o livro da suprema verdade - o sagrado na obra de john de ruysbroeck

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O LIVRO DA SUPREMA VERDADE O sagrado na obra de John de Ruysbroeck frei Carlos Guimarães de Almeida, OFMConv. 1 John de Ruysbroeck nasceu em 1293, na pequena vila de Ruysbroeck, entre Bruxelas e Hal. Aos onze anos de idade, saiu de casa, indo para Bruxelas, onde foi recebido pelo tio, John Hinckaert, que era cônego agostiniano na Catedral de Sainte- Gudule. Hinckaert era um homem muito piedoso e convivia com um outro padre, Vranke van Coudenberg, homem muito austero e totalmente devotado à oração e às boas obras. Ambos criaram o pequeno Ruysbroeck, dando-lhe educação e formação religiosa, que incluía considerável treinamento em filosofia e teologia, disciplinas às quais mostrou precoce e surpreendente aptidão. Ordenou-se em 1317 e, por influência do tio, permaneceu em Sainte-Gudule por trinta e seis anos. Exercendo normalmente suas funções como vigário da Catedral, reservava sempre um tempo para os estudos e contemplação, aprofundando-se em assuntos de mística e em autores como, dentre outros, Pseudo- Dionísio, Ricardo de São Vítor, São Bernardo de Claraval, Scoto Eriúgena, Santo Agostinho e Mestre Eckhart. Durante o período em que permaneceu em Bruxelas, escreveu suas primeiras obras e entrou em conflito direto com a doutrina dos Irmãos do Livre Espírito 2 , combatendo-a intensamente, conforme descrita e 1 Aluno do sexto semestre de Filosofia do ISB. 2 Doutrina baseada em uma concepção panteísta e não-cristã da Divindade, proclamando a divindade do homem e pregando um quietismo pernicioso do tipo mais destrutivo, associado à emancipação das leis morais e dos costumes.

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Trabalho de Filosofia da Religião, no qual buscou-se verificar a visão do sagrado presente em uma das últimas obras de John de Ruysbroeck, cônego agostiniano "belga" do século XIV.

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Page 1: O LIVRO DA SUPREMA VERDADE - O sagrado na obra de John de Ruysbroeck

O LIVRO DA SUPREMA VERDADE

O sagrado na obra de John de Ruysbroeck

frei Carlos Guimarães de Almeida, OFMConv.1

John de Ruysbroeck nasceu em 1293, na pequena vila de Ruysbroeck, entre Bruxelas e

Hal. Aos onze anos de idade, saiu de casa, indo para Bruxelas, onde foi recebido pelo tio,

John Hinckaert, que era cônego agostiniano na Catedral de Sainte-Gudule. Hinckaert era um

homem muito piedoso e convivia com um outro padre, Vranke van Coudenberg, homem

muito austero e totalmente devotado à oração e às boas obras. Ambos criaram o pequeno

Ruysbroeck, dando-lhe educação e formação religiosa, que incluía considerável treinamento

em filosofia e teologia, disciplinas às quais mostrou precoce e surpreendente aptidão.

Ordenou-se em 1317 e, por influência do tio, permaneceu em Sainte-Gudule por trinta

e seis anos. Exercendo normalmente suas funções como vigário da Catedral, reservava

sempre um tempo para os estudos e contemplação, aprofundando-se em assuntos de mística e

em autores como, dentre outros, Pseudo-Dionísio, Ricardo de São Vítor, São Bernardo de

Claraval, Scoto Eriúgena, Santo Agostinho e Mestre Eckhart. Durante o período em que

permaneceu em Bruxelas, escreveu suas primeiras obras e entrou em conflito direto com a

doutrina dos Irmãos do Livre Espírito2, combatendo-a intensamente, conforme descrita e

condenada no segundo livro do Adorno do Casamento Espiritual e no Livro da Verdade

Suprema. Por este tempo também teve contatos com as beguinas, das quais era diretor

espiritual.

À medida que crescia na experiência e conhecimento da vida contemplativa, começou

a ver um grande contraste entre suas intuições e o formalismo religioso da Catedral, a ponto

de se tronar insuportável sua permanência nesse local. Decepcionado e buscando uma vida de

maior oração e contemplação, pediu permissão ao Bispo de Cambrai e retirou-se, em 1343,

com o tio e Coudenberg, para o eremitério de Groenendael, na floresta de Soignes, fora de

Bruxelas; formando uma pequena comunidade, à qual logo se juntam outras pessoas.

1 Aluno do sexto semestre de Filosofia do ISB.2 Doutrina baseada em uma concepção panteísta e não-cristã da Divindade, proclamando a divindade do homem e pregando um quietismo pernicioso do tipo mais destrutivo, associado à emancipação das leis morais e dos costumes.

Page 2: O LIVRO DA SUPREMA VERDADE - O sagrado na obra de John de Ruysbroeck

Ruysbroeck permaneceu em Groenendael por trinta e oito anos, escrevendo, neste

período, suas maiores obras e tornando-se bastante conhecido por sua intensa vida espiritual e

mística. Entre os que acorreram a ele, encontrava-se grandes personalidades do mundo da

mística, como Jean de Sceele, reitor da escola de Zwolle, e Gerard Groot, fundador dos

Irmãos da Vida Comum. Estabeleceu assim amizade com os maiores mestres espirituais de

seu tempo, deixando ocasionalmente o priorado de Groenendael para visitá-los. Logo, sua

comunidade cresceu rapidamente, tornando-se um dos principais centros de espiritualidade

dos Países Baixos e de divulgação de suas próprias obras.

Morreu a dois de dezembro de 1381, aos oitenta anos, após um curto período de

doença.

Ruysbroeck escreveu todas as suas obras, onze ao todo, no dialeto de sua província

natal (Brabant), próximo ao flamengo moderno. No século XVI, foram traduzidas para o latim

pelo monge cartuxo Laurentius Surius, passando a ser bastante difundidas. Suas obras são: O

Tabernáculo Espiritual (tratado simbólico sobre o livro do Êxodo e seus símbolos,

apresentando uma interpretação tipológica de Cristo), Os Doze Pontos da Verdadeira Fé

(pequena interpretação mística do Credo), Livro das Quatro Tentações (tentações que podem

atingir alguém que se encontra na vida íntima – desejos da carne, mortificações exageradas,

espírito orgulhoso e falsa liberdade – e um ataque às falsas místicas); as primeiras obras:

Tratado do Reino dos Amantes de Deus (1330-1336, como um homem pode se tornar um

místico) e O Adorno do Casamento Espiritual (os três estados espirituais do encontro da alma

com Deus); três tratados sobre a vida tríplice (ativa, interior e contemplativa) e o

desenvolvimento da alma: O Espelho da Salvação Eterna (1359, manuscrito dirigido à

clarissa Margaret van Meerbeke, por ocasião da profissão de seus votos), Os Sete Claustros

(1363, tratado sobre a observação espiritual das clausuras – diferentes níveis de contemplação

– divido em três livros: o livro negro, que representa a vida de pecado; o livro vermelho, a

Paixão de Cristo; e o livro dourado, a vida celeste) e Os Sete Degraus do Amor (1372,

experiência da vida religiosa através de uma escala de ascensão espiritual em sete níveis); e

três obras de formação gradual de vida ascética e mística, escritos para Margaret van

Meerbeke: O Livro da Pedra Cintilante (recapitulação dos tratados anteriores, com ênfase na

visão beatífica), O Livro da Suprema Verdade e As Doze Beguinas (homenagem às beguinas,

apresentando a relação de amor que tinham com relação ao Cristo Eucarístico e à vida

contemplativa).

Page 3: O LIVRO DA SUPREMA VERDADE - O sagrado na obra de John de Ruysbroeck

O Livro da Verdade Suprema foi escrito a pedido de alguns amigos para,

primeiramente, tornar claro alguns pontos difíceis de seus primeiros livros e,

secundariamente, para refutar acusações heréticas de panteísmo e de sua visão da união da

alma com Deus. A obra, composta por quatorze capítulos, apresenta, inicialmente, uma

pequena revisão dos ensinamentos mais elevados de Ruysbroeck: as três formas de união com

Deus. Em seguida, um ataque à doutrina dos Irmãos do Livre Espírito e, depois, uma tentativa

de descrição destas três formas de união com Deus. Na descrição das três formas de união,

buscar-se perceber a manifestação do sagrado, conforme apresentado pela fenomenologia da

religião: colocar o fenômeno – o mostrar-se, o revelar-se do sagrado – na própria vivência

diária, buscando vivenciá-los metodicamente, compreendendo o que se mostra.

O amante contemplativo de Deus encontra-se unido a ele em três graus: uma união

por meios, uma união sem meios e uma união sem diferença ou distinção. Todos os bons

homens e todos os santos estão unidos a Deus por meio destas três formas de união, contudo,

poucos são os que possuem iluminação suficiente para sentir e entendê-las. “Portanto, quem

quer que seja que deseje encontrar e sentir interiormente aquelas três uniões das quais falarei,

deve vier inteira e totalmente em Deus, para que possa satisfazer e ser receptivo à graça e ao

arrebatamento de Deus, em todas as virtudes e exercícios interiores”.3

A primeira forma de união com Deus é a união por meios. “Eu direi que todos os

bons homens estão unidos à Deus pela mediação de meios”.4 Estes meios são a graça de Deus,

os sacramentos, as virtudes teologais (caridade, esperança e fé) e uma vida virtuosa segundo

os mandamentos de Deus. Aqueles que assim vivem, estão mortos para o pecado, para o

mundo e para toda forma de paixão desordenada, permanecendo unidos à Igreja e, assim, a

todos os homens bons. “(...), e com estes meios, nós obedecemos a Deus e somos um com

Ele, como um convento disciplinado está unido com seu Superior; e, sem esta união, ninguém

pode agradar a Deus ou ser salvo. E quem quer que mantenha esta união por estes meios até o

fim da vida, será um daqueles a quem Cristo refere-se ao dirigir-se ao Pai no Evangelho de

São João: PAI, QUERO QUE, ONDE EU ESTOU, ESTEJAM COMIGO AQUELES QUE

ME DESTE, PARA QUE VEJAM A MINHA GLÓRIA QUE ME CONCEDESTE.”.5

3 RUYSBROECK, J. The book of supreme truth. www.ccel.org/r/ruysbroeck/adornment/ adornment.htm 4 Id. Ibid.5 Id. Ibid.

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Desta forma, o homem deve exercitar-se e crescer em virtudes e, fazendo-o, torna

claro seu entendimento e rico e transbordante em sentimentos, com todo desejo do seu

coração, com anelo ininterrupto e verdadeira intenção, com todo ardor do seu espírito e da sua

natureza. “E assim, desde que se exercite e mantenha-se na presença de Deus, o amor o

domina: de qualquer maneira que se mova, está sempre crescendo em amor e em todas as

virtudes. Mas o amor sempre move-se em cada homem de acordo com a habilidade e o

benefício de cada um”.6 Os meios desta união são assim necessários para que o homem

mantenha-se inicialmente na presença de Deus, sentindo e experimentando que ele existe, que

é um objeto – “algo de outra natureza que mostra-se” – para o sujeito. Segundo Meslin, “esse

Deus só se torna real para o sujeito por um ato de fé, que determina a consciência do homem a

dizer que as emoções experimentadas são reais e que elas vêm de Deus”.7 No caso específico

da fé, esta permite uma vivência direta do mistério (“Mas essa experiência do mistério, que

constitui, para Otto, o conhecimento específico trazido pela experiência religiosa, somente a

fé pode conduzir a ele”8), sendo, porém, sempre conduzido a ele pela “mão de Deus”, ou seja,

a graça (“Mas, embora adquirida, essa experiência não implica simplesmente em técnicas: é

preciso aí uma graça que guie e sustente o sujeito”9). E isto sempre respeitando a disposição e

capacidade de cada um.

A segunda forma de união, a união sem meios, caracteriza-se pelo abandono dos

meios anteriores, sendo o homem elevado a Deus por meio de poderes superiores, estando

unido a ele sem nenhuma mediação. Neste estado de união, o homem partilha e é inundado

por um bem-estar celeste, ao mesmo tempo que por uma angústia atroz e mesmo “infernal”.

Pois o bem-estar celeste eleva o homem acima de todas as coisas a um louvor e amor sem obstáculos e limites por Deus, de toda maneira que seu coração e sua alma desejem. Depois disto, vem a angústia atroz, que o desanima na miséria e na falta do conforto e da consolação experienciados antes. Nesta angústia, o bem estar celestial manifesta-se de vez em quando, trazendo uma esperança que ninguém pode contestar. E então o homem cai novamente no desespero, no qual não encontra nenhuma consolação. Quando o homem sente Deus dentro de si mesmo com graça plena e rica, isto é chamado saúde espiritual. Pois então é sábio e claro em entendimento, rico e transbordante em ensinamentos espirituais, ardente e generoso em caridade, ébrio e transbordante de alegria, forte em sentimento, corajoso e disposto para todas as coisas que agradam a Deus, e para um sem número de outras coisas conhecidas apenas por aqueles que as sentem. Mas quando declina o amor e Deus esconde-se com todas as suas graças, cai novamente o homem no tormento e abandono, como se jamais pudesse se recuperar, sentindo-se apenas como um pobre pecador que sabe pouco ou nada de Deus. Despreza todo

6 Id. Ibid.7 MESLIN, M. A experiência humana do divino – fundamentos de uma antropologia religiosa. Trad.

Orlando dos Reis. Petrópolis: Ed. Vozes, 1992. p. 103-104.8 Id. Ibid. p. 106.9 Id. Ibid. 328.

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consolo que as criaturas possam lhe dar e o sabor e a consolação de Deus que não mais recebe.10

Neste estado, o homem depara-se com a triste realidade de sua condição, da

consciência dolorosa e aguda de seu EU que o separa de Deus: “todo místico têm consciência

aguda e dolorosa que seu eu é o constitui como um ser outro e diferente daquele ao qual ele

procura se unir”.11 Toma consciência de seu nada. Neste momento, deseja despojar-se de si

mesmo, busca criar um vazio em si, suprimindo todos os atos de vontade própria e

suspendendo todas as faculdades mentais; e reconhece-se totalmente dependente de Deus, não

pertencendo mais a si mesmo, mas a Deus. “O sentimento de dependência absoluta é a forma

pela qual se manifesta a consciência que temos de termos Deus em nós, de estarmos em

relação com ele, de sentirmos sua presença em nós”.12

Tomando consciência desta dependência, o homem abandona sua própria vontade na

vontade de Deus, deixando que Deus nele atue livremente em todo tempo. “Sem dúvida,

conseguir criar o vazio de si, suprimindo todos os atos de sua vontade própria e renunciando a

seu desejo, significa substituir seu eu pela vontade do próprio Deus”.13

A partir de então, o homem recupera sua saúde espiritual e torna-se sereno, não mais

se abalando com a presença ou ausência de Deus, com o bem-estar ou a angústia. “Pois o que

quer que o amor dê ou retire, quem abandonou-se e ama Deus, sempre encontra paz em tudo.

Vive todas as dores sem rebelião e é capaz de sentir uma união não-mediada com Deus, pois

seu espírito permanece livre e imóvel”.14 Esta união sem meios dá-se então em um

conhecimento simples de toda verdade e em um gozo e sentimento essenciais de todo bem. E

é possuída em um amor essencial (unidade essencial com Deus) e praticada e preservada em

um amor ativo.

O homem interior encontra-se, desta forma, elevado à vida contemplativa, sem

nenhuma forma de intermediação entre ele e Deus. Assim como o ar é penetrado diretamente

pelo brilho e pelo calor do sol ou como o ferro é penetrado pelo fogo quando aquecido, assim

o homem é penetrado por Deus, contudo, sem haver confusão entre o que é o homem e o que

10 RUYSBROECK. Op. cit.11 MESLIN. Op. Cit. p. 322.12 Id. Ibid. p. 97.13 Id. Ibid. p. 324.14 RUYSBROECK. Op. cit.

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é Deus, como não há confusão entre o que é ferro e o que é fogo, entre o que é o ar e o que é o

brilho do sol. A união mística que se experiencia jamais é uma mudança ontológica do

homem em Deus. “Apesar desta união do espírito amante com Deus ser sem meios, ainda aqui

há uma grande distinção, pois a criatura jamais se transforma em Deus, nem Deus se

transforma em criatura”.15 Tem-se sempre consciência desta distinção essencial entre o ser do

homem e o ser de Deus, por mais sutil e tênue que esta possa ser.

Elevado à vida contemplativa, “o homem interior passa de sentimentos espirituais

segundo a razão para sentimentos divinos que estão acima da razão, e por meio destes

sentimentos divinos ser submerso em um sentimento imutável e beatífico. Este sentimento é

nossa beatitude supraessencial, a qual é uma fruição de Deus e Seu amado: e esta beatitude é

aquela Quietude Escura que sempre permanece na inatividade”.16 E neste estado, “contempla

como as Pessoas dão lugar e permanecem no Amor Essencial, isto é, na Unidade Fruitiva, e

não obstante habitam eternamente, conforme Sua natureza pessoal, no trabalho da

Trindade”.17

Este estado de contemplação é ainda caracterizado por uma renúncia à toda e qualquer

representação, a toda mediação de imagens sensíveis. “E por esta razão, tais homens

iluminados são, com o espírito livre, elevados acima da razão em uma visão desprovida de

imagens, (...) com um entendimento sem imagens (...). E a memória elevada e desprovida de

imagens sente-se envolvida e estabelecida em uma abismal Ausência de Imagem”.18 E na

vivência desta ausência completa de imagens, o sagrado desvela-se.

Por fim, o homem bom alcança o último nível de união com Deus. A terceira forma de

união, a união sem diferença ou distinção, é a mais perfeita e elevada, e também a que deve

ser mais almejada, embora somente alguns poucos a alcancem nesta vida. Nesta etapa da

contemplação, o ápice da experiência mística, os espíritos mais elevados, que a ela chegam,

são fundidos, da maneira mais total e completa possível, à essência de Deus, sem nenhuma

espécie de diferenciação ou distinção. O homem encontra-se face-a-face com o totalmente

Outro, de forma surpreendente e espantosa, e é totalmente absorvido por ele, o objeto de seu

amor.

15 Id. Ibid.16 Id. Ibid.17 Id. Ibid.18 Id. Ibid.

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E em conseqüência disto, os homens iluminados descobrem dentro de si uma contemplação que está acima da razão e sem razão; e uma tendência fruitiva que penetra toda condição e todo ser, por meio das quais submergem-se em um abismo de insondável beatitude, onde a Trindade das Pessoas divinas possue sua Natureza na Unidade essencial. (...) Todos espíritos amantes são uma fruição19 e uma beatitude com Deus sem distinção (...). Pois lá todos os espíritos elevados são, em sua supraessência, uma fruição e uma beatitude com Deus sem distinção; e esta beatitude é tão unitária que nenhuma distinção pode entrar.20

Esta experiência mística de união é indizível, sendo praticamente impossível de ser

expressa através de palavras, que são imperfeitas e incapazes de descrevê-la; o que pode ser

facilmente percebido pela dificuldade em entender o que a maioria dos místicos tentam dizer

ao buscar expressar sua experiência. O que Ruysbroeck, por exemplo, quer dizer exatamente

com “uma contemplação que está a cima da razão e sem razão”? Ou como compreender uma

“união com Deus sem distinção” e, contudo, sem perder seu estatuto ontológico de pessoa

humana? Por isso, somente pode ser rudemente apresentada por meio de analogias e

expressões metafóricas e simbólicas. “Alguns falarão de um Deus escondido no fundo do

Grund, em que o homem o descobre conhecendo-se melhor; outros de um Deus que vem ao

homem para tomar posse dele, de um Deus que ilumina no arrebatamento do êxtase, e de um

Deus oculto nas trevas. Cada uma dessas expressões traduz uma realidade, na multiplicidade

das experiências místicas”.21

Assim, a partir da breve análise das três formas de união com Deus, apresentadas no

Livro da Suprema Verdade, pode-se perceber e caracterizar claramente a manifestação do

sagrado – o numinoso, o mysterium tremendum de Rudolf Otto – na vivência pessoal e

interior – condição característica e fundamental da experiência religiosa22 – de John de

Ruysbroeck. Sagrado este que se apresenta, resumidamente, como uma nostalgia da

divindade, que leva o homem a buscá-la e a tomar consciência de sua miséria e do seu nada,

do entrave que seu EU representa nesta busca do Amado. Consciente disto e empenhando-se

e crescendo nos meios necessários para elevar-se a Deus (graça divina, sacramentos e

virtudes), despoja-se, esvazia-se deste EU e de toda forma de representação inerente,

ascendendo na vida contemplativa até chegar ao mais alto grau de revelação do sagrado,

19 Fruição é, segundo São Agostinho, aderir à alguma coisa por amor a ela própria. Cf. AGOSTINHO, SANTO. A doutrina cristã – manual de exegese e formação cristã. Trad. Nair de Assis Oliveira. Série Espiritualidade. São Paulo: Edições Paulinas, 1991. p. 54. 20 RUYSBROECK. Op. Cit.21 MESLIN. Op. Cit. pp. 325-326.22 Segundo Meslin, “a verdade da experiência religiosa é revelar o homem a si mesmo enquanto ser crente, permitir-lhe fazer ter a experiência de si tendo a do Outro”, ou seja, é da experiência de si na descoberta do Ser divino que a experiência religiosa tira sua própria verdade. Cf. MESLIN. Op. Cit. p. 112.

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unindo-se a ele sem distinção ou diferença, dissolvendo sua personalidade no Absoluto

Divino, sem contudo perder seu estatuto ontológico de pessoa humana.

BIBLIOGRAFIA

MESLIN, M. A experiência humana do divino – fundamentos de uma antropologia religiosa.

Trad. Orlando dos Reis. Petrópolis: Ed. Vozes, 1992.

RUYSBROECK, J. The book of supreme truth. www.ccel.org/r/ruysbroeck/adornment/

adornment.htm