o judeu nas cantigas de santa maria de alfonso x

7/23/2019 O Judeu Nas Cantigas de Santa Maria de Alfonso X

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Revista Litteris – ISSN 19837429Março 2011. N. 7

Revista Litteris – www.revistaliteris.com.br Março 2011 – N.7

O Judeu nas Cantigas de Santa Maria de Alfonso X, o sábio

Leandro Mendes ( UFF)1

Quando Alfonso X ascendeu ao trono de Castela e Leão em 1252, ocorreu umfato de grande importância para os judeus que lá viviam: a Espanha muçulmana fora

reduzida apenas ao Reino de Granada. Redistribuir e povoar o vasto território

reconquistado se apresentou como um desafio para o novo monarca. Confrontado com

uma área tradicionalmente mais densamente habitada por muçulmanos e judeus do que

por hispano-cristãos, o Monarca buscou tirar proveito dos recursos intelectuais destes,

agora sob seu comando para promover o "próprio Renascimento" (KATZ, J. Israel. &

KELLER, E., 1987, p. 235). Um dos mais importantes recursos provinha do singular povo judeu. Podemos admitir que eles desfrutavam de maior liberdade sob o comando

de Alfonso X. Todo historiador, cronista, muçulmano, cristão ou judeu, que tratou deste

assunto, testemunhou que o reinado de Alfonso X foi generoso para o povo judeu, como

também para outros grupos étnicos que puderam fazer contribuições profissionais e

intelectuais. (KATZ, J. Israel & KELLER, E., 1987, p. 236).

Alfonso X era conhecido também como o rei Sábio, por sua imensa cultura e por

ter sido grande patrono das artes e das letras. Uma de suas maiores realizações foi umacoletânea de milagres marianos, intituladas Cantigas de Santa Maria.

A idade dourada da história judaica que começou na Espanha Medieval,

alcançou seu ápice durante o reinado de Alfonso X. Como médicos, os judeus não

tiveram nenhum rival. Igualmente, os cristãos ricos e muçulmanos empregaram os

judeus para administrar finanças e coletar impostos. Os judeus puderam, assim, alcançar

posições de grande poder político, econômico, social, e até mesmo da vida religiosa do

país. Com conhecimento superior, científico e empresarial, foram oferecidas posições

de distinção aos judeus, em preferência aos cristãos, e a presença deles passou então a

ser sentida profundamente pela população como um todo.

Os Monarcas espanhóis tinham uma política de proteção através da qual eram

concedidas às minorias, numerosos privilégios. Tal intervenção favorável em nome da

população judaica provocou protestos consideráveis na comunidade cristã. (KATZ, J.

Israel & KELLER, E., 1987, p. 236).

1 Mestrando em Literatura, Universidade Federal Fluminense.





Apesar do consenso de que os judeus estavam comparativamente bem sob o

reinado de Alfonso X, é importante dizer que alguns estudantes judeus modernos sintam

que o tratamento especial era somente um meio para mostrar o início do fim de uma era

de tranqüilidade e tolerância religiosa. Os tratados legais do século XIII só sãomoderadamente favoráveis à população judaica. (LANDMAN, 1943. P. 689-90).

Algumas das estipulações legais de Alfonso X, afetaram a vida diária dos

judeus. Interessado em como os mesmos deveriam passar suas vidas entre os cristãos,

exigia-se que os judeus deveriam ser quietos e organizados para não causar tumultos,

praticando de forma reservada os próprios ritos religiosos. Além disso, um judeu

deveria evitar converter qualquer cristão. Quem violasse esta lei era sentenciado à morte

e perderia as suas propriedades. (Partida VII, Título XXIV, Lei 1 [Scott 1931:1433]).Ao lermos as Sete Partidas, percebemos que a temática no título XXIV, diz

respeito a presença dos judeus no Reino de Castela. Alguns assuntos gerais circulam por

todo o texto jurídico: a) a necessidade dos judeus na administração e nas finanças do

reino não é declarada, mas está nas entrelinhas do texto, pois o monarca os protege

mesmo que de maneira ambígua, já que o texto legal os define como suspeitos de

malignidade; b) a separação de judeus e cristãos se sobressai em quase todos os artigos;

c) há tensões sociais e religiosas no seio da população e, portanto, há que defender os judeus de violência e conversões forçadas; d) há novas percepções sociais e teológicas

sobre os judeus. (FELDMAN, 2009, p. 600).

A lei X, encontrada em As Sete Partidas, decretou que os judeus tinham que usar

alguma marca distintiva para separá-los do resto da população. Também aqui Alfonso X

estava escrevendo para agradar o clero e a população somente? Ou estava, em seus

cânticos para a Virgem, expressando seus sentimentos pessoais, como muitas pessoas

daquele tempo, considerando o povo judeu o maior inimigo da fé cristã? Alfonso X era

um homem de seu tempo e as circunstâncias não escondem nem tentaram esconder seus

sentimentos e preconceitos, que apoiaram seus ideais, supostamente de fé.

De um número total de 427 Cantigas, a figura do judeu aparece em trinta. A

Cantiga 286 narra uma situação na qual dois judeus zombam de um cristão que rezava

em frente do portal de uma igreja.

Este fora da eigreja / fazia eno portal,

Oraçon, jazend' en prezes, /que o guardasse de mal.(Alfonso X, in: METTMANN, 1989. vol. 1 , p. 68)





Enquanto o cristão estava ajoelhado rezando, um cachorro urina em sua perna,

ele fica tão transtornado que não consegue continuar a sua oração, assim se retirando do

local.

Que el fazendo sas prezes, un gran can per y passou E chegou-sse muit' a ele / e atal o adobou

Que ouv' a leixar sas prezes; /e logo sse levantou,Ca pois se sentiu maltreito / non quis mais alá jazer.(Alfonso X, in: METTMANN, vol. 1. 1989, p. 68)

Enquanto isso, dois judeus, que passavam, acham engraçada a situação e

começam a rir dele:

Viu do(u)s judeus que logo / se fillaron a riir, /

do que o can lle fezera /e muito o escarnir (vv. 26-27).

(Alfonso X, in: METTMANN, vol. 1. 1989, p. 68)

Humilhado, o cristão pede a Virgem para o proteger. O milagre se concretiza

quando o cristão que orava fervorosamente à Santa Maria vê o portal da Igreja cair em

cima dos dois judeus, sem machucar mais ninguém.

Sobr' aqueles judeus logo /un portal; mas non tangeu,

a outro senon a eles, /que foi todos desfazer.


Em outras Cantigas, a representação dos judeus é igualmente negativa. Vários

adjetivos e expressões empregadas pelo autor apresentam os judeus como inimigosmortais dos cristãos. Eles são taxados de ―incrédulos,‖ ―pessoas falsas,‖ ―inimigos de

Cristo;‖ e ―falsos crédulos;‖ eles tentam e matam; eles maltrataram e cuspiram nas

imagens de Cristo e da Virgem; e cometem uma série interminável de atos pérfidos

contra a religião do Cristo. Comprovada pelas iluminuras que acompanham os poemas,

os judeus normalmente são descritos como tendo grandes narizes e expressões faciais

feias, que seriam um reflexo da depravação espiritual.





Há quatro Cantigas que ilustram o caráter do judeu como um filho de Satanás.

Cantiga 109 é um exemplo excelente, que narra à história de um homem bom que estava

a caminho da cidade de Salas, as cantigas 3, 108 e 425, também tratam desse tema.

Pera Salas en cam' entrou;quand' a vista do logar chegou,


Enquanto viajava, o homem bom foi atacado por cinco demônios, dois clérigos

testemunham o fato e o salvam de seus atormentadores, levando-o para o santuário da

igreja, lá ele está seguro, e os diabos concordam entre si que a Virgem é capaz de dar

proteção. Enquanto os diabos consideram sua perda, um judeu se aproxima e lhes pergunta por que eles nunca o ameaçam ou a alguém de seu povo. Um dos diabos lhe

responde que os judeus já são propriedade dos Demônios, não há necessidade de atacá-

los:

Un judeu os conjurou por Deusque dissessen porque os

judeus non fillavan. Diss'um demo:

“Ca meus sodes e punnades de me servir ”.


Só aqueles que se batizaram pelos preceitos cristãos é que são suas presas,

Por esto non vos fazemos mal,ca sodes todos nossos sen al;

mai-los que do batismo o sinal tragen,

aqueles ymos percodir.(Alfonso X, in: METTMANN, vol. 2. 1989, p. 35)

Em outro momento, outras características dos judeus são reveladas, como por

exemplo a avareza. Cinco Cantigas falam também da avareza dos judeus, as cantigas 27,

51, 85 e 312. Por exemplo, a Cantiga 25 exemplifica bem esta situação. Nela um cristão

busca um empréstimo, procura um judeu que lhe oferece dinheiro com uma condição:

que o empréstimo seja protegido por algum fiador. Considerando que a palavra do

cristão não é suficiente, este oferece Jesus e a Virgem como co-signatários,





O judeu lle respos assi:

«Sen pennor non será ja feitoque o per ren leves de mi.»

Diz o crischão: «Fas un preito:ir-t-ei por fiador meter

Jeso-Crist' e Santa Maria.» Respos el: «Non quer' eu creer en eles;

mas fillar-chos-ya,.(Alfonso X, in: METTMANN, vol. 1. 1989, p. 118)

O judeu mesmo não acreditando neles, empresta o dinheiro em seus nomes para

que ele saiba que eles servem de seguro contra riscos. O cristão investe o dinheiro

sabiamente e tem sucesso nos seus negócios, mas quando chega à hora de pagar, o

cristão percebe que não poderá honrar o compromisso, pois estava distante para poderencontrar com o judeu e pagá-lo. Ele então coloca dinheiro em uma arca, joga-a no mar,

e pede a Deus que dirija o seu dinheiro na direção correta,

o crischão, que non mentir

quis daquel prazo que posera,ant' un dia que a vir ouvesse,

foi en coita fera;e por esto fez compõer

un' arca, e dentro metia quant' elao judeu render ouv', e diss':

“Ai, Deus, tu o guia”.(Alfonso X, in: METTMANN, vol. 1. 1989, p. 120)

O judeu vê a arca flutuando perto do porto e, ignorante de seu conteúdo, fica

ansioso para abrir. A ânsia para retirar da água é vista como cômica. Aqui, é evidente,

Alfonso X foi extremamente satírico. Primeiro, envia seu criado, também um judeu que

falha ao retirar a cesta da água. A ansiedade do mestre prevendo a possibilidade de

perder a cesta é mostrada com suas palavras duras ao criado: “Sol duas nozes / non

vales...” (vv. 107-108). Ele mergulha então no mar e, depois de uma grande luta,

consegue pegar a cesta.

Quando o judeu examina a cesta e vê que ela contém seu próprio dinheiro, ele

decide escondê-la embaixo da cama e não contar para ninguém. Mas primeiro é

cuidadoso e conta para verificar se está tudo lá,

Des i feze-a levar en a ssa casa,e seus deiros achou en ela.





E mui ben se guardou de seus

conpanneiros que non ll' ouvessend'entender de como os el ascondia;

poi-los foi contar e volver, a arca pos u el dormia.(Alfonso X, in: METTMANN, vol. 1. 1989, p. 121)

O clímax da narração ocorre quando o cristão chega e o judeu lhe pergunta sobre

seu dinheiro. O cristão fica angustiado porque ele sabe que está sendo enganado pelo

prestamista manhoso: “Fiel / bõo tenno que t' ey pagado” (vv. 140-41). Ele adverte o

judeu, então que a Virgem revelará tudo, e que o judeu não é capaz de esconder a

verdade. Uma vez dentro da Igreja, o judeu é confrontado com sua ação maliciosa e da

boca da Virgem vem a acusação direta (vv. 169-74) (ANGLÉS, 1943 p. 253):

A falssidade dos judeus é

' grand e tu, judeu maldito, sabes que fuste receber teu aver,

que ren non falia, e fuste a arc'asconder so teu leito com felonia.


Alfonso X dizendo isso aos seus leitores agrada a maioria dos cristãos. O judeu

se joga no chão em submissão total, acreditando em Maria e em seu Filho, e é

convertido à fé cristã. Uma total e completa reversão — de totalmente mal para

totalmente bom.

Devemos destacar nesse momento que muitas das histórias narradas nas

Cantigas de Santa Maria, foram coletadas e adaptadas para melhor traduzir as intenções

de seus autores. E encontramos na Legenda Áurea uma história parecida com o milagre

narrado na Cantiga 25, onde o judeu seria a vítima. A narração começa com um judeu

emprestando certa quantia de dinheiro a um homem, que jurou sobre o altar de São

Nicolau que pagaria a dívida. Com a demora do ressarcimento, o judeu cobra ao

devedor, que afirma já haver pagado a mesma, o judeu pede que o homem jure em

frente a um Juiz. Vai então ao seu encontro se apoiando em uma bengala, que era oca e

que estava cheia de moedas de ouro. Na hora do juramento o homem pede que o judeu

segure a bengala assim jurando que havia devolvido o dinheiro. Voltando para casa, o

homem é acometido de um sono repentino e adormece em um cruzamento, sendo assim

atropelado e morto e sua bengala destruída, o judeu é chamado ao local e vê que havia

sido vítima de uma artimanha. (VAREZZE, 2003 p. 74).





A Cantiga 348 mostra um exemplo notável de outra categoria: o judeu como

traidor. Neste exemplo, a vítima é provavelmente o próprio Alfonso. A história relata

que ―um rei da Espanha‖ estava tendo dificuldades em financiar suas guerras contra

mouros de Andaluzia. O custo ficou tão excessivo que o rei temia ter que suspendersuas campanhas. Mas numa noite ele sonhou que tinha pedido à Virgem fundos, e Ela

teria respondido que providências seriam tomadas. O Rei teria se dirigido a um lugar,

onde supostamente seria achado um grande tesouro que estava escondido. Apesar de

seus esforços, ele era incapaz de encontrar o local. Um ano mais tarde, quando o rei se

reuniu e se mostrou cansado da guerra contra os muçulmanos, a Virgem apareceu

pessoalmente, mostrando o lugar onde o tesouro estava. A recompensa do monarca foi

assombrosa, pois eram quantidades grandes de ouro, prata, pedras preciosas, e bonsartigos de vestuário. De acordo com a Virgem, o tesouro tinha sido enterrado ali por

judeus:

ca mui gran tesouro /te darei que ascondudo /

jaz sso terra, que meteron / y muy peyores ca mouros (vv. 27-28)


A Virgem lhe explicou que o dinheiro simplesmente existe e que está na mão

dos judeus, um inimigo pior, de fato, do que os mouros, contra os quais a Cristandade

espanhola estava lutando.

Estudar a fundo todas as obras escritas pelo Rei Alfonso X não caberia neste

artigo, pois estamos analisando apenas alguns aspectos referentes a esse grande monarca

e a essa grande obra literária e artística que são as Cantigas de Santa Maria. Mas

podemos ter uma clara visão de quão político foi o Rei Alfonso X, que por um lado protegia e dava privilégios aos judeus, ao mesmo tempo em que tão amargamente eram

descritos em alguns dos versos dessa sua grande obra.

Precisamos nos ater também à sua condição de monarca, que legislava para

todos os povos de seu reino, os judeus entre eles.

Apesar de Rei que deveria exercer a justiça e com isso justificamos leis que

favoreciam os judeus e suas crenças, Alfonso X também não podia virar as costas para a

população cristã, como ele próprio. Grande devoto de Santa Maria e de seu filho Jesus,atendia aos desejos de seu povo em maldizer os judeus. Recorreremos a José Figueira





Valverde, que, em sua análise da Cantiga de número 109 conclui que este tema

demoníaco da coleção de Santa Maria de Salas está em consonância com todas as outras

cantigas deste mesmo tema. Notamos nessa cantiga a preocupação do Rei com o tema

dos judeus, com quem travou contato cultural e econômico.Provavelmente se esse mesmo Rei tivesse compilado um documento de canções

de cunho judaico, com certeza encontraríamos uma grande variedade de canções e de

temas que falariam do povo judeu, de suas maiores conquistas, dos seus maiores

temores. Encontraríamos a apologia de suas crenças e ideologias. Mas não foi essa a

grande obra aqui analisada, nem foi essa a grande obra realizada pelo Rei Alfonso X, o

sábio.





Referências Bibliográficas

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