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O Limiar entre a Memória e a Morte: A simbologia do Luto em Sêneca (04 a.C-01 a.C-65 d.C) Douglas de Castro Carneiro 1 Nosso objetivo é analisar a relação entre a memória e a morte levando em consideração a morte social representada nos discursos textuais do filósofo Sêneca (01 a.C.- 65d.C), investigando desse modo, o impacto da morte na aula romana à época da dinastia Júlio-Cláudia. Em nossa leitura, supomos que Sêneca construiu imagens da morte a partir da condição de cidadão aristocrático que ao ser afastado da vida em coletividade, morre em termos simbólicos. Em outras palavras, passa a não compartilhar das coisas comuns em comunidade. Nesse sentido, parece-nos pertinente inferir na compreensão da morte social, pois assim, como entendemos vincula-se as práticas do exílio, aos latrocínios públicos, às guerras, a morte voluntária e em especial a ausência de ritos fúnebres e a exacerbação do luto prolongado. De toda a forma, a morte social associa-se ao temor da destruição que reduz o indivíduo ao esquecimento. Por isso, a produção da memória social, concatenava-se à divulgação de imagens, ou mesmo a destruição da reputação de um cidadão, ocorrida, por exemplo, com remoção de estátuas e imagens, à exclusão do nome nas inscrições públicas, a proibição do luto e à exposição da imagem do condenado à damnatio memoriae em futuros funerais da família. É interessante, notar que a morte social relacionava-se ao discurso filosófico que aliado, a conduta do cidadão, produzia exempla direcionados na construção da comunidade cívica. Nesse sentido, seria interessante utilizarmos como suporte documental Medea de Sêneca, uma vez que narra exatamente à exclusão da protagonista de sua comunidade, afastada por motivações punitivas. Sabemos, pois, que as tragédias senequianas não se destinavam ao grande público e, sim eram dirigidas a aula imperial em sessões de recitações e círculos literários. Levando estes apontamentos em consideração, entendemos que as tragédias podem ser lidas como veículo de construção e comunicação em um discurso de consenso para a elite romana. As práticas que remetem aos ritos e a simbologia do luto representavam os elementos sociais e políticos da comunidade romana. Eles situavam num registro textual que trata das condições de seu tempo, inserindo-se desse modo, pela produção e construção de memória como elemento de significação e socialização. 1 Doutorando em História pela Universidade Federal de Goiás na linha de História, Memória e Imaginário Social sobre orientação da professora Dra. Luciane Munhoz de Omena.

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O Limiar entre a Memória e a Morte: A simbologia do Luto em Sêneca (04 a.C-01 a.C-65

d.C)

Douglas de Castro Carneiro1

Nosso objetivo é analisar a relação entre a memória e a morte levando em

consideração a morte social representada nos discursos textuais do filósofo Sêneca (01 a.C.-

65d.C), investigando desse modo, o impacto da morte na aula romana à época da dinastia

Júlio-Cláudia. Em nossa leitura, supomos que Sêneca construiu imagens da morte a partir da

condição de cidadão aristocrático que ao ser afastado da vida em coletividade, morre em

termos simbólicos. Em outras palavras, passa a não compartilhar das coisas comuns em

comunidade. Nesse sentido, parece-nos pertinente inferir na compreensão da morte social,

pois assim, como entendemos vincula-se as práticas do exílio, aos latrocínios públicos, às

guerras, a morte voluntária e em especial a ausência de ritos fúnebres e a exacerbação do luto

prolongado. De toda a forma, a morte social associa-se ao temor da destruição que reduz o

indivíduo ao esquecimento. Por isso, a produção da memória social, concatenava-se à

divulgação de imagens, ou mesmo a destruição da reputação de um cidadão, ocorrida, por

exemplo, com remoção de estátuas e imagens, à exclusão do nome nas inscrições públicas, a

proibição do luto e à exposição da imagem do condenado à damnatio memoriae em futuros

funerais da família. É interessante, notar que a morte social relacionava-se ao discurso

filosófico que aliado, a conduta do cidadão, produzia exempla direcionados na construção da

comunidade cívica. Nesse sentido, seria interessante utilizarmos como suporte documental

Medea de Sêneca, uma vez que narra exatamente à exclusão da protagonista de sua

comunidade, afastada por motivações punitivas. Sabemos, pois, que as tragédias senequianas

não se destinavam ao grande público e, sim eram dirigidas a aula imperial em sessões de

recitações e círculos literários. Levando estes apontamentos em consideração, entendemos

que as tragédias podem ser lidas como veículo de construção e comunicação em um discurso

de consenso para a elite romana. As práticas que remetem aos ritos e a simbologia do luto

representavam os elementos sociais e políticos da comunidade romana. Eles situavam num

registro textual que trata das condições de seu tempo, inserindo-se desse modo, pela produção

e construção de memória como elemento de significação e socialização.

1 Doutorando em História pela Universidade Federal de Goiás na linha de História, Memória e Imaginário Social sobre orientação da professora Dra. Luciane Munhoz de Omena.

1

A morte é um acontecimento natural das sociedades humanas, mas o modo como a

mesma é significada é algo singular, construído historicamente em cada contexto específico.

Com os romanos, durante a dinastia Júlio-Cláudia, não era muito diferente, haja em vista, o

modo de ligar com a perda de entes queridos. A família era o principal grupo envolvido nas

práticas mortuárias e em seus rituais em especial entre a aristocracia, pois as procissões

fúnebres era um elemento importante da comemoração do morto e dos seus antepassados.

Nesse sentido, as pesquisas atinentes as representações da morte no Mediterrâneo Ocidental

vem incorporadas aos vestígios escritos e incluem os vestígios fornecidos pela cultura

material e não somente nos brindam com abundâncias de fórmulas de túmulos, mas também

nos colocam com as mais diferentes interpretações históricas sobre a morte

(OMENA,FUNARI,2014,p.25).

Os escritores de todos os gêneros escreveram sobre a morte. Infelizmente, para nós,

estes autores raramente escreveram de maneira sistemática acerca das descrições dos rituais

funerários e de como as pessoas morriam e como elas seriam lembradas. Esses rituais

mortuários, assim como os epitáfios, as necrópoles, monumentos literários de consolação

foram levados extensivamente(HOPE,2011,p.12). Ao levarmos em conta a importância desses

estudos, passamos a compreender que a morte expressa um ritual, outorgando um significado

social ao falecido e a sua família. Estes mesmos rituais mortuários garantiam o processo de

reintegração do grupo familiar no espaço social, na medida em que a família afetada

continuava a expressar nas máscaras, nas estátuas dos mortos, nas inscrições de fato, mas

mantinham a continuidade social da família (WALLACE HADRILL, 2008,p.48). Em função

dessa temática, contemplamos o discurso trageográfico de Lucio Anneu Sêneca (04-01 a.C-

65 d.C). Sabemos que esse filósofo nasceu na cidade de Córdoba, região hispânica, por volta

do ano 04 a.C. e faleceu em 65 d.C. sendo preceptor de Nero (GRIFFIN,1973,p.23). De

acordo com Myles Lavan, “se a relação entre o imperador e a corte senatorial flutuava no

período da dinastia dos Júlios-Cláudios, os primeiros imperadores experimentaram uma nova

cultura política centrado na corte imperial” (Lavan, 2013, p. 71). O imperador era uma figura

distante, os responsáveis por colocar a lei em prática eram os prefeitos das cidades, os

governadores. Nero ascendeu ao poder no ano 54 d.C. após o conflituoso governo de seu

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antecessor Cláudio, governou o império até o ano de 68 d.C. dando cabo a dinastia dos Júlios-

Cláudios.

Autor de inúmeras obras filosóficas, trágicas e uma sátira menipéia cf. Sêneca.Ad

Marciam de Consolatione; Ad Helviam de Consolatione; Ad Polybio Consolatione, Epistulae

Morales, De Ira, Diui Claudii Apocolocyntosis, entre outras), que retratavam diversos

aspectos da natureza humana, como por exemplo, o luto e a dor. Reiteremos que a temática

que aqui nos interessa é a morte. Ressaltamos que as tragédias, são em sua maioria,escritas

posteriormente à época do seu exílio (Oedipus, Hercules Furens, Troades, Medea,

Phoenissae Phaedra, Agamemnon, Thyestes, Hercules Oetateus e Octavia). Esta última é

considerada apócrifa. Ao retornar para Roma, Sêneca compôs o Breuitate Vitae, em 49 d.C.,

tratado consagrado a um problema moral, em que se observa princípios estóicos e epicuristas.

A partir de então, elabora, dentre outras obras, De Tranquilitate Animi, que versa sobre a

tranqüilidade da alma em servir aos homens, uma das posições fundamentais do estoicismo

clássico, escrita em aproximadamente em 53 d.C ou 54 d.C.Divi Claudii Apocylintosis,uma

sátira menipéia que ridiculariza o governo e a morte de Cláudio, escrita no final de 54 d.C.;

De Constantia Sapiens, escrita por volta de 55 d.C., De Benefiicis, redigida por volta de 50

d.C.a 60 d.C.; De Otio, Naturales Questiones, Ad Lucilium Epistulae Morales, De

Supertitione e Prouidentia produzidas ao longo de 62-64 d.C. (VIZENTIN,1999,p.40).

As tragédias escritas por Sêneca são inspiradas nos modelos gregos, especialmente em

Eurípedes. Entretanto, suas peças apresentam traços distintivos, pois para o autor as

influências dos deuses devem moderadas. As paixões que acometem aos homens não são

determinadas por forças exteriores e a ele, no entanto, desencadeiam-se devido à carência de

controle, devido ao homem ceder suas paixões. A história desenvolve-se em Corinto, diante

do Palácio Real. As personagens são Medea, esposa de Jasão, a ama de Medea, Creonte rei

de Corinto, Jasão, os filhos de Medea e Jasão, coro de corintios e o mensageiro. A tragédia

senequiana inicia-se com a crise e a tensão psicológica de Medea quando ela clama em

desespero pelos deuses afim de vingança contra a infidelidade de Jasão. Nestes mesmos

textos percebe-se a conjunção de três elementos que são essenciais à tragédia: dolor-furor-

nefas. Para Florence Dupont: “o furor é determinado por um excesso, de sofrimento, dolor, o

furor leva ao nefas,o crime hediondo, extraordinário, inexpiável, a profanação em seu lugar

mais alto”(DUPONT, 2011,p30).

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O prólogo da peça é todo dedicado a Medea. Esta invoca os deuses com o intuito de

angariar auxilio divino afim de vingar-se contra seus ofensores; Jasão e a família real de

Corinto, o rei Creonte e sua filha, e a princesa Creusa, que fora dada como noiva a Jasão.

Nesse trecho da peça da Medea, verificamos as reflexões de Sêneca sobre a morte social:

Tudo esta perdido: o canto nupcial chegou ao meu ouvido.Imensa dor! Ainda não

posso crer em tão grande desgraça. E Jasão pode fazer tudo isso? Depois de ter me

tirado o pai, a pátria, o reino tem coragem de me deixar sozinha em uma terra

estrangeira? Não tem coração, esqueceu o bem que lhe dei, ele que somente por

meio de seus crimes, conseguiu vencer o fogo e o mar? E pensa ele, então, que eu

tenha esgotado a série dos meus crimes? Incerta, exacerbada, não sinto eu, que

talvez a loucura me incita contra a vingança? Oh se ela tivesse um irmão! Ele ao

contrário tem uma esposa. Eis é ela que devo alcançar, mas tudo isso poderá

compensar minha angústia?(Sêneca, Medea, vv10-15).

No primeiro episódio, Sêneca destaca a importância da narrativa sobre a morte social,

comportando reflexões sobre a própria morte no sentido político, bem como de seus

concidadãos aristocráticos. Isto nos leva a crer que sua argumentação enfatiza a morte dos

indivíduos, num sentido não somente político, mas social. Nesse sentido, a condição de

Medea isolada de sua família, paterna e marietal, afastada do convívio social e do

compartilhamento de valores morre socialmente (OMENA,2011,p.17). Diante dessa

contestação, notamos outra relação que faz novamente referências novamente ao exílio:“Tu

prescreves a uma exilada o desterro, sem lhe indicar um lugar! Precisa ir embora. É o genro do rei que me dá

ordem. Aceito tudo. Acrescente os mais terríveis suplícios eu os mereci”(Sêneca, Medea, vv40-60). No início

do segundo episódio, entre os versos quarenta e sessenta, notamos a aflição da personagem

sobre as desventuras da morte e o seu destino lastimoso. Assim se treme se desespera diante

da morte, deve-se ao fato que o assentimento às representações que se julgam algo muito ruim

e insuportável (VIEIRA, 2008, p.28). O significado simbólico do ritual funerário é

comunicado simultaneamente por diferentes públicos e acabava refletindo nas tragédias

senequianas (ERASMO, 2008, p.230). Diante disso, notamos as seguintes reflexões:

Prepara Jasão, essa fúnebre fogueira, para teus filhos e levanta para eles o

sepulcro. Tua esposa e teu sogro, já receberam exéquias devidas aos mortos e fui

lhe dar sepulturas. O primeiro morto já teve a sua morte anunciada, sobre teus

olhos, que terá o mesmo destino (Sêneca, Medea,vv998-1001).

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Nos versos acima observamos que Sêneca utiliza-se da imagem de Jasão pedindo

clemência para o seu segundo filho e atira as crianças mortas nos braços do pai. Ao compor

sua Medea, Sêneca trata o mito de forma original, nos apresentando uma mulher forte que não

compadece em lamentações, que não titubeia em enfrentar as forças divinas e a busca em si

mesma, o poder necessário para colocar um curso que deseja (PIRATELLI,2010,p.91). Dessa

forma, compreendemos estas relações em Sêneca:

Eu, mesmo vou derramar o sangue dos meus próprios filhos? De minha própria

prole? Inspira-te melhor oh minha demente cólera. Este espantoso crime deve ficar

longe do meu pensamento. Qual seria a culpa que estes infelizes iriam expiar?O seu

crime é ter Jasão como pai e Medea como mãe. Eles devem ser mortos, não são

meus(Sêneca, Medea,vv520-550).

A respeito dessa temática existem poucos estudos que focam nesta temática específica,

as representações dos mortos, o papel da família e realização dos rituais, a relação entre a

morte e a memória individual e social nos rituais de morte e por fim as procissões fúnebres.

Em relação a isso, podemos citar o trabalho de James Ker The Deaths of Seneca, na qual o

autor desenvolve tal temática, pontuamos que a morte é presente nos mais diversos gêneros de

consolatórios. Sêneca tomou as representações filosóficas e poéticas para representar a morte

como supomos, desenvolveu um sistema retórico com ênfase em cada um dos gêneros com

experiências de temporalidades sobre a morte; em que atribuiu uma proeminência e uma

estrutura social (KER, 2007, p.68). Nesse mesmo sentido Darja S. Erker no artigo Gender

and Roman Funeral Rite, acreditamos que a morte para os antigos é um processo social

constitui simplesmente um evento, já que para o ato da morte e para um processo de luto

existe um sistema ritual nos espaços públicos (ERKES,2011,p.50). De toda a forma,

compreendemos essas assertivas acerca de Sêneca:

Matai a nova esposa, matai o sogro e toda a família real. E a mim, daí

outro mal, mais temível que a morte, para que eu possa oferecê-lo ao meu esposo,

que ele viva por cidades errantes, desterrado, espantado,abominado, sem lar, que

ele me deseje como esposa e encontre a porta fechada, hóspede já muito conhecido

(Sêneca, Medea,vv20-30).

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Os rituais da morte tornavam-se parte do discurso institucional romano,

transfigurando-se em símbolos de cidadania, à medida que os cerimoniais transformavam-se

em veículos de transformação (WALLACE HADRILL, 2010, p.41).

O que nos leva a considerar que o aparato cerimonial dos rituais funerários não

somente legitimavam o morto e os seus ancestrais, mas também estabeleciam dos rituais

funerários não somente legitimavam o morto e os seus ancestrais, mas também estabeleciam

um ambiente altamente competitivo entre as famílias (HALES, 2009, p.55). As tragédias

senequianas nos auxiliam na compreensão da temática mortuária, já que morrer significava

afastar-se da vida em coletividade, deixando de compartilhar coisas em comum com a

comunidade (Cf. FUNARI, 2008, p.32). Neste entendimento, observa-se:

Ó destino sempre cruel, o sorte sempre dura e igualmente perversa, seja quando me

poupas, seja quando me abates! Quantas vezes a divindade inventou remédios para

mim ainda piores do que os meus perigos, se eu quisesse-me mostrar-me fiel a uma

esposa merecedora, deveria expor minha cabeça a morte, não querendo morrer,

devo ai de mim faltar com minha fé( Sêneca, Medea,vv80-90).

Nestas considerações, tanto os textos filosóficos quanto os trágicos de Sêneca,

destinavam-se a um publico elitista, uma vez que o autor buscava um viés político. Seu

público era habituado a freqüentar círculos literários. Com a mudança cultural e política

ocorrida em Roma, surgiu um novo tipo de arquétipo de homem que se encontrava na

literatura romana (PEREIRA DO CARMO, 2006, p.26).

O autor nos faz pensar que ao compor suas obras, conferiu-lhe um caráter rigoroso e

de fato, construir personagens e tragédias que podia realçar um teor didático para com o luto e

com a morte (ALMEIDA CARDOSO, 2005, p.220). Assim sendo:

Se somente um morto pudesse saciar minha vingança, não teria

praticado aquele crime. Embora, matando os dois, será muito pouco para a minha

dor. Se algum penhor se esconde no meu seio materno, eu procurarei minhas

vísceras com ferro as dilacerarei (Sêneca, Medea, vv560-570).

Diante desses argumentos apresentados até o momento, não podemos deixar de salientar a

importância dos estudos sobre a memória e como isto reflete diretamente na forma de se

pensar a morte e o luto.

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Já que a memória é concebida como uma construção social, da mesma forma que a

vida humana é considerada mais curta, uma memória coletiva que recobria um período mais

estrito não estaria mais empobrecida o que facilitaria o desenvolvimento cultural e

social(HAWBACHS,1970,p.83).

A memória e o luto são dois processos que envolvem reações profundamente pessoais para a

morte e também são fortemente moldados por expectativas culturais e coletivas

(HUSKINSON, 2011, p113). E isto acabou refletindo e como refletem sobre os ritos

(SENEGARINE,2007,p.25). Em outras palavras, os ritos em especial no mundo romano,

remetem a memória do espaço cívico que é deslocado durante um ritual que expressava

discursos institucionais que se vinculavam à produção de uma memória e de um espaço de

poder. Assinalamos que a memória continua sendo um assunto controverso, não só para os

indivíduos, mas para com o objeto de disputas; os estudiosos discordam da forma como ela

deve ser tomada (HOPE, 2011, p.13). Nesse contexto:

A memória envolve uma relação com o passado, que se baseia no conhecimento

humano. Como a memória é um processo cognitivo. Que pode ser individual ou

pessoal, mas o termo é prontamente anexado não somente as pessoas, como também

para objetos, eventos e atos que evocam a memória. A memória no mundo romano

era considerada individualmente como socialmente, já que a memória poderia ser

um ato social e unificador (HOPE, 2011, p.16).

Destarte, a reafirmação dos cerimoniais fúnebres é a reafirmação da identidade

romana. As práticas que envolvem a memória, a morte e a simbologia do luto em Roma foram

múltiplas, formadas e transformadas, nas quais os indivíduos promoveram a manutenção

desses signos. Dessa maneira, as representações são mecanismos criados por grupos, cujo

objetivo é impor suas concepções de mundo e seus valores. Isso também ocorre nos escritos

de Sêneca, ao transmitir as representações de memória, morte e simbologia do luto. Faz-se

necessário, portanto, historicizar o conceito de rito, e citamos Fernando Catroga, para quem

“não há uma sociedade sem ritos aqui entendidas como condutas corporais mais ou menos, às

vezes codificadas e institucionalizadas que exige um tempo e um espaço cênico e os

participantes deste espetáculo” (CATROGA, 2011, p.30).

Este autor ainda elucida a função dos ritos de recordação:

O papel dos ritos de recordação é, portanto, comemorativo, embora os dois

conceitos. Com efeito, se recordação, revela uma afetividade e cordialidade que se

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julga como ato individual, a comemoração é ato da alteridade. Portanto,

comemorar será sair do horizonte autárquico em que a recordação pode degenerar

para se integrar em uma linguagem comum. Por sua vez, a recordação pode ser

estática, a comemoração enferma-se como rito, pelo qual a sua invocação ao

passado é um ato regenerador (CATROGA, 2011, p.32).

Nesse âmbito, devemos chamar atenção sobre a relevância dos chamados “ritos de

recordação” e como estes influenciam não somente os estudos do mundo contemporâneo, mas como

abarcam os estudos referentes aos ritos inclusive no mundo antigo e em especial no mundo romano.

Nessa esteira, a recordação ritualizada por um rito desempenha um papel decisivo, pois o

homem deve esquecer o que se passou illo tempore (ELIADE, 1989, p.80). Na perspectiva

deste autor:

No que diz a morte, os ritos são mais complexos, visto que não se trata de um

fenômeno natural (a vida ou a alma abandonando o corpo), mas também de uma

mudança de regime ao mesmo tempo ontológico e social; o defunto deve enfrentar

certas provas que dizem respeito ao seu próprio destino post-mortem, mas deve ser

reconhecido pela comunidade dos mortos e aceito entre eles (ELIADE, 1989,

p.110).

Observamos que o rito de recordação em Mircea Eliade relaciona-se ao ritual fúnebre,

geralmente mais complexo que os rituais de recordações, pois envolve particularidades

singulares. Nesse sentido, nossas perspectivas refletem a memória como objeto de um rito de

rememoração e recordação, a morte como conseqüência e a importância de sua simbologia.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante de todos os argumentos aqui apresentados sobre a questão da memória e da morte e a

simbologia do luto representado nos discursos textuais do filósofo e teatrólogo romano

Sêneca. Em nossa leitura supomos que Sêneca construiu imagens da morte a partir da

condição de cidadão aristocrático que ao ser afastado da vida em coletividade, morre em

termos simbólicos Em outras palavras, passa a não compartilhar das coisas comuns em

comunidade. Por isso, a produção da memória social, concatenava-se à divulgação de

imagens, ou mesmo a destruição da reputação de um cidadão, ocorrida, por exemplo, com

remoção de estátuas e imagens, à exclusão do nome nas inscrições públicas, a proibição do

luto e à exposição da imagem do condenado à damnatio memoriae em futuros funerais da

família. Nesta comunicação analisamos como fonte primária a Medea senequiana, uma vez

que narrou a exclusão da protagonista com a execução de seus filhos.

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