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Análise Social, vol. XVI (61-62), 1980-l.°-2.°, 211-236 António Manuel Hespanha O jurista e o legislador na construção da propriedade burguesa liberal em Portugal 1. O artigo 544.° do Code Civil (1804) define a proprie- dade como o «direito de gozar e dispor das coisas da forma mais absoluta, desde que não se faça delas um uso proibido pelas leis ou pelos regulamentos». Este texto —nem sempre interpretado de acordo com o seu significado histórico— é um emblema do conceito moderno (individualista, burguês, capitalista) da propriedade, sobretudo porque nele se costuma destacar o carácter absoluto e pleno dos poderes do proprie- tário. A par dele se coloca a divisa de Bentham, Liberty and Property, e com uma e outra fórmula se caracteriza o «indivi- dualismo possessivo (C. B. Macpherson), que dominou a época contemporânea até à erupção da questão social nos meados do século passado e às subsequentes terapêuticas da economia social de mercado (soziale Marktwirtschaft) e do Estado social. Este modelo da propriedade apresenta os seguintes traços estruturais: a) A propriedade é um direito natural, anterior à ordem jurídica positiva, decorrente da própria natureza do homem, como ser que necessita de se projectar exteriormente nas coisas para se realizar; esta fundamentação antropológica da pro- priedade tem, como veremos, a sua origem na escolástica franciscana e remata-se na teoria kantiana do direito. Alguns autores vão mesmo ao ponto de colocar a propriedade como origem do direito; direito cujo objectivo não seria outro que a distinção entre «o meu e o teu». E, na verdade, o pórtico de algumas das mais características exposições do direito civil de então é constituído pela enunciação de umas quantas «regras de trânsito» gerais dos direitos (dos «meus» e dos «teus») dos indivíduos, pois nisto se realizaria a função —não constitutiva, apenas combinatória — do direito positivo. 6) A propriedade é um direito absoluto, no sentido (que era o originário do Code) de que não está sujeito a limites externos, pelo que o seu exercício não depende de condiciona- mentos ou autorizações externas. No momento em que foi introduzida no Code Civil) esta referência ao carácter absoluto * Faculdade de Direito da Universidade Clássica de Lisboa. 211

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Análise Social, vol. XVI (61-62), 1980-l.°-2.°, 211-236

António Manuel Hespanha

O jurista e o legisladorna construção da propriedadeburguesa liberal em Portugal

1. O artigo 544.° do Code Civil (1804) define a proprie-dade como o «direito de gozar e dispor das coisas da formamais absoluta, desde que não se faça delas um uso proibidopelas leis ou pelos regulamentos». Este texto —nem sempreinterpretado de acordo com o seu significado histórico— éum emblema do conceito moderno (individualista, burguês,capitalista) da propriedade, sobretudo porque nele se costumadestacar o carácter absoluto e pleno dos poderes do proprie-tário. A par dele se coloca a divisa de Bentham, Liberty andProperty, e com uma e outra fórmula se caracteriza o «indivi-dualismo possessivo (C. B. Macpherson), que dominou a épocacontemporânea até à erupção da questão social nos meadosdo século passado e às subsequentes terapêuticas da economiasocial de mercado (soziale Marktwirtschaft) e do Estado social.

Este modelo da propriedade apresenta os seguintes traçosestruturais:

a) A propriedade é um direito natural, anterior à ordemjurídica positiva, decorrente da própria natureza do homem,como ser que necessita de se projectar exteriormente nas coisaspara se realizar; esta fundamentação antropológica da pro-priedade tem, como veremos, a sua origem na escolásticafranciscana e remata-se na teoria kantiana do direito. Algunsautores vão mesmo ao ponto de colocar a propriedade comoorigem do direito; direito cujo objectivo não seria outro quea distinção entre «o meu e o teu». E, na verdade, o pórticode algumas das mais características exposições do direitocivil de então é constituído pela enunciação de umas quantas«regras de trânsito» gerais dos direitos (dos «meus» e dos«teus») dos indivíduos, pois nisto se realizaria a função —nãoconstitutiva, apenas combinatória — do direito positivo.

6) A propriedade é um direito absoluto, no sentido (queera o originário do Code) de que não está sujeito a limitesexternos, pelo que o seu exercício não depende de condiciona-mentos ou autorizações externas. No momento em que foiintroduzida no Code Civil) esta referência ao carácter absoluto

* Faculdade de Direito da Universidade Clássica de Lisboa. 211

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da propriedade representava uma consagração da abolição dosónus feudais sobre a terra pela legislação revolucionária; mas,em seguida, ela pôde também justificar a antipatia da épocapor todas as formas de limitação ou condicionamento da pro-priedade, quer de natureza privada (v. g., formas de comunhãoe de indivisão, vínculos, autorizações para a alienação, servi-dões, direitos de preferência, laudémios), quer de naturezapública (v. g., regimes de licenciamento administrativo da trans-missão ou oneração do solo, próprios do intervencionismo eco-nómico-social do Estado-polícia, existentes nomeadamente naPrússia e noutros estados alemães). Propriedade absoluta é,assim, a propriedade não partilhada, aquela que não reconhecequalquer dominium eminens ou directum exterior; é a proprie-dade franca, obediente à regra da «liberdade natural da pro-priedade».

c) A propriedade é um direito pleno, ou seja, contém emsi todas as faculdades de acção que o seu titular pode desen-volver em relação ao bem objecto de propriedade, incluindoa sua destruição económica (consumo e alienação) ou física.Isto significa, em primeiro lugar, que o direito de propriedadenão é economicamente funcional, estando disponível para exer-cícios antieconómicos (v. g., o não cultivo de uma terra); emsegundo lugar, que é socialmente desvinculado, sendo passívelde exercícios não apenas a-sociais, mas mesmo anti-sociais,pelo menos enquanto não caísse nos limites da teoria geral doabuso de direito.

d) A propriedade é um direito tendencialmente perpétuo,daí decorrendo a tendência para o desfavor das formas tem-poralmente limitadas de domínio (fideicomissos, enfiteuses emvidas, cláusulas de retroacção) e a promoção da propriedadeperpétua.

e) A propriedade é, finalmente, um direito essencialmenteprivado, não devendo, portanto, coenvolver direitos de carácterpúblico, como acontecera na constituição fundiária e políticado antigo regime. Estes competem — como vinha dizendo adoutrina comum desde Suarez — à jurisdictio, e não ao domi-nium) enquanto faculdades dos proprietários, são abusivos edevem ser abolidos, como de facto o foram sendo pielas revo-luções burguesas. A privatização do direito de propriedadesignifica ainda que através desta se dá satisfação exclusiva-mente a interesses estritamente privados, no sentido já ante-riormente referido (supra, c).

2. Todos estes elementos do novo conceito doutrinal dapropriedade constituem um modelo dogmático-jurídico cujasvirtualidades normativas servem, em geral, adequadamente areprodução do sistema capitalista das relações de produção,nomeadamente no domínio da economia agrária.

As notas seguintes servem precisamente para sublinharos pontos de contacto entre as apetências normativas das rela-ções capitalistas e as consequências lógico-dogmáticas do con-

212 ceito individualista da propriedade.

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Deixando agora de lado outras explicitações sobre a natu-reza da «revolução burguesa», fixemo-nos apenas sobre as exi«gências da constituição e reprodução das relações sociais deprodução capitalista nos campos em relação à constituição fun-diária.

Para desfazer equívocos correntes, importa notar, à partidaque, na economia das concepções teóricas que subjazem a estaanálise, a «revolução burguesa» na agricultura não consisteapenas num processo de mutação técnica dos processos decultivo, como a mecanização ou o movimento de novas arroteias(«revolução agrícola»), nem um processo de reestruturaçãofundiária, como a parcelização, ou o emparcelamento, ou adesamortização. Embora os anteriores processos lhe possamandar conexos, a instituição das relações capitalistas no campoé fundamentalmente um fenómeno que se situa ao nível dasrelações sociais de produção, nomeadamente, ao nível dos me-canismos de apropriação do sobreproduto agrário. Processoque brevemente pode ser descrito como a transição de um sis-tema de apropriação por mecanismos extra-económicos, denatureza jurídico-político —isto é, com a intervenção internaou constitutiva do aparelho de Estado —, para um sistema deapropriação por mecanismos puramente económicos — em quea função do Estado e do direito se limita a ser a de garantesexternos do processo de apropriação. A renda é a forma deapropriação feudal do sobreproduto, enquanto a mais-valia éa sua forma capitalista.

A revolução burguesa consiste, portanto, na destruição dosmecanismos de cobrança da renda feudal —nomeadamentedos privilégios jurídico-políticos das classes feudais, tradu-zidos, no plano da dogmática jurídica, pela ficção de um ãomi-nium directum ou eminens sobre a terra — e, ao mesmotempo, na instauração dos mecanismos capitalistas de apro-priação da mais-valia — constituição do trabalho «livre»,constituição de um mercado livre dos meios de produção(terra), da força de trabalho e dos produtos.*

* A descrição do processo de penetração das relações capitalistas nocampo não é hoje feita da mesma forma por todos os autores que sereclamam do marxismo. Uma linha (com raiz em Kautsky e Lenine)defende a homologia do processo de instauração e desenvolvimento dasrelações capitalistas na indústria e na agricultura. Para esta linha, aintrodução do capitalismo na agricultura processar-se-ia através da pro-gressiva (embora lenta) expropriação do campesinato parcelar e da con-centração da propriedade fundiária, mexendo, assim, quer com os pro-cessos produtivos na agricultura, quer com a estrutura e a dimensão dapropriedade fundiária. Outra linha —utilizando em parte as perspecti-vas do populista russo A. V. Chayanov (1888-1932 [?]) (cf. Análise So-cial, xn, 2.°, 1976, p. 477), mas partindo, sobretudo, das sugestões do próprioMarx (num texto publicado em 1971 por Roger Dangeville, Un chapitreinédit du Capital, Paris, 1971) —descreve o processo de integração da agri-cultura no MPC como um processo de submissão formal, isto é, um processoque deixa intactas a propriedade e a estrutura produtiva camponesas eque assegura a apropriação capitalista do sobreproduto através do cir-cuito de distribuição — ou pela comercialização dos produtos agrícolasou pelo fornecimento de factores; a submissão ao MPC da produção cam-ponesa teria, assim, um fundamental paralelismo em relação à submissão 213

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Claro que a contemporaneidade de princípios entre a revo-lução capitalista nos campos, a «revolução agrícola» e a desa-mortização não constitui um acaso. A «revolução agrícola»constituiu muitas vezes uma manifestação do desejo capitalistade intensificação da força de trabalho, visando o aumento dasua rendabilidade e, assim, o crescimento da mais-valia; e asnovas arroteias também podem andar ligadas a processos deexpansão capitalista da utilização do solo. Mas, quer os aper-feiçoamentos técnicos, quer o aumento da superfície cultivada,encaixam-se também no «reformismo» do antigo regime, comoformas de aumentar as rendas senhoriais (sobretudo as par-ciárias) e reais (através das décimas e «quintos»), ou, pelomenos, de criar formas intermédias em que o sobreprodutoda terra fosse repartido entre o cultivador directo capitalista,sob a forma de lucro, e o senhorio feudal, a título de renda(absoluta). Quanto à desamortização, se ela é um elemento decriação de um mercado da terra, nada garante que, mudada demãos, a terra não continue a ser encarada da mesma forma,do ponto de vista económico-social, nomeadamente como umafonte de rendas, e não de lucros. Tem-se dito que foi isso o queprecisamente aconteceu entre nós.

3. A instauração de relações capitalistas de produção pres-supõe, assim, um conjunto de condições «positivas» e «negati-vas». Condições positivam como sejam a «libertação» de uma

da produção artesanal e da produção no domicílio, na primeira fase capi-talista. Para esta última linha — que se foi clarificando com as contribui-ções (não inteiramente coincidentes) de P.-Ph. Rey, G. Postel-Vinay, K.Vergopoulos, Cl. Faure e A. Mollard—, a resistência da propriedade e daprodução camponesas (que a prática testemunha) nem constitui qualquerdesmentido das teses marxistas sobre a implantação e o desenvolvimentodo MPC nos campos, nem —por isso mesmo— tem de ser escamoteadapela teoria marxista. A literatura sobre esta questão é imensa; em por-tuguês, além do texto de Chayanov, já citado, ver: E. Freitas, J. Ferreirade Almeida e M. Villaverde Cabral, «Capitalismo e classes sociais noscampos em Portugal», in Análise Social, xn, n.° 1,1976, pp. 41 e segs. (depoispublicado como introdução a Modalidades de Penetração do Capitalismona Agricultura. Estruturas Agrárias em Portugal (1950-70), Lisboa, 1976;Samir Amin e Kostas Vergoupolos, A Questão Camponesa e o Capitalismo,Lisboa, 1978; Álvaro Cunhal, Contribuição para o Estudo da Questão Agrá-ria, 2.a ed., Lisboa, 1976 (l.a ed., A Questão Agrária em Portugal, 1966).Parece poder dizer-se que a segunda corrente (contribuições mais desta-cadas de P.-Ph. Rey, G. Postel-Vinay, A. Mollard e Cl. Faure) é hoje do-minante. No presente texto, no entanto, os momentos mais sublinhadosdo processo de implantação das relações capitalistas no campo são aquelesem que insiste a corrente clássica. Isto acontece porque, como já se disse,o processo da submissão apenas formal «não deixa marcas» ao nível daconstituição fundiária ou do enquadramento jurídico institucional do pro-cesso produtivo agrário, já que a integração capitalista da produção agrá-ria se realiza no estádio seguinte, o da comercialização do produto. Poroutras palavras, como o objectivo deste trabalho é a despistagem do pro-cesso de instauração da «propriedade capitalista» da terra, a atenção temde ser preferentemente atraída por uma modalidade de penetração doMPC na agricultura que tenha implicações a este nível. Embora, deva,desde já, ficar salvaguardado que a fundamental permanência da pro-priedade pré-burguesa pode não impedir a apropriação capitalista departe do produto agrícola, justamente na fase da comercialização deste

214 último.

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massa de trabalhadores assalariados, a livre disponibilidadedos meios de produção, a existência de um mercado de produtose a criação de condições institucionais e económicas favoráveisao cálculo capitalista; condições negativas, tais como, nomea-damente, a abolição de uma exploração feudal que impeça ofuncionamento dos mecanismos de acumulação e reproduçãocapitalistas.

No concreto, estas condições cumpriam-se num programade modificações institucionais, cujos elementos mais importan-tes são os seguintes:

a) A abolição dos laços que impediam a mobilidade damão-de-obra. Entre nós, a adscrição estava abolida nas Ordena-ções (Ord. Fil., iv, 32), que retomavam um princípio de liber-dade pessoal que vinha do tempo de Afonso H, embora a dou-trina seiscentista continuasse a falar de adscritos a propósitode um outro texto das Ordenações (Ord. Fil., H, 17) de tormen-tosa interpretação. De qualquer modo, mesmo antes da revo-lução, a generalidade dos autores propendiam para considerara adscrição como um instituto histórico e «feudal». A legislaçãorevolucionária consolidou a mobilidade da mão-de-obra, abo-lindo as servidões pessoais.

&) Separação do trabalhador dos meios de produção, atra-vés da expropriação das unidades agrícolas artesanais, massobretudo da abolição das formas comunitárias ou colectivasde exploração da terra.

O problema da mão-de-obra agrícola (dos criados) —quefoi, desde o século xiv pelo menos, um problema candente —terá dificultado durante os séculos xv a xvni a grande explo-ração agrária, com excepção da grande exploração ganadeira,menos exigente em braços; promovendo, do mesmo passo, apequena exploração enfitêutica ou de colónia. Assim, da genteocupada na terra, uma parte exploraria terras de outrem, comoenfiteutas, colonos, foreiros, em pequenas unidades de dimen-são familiar, outra parte viveria de pequenos casais alodiais,outros dedicar-se-iam à exploração (autónoma ou complementarda lavoura própria) dos bens comunais (baldios, pastos co-muns, matos maninhos). Vivendo directa ou indirectamente àcusta dos anteriores, existiam os vadios e os mendigos, que seamparavam às formas de solidariedade pré-capitalistas, fre-quentemente denunciadas na literatura dos finais do séculoxvni. Esta ocupação —não muito intensa, decerto; diríamosde desemprego encoberto — da população rural, se constituía umtravão ao desenvolvimento das relações de trabalho salariado,ocasionava também um embaratecimento da mão-de-obra, poiso sustento desta provinha tanto da venda da força de trabalhocomo do trabalho por conta própria no pequeno casal, aforadoou alodial, ou nos bens comunais. Por isso, as tendências dadoutrina são neste ponto contraditórias. Quanto aos bens comu-nais, há decerto uma tendência favorável à sua apropriação,tendência que se justifica com o propósito de incentivo da ini-Ciativa privada e com a palavra de ordem «a agricultura é apropriedade» ( T. A. Vilanova Portugal). Mas não deixa de 215

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ser também visível a preocupação de não privar os povos dosseus meios comunais de subsistência e de os não lançar nodesespero e na revolta:

«Privar as populações doestas comodidades seria priva-lasdo seu dote..., dos meios da sua subsistência. Sem pastos,como pode haver gados? Sem gados, como agricultura?Como abundância de carnes, lãs, leites, etc. ? Sem estrumes,como pode haver estercos para adubar as terras? Sem es-tercos produzirão elas em abundância? Sem lenhas, comose pode viver? . . .Ah! E que desordens não tenho visto!Povos levantados contra poderosos, que por meio de cor-ruptas informações obteem aforamentos de maninhos comprivações d'aquelles subsidios dos opinados, os quaes assimprivados rompem em excessos de desesperação.» [Lobão,Notas a Melo, ni, 53.}

Quanto à dimensão da propriedade, confrontam-se duas ten-dências. Uma, ligada a um tema caro ao pensamento mercan-tilista peninsular — o da necessidade de promover o aumentoda população—, no sentido da repartição da propriedade; aestrutura agrária ideal seria aquela em que cada família agri-cultasse um fundo que lhe permitisse subsistir autonomamente,assim se estimulando o pleno emprego da terra e dos braços.Este ideal teria uma razoável realização no Minho, pelo queesta província aparece em alguns textos como um modelo a pro-mover. Outra tendência, não absolutamente incompatível coma anterior, preocupa-se com o excessivo retalhamento da terra,exigindo medidas de emparcelamento que, na verdade, chega-ram a ter curiosa expressão legislativa (Carta de Lei de 9 deJulho de 1773). O objectivo era, aqui, o de conseguir unidadesagrárias suficientes para uma exploração tecnicamente desen-volvida e capitalisticamente orientada. Denunciada por qual-quer destas duas correntes era a tendência para a grande pro-priedade ganadeira do Alentejo, impeditiva dum emprego in-tensivo da terra.

Também o aumento da mobilidade da terra provocado pelaabolição ou atenuação das restrições e encargos feudais (sisas,laudémios, direitos de preferência, vínculos) pôs naturalmenteem marcha uma dinâmica fundiária concentracionista, cujasprimeiras vítimas haviam de ser certamente o pequeno campe-sinato (incluindo o campesinato vincular, logo que os vínculosforam abolidos).

c) O terceiro elemento deste programa de modificaçõesinstitucionais consiste precisamente na garantia e no fomentoda mobilidade da terra. Esta dinamização da fortuna imobiliá-ria cumprirá historicamente três objectivos: por um lado, aprogressiva expropriação da pequena propriedade parcelar,mau grado a resistência da unidade agrária camponesa, ates-tada ainda pela nossa actual estrutura fundiária; por outro, oinvestimento na agricultura dos capitais adquiridos no comér-

216 cio e na indústria; por fim, a liquidação das explorações agrí-

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colas feudais, passivas e parasitárias, que apenas subsistiamem virtude das isenções e franquias dos seus senhores e que,findas estas, marcharam para a ruína, para a hipoteca e, final-mente, para a venda forçosa.

A mobilização da propriedade fundiária exigia uma luta emvárias frentes. Por um lado, a abolição dos morgados, que estavapreparada pela legislação pombalina e que é encarada com sim-patia pelos reformadores liberais, mas que só se tornará efec-tiva em 19 de Maio de 1863. Por outro, a remoção de todos osoutros entraves feudalizantes à alienação da terra, como assisas e os laudémios. Depois a desamortização e a venda dosfundos dominiais da Coroa. Finalmente, a promoção da publi-cidade da constituição fundiária e dos seus actos modificativos,através do cadastro.

d) Abolição das formas de exploração feudal que impe-dissem o processo de acumulação e reprodução capitalistas.A apropriação capitalista do sobreproduto agrário não excluiuem absoluto a permanência da renda feudal. Em certos proces-sos de transição do feudalismo para o capitalismo, como o in-glês, foi mesmo característica uma coexistência da renda feudalcom a apropriação da mais-valia, o que permitiu agregar anobreza terratenente ao bloco social hegemonizado pela bur-guesia. O que se torna, no entanto, impossível é compatibilizara acumulação e a reprodução capitalistas com situações emque as exacções feudais consomem a totalidade do sobreprodutoagrário ou quotas tão elevadas deste que o remanescente nãoconstitua uma retribuição adequada dos capitais investidos naagricultura. Era, no fundo, isto que os fisiocratas significavamcom a teoria do produit net — o foreiro devia, como produtore como consumidor, ser socialmente protegido e defendido deexacções fiscais ou feudais que excedessem o «produto líquido»,ou seja, o produto bruto deduzido do valor do trabalho e doscustos necessários à produção do processo produtivo (sementes,investimentos necessários, juros). Esta teoria do produto lí-quido deve ter tido influência directa e prática entre nós nofim do século xvni. Na verdade, num passo das suas Institutio-nes Iuris Civilis (liv. i, t. VH, § 15), Melo Freire opina que nãopodem ser impostos aos prédios ónus fiscais e censuais que con-sumam todo o seu rendimento, de modo que nada fique prati-camente para a renovação da cultura, invocando a seu favor alegislação pombalina sobre os censos usurários do Algarve (Al-varás de 15 de Setembro de 1766 e 16 de Janeiro de 1773), queele interpreta como afloramento de um princípio geral de equi-dade quanto ao montante dos impostos, princípio tirado daconsideração da utilidade pública e das possibilidades dos par-ticulares. Poderia dizer-se que a opinião de Melo Freire decor-ria da aplicação à enfiteuse dos princípios, tradicionais entrenós, da salvaguarda da justiça material dos contratos, princí-pios que as Ordenações (Ord. Fil., iv, 13) acolhiam através doreconhecimento da lesão como causa de anulação dos contratosonerosos. No entanto, o tom das censuras dirigidas por Lobãoà teoria de Melo Freire parece indicar que a nova teoria fisio- 217

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crática do «produto líquido», se não subjazia já à opinião dogrande jurista de Ansião, amparava, pelo menos, as alegaçõesdos seus contemporâneos a favor da redução dos foros:

Há annos, nesta Província [Beira} grassa huma seita quedivulgou algum pouco escrupuloso, de que a partilha sedevia fazer tirado primeiro, não só o Dizimo, (o que assimhe de direito) mas a semente, e tirada a metade para a cul-tura; e só o resto entrar na partilha: Seita que me não temsido possível desvanecer nos que me tem consultado; ficandoelles firmes na sua errónea consciência, e abusando dascautelas dos rendeiros. (Discurso sobre a reforma dos Fo-raes, § 27.)

Por outro lado, o teor da carta régia de 7 de Março de 1810,que manda proceder à revisão dos forais, é sensível a preo-cupações idênticas às da «seita», preocupações que eram nãotanto as dos foreiros vivendo e deitando contas nos moldesdo cálculo económico pré-capitalista, mas as dos lavradores jáimbuídos de um espírito capitalista e avaliando a rendabilidadeda sua exploração pelas regras capitalistas do cálculo. O preâm-bulo da carta régia é esclarecedor:

«[...} para fazer que os vossos cabedaes achem útil em-prego na Agricultura, e que assim se organize o Systema davossa futura prosperidade [...]».

Os mesmos tópicos aparecem, com frequência, na obra dou-trinal dos fisiocratas da Academia Real das Ciências e naprópria legislação.

4. Passámos até agora em revista as linhas de força dasapetências normativas da implantação do capitalismo. Tratá-mo-las, até certo ponto, como consequências abstractas dumacerta matriz das relações sociais de produção, um pouco inde-pendentemente da sua verificação histórico-concreta. Elasconstituem exigências estruturais do modo de produção capi-talista, qualquer que tenha sido a consciência social da suanecessidade ou a inteligência do seu sentido histórico. Mas,como vimos, quase todas estas linhas de força cobram traduçãona doutrina dos economistas, na política dos estadistas ou nadogmática dos juristas.

Isto, no entanto, não nos deve fazer simplificar a realidade,supondo um processo unilinear pelo qual a lógica de um sistemaeconómico-social geraria um sistema conceitual-dogmático noplano das construções dos juristas. O processo da génese dasconstruções intelectuais em geral — e, no caso particular, dasconstruções intelectuais dos juristas— contém ainda muitospontos de indeterminação. Mas a teoria da cultura — e, nomea-damente, a teoria materialista da cultura — está cada vez maissensível à ideia de uma relativa autonomia da criação ideoló-gico-cultural e dogmático-conceitual em relação à lógica dos

218 arranjos infra-estruturais, operando-se a compatibilização entre

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um nível e outro por processos de rectificação a posteriori oude feed back, um pouco à maneira dos processos de selecçãobiológica.

A teoria da propriedade oferece um exemplo muito feliz domodo como as coisas se podem passar, sendo por isso impor-tante um estudo do seu desenvolvimento e da sua relação coma realidade institucional e socieconómica. Praticamente pronta,nos seus elementos conceituais fundamentais, desde o séculoxvi — e pronta, precisamente, neste canto da Europa, pois elaé obra, como veremos, do pensamento neo-escolástico hispâ-nico—, ela permaneceu em «hibernação» durante cerca deduzentos anos, sobrevivendo apenas porque a estrutura daprática teórica dos juristas permitia a coexistência dum dis-curso teórico (in academiis, in scholis) e dum discurso prático(in foro); até que, criando-se as condições económicas, sociaise políticas da sua encarnação, ela derruba os muros do discursojurídico teórico e se desentranha em consequências normativasconcretas, acompanhando e forçando mesmo a realidade sociale económica; podendo, por vezes, o que a política e a milícianão tinham podido; embebendo, numa luta surda, as casamatasda sociedade civil, conquistando-a, por dentro, nos mais ínti-mos recessos da consciência social e abrindo, finalmente, asportas por onde entrariam os políticos, os legisladores e osgrandes patrões da nova ordem económica.

5. A concepção moderna da propriedade, elaborada a partirdo século xvi pelo pensamento neo-escolástico hispânico (DeSoto, Vitória, Molina, Vásquez, Suarez), a partir da mundivi-dência filosófica do nominalismo, representa uma rupturadecisiva de perspectivas em relação à tradição doutrinal esco-lástico-bartolista. O pensamento jurídico dos grandes mestresdo direito comum estava dominado pela ideia duma grandeordem universal, da qual faziam parte os homens e as coisas,paritariamente integradas numa estrutura finalista dirigida aosummum bonum. Nesta ordem, as coisas tinham a sua própriaespessura teleológica, a sua própria vocação ou utilidade natu-rais; isto assinava-lhes certas funções, tornava-as relativamenteindisponíveis perante os projectos humanos e, sobretudo, pre-determinava o tipo de relações em que elas podiam entrar.Cada coisa tinha as suas formas naturais de ser usada, as suasutilidades, e a cada uma dessas alternativas de uso correspondiaum tipo de apropriação dela pelos homens, um estatuto domi-nativo, um «direito» (mais no sentido objectivo do direito clás-sico — isto é, no sentido de estatuto, de situação jurídica —do que no sentido moderno de poder ou de faculdade de acçãohumana). Esta perspectiva realista (ex parte rei) dos direitosdas coisas faz aparecer o pluralismo das situações jurídicasreais, conduzindo a uma concepção também pluralista do «do-mínio», em que este assume tantas formas — com tantos con-teúdos e repartidas por tantos sujeitos— quantas as «utili-dades» da coisa. Entre as várias modalidades de domínio nãoexiste, portanto, uma hierarquia, pois todos os usos das coisas 219

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e as utilidades delas colhidas se encaixam, cada qual à suamaneira, mas no mesmo pé, na ordem do universo. Propriedadeeminente, direito de usufruto, usufruto limitado (à habitação,v. g.), tudo são formas de domínio das coisas, dogmática e teo-ricamente colocadas no mesmo pé e eventualmente repartidaspor vários titulares. Se, nesta concepção, há lugar para falarnum direito de propriedade, ele é entendido como o complexode todas as utilidades de uma coisa e dos poderes de uso corres-pondentes, e não como uma síntese de todos os poderes sobreas coisas de que um sujeito pode em abstracto dispor.

Este modo de entender a situação jurídica das coisas temalgumas consequências dogmáticas: desde logo, a legitimidadede considerar vários tipos de dominium {directum e utile, desig-nadamente), conclusão que foi pela primeira vez tirada porBártolo; depois, a equiparação — isto é, colocação no mesmopé de igualdade— das várias formas de dominium, indepen-dentemente do complexo de faculdades que cada uma compor-tasse: finalmente, a classificação como dominium de situaçõescomo a do enfiteuta, do arrendatário, do usufrutuário, do admi-nistrador de bens vinculados, do feudatário, apesar do carácterlimitado, relativamente ao conceito moderno dos poderes doproprietário, das suas faculdades de disposição da coisa.

Foi o individualismo moderno, surgido da influência da re-visão da escolástica tomista pelo nominalismo de Duns Scottoe Guilherme de Occam, o responsável pela modificação destaperspectiva sobre a realidade e, consequentemente, dum novorecorte dos objectos do discurso dos juristas acerca das situa-ções reais. Sabe-se como o nominalismo subverteu a visão aristo-télico-escolástica da realidade. A dissolução do conceito deordem natural pelo destaque agora dado ao carácter absolutoda vontade de Deus, a dissolução das realidades naturais dasociabilidade humana e o surgir do indivíduo como célulabásica e fundante da ordem social, a dissolução, finalmente,dum jusnaturalismo objectivista atento às estruturas materiaisda convivência social pela ideia do primado da vontade indi-vidual e do carácter convencional de todas as instituiçõeshumanas, tais são as raízes da subversão do pensamento jurí-dico clássico e medieval e da instauração duma nova visãojurídica do homem, nas suas relações com os outros homense com as coisas.

É daqui que parte também a doutrina moderna da pro-priedade. À perspectiva realista {ex parte rei) dos juristas me-dievais sucede-se uma perspectiva subjectivista, em que omundo dos objectos fica subordinado ao mundo dos sujeitos,em que as coisas só ganham sentido enquanto campo de reali-zação do sujeito e de realização da sua vontade. No centro douniverso — desse universo que os medievais concebiam comouma estrutura de situações objectivas em que os homens seencontravam, como as coisas, inseridos — aparece agora, cons-tituinte e soberano, o indivíduo, cujas características ontoló-gicas o levam a projectar-se para fora de si, impondo o seu

220 domínio às coisas, ordenando-as em função da sua vontade e

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da sua comodidade. As coisas aparecem, portanto, como dúcteise disponíveis, destituídas de uma vocação ou utilidade autónomados projectos humanos sobre elas, todas elas susceptíveis deum uso geral e pleno que inclui a sua própria destruição.

Este corpo de ideias, que se desenvolveu no ambiente filo-sófico parisiense dos fins do século xv e inícios do século xvi,sob a influência de Scoto, Occam e Gerson, trespassou-se parao domínio do direito através das obras duma geração deteólogos morais hispânicos, alguns dos quais com longas pre-senças em Portugal — Francisco de Vitória (1486-1546), Do-mingo Soto (1494-1570), estes dois estudantes em Paris, Luísde Molina (1536-1600), que viveu e ensinou em Évora durantelargos anos, e Francisco Suarez (1548-1617), mestre em Sala-manca e em Coimbra. Através destes cultores desse domíniointermédio e fundamental que era então a teologia moral, estasperspectivas enquadraram, por um lado, as opiniões técnicasdos juristas (por muito que aí tenham permanecido apenascomo tópicos retóricos durante longo tempo) e entraram nogrande diálogo teológico, filosófico e jurídico-político dondesurgiu a cultura moderna europeia. Ê assim que a reflexãojurídico-teológica dos espanhóis é absorvida e alargada noambiente filosófico-político dos países reformados, penetrano movimento iluminista de ideias e volta aqui, de largo trân-sito, pela pena dos juristas centro-europeus do século xvni.

6. Em traços muito gerais, são as seguintes as componentesdo conceito moderno da propriedade. Na raiz da construçãodogmática da propriedade está a definição do homem comoser livre e senhor dos seus actos («[...] idem censetur nostrosactos esse líber os et nos íllorum habere dominium [...]»,Suarez), que necessita de se projectar no mundo externo dascoisas para realizar essa liberdade e cumprir o seu destinocósmico («[...] homines suapte natura et jure coeperunt essedomini suarum actionum ut Ma libertate criatori servi-rent [...]», Soto). Assim, o domínio sobre as coisas (proprie-dade) aparece como um prolongamento do domínio sobre osseus próprios actos (liberdade); a propriedade torna-se uminstrumento indispensável da liberdade e esta o fundamentodaquela («[...] dominium exterarum rerum nemini nisi hacratione, quod sit ipse suarum actionum dominus; dominiumenim quod quisque habet in suos actos, causa est et radix eiusquod habet in alias res [...]», Soto; «[homo] per [intellectumet voluntatem] immeãiate habet potestatem in suos actus etper suos actus in res externem», Lessius). Encarada ex partesubjecti, a propriedade não pode deixar de ser algo de absolutoe pleno; absoluto, porque radicada nos próprios dados antro-pológicos; pleno, porque corresponde ao carácter indetermi-nado da liberdade humana. Abandonando a ideia medieval dosdominia como estatutos particulares das coisas, ligadas àssuas utilidades social e economicamente típicas, a concepçãomoderna vai definir o dominium na perspectiva do sujeito, istoé, como tudo aquilo que um qualquer sujeito pode fazer em 221

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relação a qualquer coisa, ou seja, como a síntese de todos osusos abstractamente possíveis («[...] dominium est ius in reàbsólutum et firmum non dependens eco álterius nutus et arbí-trio [...], Lessius; «[...]t*íi Ma, ut libuerit, etiam usque adeius dispendium et consumptionem [...]», Soto; «[...] re utipro arbitratu eam seroando vel vendendo vel donando vel vas-tando [...]», Lessius).

Com isto, o dominium ganha a dimensão de um poder abso-luto e pleno sobre uma coisa; mas, mais do que isso, ganha adignidade do único modelo de relação com as coisas que éantropologicamente fundado. Ele é o modelo natural da relaçãodos homens com os objectos; todos os outros modelos, maislimitados nas suas virtualidades, podem apenas ser entendidoscomo limitações do modelo proprietário (propriedade «limi-tada»), como parcelas de um domínio único, provisoriamenteautonomizadas («propriedade semiplena»). Como modelo «na-tural», a propriedade plena é o estado para que tendem todasas outras formas de relação com as coisas, ou, dizendo doutromodo, todas as outras formas de relação com as coisas repre-sentam compreensões provisórias do direito de propriedade,findas as quais ele retoma a sua plenitude natural («elastici-dade» do direito da propriedade). A ideia de uma multiplicidadede propriedades compreendendo apenas algumas possibilidadesde acção sobre as coisas aparece, nesta perspectiva, como algode não natural e, mais tarde, mesmo como um absurdo lógico,o mesmo acontecendo com a ideia de uma propriedade origina-riamente dividida sobre a mesma coisa, tal como era concebidapela tradicional divisão do dominium em dois, o directum e outile, ambos originários e dogmaticamente não hierarquizados.

Claro que, ao confrontar-se com a realidade institucional,a este discurso deparam-se grandes resistências, pois toda aconstituição dominial feudal, à qual correspondia a teoria me-dieval do domínio, conhecia, de facto, uma enorme multipli-cidade de situações jurídicas reais, estando os poderes sobreas coisas decalcados sobre as suas utilidades particulares, dis-tribuídos por vários sujeitos, mutuamente condicionados, depen-dentes, na sua efectivação e exercício, de autorizações alheias.Nesta estrutura institucional, que a prática social só alteroudecisivamente já no século xix, a propriedade plena era aexcepção, sendo a regra constituída pelas situações enfitêu-ticas, parciárias, censíticas, de arrendamento, de usufruto,vinculares, de servidão predial, etc. Nestes termos, o modeloindividualista e unitário da propriedade só pôde subsistir refu-giando-se num nível de princípio, permanecendo como um mo-delo abstracto ou como um tipo ideal, imprejudicado pelos des-mentidos da situação real histórica.

7. Claro que este corte radical entre a construção e a rea-lidade, entre o discurso teórico dos juristas e o seu discursoprático, só foi possível enquanto as condições da prática dis-cursiva dos juristas permitiram a persistência de dois discursosdogmáticos com estatutos autónomos: o dos teólogos morais

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— atraído pelas figuras e estratégias discursivas do discursoteológico, invocando as suas autoridades e pontos de apoio,dirigido a um público de escolares ou de eruditos, visando trans-formações de consciência, pairando por cima das realidadesinstitucionais e jurídicas nacionais; e o dos juristas técnicos —com as suas figuras e estratégias discursivas próprias, ba-seado nas autoridades e nos tópicos criados pela ciência euro-peia do direito comum e aceites pela prática judiciária, orien-tado para um público de práticos do direito, nomeadamentepara os tribunais, visando transformações da realidade insti-tucional e, por isso, intimamente radicado numa conjunturainstitucional e jurídica concreta.

Estas condições discursivas que permitiam uma rígida sepa-ração entre a «academia» e a «prática» não se mantiveram pormuito tempo. E, assim —tal como aconteceu, em geral, comtoda a mensagem do humanismo jurídico, de que a segundaescolástica é tributária —, o discurso teórico, desligado da prá-tica, perde rapidamente o seu vigor quando o ambiente de diá-logo erudito de que surgira e do qual vivia é destruído pelaquebra da unidade espiritual europeia com as Guerras da Reli-gião. A partir daí, os objectos conceituais por ele criados per-manecerão apenas como referências eruditas no discurso dosjuristas práticos e dos casuístas morais; mas a sua estratégiaglobal cede o passo à dos juristas e moralistas práticos, na qualo peso da tradição institucional e da moral positiva é esmagador.

É por isso que a última fase do movimento da segunda esco-lástica — dominada por Luís de Molina— é já atraída pelassoluções teóricas «viáveis», as que faziam curso entre os ju-ristas. Nomeadamente, no que diz respeito à divisão do domi-nium em utile e directum, divisão escandalosa para o conceitounitário da propriedade, Molina afasta-se dos anteriores, reto-mando a distinção bartolina e encostando-se, expressamente,à doutrina dominante nos juristas práticos, no texto simboli-zado pelo português Álvaro Valasco, autor de um tratado prá-tico sobre a enfiteuse, e do espanhol António Gomez, comen-tador prático das leis castelhanas sobre os morgados (leis deToro).

8. Assim, não é de estranhar que a tradição jurídica prá-tica portuguesa (e espanhola), embora tendo sempre presentea reflexão teórica dos «modernos», não se tenha afastado sensi-velmente da teoria tradicional, sobretudo quanto à definiçãoda propriedade e à divisão dos domínios.

A bipartição bartolina entre dominium utile e directum égeralmente aceite, até porque ela tinha base legal expressa.No entanto, a doutrina moderna da unidade do domínio é fre-quentemente referida e obtém uma ou outra tradução, sobre-tudo quando se trata de investigar o sentido da palavra domi-nium ou «propriedade» («próprio»), o que tem algum relevonas questões de exegese da lei ou dos negócios jurídicos.

Junto aos fins do século xvni, quando as doutrinas unita-ristas — recebidas já através da literatura jusracionalista 288

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alemã— voltam a ser postas em evidência, agora tambémpor um apelo dos próprios factos (cf., supra, 2), Melo Freireinflecte um pouco a terminologia e os conceitos, tentando limaraquilo que era mais chocante para a concepção unitária dapropriedade — a divisão dos domínios. Na esteira de uma tra-dição doutrinal ainda seiscentista (Fernando Rebelo, Lessius,Castro Palao, Escobar), Melo Freire tenta restringir o domínioda validade da distinção entre d. directum e d. utile, substituin-do-a parcialmente pela oposição entre dominium plenum e domi-nium mimis plenum, que já aponta para a ideia de um únicodomínio, embora com graus diferentes de plenitude (ou de limi-tação) .

A doutrina posterior mantêm-se fiel à lição de Melo Freire.A distinção entre a propriedade plena e minus quam plena érecolhida por Correia Teles, por Lobão e por Coelho da Rocha,este último utilizando também já a oposição, muito mais ex-pressiva da concepção unitarista do domínio e muito maiscaracterística da doutrina recente, entre propriedade plena epropriedade limitada.

9. Acompanhámos nos últimos parágrafos a evolução con-ceituai e dogmática da propriedade no trânsito do antigoregime para o período burguês. Pudemos ver como essa evo-lução era sobretudo determinada por factores ideológicos econceituais, ou seja, por factores internos à estrutura do dis-curso e da prática discursiva. G vimos também como as cir-cunstâncias externas, tais como as necessidades decorrentesdo sistema de relações económico-sociais, aí funcionavam ape-nas como condições de relacionação entre o discurso teórico ea prática normativa dos juristas; em termos tais que a nãocorrespondência entre os esquemas construtivos e as aspiraçõesnormativas da realidade não provocavam necessariamente umareorganização conceituai do discurso teórico, mas apenas umasua separação em relação à actividade discursiva dos juristaspráticos.

O mesmo se não passa ao nível do discurso do legislador.Situado no próprio seio do poder político e constituindo umdos seus elementos, o legislador mantém um discurso que, comoo poder político em geral, reflecte as relações políticas e sociais.Ê, de facto, corrente dizer-se que através do poder de Estadose reproduzem três elementos básicos: as relações e as forçasde produção, o carácter do aparelho de Estado e as estruturasideológicas, bem como, finalmente, os seus aparelhos específicos.Nem sempre este processo de tripla reprodução decorre semcontradições internas, sendo antes frequente que a reproduçãode um elemento seja relativamente contraditória com a repro-dução dos restantes: isto é, por exemplo, que a reprodução doaparelho de Estado (das relações especificamente políticas)exija uma dinâmica do poder de Estado relativamente destoanteem relação à reprodução das relações e forças de produção.Isto, que é válido em geral para o poder político, é-o em espe-ciai para o discurso legislativo; e daí se explica que as aspira-

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ções normativas dos factos — quer dos factos sociais, quer dosfactos políticos — estejam neste claramente presentes.

Também neste domínio da propriedade, este esquema ana-lítico obtém uma verificação favorável, como vamos ver.

10. Até ao século xvni, a reprodução das relações de pro-dução, das estruturas ideológicas e do aparelho de Estado erasuficientemente assegurada por uma atitude do Estado defirme garantia da constituição fundiária tradicional.

No plano da reprodução das relações de produção, o dese-nho jurídico-legal dos direitos sobre as coisas, nomeadamentedo direito sobre o solo, reflectia e garantia o sistema feudaldas relações de produção, assegurando — através do institutoda propriedade dividida e da protecção quase exclusiva dosdireitos do senhor directo (no plano da prova do título, dadoutrina da justiça material do contrato, da prescrição) —- aapropriação pelas classes feudais do sobreproduto do trabalhoda terra.

No plano da reprodução das estruturas ideológicas feudais,a constituição fundiária tradicional era favorável, de diversospontos de vista: por um lado, favorecia a reprodução do podersocial do principal corpo de secreção do cimento ideológicofeudal — a Tgreja; por outro, favorecia a indistinção entre odominius (sobre as coisas) e o imperium (sobre as pessoas),justificando, do mesmo passo, o poder territorial e o poderjurisdicional dos senhores.

No plano da reprodução do aparelho político, a constituiçãofundiária feudal possibilitava, desde logo, o desafogo da classeque ocupava o aparelho de Estado; não só da nobreza tradicio-nal e do clero, mas também dos funcionários (sobretudo juris-tas) de origem plebeia, cuja forma de nobilitação mais normalse traduzia, significativamente, na sua investidura numa situa-ção que lhes permitisse a apropriação da renda feudal da terraou a garantia perpétua dessa apropriação — concessão dumacomenda ou duma capela da Coroa, constituição de uma rendasobre bens da Coroa, concessão de bens da Coroa, autorizaçãopara instituição de um vínculo. Aliás, a justificação da consti-tuição fundiária feudal nos escritores da época é sempre a deque é nela que repousa o desafogo das classes sobre que sesustenta a Monarquia. Esta situação de privilégio, no plano dasrelações fundiárias, das classes em que se amparava o aparelhode Estado podia, no entanto, ser contraditória — e, como vere-mos, foi-o mais tarde — com outros aspectos da reprodução doaparelho de Estado, designadamente com as suas necessidadesde financiamento. Nomeadamente, se as fontes de financia-mento do Estado se enxertassem primordialmente sobre os ren-dimentos da terra; pois a dureza do regime de exploração feudalera impeditivo do progresso da agricultura e do aumento dosseus réditos e, assim, também das exacções fiscais baseadasnos produtos da terra. No entanto, este inconveniente não eramuito sentido. Desde logo, porque muitas despesas públicascorreram, até bastante tarde, precisamente por conta dos des-

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tinatários da renda feudal. Mas mesmo quanto às despesas dopoder central, elas foram predominantemente cobertas, até aoséculo xvni, pelos rendimentos da actividade comercial: oupelos rendimentos da actividade comercial da própria Coroa,ou pelos do tráfego comercial dos privados, sobre que incidiao sistema fiscal, predominantemente constituído por impostosindirectos (sisas, portagens, real de água, etc) . Mesmo aquandodos apertos financeiros dos meados do século xvn, os grandescontribuintes continuaram a ser os comerciantes, obrigados asatisfazer vários «pedidos», e, em certa medida também, asclasses feudais, circunstância esta última que obrigava a garan-tir ainda mais eficazmente as fontes de rendimento destasclasses.

11. No século xvra, a reprodução das relações de poderpassa a ter exigências contraditórias em relação à constituiçãofundiária.

Esta época culmina um arco de evolução em que o poderpolítico-estadual assume uma importância crescente na repro-dução do sistema de relações de produção. Daí que a reprodu-ção da estrutura das relações propriamente políticas — ou,dizendo doutro modo, do aparelho de Estado — tenha sobrele-vado sobre as exigências da reprodução das relações sociaisde produção e da reprodução das estruturas ideológicas.

12. Assim, uma das exigências da reprodução do aparelhode Estado, que agora assumia centralmente muitas das tarefasque antes competiam aos senhores feudais, era a valorização detodas as fontes de receita do Estado. Esta era a preocupaçãodominante do pensamento económico mercantilista; e tambémdo pensamento fisiocrático, sendo apenas que, neste caso, avalorização das fontes da riqueza estadual era prosseguida atra-vés de uma política económica de sentido inverso (liberdade deempresa, em vez de regulamentação).

As intenções dominantes da economia política e da políticaeconómica pombalinas e pós-pombalinas reúnem-se nesta ideiade aumentar o poder do Estado, promovendo todas as fontesde riqueza a que ele vai buscar o seu sustento económico- finan-ceiro. Entre estas últimas está agora, claramente, a agricultura,definida como «huma das quatro columnas, que sustentão oEstado Politico» (Alvará de 20 de Junho de 1774), cujos «pri-mitivos cabedaes», juntamente com os da indústria, consti-tuem «a sustentação, e as riquezas essenciais de todos ospovos».

Por outro lado, as preocupações de constituição dé um mer-cado interno, desembocando numa política de supressão dasbarreiras económicas internas e de extinção ou atenuação dacarga fiscal indirecta — de que é exemplo característico a Cartade Lei de 4 de Fevereiro de 1773 —, obrigavam a uma inversãoda estratégia fiscal; pois esta, deixando de poder repousar tãofortemente nos impostos indirectos, tinha de tirar partido deoutros campos de tributação, nomeadamente da tributação

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estadual da produção agrícola e dos impostos cobrados por oca-sião da alienação da propriedade (sisa predial).

Tudo isto, para além de apontar para uma estrutura fun-diária dotada de maior mobilidade — pois as transferênciasda propriedade eram uma ocasião de cobrança de receitas parao Estado —, faz que surja no poder político uma preocupaçãonova, a preocupação pelo fomento da agricultura. Não já a preo-cupação, típica das épocas anteriores, pela conservação de umaagricultura de subsistência como meio de satisfazer as necessi-dades de consumo das populações; mas a de fomento de umaagricultura que produzisse mesmo para além das estritas neces-sidades de subsistência local, que produzisse pelo simples fimde criação de riqueza. A terra aparece então, não como ummeio de satisfação de necessidades directas, mas sobretudocomo um meio de produção; ou seja, a terra aparece pela pri-meira vez no discurso económico como capital. Ê o discursoeconómico capitalista a aplicar-se agora à economia agráriae a propor um modelo de exploração da terra decalcada dosmodelos da empresa comercial e industrial e sujeito, portanto,ao mesmo tipo de cálculo económico. Nesta perspectiva, a terraaparece como um meio de produção e uma oportunidade deinvestimento; e, num plano ou noutro, a sua rendabilidade vaiser apreciada pelos mesmos cânones com que se aprecia a ren-dabilidade de outros meios de produção ou de outras oportuni-dades de investimento. O cálculo económico pré-capitalista vaiter de ceder, também aqui, ao cálculo económico capitalista;a consequência disto vai ser marginalização de todas as formasde organização da empresa agrária (nos aspectos jurídico-insti-tucionais e nos aspectos técnico-produtivos, contrários à maxi-mização dos lucros).

Esta ideia de que a terra deve proporcionar uma boa opor-tunidade de investimento e de que a estrutura e a constituiçãofundiárias devem adequar-se ao objectivo de uma agriculturabaseada numa exploração capital intensiva e espevitada pelaoportunidade de lucro (a «boa agricultura» a que se refereQuesnay no artigo «Cereais» da Enciclopédia, 1757) surge fre-quentemente na legislação pombalina e faz aí valer as suasexigências.

Desde logo, a de que as parcelas fundiárias sejam de dimen-são apta a estimular o emprego dos capitais disponíveis naagricultura. Este é o objectivo visado pela Carta de Lei de 9 deJulho de 1773, que reage contra a pulverização fundiária e amultiplicação das servidões e favorece a concentração parce-laria, estabelecendo medidas de alienação compulsiva de pro-priedades encravadas, de emparcelamento nas lezírias, olivais,vinhas e marinhas, de limite a divisão rústica e de extinção deservidões. Tudo isto porque, como se diz no preâmbulo da cartade lei, o excessivo retalhamento da propriedade impede a cons-tituição de «Fazendas úteis, e Nobres, que constituão estímulos,e objectos para emprego de cabedaes, aos que, pelo Commercio,e pela Agricultura acrescentão com louvável industria pelassuas próprias aquisições os fundos particulares, em cuja mui-

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tiplicação consiste a felicidade dos Povos, e as forças dosEstados».

Este mesmo incentivo da concentração da terra nas mãosdos proprietários empreendedores (capitalistas) é uma dasrazões que subjazem às medidas pombalinas sobre morgados ecapelas. Pela Carta de Lei de 7 de Setembro de 1769 tomam-secertas medidas destinadas a libertar a propriedade vinculada;embora se continue a reconhecer que os vínculos (morgadose capelas) constituem a garantia de sustento dos grupos sociaisaptos ao serviço da Coroa, ponderam-se agora os graves incon-venientes da instituição vincular. E, dentre estes, os mais real-çados são — além dos inconvenientes fiscais decorrentes da imo-bilização destes bens — o facto de esta instituição impedir acirculação dos bens (§ 11), constituindo um «estorvo a quemquer alargar e ampliar as suas terras e fazendas» (§ 21), e ode os vínculos, canalizando os rendimentos da agricultura paraos consumos das classes inactivas, impedirem o seu reinvesti-mento na própria agricultura (§ 21). Isto leva a que, garantidaa preservação dos vínculos mais importantes —aqueles que,de facto, podiam sustentar a dignidade temporal de um servidorda Coroa—•, se extingam os que, sendo insuficientes para estefim, só apresentavam as desvantagens. Embora nem todas asterras desvinculadas tenham saído das mãos dos anterioresproprietários, há razões para supor, como se diz no fim da notaanterior, que estas medidas antivinculares tenham dado lugara um movimento de expropriação dos proprietários rentistasda terra e de transferência destas propriedades para a mão deproprietários capitalistas. Este movimento pode ter sido acom-panhado de uma dinâmica no sentido da concentração da pro-priedade fundiária, ainda sob forma vincular, conforme tambémse sugere na nota anterior. No entanto, só o estudo dos registosdas consultas referentes a vínculos do arquivo de Desembargodo Paço pode trazer maiores certezas neste domínio.

Favorecendo ainda a mobilidade da terra e a sua apropria-ção por empreendedores com projectos mais dinâmicos as me-didas de alienação dos bens da Coroa. A partir de 1762 recor-reu-se à venda dos bens da Coroa para alívio das situações crí-ticas do tesouro. Já de si, estas vendas beneficiavam sobretudoaqueles que tivessem capitais disponíveis para investir nacompra de terras; mas esta situação favorável ao trespasse dasterras da Coroa para as mãos dos capitalistas foi ainda favo-recida pelo facto de, a partir de 1799 (Alvará de 4 de Abril de1799), se admitirem — primeiro facultativamente, depois obri-gatoriamente— apólices do Tesouro no pagamento dos bensnacionais. Não está feito um estudo da amplitude das vendasentão efectuadas; mas pode dizer-se que com estas medidasse inaugurou um processo que, retomado após a revolução libe-ral e só encerrado nos fins do século xix, iria provocar umatransferência maciça de terras das mãos do Estado e das con-gregações eclesiásticas para as mãos dos credores públicos.Como já se disse (supra, 2), é todavia apressado fazer um juízo

228 acerca do significado e das consequências sociológicas deste

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processo de transferência da propriedade fundiária; muito maiso sendo classificar esta transferência, só por si, como uma«reforma agrária capitalista». Não só porque muitos dos titu-lares de apólices do Tesouro, sobretudo na segunda fase davenda dos bens nacionais, não eram capitalistas, tendo antesadquirido as apólices por mercê do Estado ou a título de inde-mnizações (caso dos indemnizados pelos «prejuízos de guerra»das campanhas liberais), mas também porque não se sabe atéque ponto à compra das terras se seguiu uma sua exploraçãoem termos capitalistas, sendo, porém, de supor que, em muitoscasos, os novos proprietários continuaram a preferir uma sim-ples cobrança das rendas tradicionais.

Outra exigência desta política de fomento da rendibilidadecapitalista da terra era a da consolidação ou perpetuação dassituações dos exploradores directos da terra. De facto, qualquerprojecto de investimento na terra pressupõe a garantia da suaexploração duradoura ou mesmo perpétua. O problema punha-se,sobretudo, em relação à enfiteuse, em que —como já vimosatrás (supra, 9) — se confrontavam duas teses: a tese de queo carácter módico da cedência da terra através da enfiteuse sóse justificava pelo facto de esta incidir sobre terras «por fazer»e que, feitas estas e recuperado o investimento inicial do fo-reiro, o senhorio devia poder recuperar a terra para a agricultarou voltar a ceder, agora a título de arrendamento; e a tese daperpetualidade da enfiteuse, mesmo contra a convenção ex-pressa, por recurso à invocação da «equidade bartolina». Estaúltima foi a tese dominante na legislação pombalina, que, pelaCarta de Lei de 7 de Setembro de 1769, estabelece a renovaçãodo contrato enfitêutico a favor de descendentes, ascendentes eherdeiros colaterais, de acordo com a equidade bartolina já rece-bida pelas Ordenações Filipinas (iv, 36) e da qual agora se diz,muito dentro do espírito da época, não ter sido inventada porBártolo, mas sim estabelecida no direito natural. Na mesmalinha, mas integrando-se também numa política desamortiza-dora, a Carta de Lei de 4 de Julho de 1768 converte os prazoseclesiásticos de passado em prazos vitalícios ( § 5 ) . Assim seabriam as possibilidades a um projecto de capitalização daagricultura baseado na enfiteuse, em que muitos parece teremacreditado.

Finalmente, o incentivo da aplicação dos capitais disponíveisna agricultura obrigava ainda a que se procedesse a uma redu-ção dos encargos feudais sobre a terra. Neste ponto, a legisla-ção pombalina foi muito prudente. Apenas em relação aoscensos do Algarve, em que havia uma tradição usurária, setomam medidas tendentes ao alívio das terras (Alvarás de 19de Setembro de 1766, 16 de Janeiro de 1773 e 4 de Agosto de1773). Quanto à enfiteuse, reafirma-se a doutrina tradicionalda lesão, embora se restrinja a aplicação das suas regras aosverdadeiros contratos de enfiteuse, ou seja, quando incidamsobre a cedência de terras incultas ou a desbravar (Alvará de4 de Julho de 1776). 229

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A mesma intenção de libertar a terra dos encargos típicosda constituição feudal do solo e de a dotar de uma situaçãojurídico-económica mais adequada aos desígnios capitalistasterá presidido às medidas que permitiram a remissão dosencargos feudais. Medidas que, por outro lado, constituíamum paliativo directo para os apertos financeiros. Isto acon-tece, a partir de 1799, em relação às terras incluídas nos pró-prios da Coroa; o Decreto de 16 de Março de 1799 (cf. Avisode 4 de Abril de 1799) autoriza excepcionalmente a remissãodos foros e das jugadas pertencentes à Coroa, em benefício daagricultura, o mesmo dispondo, em relação aos foros e censosda mesma Coroa, os Decretos de 21 de Novembro de 1812 e6 de Abril de 1813. Em contrapartida, não se conhece entrenós nenhuma providência do poder autorizando a remissãodos foros pagos a particulares, tal como acontece por estaaltura noutros Estados iluminados da Europa. O desenvol-vimento da política traçada pela Carta de Lei de 7 de Marçode 1810 levaria, porventura, aí se a resistência da feudalidadee, depois, a revolução liberal não tivessem impedido a suamaturação.

Estas eram, portanto, as medidas mais reclamadas pelapolítica de desenvolvimento capitalista da terra, através dasquais se procurava aumentar a riqueza agrícola nacional e,sobre ela, fundar ou restaurar o poder económico e financeirodo Estado. Ao enumerá-las, visualizámos uma parte das con-sequências dos mecanismos de reprodução do poder político(reprodução do aparelho de Estado, neste caso ao nível da suabase económico-financeira) sobre a constituição fundiária.

13. No entanto, o mecanismo de reprodução do aparelhode Estado apresenta outras consequências neste domínio.Nomeadamente no plano da reprodução das estruturas pessoaisdo poder. Na verdade, um outro aspecto da reprodução doaparelho de Estado é o da reprodução da «classe política». Jávimos como a legislação do Estado moderno era sensível aeste aspecto, procurando manter intactas as fontes de sustentodesta classe através duma política de conservação da base fun-diária das grandes famílias nobres.

As exigências deste aspecto da reprodução das estruturasdo Estado não eram perfeitamente conciliáveis, no entanto,com as exigências da rendabilidade capitalista da agricultura.Mas já se viu como a política pombalina da desvinculação tevede encontrar uma base de equilíbrio com a política de conser-vação nobiliárquica, através duma extinção selectiva dos vín-culos que, acabando com os apenas inúteis, salvaguardasseaqueles em que os inconvenientes da imobilização da terrafossem compensados pelas vantagens do sustento das camadascortesãs. Mas, mais do que isso, a política da última fase doantigo regime no que respeita aos vínculos dá conta das con-tinuidades e das rupturas do Estado desta época quanto àsestruturas pessoais do poder político. Ao manter os vínculos,com o expresso argumento de que deles dependia o sustento

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da dignidade material das pessoas que serviam a Coroa, oEstado absoluto tardio está a manter a matriz tradicional dasestruturas pessoais do Estado, em que o exercício de funçõespúblicas andava ligado à posse de meios pessoais de fortuna,sobretudo de fortuna fundiária; era a tradicional confusãoentre o dominium e o imperium, embora agora se sublinhassesempre o carácter delegado deste último. No entanto, ao admi-tir o acesso de não nobres — e mesmo de plebeus ligados aprofissões anteriormente não prestigiantes— às formas nobi-liárquicas da propriedade, como os morgados, estava a dar-seuma ruptura na caracterização sociológica dos estratos em con-dições de dominarem o aparelho de Estado. Ruptura cuja impor-tância não deve, porém, ser exagerada, pois a estrutura básicado acesso ao aparelho de Estado permanece — este continuaa ser mediado e condicionado pela posse de uma fortuna pes-soal de base fundiária; o funcionário continua a nascer dorentista.

14. Acabámos de ver, como as exigências da reproduçãodo aparelho de Estado (nos seus níveis fiscal-financeiro e pes-soal) em relação à constituição fundiária eram relativamentecontraditórias, embora essa contradição tenha podido ser con-ciliada através duma solução que, fomentando a exploraçãocapitalista da terra, não sacrificava totalmente os estratosbeneficiários da renda feudal.

Contradição mais difícil de levantar era, no entanto, a queexistia entre as exigências (tomadas globalmente) da repro-dução do aparelho de Estado e as da reprodução des estruturasideológicas.

Na verdade, a reprodução das estruturas ideológicas estavaprincipalmente a cargo da Igreja. Apesar de todas as querelasde Pombal com o clero regular e secular, era ainda a legitima-ção de tipo religioso que amparava o poder civil; e a preserva-ção dessa estrutura de legitimação pressupunha a continui-dade do magistério ideológico da Igreja. O corpo eclesiásticodispunha, a partir daqui, de uma posição que lhe permitia exer-cer uma forte pressão sobre o poder civil, nomeadamente quandoos seus interesses materiais estivessem em jogo. Ora os inte-resses materiais da Igreja assentavam na constituição fun-diária feudal e a defesa destes interesses exigia a manutençãodesta constituição. As medidas de atenuação ou revogação dalegislação agrária pombalina tomadas por D. Maria I —no-meadamente, as do Decreto de 17 de Julho de 1978 — podemexplicar-se precisamente por pressões do clero e também deoutros estratos sociais feudais-rentistas.

Por outro lado, a perpetuação das estruturas ideológicasfeudais com as quais o Estado absoluto continuava fundamen-talmente a legitimar-se era prejudicada pela dissolução do par«propriedade da terra-autoridade política». Na consciênciasocial, o poder andava ainda intimamente ligado à riqueza fun-diária; isto torna-se patente no cuidado do legislador setecen-tista em manter a fortuna fundiária dos grandes dignitários 231

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tradicionais da Coroa e de atribuir aos estratos agora chegadosaos lugares de topo do aparelho de Estado e ao exercício dopoder político um idêntico estatuto socieconómico. É claro queos finais do século xvm são, no plano das estruturas ideoló-gicas de legitimação do poder, uma época de contradições: nãotanto porque exista já contaminação dos modelos liberaisdemocráticos de legitimação do poder político, mas sobretudoporque a legitimação do despotismo iluminista exigia o combatea certas estruturas ideológicas do Estado feudal tradicional,nomeadamente aquelas que sublinhassem demasiado o papelpolítico das classes feudais e embaraçassem, assim, a omnipo-tência do poder real. A evolução da teoria do domínio emi-nente do Estado sobre os bens dos súbditos é ilustrativo destacomponente ideológica «antifeudal». Seja como for, a repro-dução das estruturas ideológicas nobiliárquico-absolutistas mi-lita no sentido de uma conservação no fundamental da constitui-ção e da estrutura fundiárias feudais.

Em suma, no plano da reprodução das estruturas ideológicase de legitimação do poder verificam-se exigências quanto à cons-tituição fundiária contraditórias com as que se verificavam, nofundamental, no plano dos mecanismos de reprodução do apa-relho de Estado. Este carácter conflitual de umas e outras exi-gências explica seguramente as indecisões do discurso do legis-lador no que respeita ao regime da terra, nomeadamente umacerta oscilação da política relativa a propriedade eclesiásticae nobiliárquica nos últimos reinados do absolutismo. Nos deD. José e de D. João VI (incluída a sua regência), a preponde-rância de factores ligados a reprodução do aparelho de Estadoreflecte-se, ao nível da política fundiária, em medidas que pre-judicam a reprodução das relações sociais de produção e dasestruturas ideológicas feudais; no reinado de D. Maria, a pre-dominância duma lógica de reprodução das estruturas ideoló-gicas — predominância explicável por circunstâncias de conjun-tura (características pessoais do monarca, impressão causadapela Revolução Francesa) — favorece a conservação da cons-tituição fundiária feudal.

16. Estes «apelos» contraditórios dos mecanismos de repro-dução em relação ao regime da terra complicam-se ainda emface da dinâmica evolutiva das próprias relações sociais deprodução, dinâmica que agora transcende o nível das relaçõesentre cultivadores directos e senhores feudais. Como «conjun-tura de transição» que é, o final do século xvm apresenta umaestrutura social variegadamente contraditória. Classes e frac-ções de classes têm aspirações conf lituais em relação a muitosdomínios da vida social e também em relação a este do estatutoda terra. Muitas das diferentes aspirações quanto a este últimoponto e das tensões interclassistas daí decorrentes foram suge-ridas nos números anteriores. Senhores contra foreiros, a pro-pósito do peso dos forais; empreendedores (de raiz comerciale industrial) contra as corporações eclesiásticas e a aristocra-cia, por causa da propriedade vincular e amortizada; povos dos

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concelhos contra as aristocracias das câmaras, a propósito dodestino dos baldios e maninhos; ganadeiros contra lavradores,acerca das tapagens dos prédios; capitalistas contra rentistas,a propósito do nível razoável da renda absoluta; Coroa e dona-tários contra comerciantes e agricultores, quanto à questãodas sisas, portagens e direitos alfandegários; credores do Es-tado contra corporações religiosas, por causa da afectação dosbens destas à amortização da dívida pública. Enfim, um quadrocomplexo de tensões e conflitos que só uma análise mais deta-lhada poderia destrinçar sem simplificações nem esquemasapriorísticos. De qualquer modo, um quadro conflitual e contra-ditório, a explicar — conjuntamente com o que se disse antes —o carácter também conf litual do discurso do legislador setecen-tista sobre as situações dominais.

17. No estudo até aqui intentado da história da propriedadeno trânsito do antigo regime para o período revolucionário fo-ram escolhidas três perspectivas, a que corresponderam outrostantos níveis de análise. Uma primeira perspectiva — estranha,em rigor, ao domínio específico da história do direito — foi adas relações sociais de produção. Ela corresponde aos n.os 1 a3, onde se analisa a função da propriedade sobre a terra numsistema de exploração agrária dominado pelo modo de produçãocapitalista, bem como traços institucionais —quanto ao esta-tuto da terra e dos trabalhadores da terra — exigidos pela ins-tauração e reprodução das relações capitalistas. Este primeiropasso da investigação não visa a averiguação da realidade his-tórieo-empírica — embora, neste texto, se tenha «aproveitadoa ocasião» para, em nota, se sublinharem as coincidências entreo modelo geral e os sucessos históricos — no plano doutrinal,legislativo e institucional — verificados concretamente emPortugal. No entanto, do que aqui se trata é de identificar asexigências estruturais, ao nível das instituições, do modo deprodução capitalista na agricultura; ou, dizendo doutro modo,das condições institucionais da instauração e reprodução dasrelações sociais de produção no campo.

Uma leitura desgarrada deste passo da investigação — so-bretudo se se desse muita importância ao facto de a descriçãodo modelo económico-social vir continuamente acompanhadapela referência a «manifestações» concretas no plano dogmá-tico-jurídico ou legislativo-institucional — podia levar a suporque o autor pensava ser possível ligar directamente, atravésde um laço causal-mecanicista, a realidade do nível económicoe desenvolvimentos conceituais. Como vamos ver, a segundaparte do trabalho terá precisamente a virtude de atalhar talleitura do conjunto.

Na segunda parte da investigação (n.os 4 a 9) afastamo-nosdeliberadamente da perspectiva económico-social global e situa-mos a análise no estrito plano das realidades conceituais e dog-máticas. Ê-nos então possível assistir ao nascimento e desen-volvimento dum objecto do discurso dos juristas modernos— a propriedade. Objecto que, até ao século xvm, quase não 2SS

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encontra qualquer correspondência ao nível das realidades ins-titucionais e empíricas concretamente verificáveis. Objecto queé, portanto, uma criação «autónoma» («arbitrária», utilizandoa terminologia da linguística saussuriana) da prática discur-siva dos juristas. E que, como tal, tem o seu desenvolvimentocondicionado, não pelas exigências da realidade social e insti-tucional (significado), mas pela dinâmica e estruturação dasrealidades internas da prática discursiva (significante) — ou-tras realidades conceituais ou discursivas, meios ou instru-mentos de organização do discurso, portadores da prática dis-cursiva (locutores e destinatários). Vimos, no entanto, tambémque este sistema simbólico do discurso, apesar de auto-reguladoe dotado de impermeabilidade e resistência a realidades extra-discursivas, não tem todas as pontes cortadas com a realidadesocial envolvente; e, assim, o facto de a nova realidade concei-tuai e dogmática «propriedade» não ter qualquer tradução noplano das relações sociais a que o direito se vai aplicar vai terconsequências no plano interno do discurso dos juristas. Im-prestável para os desígnios normativos dos juristas práticos(e, note-se, o século xvi é dominado por uma jurisprudênciade vocação essencialmente prática), o conceito moderno da pro-priedade vai refugiar-se num plano apenas teórico, funcionandono discurso como um tópico exclusivamente doutrinal que osjuristas práticos repetem sem convicção e desprovido de qual-quer fecundante no plano normativo. Vivazes, porque maisadaptados à estratégia discursiva da época, estão os conceitose os dogmas da teoria medieval acerca das situações reais.

Suspendendo neste ponto a análise das realidades discursi-vas, enceta-se então um terceiro plano de análise — o das rea-lidades político-estaduais (nos 10 a 16). Aqui, a perspectivadominante da investigação é a de identificar as consequênciassobre a constituição fundiária dos mecanismos da tripla repro-dução das estruturas ideológicas e reprodução das relações so-ciais de produção. Também aqui é realçado o carácter relativa-mente autónomo de cada um dos planos da reprodução, bemcomo o carácter conflitual que decorre da autonomia mútuados três mecanismos de reprodução. Vê-se, no entanto, comoo jogo conjunto e contraditório dos três mecanismos fomentauma situação de ruptura ao nível das relações agrárias de pro-dução, apontando para uma constituição fundiária de tipo ca-pitalista.

A análise das relações sociais de produção desta conjunturade transição dos finais do século xvm não pôde aqui ser sufi-cientemente desenvolvida. No entanto, pode dizer-se que, porum processo de compatibilização cuja natureza tem de ser aquideixada em suspenso, a pressão do nível político-estadual sobrea constituição fundiária — pressão que nós paradoxalmente ex-plicámos sobretudo por uma lógica de conservação das estru-turas do aparelho de Estado — encaminha esta para uma situa-ção semelhante àquela que, na primeira parte do trabalho, foradefinida como a exigida pelo desenvolvimento na agricultura

234 d a s relações capitalistas de produção.

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E então, no plano das realidades discursivas, a «bela ador-mecida» desperta. Viabilizada no plano da prática normativados juristas, encontrando finalmente um espaço sociológico einstitucional onde nidificar, o conceito moderno de propriedadedesperta do seu letargo tópico-retórico e torna-se prenhe deconsequências normativas e ideológicas, algumas das quais porpouco disfuncionais em relação ao novo modelo das relaçõessociais burguesas.

ROTEIRO BIBLIOGRÁFICO

Bibliografia geral sobre história dos direitos reais em Portugal,Eduardo Daily Alves de Sá, Bibliographia iuridica portugalensis, Lisboa,1898-1902, secção 347.2 (e seus subnúmeros) e António M. Hespanha,Introduction bibliographique à Vhistoire du droit et de Véthnologie juridi-que, Bruxelas, 1977, secção vin.2 (versão portuguesa em A. M. Hespanha,A História do Direito na História Social, Lisboa, 1978, pp. 165 e segs.).

Não se encontram, na doutrina portuguesa anterior ao século xix,exposições de conjunto sobre a propriedade, embora se encontrem trata-mentos monográficos dos vários direitos reais particulares. A indicaçãodas fontes bibliográficas pré-iluministas mais importantes está feita nasnotas históricas das Instituições, de Coelho da Rocha (notas V, X, Z, A A,BB), bem como nos vocabulários ou repertórios, de que se salientam:Bento Pereira, Promptuarium juriãicum, ed. cons., Lisboa, 1664; AgostinhoBarbosa, Tractati varii. II. De appellativa, cit.; Manuel Barbosa, Remissio-nes doctorum, ed. cons., 1730; Egídio de Castejon, Alphabeticum iuridi-cum [...], Madrid, 1678, 2 vols.; António Cardoso do Amaral, Liber utilissi-mus [...], cit. Os vocábulos mais relevantes são bona, capella, census,colonus (colónia), dominium, emphyteusis, fundus, hypotheca, laesio,locatio conductio, mercês, possessio, reivindicatio.

No plano da legislação, a despistagem das espécies pode ser feita emManuel Fernandes Tomás, Repertório Geral ou índice Alphabetico das LeisExtravagantes do Reino de Portugal, ed. cons., Coimbra, 1843, 2 vols.; asespécies podem depois ser consultadas nas colecções de legislação de JoséJustino de Andrade e Silva (1603-1702) e António Delgado da Silva (1750--1820). As Ordenações Filipinas poucas normas contêm sobre esta matéria;em todo o caso, aí se encontram disposições sobre reguengos e contratosagrários a eles relativos (n, 17, 22, 52), bens da Coroa (n, 35, 36, in, 40),lesão (in, 13), enfiteuse (IV, 36-41), sesmarias (IV, 43), morgados (IV,100-101), sendo muito útil a consulta dos comentários relativos a estestextos nos comentaristas mais conhecidos: Manuel Alvares Pegas, Com-mentaria aã Ordinationem, 14 vols., 1670-1729 (até in, 2); Manuel Gon-çalves da Silva, Commentaria ad Ordinationem, 4 vols., 1731-40 (até IV,35); e Amaro Luís de Lima, Commentaria ad Ordinationem, 1741 (até 4,79). Os pontos não tocados nas Ordenações são regulados, em geral, porpreceitos doutrinais.

A doutrina iluminista e pós-iluminista está contida basicamente emPascoal José de Melo Freire, Institutiones iuris civilis lusitani, cit., sobre-tudo liv. in; J. H. Correia Teles, Digesto portuguez [...], cit., sobretudovol. in; M. de Almeida e Sousa (Lobão), Notas a Melo [...], cit.; Coelhoda Rocha, Instituições, cit.; em todos eles se podem também colher inter-pretações sobre o direito anterior, sendo, no entanto, necessário estaratento a possíveis reinterpretações daquele direito feitas por estes autores.

Existem muitas monografias sobre temas jurídico-agrários, umasinéditas (ANTT, sobretudo Núcleo do Ministério do Reino, v. g., caixas 356e 357, BNL, Arq. S. Bento, sobretudo nas caixas das comissões parlamen-tares de agricultura), outras impressas (nas Memórias Económicas e nasMemórias de Litteratura da Academia, na Historia e Memórias da Acode'mia, no Jornal de Coimbra, no Investigador Portuguez, etc); uma boalista destas memórias pode ser encontrada em Moses Bensabat Amzalak, 235

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A Economia Política em Portugal. Os Fisiocratas, Lisboa, 1922, e Fer-nando Alberto Pereira de Sousa, A População Portuguesa nos Inícios doSéculo XIX, Porto, 1979 (polic). Ainda nos arquivos, teria muito interesseexplorar toda a correspondência (de câmaras, de particulares) dirigida àsCortes (caixas de correspondência, ordem alfabética dos signatários) e ofundo do Desembargo do Paço, que tinha atribuições importantes no domí-nio agrário, nomeadamente na constituição de morgados, na inspecção decertas culturas, etc. Este fundo encontra-se no ANTT, estando muito des-troçado no período anterior ao terramoto. O mesmo se diga dos fundosnotariais existentes, em geral nos arquivos distritais.

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