Jhon esvaziou os bolsos, revelando to-mates, nabos, cenouras, cebolas, cabeças de alho, beterrabas e uma ba-tata. - Eu trouxe comida de verdade!

– Jhon! Achei que havia pedido para não roubar da dispensa da hospeda-ria! Você não devolveu os ingredientes?

– Claro que não! Qlon, essa é uma das suas primeiras lições de vida: fru-tas e ração de viagem – essa papa disforme que você carrega em pe-quenos saquinhos – não possuem sabor e não recheiam a barriga de ninguém. Só não trouxe sal e orégano pois não tinha mais espaço nos bolsos...

Qlon não conseguia ficar furioso com aquele homem por algum motivo que ele próprio desconhecia. No fim, deu uma sonora gargalhada.

– Bem, isso explica por que quis sair tão rápido de Bistol...

– Eles estão numa cidade agrícola, não vão nem sentir falta de alguns le-gumes. - Disse o velho, dando de ombros.

249

Page 250: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

Cap. 59 – Nautilus

sol se punha no horizonte quando, por fim, avistaram a cidade de Nautilus ao sair da floresta sombria. Bastava que descessem a colina, seguindo a estrada. Jhon mantinha um olhar inquieto para a cidade, e

Qlon logo percebeu.O– Foi de lá que o seu navio saiu, não é mesmo, Jhon? - Perguntou com o

intuito de provocá-lo.

– O termo certo é “zarpou”. - Respondeu. - E sim, é. Por isso mesmo a mi-nha preocupação em voltar para lá.

Seus cabelos mal cortados, cuja franja era tão longa quanto as outras madei-xas, estava completamente oleoso e caindo sobre seu rosto, fazendo com que parecesse um mendigo velho. Qlon também estava na mesma situação, não po-dia reclamar. A quantidade de rios naquela floresta não era algo de se orgulhar, por isso os banhos aos longos dos dias de viagem foram escassos. Ao menos alimentaram-se de uma espessa sopa de legumes duas vezes. O gosto da ração não era dos melhores, Qlon tinha de concordar.

– Já sabe. Vamos apenas pegar os mantimentos e partir. - Disse Jhon.

– Impossível. - Respondeu Qlon. - A noite já está caindo. Vamos precisar dormir no hotel da cidade. E será impossível arrumar mantimentos a essa hora.

A cidade era grande vista de longe. Inúmeros navios em um extenso porto de uma cidade que se arrastava pela costa e pouco entrava no continente. Ainda as-sim, várias pessoas transitavam entre suas ruas e becos apertados, ocupados por prédios de quatro a cinco andares. O cheiro de peixe vinha profundamente em suas narinas, mesmo com os dois quilômetros que os separavam dos portões da cidade, que era cercada por um enorme muro branco ornamentado com os brasões da cidade, que se repetiam ao longo de sua extensão. O brasão era uma grande âncora com gaivotas pousadas em suas duas pontas.

– Seria muito pedirmos para acampar do lado de fora? - Perguntou Jhon com uma voz cheia de preocupação.

250

Page 251: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

– Sim, seria. - Respondeu Qlon de imediato. - Há dias não tomo um banho, como decentemente ou durmo em uma cama macia. De que está com tanto medo, Jhon?

– Se você planeja mesmo passar a noite na cidade, tem grandes chances de descobrir. - Respondeu apático. - Não há nenhuma forma de eu con-vencê-lo a não passar a noite na cidade, há patrão?

– Não. Não vou esperar para tomar banho apenas em Colossus. Engraça-do...

– O que é tão engraçado? - Perguntou Jhon olhando para o rosto de Qlon, cuja boca contorcia-se em um largo sorriso.

– O velho que não tinha medo de feras selvagens e nem da morte agora está tremendo de medo para entrar em uma cidade.

Jhon juntou catarro na garganta e deu uma cuspidela para o lado. Aquele era, provavelmente, o chefe mais irritante que tivera em todos os 45 anos de sua vida. Mesmo assim, não poderia reclamar. Apenas tomou as rédeas de seu cavalo e seguiu seu contratante.

O vento salgado do mar chegou com força nas narinas de Qlon, que amarrava as rédeas de seu cavalo no estábulo da pousada. Jhon andava sempre no seu encalço, já tentando entrar no papel de pai da criança, assim como fora instruído. O sol já havia sumido quando acabaram de passar pelos portões da cidade, vi -giado por dois arqueiros, um em cada torre adjacente ao portal. A cidade perdia movimento e preparava-se para dormir.

– Relaxe, Jhon. - Dizia Qlon tranquilamente. - É apenas uma noite. O que poderia dar errado?

– Filho, sempre que ouvi essa frase ao longo da minha vida, alguma coisa deu muito errado. - Respondeu Jhon, colocando a mão em seu ombro e apertando com determinada força. - Eu pretendo ser discreto. Finja que estou doente e, amanhã pela manhã, vá comprar os mantimentos sozi-nho. Quero sair desse lugar o quanto antes.

– Bem, eu não vejo problemas nesse seu plano. Um jovem garoto viajar com seu velho pai doente explicaria por que carrego a espada e por que tenho a bolsa de moedas. Mas ainda desconfio muito de todo esse seu pavor... Eu não sei o que aconteceu e não pretendo persistir nesse as-sunto, já notei que acabo por irritá-lo com isso...

– E como. - Sussurrou Jhon para que Qlon não o ouvisse.

– Mas eu tenho quase certeza que hora ou outra acabarei sabendo. Por

251

Page 252: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

agora, se pretende mesmo passar despercebido, ajeite seu capuz e apoi-e-se em meus ombros. Se puder andar corcunda, sua encenação ficará ainda melhor...

Jhon concordou e, agindo como o velho caquético que parecia, foi guiado por Qlon, que carregava suas malas, até a recepção do hotel. O hotel, assim como qualquer bom hotel de cidade grande, funcionava com uma taverna em seu tér-reo. Ao passar pelas inúmeras mesas lotadas de marinheiros bêbados, a maioria armada com seus sabres e pistolas em coldres de couro, fumando seus cachim-bos e gritando animados em suas conversas sobre suas aventuras em alto-mar e prostitutas que contratavam em terra firme, chegaram por fim à recepção vazia. Qlon tocou um pequeno sino, e detrás do balcão da taverna o dono do estabele-cimento, de feições roliças e um grande bigode no rosto gordo, veio atendê-los.

– Desculpem pela demora. Como posso servi-los? - Perguntou animado.

– Eu e meu filho... - Enrouqueceu a voz e deu duas tossidas fajutas, levan-do a mão à boca. - Estamos de passagem para Colossus. Estou muito doente, e precisaremos de hospedagem.

– Por certo, o quarto para viajantes custa trinta moedas de prata por noite por hóspede. O café na taverna é incluso.

– Quarto para viajantes? - Qlon perguntou de forma ingênua.

– Seu pai explicará quando for mais velho, garoto. - Retrucou o atendente ironicamente, acompanhado de algumas risadas.

– Está tudo bem, filho. Pague o moço. - Pediu Jhon, desejando sair do am-biente o quanto antes.

Qlon olhou desconfiado para o atendente, mas ainda assim retirou a bolsa de couro das dobras de suas vestes e pegou uma moeda de ouro, empurrando-a para o balcão. O atendente verificou-a e pegou uma das inúmeras chaves, pen-duradas atrás do balcão por pregos nas paredes.

– Quarto trezentos e quatro. Subam dois lances de escada e sigam para o corredor à sua esquerda. Seu quarto fica no último andar, vai ser melhor para não ouvir os barulhos pela noite...- E, dizendo isso, voltou para a ta-verna para atender seus clientes ávidos por álcool.

Jhon não dormira direito pela noite, ainda temendo que algo acontecesse. Olhava pela janela que dava para a fachada do hotel de meia em meia hora para ter certeza que nada aconteceria, mas apenas a lua e as estrelas o contempla-vam de volta. Conseguiu tirar um cochilo, desmaiando de sono, apenas quando o sol já começava a raiar e Qlon arrumava-se para fazer a compra dos mantimen-tos.

252

Page 253: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

– Não esqueça de trazer muitos legumes dessa vez. Nada de ração. E se quiser carne, compre e salgue, mas eu não recomendo. O cheiro pode atrair os animais selvagens durante a noite, e é difícil de temperar. - Re-comendou deitado em sua cama. - Agora vou dormir um bocado. Passei a noite com medo de que alguém invadisse o quarto.

– Tudo bem, vou e voltarei o mais rápido que puder. Acamparemos mais cedo hoje. - Acabou de ajeitar a espada em sua cintura.

Qlon abriu a porta silenciosamente, deixando seu pai falso dormindo lá dentro com seus incômodos roncos. Ao descer o primeiro lance de escadas, notou um corredor cheio de mulheres seminuas – algumas inclusive nuas – e cheias de uma mescla de suor e um líquido desconhecido, branco e viscoso, algumas dor-mindo e outras ainda acordadas, fumando de seus cachimbos. As mulheres, ao menos as ainda despertas, encararam-no de volta, mas sequer se manifestavam. Ouvia alguns gemidos vindo de quartos adjacentes, mas não se atrevia a verifi-car do que se tratava. Apenas desceu a última parte das escadas, tentando com-preender o que estava acontecendo ali.

Acordou com batidas bruscas na porta. Qlon havia ficado para o lado de fora? Olhou para a porta e viu as chaves penduradas na fechadura. A porta não estaria trancada, e Qlon saberia disso. Ainda assim, forçando rouquidão na voz, pergun-tou:

– Quem é?

– Serviço de quarto. - Respondeu a voz do outro lado. - Ainda não desceu para tomar seu café da manhã.

Aquela voz era conhecida. Era a voz que Jhon queria evitar de encontrar na-quela cidade. Meio desajeitado, levantou da cama de um salto. Pegou as malas e abriu a janela. Estavam no terceiro andar, alto demais para arriscar um pulo. Mas era isso ou morrer na mão de seus perseguidores, não havia escolha. Apoiou-se no encosto da janela e olhou para baixo buscando um local macio o suficiente para aterrissar. Apenas pedras e comerciantes transitando de lá para cá com suas carroças. Isso! Carroças.

Esperou uma passar exatamente em baixo de sua janela e, com um fraco im-pulso, pulou. Não escolhera bem a barraca, mas foi o suficiente para amortecer sua queda. Muitos tomates sujaram suas vestes da cabeça aos pés. Em meio a reclamações do vendedor, que gritava com ele por ter destruído sua humilde ven-da, levantou-se e olhou para a janela da qual se atirou, apertando as malas con-tra seu peito. Pôde ver o rosto. Aquele rosto. Ignorou seu olhar e correu pelas ruelas, resmungando em sua mente que estava velho demais para fazer coisas parecidas. Precisava encontrar Qlon, e precisavam sair dali o quanto antes.

253

Page 254: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

Qlon deixou os sacos no quarto e olhou ao redor. Jhon havia fugido e deixado-o ali? Não, não havia sentido ele fugir sem seu dinheiro e cheio de roupas de criança. No máximo poderiam considerá-lo um pervertido. Tinha comprado tudo o que pedira: muitos legumes e vegetais, que saíram até um pouco mais caros do que se tivesse comprado apenas a ração. Pensou em comprar carne e salgá-la, mas não sabia como seriam as feras pelas planícies que se estendiam até Colos-sus. No mais, havia comprado as provisões necessárias para até uma semana de viagem. Olhou pela janela e viu um comerciante indignado reclamando algo com os policiais de Nautilus. Foi quando dois homens estranhos entraram no quarto.

– Você é amigo do Jhon, o sorrateiro?

Qlon voltou-se para fitá-los. Um deles era um enorme brutamontes queimado de sol, com músculos saltando de seus braços e peitoral descoberto. Usava lu-vas meio-dedo de couro nas mãos enormes. Seus cabelos curtos e negros eram presos por uma bandana, deixando apenas pequenos fios expostos. No seu ros-to bruto, uma cicatriz que começava no supercílio esquerdo e acabava próxima à sua orelha. Apenas um curto short branco, que mal passava de suas coxas, co-bria suas partes íntimas. Em seus pés, botas com soleira de aço. O outro parecia um pouco menos perigoso, mas portava uma arma de fogo na cintura.

“Antes de prosseguir as explicações, tenham em mente algo: naquela época eu não sabia o que era uma arma de fogo. Anjos sempre lutavam com armas brancas comuns, e o máximo que usávamos para atacar de uma longa distância eram arcos e flechas e armas de arremesso. Mas não se preocupem. Nos meus relatos, a parte que venho a saber como é e como funciona uma arma de fogo não estão longe...”

Tinha cabelos loiros cortados na altura do maxilar e trajava vestes mais decen-tes. Um elegante terno negro com riscas de giz combinando com sua gravata vermelha de seda e sapatos negros de couro. Seu rosto era um pouco mais afe-minado e de queixo fino, com olhos levemente azulados. A pergunta tinha vindo dele.

– Sim, eu conheço um Jhon. - Disse Qlon, já tendo uma leve ideia do que estava acontecendo. - Mas não sabia dessa titularidade...

– Você é engraçado, garoto. - Disse o loiro. - Meu nome é Ivan, e o do meu colega é Khan. Estamos atrás deste desgraçado e precisamos de sua ajuda para saber onde ele está, tudo bem? Se colaborar, daremos um doce...

Khan reparou na espada na cintura de Qlon e avisou seu comparsa, que olhou para o cabo da espada com certo interesse.

254

Page 255: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

– Ora ora... Vejo que está carregando uma arma muito grande para uma criança de sua idade. - Disse com uma voz insinuante. - Dê para o tio Ivan, dê. Não queremos que alguém se machuque, não é?

– Desculpe, mas a espada não poderei dar, é uma herança de família. Também não posso dar a localização de Jhon, já que não faço a mínima ideia de para onde ele fugiu. Mas talvez possa saciar minha curiosidade: o que ele fez?

Ivan abriu um sorriso.

– Um garoto inteligente... Não me estranha que esteja sobre a tutela de Jhon...

– Tutela? - Perguntou Qlon com um certo espanto na voz. - Errado, sou seu contratante, ele está aqui a meus serviços.

– E isso explica por que ele voltou para a cidade. - Concluiu Khan.

– Obrigado, gênio. - Retrucou Ivan. - Mas parece muito novo para contratar um mercenário, senhor...

– Qlon. Qlon Warrior Eros.

– Qlon... Um nome... Diferente. - Disse Ivan, procurando em sua mente al-gum possível falso elogio. - Diga, Qlon, você parece alguém inteligente. Como conheceu o Jhon?

– Resgatei-o de um navio que afundava. - Disse, montando em sua cabeça a imagem do que possivelmente havia acontecido.

Ivan olhou para Khan, cuja face tinha enchido de veias. Ambos soletraram para eles mesmos a palavra mais uma vez, apenas para terem completa certeza. “A-f-u-n-d-a-d-o”.

– Tudo bem... Acho que já pegamos informações demais. - Respondeu Ivan com uma voz um pouco mais grave.

– Esperem! - Chamou antes que partissem. - Vão contar o que ele fez? An-dem, estou curioso para saber.

Ivan abriu um sorriso.

– Conto se der sua espada em troca.

– Se conseguir pegá-la, pode ficar com ela. Temos um acordo?

– Temos. - Respondeu Ivan, olhando com certa malícia para o pequeno ga-roto. - Jhon era um afiliado de nossa... “Organização”. Começou por bai-xo e, em dois anos, com sua ótima lábia e excelentes conselhos, conse-

255

Page 256: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

guiu um posto próximo ao de nosso líder. Mas o que não imaginávamos é que ele queria apenas aprender a navegar. Então roubou um de nos-sos navios e zarpou, sem tripulação e com poucos mantimentos, ao mar aberto. Ele só não aprendeu a prever o tempo direito e... Bem, como você disse, deu no que deu. Ele afundou o navio no Cabo da Honra du-rante a tempestade, não é?

– Como soube? Eu não...

– Criança, adultos possuem algo chamado lógica racional. Em alguns anos irá aprender bem o que é isso... Agora ande, passe a espada.

Qlon sorriu. Sacou a Sanctus de sua bainha e olhou para Ivan, que mantinha a mão perto de seu coldre. Mas Qlon não tinha intenção de lutar. Apenas depositou a sua arma no chão e afastou-se.

– Fácil assim? - Perguntou Khan. - É alguma pegadinha?

– De forma alguma. Eu apenas estou desafiando que peguem. Eu não apostaria minha espada se não tivesse certeza que posso mantê-la, de um jeito ou de outro.

– Você fala muito para um garoto...

– Shhhh, calma Khan. - Acalmou-o Ivan. - Não vamos irritar-nos por bestei-ras, certo? É apenas um garoto. Um garoto e uma espada. Não deve ser nada demais, não é? Como tomar doce de uma criança indefesa...

Foi até a espada e olhou-a de cima. Sua lâmina era bela, de um tom azulado inigualável. Parecia ter algumas inscrições em sua empunhadura coberta por fai-xas sujas e na base de sua lâmina próximo à guarda. Tocou em seu cabo e ten-tou içá-la, sem sucesso. Abriu um sorriso e olhou para Qlon, que mantinha um olhar irônico sobre ele. Irritou-se um pouco. Fez mais força, mas ainda sem su-cesso. Subiu as mangas de seu terno caro e tentou mais uma vez. Fez força até seu rosto liso criar rugas testa e sua face branca corar, mas sem sucesso.

– Khan, acho que temos um desafio. Pode ajudar aqui?

Ivan levantou-se um pouco envergonhado. E encarou Qlon nos olhos, que não perdia a calma. Khan também abaixou-se e tentou erguer a arma do pequeno anjo ruivo, mas mesmo que precisasse forçar todos os músculos do seu corpo ao mesmo tempo, não conseguia.

– Uma espada mágica? Seria essa a Excalibur?

– Excalibur? Não... O nome dessa espada é Sanctus, e posso garantir que é uma arma muito poderosa, e que apenas seletos escolhidos podem le-vantá-la. - Disse Qlon calmamente. - Agora que provaram que não po-dem pegá-la, por favor, afastem-se dela. Só seu verdadeiro dono pode

256

Page 257: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

manejá-la.

– É garoto, você é esperto. - Disse Ivan levantando o corpulento amigo e ajudando-o a afastar-se do artefato, mesmo contra sua vontade. - Seria um ótimo pirata, já pensou nisso?

– Já li muitas lendas sobre vocês. - Qlon pegou a espada com apenas uma mão e embainhou-a. - Estaria mentindo se dissesse que nunca imaginei ser um de vocês, mas não acho que atingira meus objetivos de vida em um navio cheio de bucaneiros. Fica para a próxima. Agora deem licença. Preciso procurar por Jhon antes que vocês encontrem-no.

– Não pretendemos deixar que vá. - Ameaçou Khan estalando os dedos das mãos.

– Não preciso de sua permissão. - Retrucou Qlon na mesma altura.

– Só por que está com uma espada na cintura acha que vai conseguir pas-sar por nós? Somos dois chefes da organização... Pretende agitar seu brinquedo como um retardado até acertar dois especialistas em combate que já mataram dúzias de soldados em navios de guerra?

– Se for preciso... Mas por agora, prefiro evitar o combate. - Qlon dirigiu-se para a janela.

– Pretende suicidar-se agora? - Khan perguntou, quase rindo.

Qlon não disse mais uma palavra. Em uma fração de segundos, deu um pulo forte o suficiente para chegar no telhado de um dos prédios adjacentes. Não olhou para os lados, apenas seguiu correndo em meio aos telhados enquanto dois paspalhos boquiabertos assistiam à sua fuga.

Jhon fugia, cansado, de dois corsários. Já estava cansado de espremer-se en-tre as pequenas ruas, cheias de transeuntes, bêbados e mendigos. Mas se ele fosse pego, a morte seria certa. E justamente isso que aconteceu. Em um mo-mento de descuido, acabou esbarrando em um vendedor de bijuterias e caiu ao chão. Um dos corsários segurou-o, colocando seus braços nas costas, fazendo com que largasse a mala que carregava. E então, viu sua sombra aproximando-se. Aquele homem que queria evitar.

Seu corpo era magro e cheio de cicatrizes e, apesar da estatura baixa, impu-nha um certo medo com seu cavanhaque liso e comprido, amarrado delicada-mente em uma trança, assim como seus longos cabelos negros, igualmente oleo-sos. Sua vestimenta era muito rudimentar, mas não se incomodava com essas coisas. Usava uma vestimenta burguesa antiga, de muitas eras atrás: uma cami-seta branca de seda por baixo de tudo, com um colete elegante por cima, calças longas, sapatos, luvas brancas, do mesmo tecido que a camisa, e, por cima do

257

Page 258: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

conjunto, uma elegante casaca. Claro, em sua cabeça estavam a tradicional car-tola e óculos pince-nez. O diferencial era que suas roupas estavam aos farrapos. Cortadas, manchadas com seu próprio sangue, rasgadas. Parou na frente de Jhon, pousando as duas mãos em um crânio no topo da haste de seu cetro.

– Soltem-no. Eu cuidarei a partir deste ponto.

Os corsários soltaram seus braços, afastando-se.

– Criar coragem para andar assim, em plena luz do sol... - Disse Jhon, quase que ameaçador.

– Silêncio. - Esbofeteou o rosto do velho com sua mão esquerda. - Não dei permissão para os porcos falarem...

Passou a andar em círculos na sua frente, vagueando o céu com seus olhos azuis-celestes.

– Jhon, Jhon... - Entoou. - Quem diria. Acolhi a você como um irmão. Dei espaço dentro da organização, dei minha confiança, vestes e roupas...Estava pensando em dá-lo um esquadrão... E é assim que me retribui. Você me decepcionou profundamente...

– Eu deveria citar sua estupidez em acreditar no primeiro mercenário que...

– Basta! - Mais um tapa, vezes mais forte que o anterior. - Não suporto ou-vir seus guinchos. Comporte-se como o porco que é e espere seu abate.

Jhon calou-se. Não continuaria brincando com a sorte. Ouviria seu monótono monólogo até o final e, então, aceitar a morte eminente. Ninguém poderia sal-vá-lo dele, o grande Pirata Lorde Phoebe. Lorde pois ele se considerava um, mas na verdade era apenas um louco que achou antiguidades pré-apocalípticas en-terradas em um baú. Além de seus trajes, estimava um relógio de bolso talhado a mão e feito inteiramente de ouro, que sempre carregava no bolso de seu colete. O único bolso não rasgado pelas inúmeras batalhas que travara em alto-mar.

– Poderia ter uma vida boa conosco, Jhon. - Dizia Phoebe. - Uma ótima vida naufragando navios inimigos de Colossus, saqueando cidades dos velhos continentes, bebendo das melhores garrafas de rum, fornicando com as mais belas prostitutas... Mas não, decidiu estragar isso, e a troco de quê? Raios, Jhon, você era meu melhor subordinado. E agora, terei de matá-lo. Que desperdício... Vai morrer como o mercenário sem honra que era, o espada vendida antes de entrar em nossa organização.

Girou o punho de seu cajado e revelou um sabre oculto, arma comumente utili-zada por nobres senhores. Ergueu sua arma acima da cabeça, preparado para dar o golpe. Jhon apenas virou o rosto, esperando encontrar aqueles que amava do outro lado da vida. Phoebe moveu os lábios, sussurrando “covarde”, antes de dar o golpe.

258

Page 259: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

Cap. 60 – Duelo Interrompido

oi rápido. A lâmina rasgou o ar, criando um ruído característico. Jhon caiu para o lado, soltando um grito de dor. Phoebe olhava-o com des-prezo enquanto ele levava as mãos ao olho esquerdo, ensanguentado.F

– Apenas me mate logo e acabe com esse ritual. - Pediu Jhon com raiva na voz. - Já basta.

– Morrer não é o suficiente para você. - Respondeu seu inimigo, inexpres-sivo. - Por ter traído minha confiança, perderá antes os olhos, depois as orelhas, depois a língua, os pés, as mãos... Até tornar-se um inútil, que apenas vive.

– Haja paciência! - Com a ponta dos dedos da mão direita, tocou a lâmina da arma de seu antigo companheiro. - Se preferir, dê a espada e eu aca-barei com o serviço para você!

Ia levantar a espada mais uma vez para arrancar os dedos de seu antigo com-panheiro, mas ouviu um de seus capangas gritar e olhou para o lado. Uma crian-ça havia arrancado seu braço na altura do cotovelo, desarmando-o. O jovem, que não aparentava passar de cerca de oito anos, portava uma espada de duas mãos, carregando-a apenas com uma. Nada mais. Vinha vestido em roupas de frio razoavelmente propícias para o clima de Nautilus. Uma simples criança havia feito aquilo?

– Deixe o meu mercenário ir.

– Seu mercenário? - Perguntou Phoebe. - Você contratou esse lixo huma-no? - Com a ponta do sapato, levou Jhon ao chão e torturou-o, fazendo força para esmagar seu esterno. - Você é uma criança. Nem deveria es-tar vendo esse acerto de contas entre adultos.

– Sim, contratei. Qual seria o problema?

– O problema - Dirigiu o olhar de nojo para o homem deitado no chão, con-torcendo-se de dor e banhando-se em seu próprio sangue. - é que ele não merece viver. Ele é um traidor, e estou julgando-o agora. Agora ande, saia daqui antes que veja mais cenas desagradáveis.

259

Page 260: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

– Cenas desagradáveis? Já vi coisas muito piores que isso... Creio que boa parte das coisas possa ser resolvida com um diálogo e um pedido de desculpas, mas não creio que esse seja o caso. Por que ele traiu sua confiança? - Perguntou hesitante.

– Criança insistente. Apenas saia daqui!

– Não vou a lugar nenhum.

Phoebe suspirou e levou sua mão esquerda ao bolso de sua calça, retirando um fino lenço de seda e secando o suor que escorria da testa para a ponta alon-gada de seu nariz. Vendo que não teria como livrar-se daquela criança, apenas voltou a mirar Jhon enquanto culpava-o:

– Ele é acusado de trair nossa confiança e roubar um de nossos navios. É o suficiente para você?

– Para uma tortura seguida de execução? Com certeza não é. Até seria justificado se ele tivesse matado alguém. Matou? - Qlon olhou para Jhon, que retribuiu o olhar entendendo o plano.

– Claro que não! - Bradou Jhon.

– Garoto, você é pequeno demais para esses assuntos de adultos. Pedirei educadamente para que se retire apenas mais uma vez.

– E se eu não o fizer?

Phoebe moveu a cabeça, pedindo para que o outro corsário atacasse. Com um pouco de receio, seu comparsa fez como foi ordenado. Sacou sua cimitarra e atacou o garoto em um golpe básico na vertical, de cima para baixo. Qlon deixou sua espada tocar o chão revestido de pedras das ruas da cidade, movendo o cor-po rapidamente para o lado esquerdo. Em um outro movimento veloz, passou sua lâmina com suavidade nas coxas protegidas apenas por pano do seu rival, levando-o ao chão.

– Você luta muito bem para uma criança. - Observou Phoebe.

– Vai soltá-lo agora?

– Não. Esse homem ainda está sob meu julgamento, não vou soltá-lo até acabar com sua penitência.

– Eu não quero mais lutar. Não vejo sentido em lutar contra seres fracos e repugnantes como vocês. Que tal fazermos um acordo? Percebi que pi-ratas adoram barganhar.

Phoebe tirou o pé do peito do traidor, achando a proposta interessante.

– Que espécie de acordo?

260

Page 261: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

– Eu pago pelo navio que ele roubou e você deixa-o livre. Que tal?

– Paga pelo navio? Uma proposta interessante... Continue...

– Considerando que você e sua gangue provavelmente roubaram o navio, então Jhon não deve nada a vocês. Mas eu estou disposto a pagar pelo furto dele... Dez moedas de ouro.

– Apenas dez moedas? - Perguntou Phoebe, irritado. - Multiplique por dez esse valor e não chegará sequer próximo ao que vale um navio de ma-deira de porte médio.

– Eu deveria mencionar novamente que vocês roubaram esse navio? Logo, o meu pagamento serve mais para libertar aquele idoso senhor que já foi atingido por sua lâmina do que para repor sua eventual perda. Apenas um valor simbólico.

Phoebe riu por trás de sua aparência sombria.

– E quanto você acha que vale a vida desse miserável, já que está nego-ciando a ela e não o navio? Quanto esse mercenário inútil vale para você? - Disse, apontando seu sabre para a garganta de Jhon, ainda ta-pando o olho arrancado com a mão.

– Você não disse que ele era um lixo humano? Então acho que dez moe-das são mais que o suficiente.

– Sagaz... Muito sagaz... Mas e meus homens feridos? Você arrancou o braço de um deles. Cuidados médicos, uma mão mecanizada para encai-xar no lugar... Isso custa caro, sabia?

– Quinze moedas. Minha oferta final.

– Estava pensando em cinquenta. E eu ainda o deixarei impune por ter fei-to o que fez com os meus capangas. E então, o que diz? - Perguntou Phoebe em um tom provocativo.

– Não me posso dar ao luxo de gastar tudo isso. - Ponderou Qlon, calcu-lando rapidamente. - E também, não há nada pelo que me deixar impu-ne. Apenas me defendi. E mesmo que me atacasse, não conseguiria se-quer tocar-me com sua arma.

Phoebe abriu um sorriso amarelado.

– Para sua sorte, meu código de honra não me permite lutar contra crian-ças insolentes. Agora ande e saia daqui. Executarei esse velho larápio antes que a polícia de Nautilus venha em meu encalço.

– Mas permite saquear, matar... Belo código de honra, é uma pena que um lorde de verdade jamais o seguiria. E não posso deixar que mate esse

261

Page 262: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

homem, temos um acordo.

O senhor dos piratas tomou aquilo como um desaforo e, mais do que depres-sa, apontou a ponta de sua espada na direção do jovem anjo, enquanto seus companheiros agonizavam no chão tentando estancar o sangue.

– E o que você sabe sobre ser um lorde? - Perguntou em um tom desafia-dor, mostrando que o plano de Qlon estava dando certo.

Ele poderia revelar quem era, em que família nascera e tudo o que sabia sobre o comportamento enjoativo da nata burguesa de sua sociedade que fora inspira-da em uma civilização do passado, que por sua vez absorveu ideias de um movi-mento chamado “iluminismo”, por achar que aquele modelo seria o mais propício para aliar o estilo de vida nos sete céus e aliar-se à uma nova humanidade que renascia de um caos, mas decidiu assim não fazer. Aquele pirata imbecil e com ar de superioridade jamais aceitaria a verdade. Aliás, seria até mesmo difícil de provar sem que chamasse muita atenção, e não desejava isso. Para revidar sua pergunta e, claro, provocá-lo ao mesmo tempo, uma singela frase bastaria:

– Com certeza sei muito mais do que um pirata sujo como você, cujo título vem de trapos antigos e um falso comportamento moral, jamais saberia, esteja certo.

Fora o suficiente. Visivelmente irritado, Phoebe olhou para Qlon de uma forma tão assustadora que fez o jovem anjo perguntar-se se fora longe demais. A som-bra que sua cartola fazia e o reflexo do sol diurno nas lentes do pince-nez de Phoebe davam a ele uma presença notória e assustadora ao mesmo tempo. Pelo menos em aparências parecia um bom líder. Faltava saber como era sua perfor-mance em combate.

“Acho que já ficou claro em meus relatos, mas, se ainda não ficou, vou escla-recer agora: De nada adianta uma velocidade vinte vezes maior se não puder en-xergar vinte vezes melhor. Muitos lutadores acham que basta a velocidade ou a força ser maior que compensará tudo. Mas não compensa. Por mais que a mus-culatura seja forte ou que a velocidade seja alta, o corpo possui um limite. Os re-flexos possuem um limite. Então estar mais treinado significa apenas conhecer e usar melhor os limites de corpo. Como anjos, suportamos muito mais do que o corpo de um outro mortal, e nossos reflexos são ligeiramente mais rápidos. Mas isso não nos impede de perder para um outro ser com bom treinamento.”

O sabre de Phoebe veio em uma vertical exata, de baixo para cima, pronto para rasgar o corpo de Qlon no meio. Por conta de seu reflexo, defendeu o golpe com a Sanctus momentos antes de tocar seu abdômen, desviando a ponta da afiada lâmina inimiga para o lado. Pulou para trás e observou Phoebe parado, olhando para o mesmo lugar por alguns segundos.

– Nunca antes alguém havia conseguido sequer ver o rastro prateado de minha arma, e você defendeu seu golpe. Não apenas defendeu, como

262

Page 263: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

mudou sua trajetória. Uma criança. Uma maldita criança.

Phoebe ergueu novamente a cabeça e encarou Qlon. Tirou sua cartola e jo-gou-a de lado. Pegou o relógio do bolso de sua casaca. Os ponteiros estavam parados há muito tempo, mas ainda assim observou-os após abrir a sua prote-ção. Colocou a cartola em cima do corsário com o corte nas coxas, depositando em seguida sua casaca, luvas e o relógio por cima deles.

– Tome conta deles, e acho bom não manchá-los com seu sangue.

Sua camisa de mangas longas por baixo do colete ainda cobria seus braços até onde tocavam as luvas. Ele puxou-as para cima até os cotovelos.

– Se foi bom o suficiente para defender um de meus golpes, espero que também seja bom o suficiente para golpear-me.

Dizendo isso, partiu para cima de Qlon com uma saraivada de golpes. Qlon de-fendia-se e esquivava como podia, mas o sabre de Phoebe chegava a fazer cor-tes em suas roupas. Apenas defendendo ele nunca conseguiria vencer o embate. Viu uma brecha e tentou um golpe de perfuração na altura do ombro, mas Phoe-be foi mais rápido e jogou o corpo para o lado. Levou a mão ao braço com o sus-to. Passou-a na região da ferida e, quando ergueu-a diante de seus olhos, viu as-sustado a cor de seu sangue. Qlon apenas parava para observar as atitudes da-quele louco sujeito.

– Gostaria de parabenizá-lo, garoto. Apesar de não ser o primeiro cuja lâ-mina toca em mim, como pode ver pelos rasgos em minhas roupas, é o primeiro que me arranca algumas gotas de sangue. Quero duelar mais.

Uma nova chuva de golpes. Qlon não resistiria por muito tempo sem acabar com alguns ferimentos. Ao menos seu objetivo estava completo. Jhon havia fugi-do. Não demorou muito para ouvir dois gritos atrás dele:

– Chefe, não se aproxime desse garoto! Ele é um demônio!

A voz parecia ver de Khan. Pararam de duelar no exato instante, e então, um barulho.

“Foi então que eu senti na pele. Algo me atingira nas costas, mais exatamente em cima da escápula direita. A dor foi lancinante. O projétil perfurara minha pele e meu osso, alojando-se na musculatura. Foi tudo em um instante muito rápido. Aos poucos eu perdia a consciência. Não podia, mas eu já não mandava mais em meu corpo. Com o forte impacto, meu corpo foi arremessado alguns centíme-tros para a frente. Eu cairia com o rosto voltado para o chão se o braço de Phoe-be não me segurasse. Eu pude ouvir um grito seu antes que as imagens desfo-cadas sumissem da minha frente.”

263

Page 264: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

– Seus idiotas! O que acham que estão fazendo? - Phoebe urrou para Ivan e Khan, seus mais conceituados parceiros, que ficaram paralisados de medo no mesmo lugar que estavam.

Jhon via a cena de um dos telhados próximos com o único olho que restara em sua face. Ivan abaixara sua arma e olhou perplexo para seu capitão, cujo rosto encoberto pelo ângulo de visão estava vermelho de tanta ira. Cuidadosamente, Phoebe depositou Qlon no chão, cuja mão não soltava sua espada. Gritou algo sobre estar tendo um duelo sério com o garoto, que não queria ser interrompido. O grande pirata até tentaria ajudá-lo, mas ouviram as tropas da cidade chegan-do. Estavam agindo em plena luz do dia, era óbvio que isso acabaria acontecen-do hora ou outra. Rapidamente, Phoebe pegou o globo ocular de Jhon e enfiou-o no bolso da calça. Khan pegou os dois corsários no chão, junto com as roupas de seu chefe, e, sem mais opções, fugiram. A patrulha seguiu-os ao invés de cui-dar do corpo de Qlon, caído no chão e com uma grande mancha de sangue nas costas.

“A primeira coisa que me lembro após ter acordado foi do rosto de Jhon, com um tapa-olho feito de bandagens do lado esquerdo, encarando-me. Estávamos fora da cidade, na floresta da qual saímos para ir para Nautilus. Nossos cavalos estavam amarrados nas árvores com nossas coisas, inclusive os suprimentos, e um forte cheiro de sopa de legumes erguia-se no ar.”

– Finalmente acordou. Você perdeu muito sangue, achei que uma criança como você não sobreviveria. Está com fome?

Qlon tentou apoiar-se em seu braço esquerdo para levantar, mas ainda estava muito tonto para isso. Depois de alguns segundos tentando, finalmente conse-guiu sentar-se em uma cama improvisada, feita com a palha que serviria de ali-mento para os cavalos.

– Estou... Acho... O que aconteceu?

– Você foi atingido nas costas por um tiro. - Dizia Jhon enquanto andava até o panelão para pegar sopa em uma concha. - Desmaiou de dor.

– Já experimentei muitas coisas ruins, mas... Nada algo parecido.

– Não sei de que coisas ruins está falando, mas sei como é a sensação de levar um tiro. Precisei retirar o projétil das suas costas. - Serviu uma tige-la cheia de sopa, que Qlon pegou com a mão esquerda e bebericou. - Foi difícil com o monte de estilhaços de seu osso, mas tudo correu bem.

– Sim, mas e a luta com Phoebe? Achei que tinha fugido do lugar.

– Depois de ver você lutar por minha vida, fiquei agradecido, apesar de achar que valho menos que quinze moedas de ouro.

264

Page 265: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

– Desculpe, não sei barganhar ainda. - Ambos riram. - Mas conte, o que aconteceu?

– Depois que levou um tiro, a patrulha da cidade finalmente apareceu. Os piratas fugiram. Seu corpo ficou largado no chão, então eu o socorri de imediato. Espero que não se importe, mas comprei alguns remédios e bandagens na cidade com seu dinheiro, além de alguns suprimentos a mais. Acho que nossa condição atual vai requerer que viajemos mais de-vagar. Principalmente por causa de Phoebe, ele deve estar em nosso en-calço a uma hora dessas.

– Refere-se ao “lorde” pirata com quem lutei? - Perguntou Qlon após engo-lir um gole quente de sopa repleto de pedaços picados de batata.

– Sim, exatamente. Se fosse apenas por minha causa, acho que ele teria deixado-nos partir, mas nunca vi a ele tão obcecado por um duelo... Ele sempre matava o adversário com um ou dois golpes, e acho que ele gos-tou do desafio de lidar com um garoto que é um prodígio na arte da espa-da. Ele virá atrás de nós... Peço desculpas pelos empecilhos que meus problemas trouxeram.

– Não se preocupe com isso. - Disse Qlon, querendo ser educado. - Minha atual missão é algo bem mais complicado. Acho que se eu não conseguir derrotar um pirata mequetrefe como ele, não vou conseguir dar conta do resto da jornada.

– Entendo... Mas Qlon, o que você é? E onde aprendeu a lutar daquela for-ma incrível? Crianças de cinco anos costumam brincar de roda ou correr de um lado para o outro... No máximo brincam de luta balançando galhos de árvores... Mas você...

– Contarei o dia que me contar por que roubou aquele barco.

Qlon sorriu, e Jhon, sentado ao seu lado, entendeu o motivo. Era o troco deixá-lo curioso por negar, durante todo o trajeto, a resposta das perguntas que Qlon fi-zera. Entendia seu lado, mas não contaria sua história tão cedo. Ambos sorriram, apenas, enquanto tomavam sua sopa.

– Ah! E minha espada?! - Qlon perguntou com urgência, engasgando com a água quente.

– Sugiro que olhe para seu braço direito. Apesar de senti-lo dormente a essa hora, ele não largou essa espada durante todo o tempo. A única coi-sa que fiz foi carregar seu corpo para o hotel que estávamos, correr para a farmácia para comprar os devidos remédios, fazer os devidos curativos em nós dois, arrumar nossas coisas e partir para cá.

– Claro, a “única coisa”... - Debochou Qlon de seu jeito de falar. - De qual-

265

Page 266: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

quer modo, obrigado por salvar a minha vida, Jhon.

– Nada que um mercenário não faria por seu contratante.

Qlon sentia que uma nova amizade surgia dali.

– Ah, tenho mais uma pergunta. - Disse Qlon ao acabar sua tigela. - O que significa um quarto ser reservado para viajantes?

Jhon engasgou com a pergunta desnecessária mas, de certa forma, engraça-da. Com toda paciência do mundo, deu a resposta que achava que deveria dar:

– Você é muito novo para saber dessas coisas, Qlon. Acabe sua sopa e vá dormir.

– Seria por causa da orgia que os marinheiros fizeram com aquelas mulhe-res no andar de baixo? Isso também explicaria por que nosso quarto foi em um andar diferente...

– Sim, e um andar acima para não ouvir o barulho da cama e... - Distraído, ele acabou eliminando as dúvidas que Qlon tinha quanto a isso. - Por um segundo achei estar conversando com um adulto.

– Não é o primeiro que me diz isso. - Riu sozinho. - E eu sei o que é sexo e o que é uma orgia, já vi suas definições no dicionário.

– Por segundos, achei que já tinha experimentado. Vou chamar-te de de-mônio igual ao Ivan fez mais cedo.

“Mas não estragaria as piadas apenas por meus sentimentos. Nós choramos de tanto rir durante a noite até cairmos no sono. Não demorou muito para mim, o duelo e o ferimento aliado aos analgésicos me apagaram rapidamente. A jornada deveria prosseguir no dia seguinte. Mas, como todo azar do mundo nunca é pou-co, eu mal imaginava que algumas coisas iriam atrapalhar tanto minha jornada...”

– Aquele garoto... Aquele garoto! - Dizia Phoebe irritado, chutando uma ca-deira na sua cabine dentro do navio, ancorado a léguas de Nautilus.

Sua cabine era extravagante. Além de sua enorme cama onde cinco poderiam dormir, vários quadros e armas enferrujadas adornavam as paredes, e relíquias de um mundo antigo estavam penduradas nas estantes. Uma grande mesa man-tinha um mapa náutico de toda o continente. Um enorme tapete cobria o chão de madeira do navio, e várias janelas na parede de trás da sala deixavam a luz na-tural do ambiente entrar. Nas noites, um lustre de cristal no teto iluminava o recin-to, sendo ajudado por vários archotes bem distribuídos pelo cômodo.

– Mestre, já disse que ele era um demônio!

266

Page 267: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

– E você cale a boca, Ivan! - Rapidamente sacou seu sabre e apontou para a garganta de seu subordinado, colocando a ponta do sabre milímetros próxima do seu pomo de Adão. - Se não fosse seu tiro para matar o garo-to e chamar a patrulha da cidade, eu teria o melhor duelo de minha vida.

– Mas chefe, ele era um demônio! - Khan tentou socorrer seu amigo.

– É mesmo? Um demônio teria caído no chão desacordado com um tiro, seu idiota? Vocês mataram uma criança da maneira mais desleal que existe: pelas costas! Deem-me um bom motivo para eu não decapitar os dois agora mesmo!

– Po-po-pois somos seus... Me-me-melhores piratas? - Gaguejava Ivan de medo, com a ponta da espada de seu mestre em sua garganta.

– Vocês fedem a medo! - Praguejou. - Agora saiam de minha cabine.

– Mas chefe, ele pulou por mais de dez metros de uma janela a um telha-do! Aquela criança não é normal! - Khan novamente argumentou em vão.

– E ELE CONSEGUIU FAZER-ME UM CORTE! NÃO É NOVIDADE QUE ELE SEJA TALENTOSO! E SAIAM DE MINHA CABINE ANTES QUE EU DECIDA TRITURÁ-LOS E DAR SUA CARNE AOS PEIXES!

Mais do que depressa, Ivan e Khan correram para a porta e saíram, batendo-a. Suspiraram aliviados fora de perigo.

– E agora, o que faremos? - Perguntou Khan. - O mestre está furioso co-nosco.

– Eu sei. - Respondeu Ivan. - E ele ficará obcecado com esse garoto, se já não está. Acha que seria um bom pedido de desculpas capturá-lo e tra-zê-lo a bordo? Assim poderíamos provar nossa teoria...

– E quando o capitão Phoebe descobrir que ele é um demônio, poderemos matá-lo.

– Não seja tolo, Khan. Quanto acha que deve valer um demônio vivo?

– Não sei. Você sabe?

– Também não? - Riu de si mesmo. - Mas podemos exibi-lo como aberra-ção e ganhar várias moedas de ouro com isso, no mínimo...

– É uma excelente ideia. Mas não sabemos de nada sobre eles... E além do mais, capturar um demônio não parece ser um trabalho simples...

– Tem razão. Acho que apenas a minha pistola não dará conta... Traga o ri -fle de caça no armazém e vamos buscá-los, antes que suas pistas su-mam. A caçada está começando...

267

Page 268: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

Cap. 61 – Um Passado Destruído

nduzido por Jhon, tomaram uma rota um pouco maior para evitar passar pelo campo aberto. De acordo com ele, se estivessem sendo seguidos se-ria mais fácil serem atingidos por Ivan e sua habilidade de tiro. Tomaram

então a passagem das ruínas. Ainda estava na parte da manhã, mas haviam ca-valgado bastante desde que acordaram, antes de o sol raiar. A cidade de Nautilus sumira junto com a floresta ao norte enquanto eles rumavam ao sul. O novo ca-minho era um pouco mais acidentado que o anterior, mas nada que dificultasse o andamento da viagem. As poucas nuvens claras no céu indicavam um dia enso-larado, o que facilitaria ainda mais no decorrer da jornada.

I

– Então aquilo era uma...

– Arma de fogo. Sim. - Explicava Jhon para o jovem curioso. - Dizem os historiadores que elas eram usadas em larga escala em um passado dis-tante, antes do apocalipse. Mas a antiga civilização humana, de acordo com a evolução da tecnologia, deixava de lado os exemplares antigos. Logo as armas de fogo tornaram-se ultrapassadas, as fábricas foram fe-chando, ou adotando as novas armas chamadas “laser”, e a tecnologia para sua criação foi sendo esquecida... Então veio o apocalipse. Com ele, os anjos antigos decretaram a destruição de todo o armamento já criado pelos mortais alegando que “dar a arma na mão de um ser sem conhecimento equivale a um suicídio coletivo da espécie”. A história hu-mana comprova a sua afirmação.

– É, e eu concordo com ela. - Disse Qlon imaginando a cena em sua cabe-ça. - E depois, o que aconteceu?

– Bem, como deve saber, nem céu e nem inferno venceram. E, com a guerra, grande parte da humanidade foi devastada e poucos humanos sobreviveram. Outras raças, que antes habitavam apenas o imaginário popular, reviveram, e com isso as armas, que foram abolidas e destruí-das durante o período do apocalipse, precisaram ser usadas mais uma vez. Mas nem todos que restaram tinha conhecimento para a criação de tecnologias avançadas, e já que boa parte da humanidade havia acaba-do, a extração de recursos para a criação de certos aparatos ficou difícil,

268

Page 269: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

e grande parte dos equipamentos na época conhecidos foram entrando em desuso, restando apenas armas ancestrais, pois eram feitas de miné-rios metálicos. Por isso armas de fogo são raras.

– Nossa, incrível. Então pode-se dizer que são as armas mais avançadas que existem?

– Basicamente, sim. São aparatos simples de serem fabricados, até. Basta um pouco de ferro e pólvora. O problema é encontrar pólvora... Apesar da fabricação ser simples, é algo que poucas pessoas têm conhecimento de como fazer, por isso é caríssimo. Mas creio eu que vai chegar um dia em que a produção de tais armas vai ser grande novamente.

– E por que você acha isso?

– Encare o apocalipse como um reinício. Claro que os sobreviventes ti-nham mais conhecimento do que um primata oriundo dos ogros, mas va-mos voltar a evoluir de acordo com as necessidades. Muita tecnologia foi perdida, mas vai ser readquirida um dia, e por instinto próprio. Perdemos muitos livros, mas não perdemos nosso cérebro.

– Entendo... - Qlon parou para pensar por alguns segundos. - E será que também cometerão os mesmos erros?

Jhon olhou assustado para seu chefe, espantando com sua sagacidade juvenil. Não tinha respostas para aquela pergunta. Apenas abriu um sorriso e voltou a encarar o horizonte.

– O futuro não me pertence, garoto. Estou apenas de passagem por esse mundo, e já está perto da minha hora de partida.

– Claro que pertence. O futuro pertence a todos nós. - Ponderou. - Afinal, nós que estamos construindo-o, não?

– Talvez... Enfim, quer ouvir outras histórias? Sou bom com contos, não com filosofias de vida.

Qlon deixou-se rir um pouco. Apesar da demora, tinham muito sobre o que conversar. Principalmente se ele conhecia o passado com tamanha exatidão.

– E o que pode contar-me sobre a reconstrução da civilização após o apo-calipse? Sei pouco da história desse mundo, só algumas partes isoladas demais... Apenas o suficiente para a construção de minha civilização.

– Bem... Sabia que as cidades fortificadas do império humano que conhe-cemos hoje foram construídas pelos primeiros sobreviventes do apocalip-se? Claro, não do jeito que estão agora, mas sua fundação foi assim. Os humanos buscaram por lugares seguros para viver após as guerras que devastaram o mundo. Como eles já haviam destruído boa parte antes, foi

269

Page 270: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

muito difícil...

– E como ficou a organização social? - Perguntou.

– Os primeiros sobreviventes autointitularam-se “escolhidos divinos”. Eles foram os responsáveis por reconstruir uma nova organização para a soci-edade humana, e decidiram adotar um novo sistema feudal, mesmo por que o conhecimento além da cidade em que estavam era nulo com os meios de comunicação comprometidos. Sabia que, depois do apocalipse, o mundo todo uniu-se em apenas uma crença?

– Sério? Como aconteceu? - Qlon mostrava interesse pelos contos de seu parceiro. Ele realmente tinha habilidade para contar histórias.

– Bem, antes do apocalipse, o mundo era dividido em inúmeras crenças. Todas elas tinham sua forma de ver deuses, demônios e anjos, cada uma com sua mitologia. Mas quando o apocalipse chegou, todos puderam ve-rificar que apenas uma religião estava correta: o Cristianismo. Era uma religião antiga que teve origem no continente ao sudeste de onde esta-mos, e que atravessou as eras e as fronteiras de seu império. Mesmo com a evolução da tecnologia e as pessoas passando, cada vez mais, a encarar crenças como uma futilidade, tomando-as como mitos, poucas pessoas ainda cultuavam essa religião. E então aconteceu...

– Deixe-me adivinhar: Todos recobraram suas crenças. - Palpitou.

– Sim, exatamente. Sempre foi uma necessidade humana acreditar em se-res superiores que nos salvariam em momentos de necessidade, logo...

– Você fala como se não acreditasse.

– Estamos em um mundo devastado por uma guerra pregada por essa crença desde seu início, nos mínimos detalhes. Como eu poderia não acreditar?

– Então por que a deprecia tanto com seu tom de voz e suas palavras?

Jhon tomou um longo suspiro. Qlon olhou para ele, perplexo.

– É de assunto pessoal.

– Ah, vamos, Jhon! Conte, por favor. - Implorou Qlon.

– Isso envolve uma parte do meu passado que não gosto de tocar, garoto. Vamos mudar de assunto?

Silenciaram-se por algumas milhas, ouvindo apenas o choque dos cascos dos cavalos com a terra pedregosa. Jhon olhava fixamente para o horizonte, enquan-to milhares de pensamentos poderiam estar correndo por sua cabeça. Qlon olha-va para ele com um pouco de pesar. Passou a sentir-se culpado por tocar em

270

Page 271: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

suas memórias dolorosas. Parecia que sua força vital desaparecia do corpo.

– Estou surpreso. - Disse Qlon, quebrando o clima tenso.

– Com o quê? - Jhon arqueou as sobrancelhas.

– Com todo esse seu repertório de histórias. Não sabia que mercenários ti-nham tanto conhecimento assim. Para ser sincero, as histórias dizem que eles são burros e que fazem quase tudo por dinheiro.

– Não vou mentir, a maioria é assim mesmo. Mas a vida para mim é dife-rente. Depois das coisas que me aconteceram, passei a ver tudo de um outro ângulo.

– E que ângulo?

– A maior recompensa de um trabalho é sair vivo do mesmo. O maior pa-gamento é o conhecimento que você recebe. E o dinheiro... Passa ape-nas a ser o que sempre foi: Uma ferramenta, nada mais.

– É uma bela filosofia. Um mercenário que, ao mesmo tempo, não é um mercenário. E ainda diz que não é bom com filosofia. Mas continue a his-tória sobre a humanidade. É interessante aprender sobre esse mundo.

– Pois muito provavelmente pois você veio de outro, né? Hahaha! Tudo bem garoto, escute com atenção...

“Apesar da aparência de Jhon, seu conhecimento sobre o passado ia muito além do de um simples homem. Contou-me diversas histórias antigas, os regi-mes, as revoltas populares contra ditadores. Não entendia como um simples ho-mem velho como ele podia saber tanto sobre tantas coisas, e estava longe de descobrir. Na verdade, notei que o livro que ganhei de presente de aniversário, no final, seria um complemento ao que Jhon ensinava através de suas histórias bem contadas.”

Já estava no pôr do sol quando, finalmente, chegaram às ruínas. O ambiente era diferente, sentia isso na pele. As montanhas silenciosas ao redor, distantes, davam uma aparência inóspita ao lugar ao esconder o sol por detrás de suas pontas rochosas.

“Não era algo completamente descritivo em palavras, mas farei o melhor para detalhar aquele inóspito lugar. Alguns poucos edifícios antigos que quase toca-vam os céus, de paredes trincadas e tomadas por musgos, ainda mantinham-se de pé, com grandes janelas que repetiam-se em sua estrutura infinitamente. O resto havia virado apenas um amontoado de escombros, com aço dentro da es-trutura de sustentação Os postes que iluminavam a cidade permaneciam acesos. No chão, uma larga manta cinzenta que delimitava a estrada, cheia de rachadu-

271

Page 272: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

ras por onde estendiam-se as raízes das escassas árvores que cresceram em seu caminho, seguia por milhas e mais milhas adiante. Estabelecimentos comer-ciais tinham seus anúncios coloridos apagados pelo tempo, e seus produtos cor-roídos pelo mesmo. Poucos itens de aço não estavam completamente corroídos, como veículos sem rodas largados em cima das calçadas e no meio das ruas. Se algum humano havia morrido ali, não se sabia; não restaram ossos ou roupas. Aliás, quase nada restara. Os vidros de janelas estavam até mesmo arredonda-dos em sua base. Era uma cidade destruída pelo abandono.”

– Céus, que lugar bizarro... - Observou Qlon ao saltar do seu cavalo cansa-do e puxá-lo pelas rédeas para dentro daquele lugar.

– E isso porque nem viu tudo, ainda. - Jhon ainda estava montado em seu cavalo, observando aquele lugar que poucas vezes visitara. - Se entrar nas construções verá o real estado de abandono que essas ruínas se en-contram. Muitos párias e ladrões escondem-se nesses prédios, e despo-radicamente em tempos pesquisadores costumam vir até aqui para cole-tar amostras de materiais, buscando compreender a tecnologia do passa-do. Eu trabalhei para um deles, e ele que me ensinou o que sei. Hoje é um grande amigo meu, poderei apresentá-lo quando estivermos em Co-lossus.

– Vamos passar a noite aqui? - A voz de Qlon soou trêmula. - Esse cenário me enche de medo...

– Sim, vamos. Viajar durante a noite é ainda pior. E fique calmo, não há tantos perigos assim além dos bandidos escondidos. Mesmo por que os bandidos estão mais preocupados em livrar sua pele dos monstros, ou das bestas selvagens...

– Você conseguiu ser o contrário de reconfortante! Não está acalmando-me nem um pouco!

– Vamos, vamos, relaxe um pouco. Procuremos um prédio menor ou uma casa de apenas um andar para passar a noite. Basta estar vazia que será útil. E se aparecer algo em nosso caminho, eu matarei com minhas adagas. Pode não parecer, mas sou um mestre em seu manejo.

– Mesmo? Então por que não combateu Phoebe?

– Está louco? Você viu a habilidade daquele pirata desgraçado. Eu não du-raria sequer um minuto com ele.

– Mas poderia ao menos ter tentado.

– Tentado? De acordo com as histórias de seus capangas mais antigos, ele já eliminou um contingente inteiro de soldados quando foi para a Euroá-sia. Eu não seria louco de tentar levantar um punho contra ele. A minha

272

Page 273: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

morte teria vindo mais rápido.

– Parece sensato, mas... O que é Euroásia?

– Sim, o continente ao sudeste daqui. Como deve saber, ele está em guer-ra com o continente oriental da Nova América.

– Não, não sabia. Qual é o motivo? - Qlon continuou a puxar seu cavalo pelas ruas, esquivando dos obstáculos pelo caminho, enquanto procura-vam por um abrigo para a noite.

– Nossa, onde você vivia, criança? Em uma caverna? Bem, não posso di-zer que sei o real motivo pois não estamos no meio da guerra, mas di -zem que é por que a Euroásia quer banir as raças que não são natural-mente humanas. O preconceito contra elfos, draconianos, gigantes e ou-tros seres ainda é muito forte. A Euroásia defende que não são ungidos pelos deuses por não estarem presentes em nenhum momento nas anti-gas escrituras e que fazem parte dos monstros que invadiram o mundo nos últimos milênios.

– E esse continente? Ele também não tem elfos, como o dono da hospeda-ria de Bistol? Quando fui para as compras nas ruas de Nautilus também vi muitos seres de raças distintas. Qual a posição da capital?

– Dizem que esse continente é a fusão de duas grandes ilhas que ficavam ao norte do oceano entre os dois continentes em guerra. Justamente por essa posição, este é um território estratégico e ambos os lados querem ocupá-lo. Mas o antigo rei de Colossus era um homem que não gostava de conflitos. Adotou a neutralidade para que os habitantes do continente não sofressem com constantes guerras, apesar de aderir à política da Nova América quanto à aceitação racial. O único problema é que ne-nhum dos continentes previu que as outras raças, além da raça humana, travariam outras guerras menores entre si. Por isso o continente da Nova América vive tentando controlar pequenos conflitos internos por território, mas sem sucesso pois não consegue dominar toda a sua enorme abran-gência, enquanto a Euroásia tem um controle melhor sobre seu povo. Enfim, todos os lugares estão em guerra, o tempo todo, menos esse. O norte da ilha é gélido demais para ser habitado, apesar de que a tempe-ratura aqui, onde estamos, durante o inverno chega a cair até quarenta graus celsius abaixo do zero. Mesmo assim, há uma maior rigidez com o trato entre os povos.

– Entendo... Essa ilha é um ponto perfeito para adotar essa política, então. Pelo que disseram, o litoral é bem acidentado, então não há portos, nem como navios atracarem.

– Sim, mas algumas frotas inimigas conseguem atravessar o Cabo da Hon-

273

Page 274: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

ra e chegar até aqui. Por sorte Nautilus é conhecida por ter a melhor ma-rinha do mundo. Apenas refugiados de outros continentes vêm para cá, muitos fugindo da Euroásia.

– Mas... E os rios do continente? - Perguntou Qlon, tentando pensar como estrategista.

– Os maiores rios alimentam o lago ao redor de Colossus, e de todos os três apenas um é navegável, mas por barcos pequenos. Navios não iriam passar por seu leito.

– Então não há risco de invasão? - Qlon pensava nas possibilidades de uso do mapa em uma ocasião de guerra. - Por nenhum lado?

– Quem mais poderia tentar uma invasão são os humanos da Euroásia. A Nova América não possui motivos para invadir-nos já que concordamos com sua política. Mesmo que tentem passar pelos céus, os Draconianos daqui podem ajudar. Fora que não há sentido nenhum atacar uma terra de posição neutra que presta serviços aos dois lados.

– Entendo...

Continuaram caminhando olhando ao redor, enquanto reparavam nos escom-bros de um passado antigo. Anoitecera. As luzes dos postes, estranhamente ace-sas mesmo após tanto tempo, iluminavam os extensos corredores asfálticos, de-sérticos. Jhon descera do cavalo pois não aguentava mais o movimento nau-seante do animal. Examinavam as construções por fora para ver se acender lu-zes dentro do recinto seria muito perceptível. Acharam, por fim, um prédio menor, de uns quatro andares e janelas menores.

– Tem um lampião nessa bolsa, não tem? - Perguntou Jhon para Qlon. - Se tem, acenda-o e siga-me, vagarosamente.

– E os cavalos?

– Amarre-os do lado de fora, por agora. Precisamos examinar a construção primeiro.

– Mas se aqui é habitado por ladrões e outo tipo de vigaristas, seria bom vigiarmos os animais.

– Está certo... - Refletiu. - Então o que sugere?

– Pode deixar que eu entro e investigo a construção sozinho. Apenas tome conta dos cavalos.

– Tome cuidado, Qlon. Se alguns assassinos estiverem escondidos aí den-tro, você terá bastante trabalho.

– Não se incomode com isso. Apenas fique aqui e vigie os animais.

274

Page 275: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

Qlon acendeu seu lampião e adentrou a cavidade que deveria ser a porta do edifício. Um saguão abandonado, de chão de mármore, apareceu em seu campo de visão. Portas duplas, grandes, de metal estavam fortemente seladas do lado esquerdo. Na frente, uma porta de aço, de cor vermelha e com escritas em uma língua que desconhecia, apesar dos caracteres serem próximos do inglês, intacta mesmo após tantos anos, dava passagem para uma escadaria, que ascendia até o topo da antiga construção. Qlon olhou para o lado de fora. Jhon estava ao lado dos cavalos, com a mão direita repousando sobre as adagas na cintura, enquan-to eles comiam a grama escassa que nascia entre as frestas das calçadas de pe-dra. Qlon sentia algo estranho, como se suas tripas estivessem se embrulhando em gelo. Não sentira algo parecido o resto do dia... Tinha a impressão que algo ruim estava por vir. Sem esperar muito, subiu as escadas de concreto vagarosa-mente, degrau por degrau, iluminando o caminho com o braço direito estendido enquanto o esquerdo repousava sobre o cabo da arma. Ao chegar no primeiro andar, uma nova porta avermelhada. Abriu-a em silêncio, rezando para que as dobradiças não rangessem. Apenas um curto corredor. Ao lado da porta pela qual passara, outra porta lacrada de metal. No corredor à sua frente, quatro cômodos. Dois à esquerda e dois à direita. Nenhum deles com portas, possivelmente corro-ídas pelo tempo. No final do extenso corredor, uma janela pequena que dava para o espaço de fora.

Com cautela, prosseguiu pelo corredor. Dois cômodos, os primeiros da ordem estavam completamente vazios. Um deles parecia ser um antigo banheiro, onde uma ducha de plástico e banheira de cerâmica cercada por uma cortina semi-transparente, ainda intactas, se encontravam. Um espelho trincado, com uma base arredondada e mais grossa, e sujo na parede refletia o nada. O último cô-modo era preenchido apenas por uma lareira enorme. Qlon olhou novamente pelo corredor e encarou a janela empoeirada. Olhou para fora e viu Jhon, ainda aguardando. Sua mente ainda apitava algo, mas não sabia o quê. Para desen-cargo de consciência por estar sendo apressado na inspeção do edifício, verifi-cou as laterais da ventana. Não parecia ter sido aberta há muito tempo pelas teias de aranha ali acumuladas. Tudo aparentava o mesmo abandono que o lado de fora. Qlon desceu as escadas mais uma vez.

– O primeiro andar parece intocado.

– Sim, mas e os outros três? - Perguntou sempre prestando atenção no que poderia aparecer nas esquinas.

– Ainda não os verifiquei.

– Pois verifique. Precisamos ter certeza que a construção inteira é segura o suficiente, afinal não queremos ser surpreendidos no meio da noite, não é?

– Tem razão, desculpe.

275

Page 276: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

– Se preferir, podemos alternar as tarefas. Não me leve a mal, mas tenho mais experiência em vasculhar cômodos. Aposto que ficou aterrorizado com a probabilidade de algo acontecer e voltou mais cedo, não é?

– Um pouco. Esses lugares são escuros demais, e inóspitos. Dá um frio na barriga caminhar por corredores vazios apenas com um lampião à sua frente para iluminar o caminho. - Explicou Qlon. - Não sei o que deu em mim, só sei que estou preocupado com alguma coisa. Como se minha in-tuição dissesse algo.

– Pois é, sei como é esse sentimento. E o que você acha que sua intuição diz?

– Para entrarmos e nos abrigar o mais rápido possível. Algo muito perigoso pode estar vagando por essas ruas atrás de nós.

– Se fala do Ivan, não há por que ter tanto medo.

Qlon sentou-se na calçada e levantou um olhar sério para Jhon. Seus olhos acinzentados pareciam profundos, duros como uma rocha. Jhon tentou perguntar a seu patrão se o mesmo estava bem, mas fora cortado no meio da frase:

– Algo não humano está próximo. Muito próximo de nós. Eu posso sentir sua presença. É quase como se eu pudesse sentir seu sangue gélido.

– De quê está falando? De um monstro? - Jhon assustou-se.

Aquela criança não era normal, nem um pouco. Não sabia ao certo em que ti -nha entrado ao aceitar o trabalho, mas desde o que vira em Nautilus decidira acompanhá-lo por gratidão. Na verdade, sentia um certo medo por ele ser mais forte do que ele. Muito mais forte.

– Antes fosse apenas de um monstro. Apenas outra coisa em toda a minha vida me deixou com tal sentimento...

– E o que seria?

Qlon pensou em contar a verdade naquele exato momento, apenas para evitar mais qualquer desentendimento, mas não adiantaria, demoraria demais e a pre-sença estava cada vez mais próxima.

– Não importa agora. Apenas vamos sair daqui, por favor!

Jhon olhou para os lados. A noite realmente estava com um ar incomum.

– Acha que o resto do prédio estará seguro?

– Não sei, mas não me importo com o resto do prédio. - Qlon levantou-se e puxou as vestes de Jhon. - Vamos levar os cavalos para dentro, amar-rá-los em algum lugar e ficar escondidos o resto da noite.

276

Page 277: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

Cap. 62 – Caim

edo. Qlon o sentia quando olhava através da janela empoeirada. Sabia o que estava vindo lá fora, e queria a todo custo evitá-lo. Só havia sentido isso uma vez, e não fazia tanto tempo assim. Canine

ainda não havia deixado sua cabeça e assombrava, vez ou outra, seus pensa-mentos. Ele entendia: ainda não tinha força suficiente para enfrentar demônios, ainda mais um dragão demônio supremo, aquele que sua missão determinava matar. Mas precisava lutar para pegar experiência, e mais ainda, precisava testar os limites de seus poderes e conhecer seu próprio corpo. Aquela não era apenas uma missão de extermínio, ia infinitamente além disso. Mas aquela sensação dava mais calafrios do que quando estivera com Canine. Aliás, nem sequer havia comparação. Parecia que um fogo gélido consumia-o por dentro, sugando o calor de seu corpo. Jhon fora vasculhar sozinho os outros andares, enquanto Qlon fi-cava ali, no escuro e frio da noite. Esperava por algo. Logo aconteceria.

M

E aconteceu. As luzes piscaram de forma alternada e, aos poucos, iam se apa-gando. Qlon tomou uma melhor posição e limpou parte do vidro. Queria verificar o que estava acontecendo a todo custo. Sua visão logo acostumou-se com o es-curo, e ele pôde perceber uma sombra caminhando pela rua. Mas era apenas uma sombra. Qlon tentou olhar melhor, mas nada via. O estranho vulto estava ali parado, na rua, sem nada fazer. As luzes da cidade voltaram a brilhar de forma fraca. A sombra ainda era disforme. Ao aproximar do som dos cascos de alguns cavalos, tomou a forma de um homem elegante, que trajava fraque, cartola, sa-patos de pontas finas e com um sabre em sua cintura. Vestimenta que, ao contrá-rio da de Phoebe, estava intacta e impecavelmente limpa. Um monóculo repou-sava no seu rosto. O cavalgar cessou e os equinos relincharam. As vozes pare-ciam distantes demais, mas Qlon esforçou-se em ouvir o que podia.

– Ei! Quem é você? - A voz de Ivan soou rígida e imperativa.

– Quem eu sou? Essa é uma pergunta muito complexa, meu jovem. - A voz era grossa, mas bela como a de um tenor. - Sou alguém que deve temer, eu devo resumir.

– Apenas saia do caminho! Não temos tempo para desperdiçar contigo!

277

Page 278: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

– Coincidentemente, eu também. Possuo um recado para esse garoto o qual estão atrás. E você, o que deseja?

– Não é de sua conta, forasteiro! - Respondeu Ivan, assustado. - Sua vesti-menta de classe e espada curta não me colocam medo.

– Pois deveriam. Afinal, não é o que seu mestre também veste?

Qlon não percebia direito qual era a expressão do seu caçador, mas sabia que estava surpreso, por certo. Khan aproximou de seu cavalo e sussurrou algo em seus ouvidos.

– O que é você?! - Perguntou Khan, tomando a dianteira do pequeno con-tingente de sete pessoas que estavam envolvidos na perseguição. - É um amigo dessa criança demônio?

– Amigo? Não, não diria isso. Ainda não o conheço, senhor Khan.

– Não lembro de ter dito meu nome! - O gigante rugiu, saltando de sua montaria.

– E não precisa. Posso ler a mente de cada um aqui. Cada um. - O olhar do estranho homem voltou-se para fitar a janela de Qlon. Seus olhos amarelados e de pupilas finíssimas encontraram os contornos prateados dos olhos de Qlon atrás de sua janela empoeirada. - No mais, estão li-vres para voltar para casa. Eu não desejo um combate. A viagem que fiz para vir até aqui foi grande e cansativa demais.

Ivan sacou um rifle, que trazia preso às costas por uma faixa de couro. Colo-cou a coronha contra o ombro e ajustou a mira.

– Cuidado, jovem. - Avisou o elegante e misterioso senhor. - Só há dois ti-pos de pessoas que não deve provocar inutilmente: Aqueles que são mais poderosos do que você ou aqueles que não conhece.

– Não me importa! Não sairemos sem o garoto! Passamos o dia apenas esperando a melhor oportunidade para atacá-los, e não vamos desperdi-çar essa chance.

– Se não sairão sem o garoto, não sairão daqui, então. Mesmo que eu não esteja aqui para defendê-lo, vocês não seriam páreos para ele. Mas, se preferem assim, podem morrer nas minhas mãos.

O cavalheiro silenciou-se após o disparo da arma de seu inimigo. Sua cartola voou para trás, revelando seus longos cabelos castanhos e ondulados, indicando que fora atingido na cabeça. Deu dois passos para trás e caiu, mas sangue não escorreu de sua ferida. Ivan imaginava que, se ele fosse mesmo um demônio, o efeito teria sido nenhum, mas poderiam acabar com ele de alguma forma depois, já que estavam com a vantagem numérica.

278

Page 279: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

– Khan, vá verificar o corpo. - Ordenou de cima de seu cavalo.

Khan deu dois passos, mas parou na metade do caminho. Sem sequer apoiar seus braços no chão para dar o impulso necessário, levantou-se. Aliás, era como se flutuasse.

– É uma bela apontaria, Ivan. Devo admitir. - Abaixou-se e apanhou nova-mente seu chapéu, batendo sua poeira e colocando-o novamente na ca-beça. - Mas não será o suficiente contra mim.

O projétil caiu de sua testa pelo mesmo lugar que entrara.

– Viram? Nem mesmo balas especiais feitas para atordoar o inimigo dando uma enorme dor e apagando temporariamente sua consciência serão o suficiente.

Qlon juntou as peças. Era o mesmo tipo de bala que o tinha atingido? Possivel-mente. Já passara por coisas piores e sequer soltara uma lágrima. Mas, ainda assim, a dor de uma bala de arma de fogo chocando-se contra seu corpo fora algo extrassensorial. Saiu de seus devaneios e voltou a prestar atenção na con-versa.

– Homens, não tenham medo! Ataquem! - Incitou Khan aos seus colegas bucaneiros.

Sem ver outra opção, o ser sacou seu sabre.

– Que deselegante de suas partes. Mas podem vir. Limparei as ruas dessa cidade com seu sangue sujo.

Os que ainda estavam a cavalo atacaram montados com suas lanças e espa-das, mas o demônio rebatia todas as tentativas de golpes, mesmo que muitas fossem simultâneas. Ivan ficava de longe, procurando a melhor mira, enquanto Khan esperava o tumulto perto do estranho ser passar para que pudesse atacar da forma que gostava, com uma área limpa ao redor. Os golpes apenas batiam no sabre e ricocheteavam. Os piratas perdiam suas armas com facilidade e urra-vam ao dar seus ataques da forma mais primitiva possível. Enquanto isso, o lorde nem abandonava sua posição inicial. Com apenas um braço refletia os golpes, como se nada fossem. Era algo sobrenatural. Alguns corsários cessavam seus ataques por cansaço, outros por perderem suas armas.

– Mas já? Achei que a luta fosse durar mais.

Com um movimento indetectável, o lorde cortara a cabeça dos cavalos e de seus cavaleiros, que vieram ao chão com fortes baques. Ivan e Khan ficaram aterrorizados. Sequer moviam-se.

– Se ainda vão lutar comigo, sugiro que me ataquem onde estou. Não vou fazer esforços para atacá-los onde estão.

279

Page 280: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

Os dois piratas entreolharam-se. Estavam naturalmente chocados.

– Seres como eu ou ele não vivemos na mesma realidade que a sua, acre-dite. Fujam de mim enquanto é tempo. Se minha sede de sangue desper-tar, estarão mortos antes que possam mover-se.

Khan montou no cavalo rápido como uma flecha. Cavalgaram para longe den-tro das ruínas antes que mais algo pudesse ser dito pelo seu oponente. Este, por sua vez, balançou a lâmina de sua arma no ar, retirando as gotículas de sangue que nela ficaram. Voltou a encarar Qlon, e então sumiu no ar. O pequeno anjo entrou em pânico. Mesmo sendo melhor na empunhadura com a esquerda, sa-cou sua arma com a direita e preparou-se para o combate. Olhou para todos os lados do corredor como se tivesse sido tomado por uma loucura repentina.

“Aquela presença era forte demais para ser tratada com falta de seriedade. Eu e Jhon estávamos em grande risco. Precisava achar meu companheiro o quanto antes, mas ele seria encontrado antes de mim. Ouvi um barulho dos andares de cima. Sem preocupar-me mais com aparências, quebrei a janela do corredor e abrir minhas asas. Voei para os andares acima e vasculhei qual deles emitia luz. Meu lampião estava com ele. Estava no terceiro andar quando quebrei a janela que separava o lado de fora de mais um corredor em estado pútrido. Jhon estava sendo seguro pelo pescoço.”

– Eu sei que não queria que Jhon descobrisse sobre seu segredo. Eu de-veria matá-lo?

– E desde quando um demônio precisa seguir as ordens de um anjo? - Qlon perguntou com uma rudez ameaçadora.

– Não me entenda mal, pequenino. Estou aqui por política, e não por em-bates desnecessários. Não representarei risco a nenhum dos dois, só matarei o velho caso queira. Agora guarde sua arma. Por falar nisso, devo ou não matar o velho?

– Solte-o. - Qlon embainhou a Sanctus, que brilhava tanto que chegava a emitir uma luz esbranquiçada.

Jhon caiu de costas no chão. Tossia bastante e levava a mão ao pescoço para tentar amenizar a dor de ter sido sufocado por um estranho ser que conseguia içar seu corpo do chão com apenas um braço.

– O que são vocês? - Perguntou quando, finalmente, conseguiu formar uma frase.

– Silêncio. - Pediu o anjo dos infernos, que passara algum tempo encaran-do o ser de asas mistas. - Esse assunto não o diz respeito, então prefiro que não o atrapalhe. Qlon poderá contar para você depois.

– Quem é você? E o que quer comigo? - Qlon olhava para ele diretamente

280

Page 281: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

em seus olhos amarelados. Suas pernas tremiam delicadamente.

– Meu nome é Caim. É um prazer conhecê-lo, garoto das lendas. Ouço muito por parte de seu pai no inferno.

– Diga logo o motivo de sua vinda. - Bradou Qlon, com o coração acelera-do. - Não há motivos para um demônio ser tão respeitoso comigo.

– Não me arriscaria a lutar com você, garoto, apenas isso. Se tiver metade do poder que seu pai clama que tem, não conseguiria sair de um con-fronto dessa magnitude vivo. Mas não se preocupe. Seu pai apenas con-fia em mim como aliado, estou mais do lado dele do que do próprio infer-no. Enfim, vamos aos assuntos importantes.

Caim ajoelhou-se, deixando sua cabeça um pouco abaixo da de Qlon. Segurou sua mão esquerda e beijou-a. Um ato sem segundas intenções, aparentemente, mas que aumentou o nervosismo de Qlon.

– Estou aqui para carregar um recado de seu progenitor aos seus ouvidos. - Aproximou o rosto de seu ouvido direito, e com uma voz tenra, sussur-rou: - Não tente matar Vindictus, está muito novo para morrer.

– Como vocês...?

Antes que terminasse sua pergunta, Caim abriu sua mão e o papel que sua mestra o dera estava lá, amassado.

– Eu tomaria mais cuidado se fosse você, afinal agora está em nosso terri-tório. Nós temos olhos e ouvidos nas paredes. Peguei-o em meio ao caos em Nautilus.

Quando Qlon estendeu a mão para pegá-lo, Caim incinerou-o.

– Seu pai pediu para que eu o protegesse, e não pretendo falhar. Ao mes-mo tempo, não o impedirei usando a força, pois quando fico descontrola-do mato sem pensar. Mas, se não estou enganado, esse papel era parte importante para a conclusão de sua missão, não é?

Qlon afastou-se deles alguns centímetros e fechou os olhos por alguns segun-dos, pensando o que diria. Ainda de olhos suavemente fechados, balançou a ca-beça negativamente, e pronunciou:

– Não vai ser um pedaço de papel a menos que fará com que eu desista da missão. Eu vou continuar.

Caim levantou-se, limpando a parte da calça que cobria os joelhos e abrindo suas asas, negras como as de corvos.

– Igual ao que seu pai disse. Bem bem, essa não é a primeira vez que nos veremos. Apenas fique vivo.

281

Page 282: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

– Espere! - Gritou Qlon. - Antes que vá, ainda tenho muitas perguntas! Por que não me mata agora? Por que me entregou esse recado? Por que está preocupando-se comigo?

O demônio sorriu enquanto ajeitava a aba de sua cartola com os dedos. Um sorriso esbranquiçado, deixando à mostra seus longos caninos.

– Qlon, Qlon... Nem todos são servos fiéis do céu, da mesma forma que há descontentes no inferno. Apenas viva por mais alguns anos e logo sabe-rá do que falo. Até lá, garoto das lendas, tente ficar vivo. Você é mais im-portante do que imagina. E quanto a você, Jhon, não tente atacar-me pe-las costas. Guarde essa adaga, antes que perca a cabeça.

Jhon parou o que fazia ao receber o olhar penetrante de Caim, iluminado pela luz da lua minguante. Caim virou-se para Qlon e curvou-se mais uma vez. Enco-briu o corpo com suas asas e desapareceu na escuridão, deixando apenas uma pena de corvo para trás.

– Meu Deus... - Jhon exclamou, atônito. - Meu deus! O quê acabou de acontecer aqui?

Qlon pegou a pena do chão e examinou-a. Uma pena de corvo. Olhou para Jhon, que estava atônito, tamanho o susto. Sentia o cheiro de urina, mas não pa-recia ser a sua.

– Vamos, Jhon. Vamos voltar para o andar que estávamos. Explico quando lá estivermos.

– Afaste-se de mim!

Qlon tentou levantá-lo pelos braços, mas era inútil. O velho estava tremendo de medo, provavelmente por nunca ter passado sufoco igual em toda sua vida. Seus músculos tremiam freneticamente, e ele mantinha os olhos distantes.

– Jhon, eu jamais faria mal algum a você. Você queria respostas sobre mim, não é mesmo? Então, estou disposto a dá-las agora, mas apenas se você colaborar.

O velho mercenário enxugou as lágrimas que escorriam por seu rosto com a manga de sua túnica antes que molhassem sua barba. Olhou para Qlon, ainda atordoado.

– Seis asas, três bancas e três negras...

– Vamos, Jhon! Não me diga que enlouqueceu!

– Não sei se o que acabei de ver foi sonho ou realidade, mas... Nossa! Nunca estive tão vivo, ao menos eu acho.

Jhon levantou-se. Suas calças estavam molhadas, e a urina escorria por suas

282

Page 283: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

pernas e molhava suas botas.

– Preciso de um banho.

– Não temos água o suficiente para isso. Amanhã quando chegarmos a um rio lembraremos disso.

Ambos permaneceram em silêncio por alguns segundos. Qlon recolhera as asas para que assustasse menos ao seu companheiro. Nenhum deles tinha cora-gem para tomar a palavra, até que Jhon, perdendo um pouco do medo que sen-tia, desabafou:

– Eu vivi muito. Passei por muita coisa, vi coisas que boa parte dos huma-nos, por estarem confinados em vidas monótonas e corriqueiras, jamais conseguiria ver. Já enfrentei todo tipo de trabalho enquanto mercenário. Subi montanhas, explorei ruínas, invadi cavernas, fugi de animais selva-gens pelas florestas... Mas nunca, nunca antes, havia visto um anjo. Ou demônio.

– Eu sou um anjo, Jhon.

– Sempre ouvi falar de vocês apenas em lendas, em histórias... Droga, ex-pliquei a você sobre o apocalipse, sendo que deve saber cada detalhe do que aconteceu naquela época. Sinto-me um idiota...

– Jhon, não exagere. Se eu queria saber é justamente por não ter vivido naquela época. Acredite ou não, nem sou velho. Tenho apenas recém-completados seis anos.

– Pelos céus... Tudo bem que você é um anjo, mas ainda assim é muito estranho. Tudo isso...

– Todos dizem isso. - Qlon tomou um lugar ao lado de seu amigo, sentando no chão sujo do estreito corredor. Tomou cuidado para não sentar na poça de urina que formou-se no chão. - Também sou avançado demais para a minha idade, então não fique tão preocupado assim.

Os dois esboçaram um sorriso meio sem graça.

– Já é a segunda vez que você me salva, garoto. Uma criança como você. Imaginava que fosse especial, mas jamais imaginaria algo parecido. Obrigado, mais uma vez.

– Por nada. Bem, precisamos comer e descansar. Amanhã será um dia longo. E ainda tenho muita coisa a explicar a você. E claro, não preciso dizer que isso é um segredo, não é?

– Mesmo que eu contasse a verdade, ninguém acreditaria nas minhas pa-lavras. Bem, vamos para os andares de baixo. Quero dormir e acordar

283

Page 284: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

amanhã, imaginando que foi só um sonho.

– Só para garantir que ainda é o velho Jhon... - Disse Qlon, levantando-se. - E aquela conversa sobre “não ter mais medo da morte”?

– Esqueça isso. É bom sentir-se vivo desse jeito!

Qlon abafou as risadas com a mão. Voltaram pelas escadarias para o andar in-ferior, onde teriam uma longa conversa.

– E então, como foi?

– Seu filho é mesmo... É... Qual seria um bom adjetivo para encaixar nessa situação? - Estalou os dedos, puxando a palavra de sua memória.

– Irredutível.

– Exatamente.

Ronan olhava atentamente para Caim, abrindo um largo sorriso. Encontravam-se na praça de uma cidade. A lua alta no céu indicava que apenas a taverna es-taria aberta àquela hora. Sentados lado a lado na beira de uma grande fonte, o “corvo negro”, como assim era chamado um dos mais importantes demônios do inferno, contava como fora a experiência com o jovem Qlon.

– Então, ele vai mesmo buscar pelo dragão negro... - Ronan roçou sua bar-ba loira, pouco crescida, imaginando o que viria a acontecer. - Será que não está muito cedo para ele?

– Não posso afirmar isso, general negro. - Disse o cavalheiro demoníaco. - Mas, se determinação for o suficiente para vencer o grande lagarto, creio que ele se sairá bem.

– Ambos sabemos que não é. Mas ele deve ser o único que conseguiria...

– Sim, e você precisa que isso aconteça para prosseguir com seus planos. Aliás, com nossos planos. Já que a invasão não deu certo...

Ronan levantou-se. Fitou a água, que espelhava seu rosto em cada mínimo detalhe. Pegou um pouco com a mão em concha e lavou-o.

– Era de se esperar que minha antiga lâmina não desse conta do recado. Mas não podia imaginar que meu filho, mesmo daquele tamanho, pudes-se deter-me. Por agora, volte ao inferno. Nem quero saber o que pode acontecer se Lillith der por sua falta em um momento como esse.

– Já deu, acredito. - Seu olhar agora demonstrava preocupação. - Ela virá atrás de nós com certeza. Precisamos ao menos completar a primeira parte do plano antes que isso aconteça.

284

Page 285: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

– Por certo. Então vou fazer os preparativos. Se Lillith já tiver notado a trai-ção, então acabamos de garantir a distração que procurávamos.

Caim sorriu consentido e, em um piscar de olhos, o corvo havia desaparecido e deixado mais uma de suas penas para trás. Ronan olhou para as ruas desertas de Colossus, imaginando quando seu filho chegaria. Claro, não poderiam intera-gir. Aliás, ele nem estaria ali na ocasião. Ainda assim, sabia que seu pequeno ga-roto estaria andando ali, por aquela rua que guiava ao centro da cidade, muito em breve.

– Desgraça! - Esbravejou Ivan. - DESGRAÇADO! Quem era aquele?

– Mais um demônio, possivelmente. - Khan respondeu.

Ao perderem seu pequeno contingente de piratas, ficaram sós em meio àquela caçada. Estavam em algum lugar das ruínas, acampando a céu aberto.

– Seria ele um guarda-costas? - Perguntou Khan, devorando o pedaço de coxa de avestruz que estava em sua mão suja.

Ivan meneou a cabeça negativamente. Muito improvável. Enquanto Khan co-mia, Ivan andava em círculos, sem apetite. Ao ver aquele estranho senhor levar um tiro no meio da testa levantar-se como se nada tivesse acontecido... Nunca uma de suas balas havia errado o alvo. NUNCA. Precisava apenas de um tiro para matar ou imobilizar o oponente. Suas balas, que foram moldadas para infli-gir o dobro de dor e nocautear o oponente já no primeiro tiro, não surtiram sequer efeito com aquele estranho cavalheiro. Tampouco mataram a criança demônio.

– E agora, o que faremos? - Khan perguntou de boca cheia, cuspindo fia-pos de carne.

– O mais óbvio, continuaremos a segui-los. - Respondeu como quem não visse outra opção. - Essa noite descansaremos e pensaremos em uma nova estratégia. Amanhã é um novo dia, e nossa caça não vai terminar tão cedo. Só espero que o capitão não precise de nós nesse meio tem-po... Não podemos demorar, irmão!

– E então, pronto?

A noite de conversa fora longa, mal haviam dormido. Qlon acabara de ajeitar as coisas em sua montaria, subindo em seu animal. Jhon olhou para ele e ace-nou positivamente com a cabeça. E então, em suas montarias, seguiram sua jor-nada para a cidade de Colossus. Lá seria o verdadeiro ponto de partida para sua longa jornada. Em breve Qlon poderia saber mais sobre seu desafio: o Dragão Negro Supremo, Vindictus!

285

Page 286: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

286

Continua...

Page 287: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

287

Agradecimentos Especiais

Nessa edição, gostaria de agradecer, novamente, a todos os leitores. Obrigado por ajudarem com suas críticas, incentivos e até mesmo por

outros meios, seja divulgando, fazendo algum tipo de arte, dando sugestões... Muito obrigado.

Outro agradecimento especial vai aos meus professores de português Jean Neris, dono dos melhores debates em sala de aula, Marco Aurélio, por

mostrar-me a boa literatura e Marilena, que pegava pesado quando se tratava de gramática. Obrigado por mostrarem as ferramentas e ensinar-

me a usá-las.

Mais um vai para minha adorada amiga Camila Araújo, novamente. Essa capa que ela fez ficou simplesmente maravilhosa. Obrigado.

No mais, todos os agradecimentos do livro anterior continuam valendo. Obrigado a todos vocês, que fizeram, fazem e farão parte da minha vida.

Eu só posso crescer pois estou apoiado no ombro de vocês.

Page 288: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

288

Page 289: O Livro das Eras - O Chorar dos Anjos, Livro II

289

Notas Especiais

Todo o conhecimento de armaduras neste livro foi retirado de sites na internet e jogos variados de RPG. Também peguei uma forcinha do

Martin (Crônicas de Gelo e Fogo), cuja descrição do armamento medieval é impecável e serve de inspiração.

Novamente ressaltando: O latim usado nesse livro é de origem duvidosa (tradutores na internet, dicionários). Acho que nem usei

nesse volume, mas usei no passado. Por isso, qualquer correção quanto ao seu uso será mais do que bem-vinda.

Qualquer correção gramatical ou de enredo, sugestão, dúvida ou crítica pode ser encaminhada para o e-mail:

[email protected]

Obrigado pelo apoio e pela leitura!Espero que continuem acompanhando a saga!

Até o próximo livro!