trovadorismo - cantigas

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Dados Intemacionais de Catalogaçâo na Publicaçâo (ClP) (Câmara Brasileira do Lilro, SB BÍasil) Índice para catálogo sisremritico: I. LiteratuE portuguesa : história e cútica 869.09 Moisê, Massaud Á litêrâturâ portuguesa atÍâvés dos têxtos / Massaud Moisés. - 33. ed. rev e âmpl. -Sáo Paulo: Cultrix,2012. tsBN 978-8s-3 16- 1r 54-4 l. Litemtum portuguesa - Históriâ e crÍtica l. Titulo. l1-09971 cDD-869-09

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Page 1: Trovadorismo - Cantigas

Dados Intemacionais de Catalogaçâo na Publicaçâo (ClP)(Câmara Brasileira do Lilro, SB BÍasil)

Índice para catálogo sisremritico:

I. LiteratuE portuguesa : história e cútica 869.09

Moisê, MassaudÁ litêrâturâ portuguesa atÍâvés dos têxtos / Massaud

Moisés. - 33. ed. rev e âmpl. -Sáo Paulo: Cultrix,2012.

tsBN 978-8s-3 16- 1r 54-4

l. Litemtum portuguesa - Históriâ e crÍtica l. Titulo.

l1-09971 cDD-869-09

Page 2: Trovadorismo - Cantigas

TROVADORISMO

Page 3: Trovadorismo - Cantigas

Preliminares

A primeira época da história da LiteratuÍa Portuguesa inicia-se em 1198 (ou

1189), quando o trovador Paio Soares de Taveirós dedica uma cantiga de amor e es-

cárnio a Maria Pais Ribeiro, cognominad a A Ribeirinha, favorita de D. Sancho I, - e

finda em 1418, quando D. Duarte nomeia Femão Lopes para o cargo de Guarda-Mor

da Torre do Tombo, ou seja, conservador do arqüvo do Reino. Durante esses duzen-

tos anos de atividade literária, cultivaram-se a poesia, a novela de cavalaria e os

cronicões e liwos de liúagens, nessa mesma ordem decrescente de importância.

A Poesia

De origem ainda obscura (quatro teses têm sido aventadas: a arábica, a folclórica, a mé-

dio-latinista e a liúrgica), o lirismo trovadoresco instalou-se na Península Ibérica por influên-

cia provençal. Na transladação, softeu, como seria de esperar, o impacto do noYo ambiente e

alteÍou algumas de suas característiças. Provavelmente, a púncipal modificação teúa consis-

tido no recrudescimento do aspecto platonizante da confidência amorosa: danho do trovado-

rismo português, o ponto mais alto do pÍocosso sentimental situava-se arÍe§ de a dama atendçr

aos reclamos do apaixonado. Duas etam as espécies de poesia trovadoresca: a lírico-amorosa;

expressa em duas formas, a cantiga de amor e a cantiga de amigo; e a saliÍiça" expressa na

cantiga de escámio e de maldizer. O poema recebia o nome de "cantiga" (ou ainda de "can-

ção" e "cantar") pelo fato de o lirismo mediçval associar-se intimamente çom a música: a

poesia eru cantada, ou entoada, e instrumentada. LetÍa e pauta mu§ical andavam juntas, de

molde a formar um corpo único e indissolúvel. Dai se compreender que o texto soziúo, como

o temos hojÇ, apenas oferece uma incompleta e pálida imagem do que seriam as cantigas

quando cantadas ao som do instrumento, ou seja, apoiada§ na pauta musical.

Todavia, dadas as circunstâncias sociais e culturais em que essa poesia circulava, perde-

ram-se numerosas cantigas bem como a maioria das paulas musicai§. Da§tas, somente resta-

ram sete, pertencentes a Martim Codax, hovador da época de Afonso III (fins do século XIII).Recentemente (1991), Hawey L. Sharrer comunicou a descobarta da notação musical de sete

canügas de amor de D. Dinis. O acompanhamento musical fazia-se com instrumentos de cor-

da, sopro e percussão (viol4 alaúde, flauta, adufe, pandeiro, etc.). O espótio hovadoresco

conserva-se em "cancioneiros" (coletâneas de cantigas), dos quais os mais valiosos são o

Cancioneiro da Ajuda (composto nos fins do século XIII, úlrante o reinado de Afonso III,apenas enaerra cantigas de amor), o Carcioneiro da Vaticana (côpia ítaliana do século XVIsobre original da centuria antarior, contém as duas espécies de poesia trovadoresca) e o Caz-

cioneiro da Biblioteca Nacional (taÍÍ,bém chulaado Colocci-Brancrri, em homenagem a §çus

dois possuidores italiaros, é cópia italiana do século XM sobre original do século anterior, e

abriga trovadores da época de Afonso III e D. Dinis e cantigas das duas espécies). Recebiam

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Page 4: Trovadorismo - Cantigas

o líhJro & trovadores os poetas que compunham, cantavam e instrumentavam suas próprias

carrtígas. Jogral çhamava-se o bobo da CoÍte, o mimico, o bailarino; ৠvezes tamHm compu-

nna. irgrel ãra o trovador profissional e, via de regr4 andarilho ' Menestrel, o mÍtaico' O rdio'

ma empregado era o galaico-português.

Cantiga de Amor

Contém a corfissão amorosa do ftovadot que padece poÍ Íequ€§taÍ uma dama inacessi-

vel, em consequência di sua condição social superior ou de ele afastar para longe a preocupa-

ção com a sua posse, impedido pelo sentimento e§piritualizânte que o domina'

PAIO SOARES DE TAVEIROS

Como primeiro exernplo dessa forma lírico-amorosa, tomgmos a cantiga corn que Paio

Soares de Taveiós (seculos XII-XII) deu começo ao hisórico da Literatura Portuguesa' a

qual, no dizer de Carolina Michaélis de Va scorrçelos (Cancioneiro da Á1'uda' d' crit' e com'

por..., 2 vols., Halle: a.S., Niemeyer, 1904: vol. I, p. 82n), parece "cheia de desigualdades"; e

:'há ro fi- "sp"ço

br*"o para mais uma estrofe' - O princípio da 2r está eüdênternente vi-

ciado nos versos l-4. A restituição é todavia diffcil- Transpondo o ail final do verso 9 para o

10, de sorte que gaúemos para esta a sílaba e a rima que lhe faltam, fica ainda aquela sem a

consoante pÍçcisa, em e/lr, e sem o número devido de sílabas":

Cantiga

No mundo non me sei PaÍelhâ,mentre me for como me vdr,

cajá moiro por vós - e ai!

mia seúor branca e vermelha,queredes que vos retraiaquando vos eu vi en saia!

Mau dia me levantei,que vos enton não vi fea!

E, mia senhor, dês aquel di', ai!

me foi a mi mui mal,

e vós, filha de don Paâi

Moniz, e ben vos semelha

d'haver eu por vós guarvai4

pois eu, mia suúor, d'alfaianunca de vós houve nen heivalia düa correa.

(Cancione o da Ajuda, ed- cit.,

vol. I, p. 82, cantiga 38.)

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Page 5: Trovadorismo - Cantigas

O examç dos aspectos formais da cantiga de Paio Soares de Taveirós nos pode ensinarquanto a certos temos de técnica poética empregados durante a florescência troyadoresca. Aestrofe recebia o nome de cobra, cobla ot rallro. O vefio donominava-se palanra, e quando

sem rima (como se afigura o segundo verso da segatda cobra'. "me foi a mi mui mal"), pala-vra-perduda. () encadeamento (ou "enjambement") entre dois versos, oconido entre o quintoe o sexto da primeira coàra ("queredes que vos retraia quaÍrdo vos eu vi em saia!"), era desig-nado pelo vocábúo atafnda. Reparc-se que a cantiga, formada de duas oitavas, não possui

esaibilho ou refrão: por isso, chama-se cantiga de maestria." A presento cantiga, que apenas o Cancioneiro da Ajuda regista, sob o no 38, é de equí-

voca classificação porquanto apresenta simultaneamente elementos líüço-amorosos o satíri-cos. O trovador nos dá a impressão de encobrir, sob o manto da rcverência imposta, por sua

condição de cavalheiro em "serviço amoroso" de uma dama, suas setas embebidas em sarcas-mo ou despeito. Por essa causa, e pelo fato de o texto ainda apresentar várias dúvidas aos filó-logos, a canção vem resistindo valentemente à sondagem dos estudiosos, que continuam a

discordar quanto à sua interFetação. Decerto, algo de sua peregrina e persistente beleza resul-tará justamente do caráter dúbio assumido pelo sçntimento do trovador em relação à cortesã

de D. Sancho I. Em vista disso, as observações subsequentes objetivam tão-somente aflorar a

questão e encaminhar o leitor para o âmago dos problemas colocados pela cantiga, e, ao mes-

mo tempo, de aspectos gerais da lírica trovadoresca.

Embora a çantiga toda sugira interpretações contÍoversas, as maiores dificuldades, tendopor base a lição de Carolina Michaélis de Vasconcelos, residem nos seguintes pontos: l. "bÍan-ca e vermelha"; 2. "retraia"; 3. "en saia!"; 4. "filha de don PaaiÀ{oniz"; 5. "por vós".

1. "branca e vermelha" - Dependendo de a vírgula estar onde a situa a romanista supra-

citada, ou de transferir-se para depois de "mia seúor", indicará: a) a alvura e o rosado da tezfeminina (ou a cor ruiya de seus çabalos), ou b) a cor da "guawaia", vesturírio de Corte e de

luxo, provavelmente de "cor escarlate" (Carolina Michaêlis de Vasconcelos, "Glossário do

Cancioneiro da Ajuda", Revista Lusitana,Lisboa, vol. XXIII, no l-4,1920,p. 44).

2. "retraia" - Do verbo "retraer" com o significado de: a) "rctratar", "descrever", "rela-tar", ou b) "afastar-se de", "retirar-se de", "desviar-se de", 'tecuaf', ou c) "desistir de", "re-nunciar a".

3. "en saia!" - Significa: a) "estar sem manto", "ser vistâ na inlimidade", ou b) "estardo luto".

4. "filha de don Paai,Moniz" -A palarra "filha" tem sido considerada a) substantivo oub) forma verbal, do verbo "filhar", que significa "tomar de presente", "apropriar-se".

5. "por vós" - Significaria a) "poÍ intermédio de vós", ou b) "por amor de vós", "paravós", ou c) "em troca de vós", "em substituição da yossa pessoa".

Em face de tais dificúdades, como interprelar a cantiga? Creio que a falta da terceiracoàra (que na maioria dos casos existia) manterá a questão sempre aberta, sem contar as obs-curidades em paÍe assinaladas. Todavia, talvez coubesse sugerir a seguinte hipótese, ,r2e,'a-

menÍe com o int]uito de convidar o leitor a enhar no debate e buscar a sua interpretação: os trêsprimeiros versos, de sentido transparente, contêm o lamento passional do trovador: "nãoconheço ninguém no mundo igual a mim onquanto me acontecq o que me acontacç, pois eumorro por vós - ai!". Os três vgrsos seguintes possivelÍnente expressem algo como: "miúasenhora alva e rosada, quereis que vos descreva quando vos vi na intimidade!"; ou "miúasenhora alva e rosada, quereis que vos lembre que já vos vi na intimídade2" -E o frnal dà cobradiria: "mau dia aquele (em que vos vi sem manto), pois vi que não sois feia". A segunda coára

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Page 6: Trovadorismo - Cantigas

encerraria o seguinte: "o, miúa senhora, desde aquele dia, ai!, venho sofrendo dum grande

mal, € enquanto vós, filha dç dom Paio Moniz, julgais forçoso que eu vos cubra com a 'guar-vaia' (ou: "que eu vos ofereça uma 'guarvaia' para que vós cubrais as formas belas que

entreyi quando ostiíyeis sêm manto"), eu minha seúora, de vós nunca recebi a coisa maisinsignificante".

PoÍtanto, quer-me parecer que o trovador, havendo sido beneficiado com os favores da

dama, padece por se recordar do bem recebido e do mal que lhe ficou na lembrança. Mas tam-

bém padece por despeito, quem sabe resultante de a dama se lhe tomaÍ antip{ática ao âdmitirque agora, visto ter sido promàvida à categoria de favorita do Rei, em meÍecedora do mantoda Corte. Movido pelo Íessentimento, insurge-se contra a circunstância de ela pretender a

"guarvaia" por vaidade e petulância, ou para com a yestimenta apagâr a memória das antigas

concessões (ou seja, ter-se deixado ver "en saia" pelo trovador). E insurge-se ainda porque de

A Ribeirinha janais recebera prosonto algum, não os favores, que já os merecera, mas os be-

neficios que, como dama alçada ao nivel regio, ela poderia conceder-lhe.

O caníter plangente, sobretudo dos primeiros versos, evidencia desde logo que se trata do

um cantar de amor Mas a indiscriçâo do trovador ao revelar que a dama se lhe mostrara "ensaia", e a alusão à "guarvaia" (através da qual o apaixonado parece recriminar à dona, aindaque veladamente, o szu desejo de ser paga pelos favores concedidos) permitem supor umà-vontade próximo da ironia ou do desrespeito que, alérn de patentear o grau de intimfulade

entre o trovadoÍ e a dama, não se compadece com as estritas normas do amoÍ cortês. Este,

postulava o máximo de subserviência e yeneração, e o emprego duma linguagem sutil que

antes disfarçasse que esczmcarasso os çonflitos sgntimontais do trovador. Em sum4 seria umescá,ruio de amor (ver, mais adiante, a cartiga de escáraio e maldizer\.

D. DINIS

A cantiga seguinte, sendo inequivocamente de amor, ressaltará, poÍ contÍaste, o que nocantaÍ de Paio Soares de Taveirós constitui licença poética tomada de empréstimo à cantiga de

escámio. Para tanto, recorremos ao rei D. Dinis (1261-1325), protetor de poetas, amante da

cultum (fundou a Universidade de Lisboa, primeira do País, em 1290) e trovadoÍ dos maisinsignes e o que mais cantigas escreveu (são-lhe atribúdas 138 composições, das quais 76 de

amor, 52 de amigo e l0 de maldizer). A cantiga selecionada, uma das mais densas dentre as

que elaborou o Rei-Trovador, aparece registrada no Cancionebo da l/aticana, sob o nn 97, e no

Cancioneiro da Biblioíeca Naciondl, sob o ÍP 4591

Cantiga

Hun tal home sei eu, ai ben talhada,que por vós ten a sa morte chegada;

vede quem é e seed'en nenbrada;eu, mia dona.

Hun tal home sei eu que preto s€nte

de si morte chegada certamente;vede quem é e venha-vos en mente;

eu, mia dona.

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Page 7: Trovadorismo - Cantigas

Hun tal home sei eu, aquest'oide:que por vós morr' e vc'lo en partide,

vede quem é e non xe vos o'bride;

eu, mia dona.'

(J. J. Nunes, Canfigas d'Amor, Coimbra'.

lmprensa da Universidade, 1932, pp. 93-94.)

eo "ontna.io

a"L paio Soares de Taveiós, a pres€nte cantiga não ancerra maiores pro-

bl€mas de interpÍetação textual. Trata-se de wnz cantiga de refrão, visto rep€tir-se o mesmo

verso ('eq mia dona") no final de cada coóra. Os vemos da primeira coóra recorrem, com al-

terações formais que não do sentido, nas coàras seguintes: esse processo repetitivo denomina-

-x poralelismo, e c€fr,tigàs paralelísticas (o! cossarra§) os po€mas que o empregam. Ambos, o

,útão e o paralelismo, constituem recursos típicos da poesia popular. Ob§erve-se, especial-

meirte se utilizarmos o Íecurso da leitura à meia-voz, que o sentimento do poeta evolui como

rm lamento ininteÍrupto e cÍescente, cujo ponto máximo se localiza no taftão ü íltima cobra-

E como o seu torturante sofrimento amoroso (a coira de amor) se tomou obsessivo, pois que

ÊrÍo duma causa única s p€Ísistente (a indiferença ou a inacessibilidade da bert-amada), o

tpvadoÍ somente encontÍa, para expressá-lo, as mesmas ou eqúvalentes palalras. Assim, a

rÊiteração paÍalelística decone do póprio caráter exclusivista da paixão que inunda o poetâ.

Repare-se que o tormonto sentimental prcssupõ€ a não corÍespondência ur.orosa da dona oüle

o despeito do trovador. O clima geral da cantiga, de submissão e revelência, deixa-se perpassar

por uma aura de espiritualidade platônica que, porém, não dissimula o contomo erotizante do

4elo masculino: a coira é montal e fisica a um ú tgmpo, ma§ o confidente se esmera çm subli-

máJ4 em atenuar-lhe os matizes sensuais s acentuar-lhe os traços que denotam ansiosa expgc-

afiva de bens ultraterrenos, Daí rcsulta uma cantigâ de alta tensâo tírica e "verdade" emocio-

nal, perante a qual apenas o leitor distraído ou insensível Permanecerá frio ou insatisfeito.

Cantiga

En gran coita, seúor,que peior que mort'é,vivo, per boa fe,e polo voss'amor

esta coita sofr'eupor vós, seúor, que eu

Vi polo meu gran mal,e melhor mi será

de morrer por vós jáe, pois meu Deus non val,

t bea talhada = formt:s; seed'en nenbrada : Tembrai-vos disso; preto = petloi venho+os en menle :tod€ em mente; 44rart'oide = oLi isto; voJo en partide = afa§ai-o dísso (en : d4 lnorte); non xe,rosoóride = não vos olvideis.

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Page 8: Trovadorismo - Cantigas

Essa que Vós fizestes melhor parecer

de quantas sei, ai Deus, fazede-me-a veer,

se non dade-me a moÍe'

Ai Deus, que me-a fizestes mais ca mim amar,

mostÍade-me-a u possa con ela falar,

, se non dade-me a morte.'

(Bernal de Bonaval , ibiden, P' 423 ')

Cantiga de Àmigo

Contémaconfis§ãoamoÍosadamulher,geralmentedopovo(pastoÍ4campone§a,9tc.).sua coira na§ce de entreteÍ amoÍes com um trovador que a abandonor:, dernora para chegar' ou

esrí no serviço militar (/ossado). A moça dirige-se à mãe, às amigas' aos pássaros' às fontes'

aa Àor"r, "t"., -

qr"a compõ€ ainda é o trovador' Ao invés do idealismo da cantiga de amor'

" d"

"-i-go ,"rpir" r"alismo em toda a sua extensão; daí o vocábul o amigo sigtifrcar twmora-

do e amànte. Corfiormeo lugar ou as circunstância§ em que tran§corre o €piúdio sentimsntal'

a cantiga recebe o tít rto deianriga de romaria' serranilha' patoreia' morinha ot batrarola'

ba aã ot bailia, alba ou alvorada.Yrstasno seu conjunto, essas configurações da cantiga de

amigo tÍaduzem o§ Ytírios momçntos do namoro, desde a alegria da e§pera ou do diálogo sntÍe

-oç-u, ""o"" do, ,"us amores, até a tri§teza pelo abandono ou a separação forçada'

AIRASNUNES

Tomemos para exemplo a óaiíada de Airas Nunes, trovador galego da §egunda metade

do século XIII, coevo de Afonso X, o Sábio, e de D. Sancho M dos mais inspirados de toda a

lírica medieval. Dentre as composições que legor1 a escolhida para figurar nesta antologia

constitui d€ceÍto a sua obra-prima. A cantiga é conhecida por dois rcgistÍos' no Cqncioneiro

da l/aticana, sob o tP 462, ew Cancioneiro da Biblioteca Nacional' sob o ÍP 818:

Cantiga

Bailemos nós já todas três, ai amigas,

so aquestas avelaneiras frolidas,

e quen for velida, como nós, velidas,

se amig'amar,so aquesta§ avelaneiras frolidas

vemí bailar.

Bailemos nós já todas três, ai irmanas,

so aqueste ramo destas avelanas,

+ er, = por isso, nisso ; se tos en ptaer for = se tiverdes prazer nisso'

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Page 9: Trovadorismo - Cantigas

e quem for louçanq como nós, louçanas,se amig'amar,

so aqueste ramo destas avelanas

verrá bailar.

Por Deus, ai amigas, mentr'al non fazemos,so aqueste ramo fÍolido bailemose quen ben parecer, como nós parecemos,

se amig'amar,so aqueste ramo so lo que nós bailemosverrá bailar.'

(J. J. Nunes, Cantigas d'Amigo,3 vols.,Coimbra, Imprensa da Universidade, 1926-1928, vol.II, p. 235.)

Dado o seu conteúdo esvoaçante e alegÍe, esta cantiga fixa um raro momento festiyo navida sçntimental da moça do povo. A beleza diáfana do poema parece resultar da melopeiaprimaveril que norteia a çonfidência feliz das bailadeiras. A simplicidade da sintaxe e do pró-prio ritmo não dove confundir: o virtuosismo do trovador reside justamente em saber atingir anaturalidade da alegriajuvenil e descontraida" e fimdamenuila num esquema rítmiço que pa-

rece emergir do ato mesmo de respirar ou de cantar. A análise de alguns pontos do poema re-vela esse virtuosismo de poeta inspirado e seúor dos segredos de offcio: são hês as bailadeiras ("Bailemos nós já todas três, ai amigas"), uma para cada cobra; e a inserção dos doisversos curtos (quadrissílabos) logo após o 3e e o 50 obedece à simetria existente entre seremtrês as moças e tÍês as coó,'as integrantes da cantiga. Em veÍdade, cadajovem atua como so-lista de cada uma das coáras, e todas reúnem suas voz€s em coro nos versos mgnores, que

assim funcionam çomo verdadeiros estribilhos. Observe-se que a cantiga possui nitida fisiono-mia descritiva: as bailadeiras não perscrutam o seu sentimento, apenas o relatam, como pes-

soas do povo que são, sensíveis, mas incultas, viçosas, mas primitivas. Para o leitor dos nossos

dias, deve impressionar que o trovador haja conseguido exprimir de modo Ílo flagrante e su-gestivo a psicologia da mulher de humilde condição, graças à experiência direta do fato (otrovador ssria o arrigo a que as bailadeiras se reportam) e um alto poder de peÍsonificaçãodramática. Em suma, a cantiga de Airas Nunes constitui um inesquecível momento de belezamusical e emocional, que ressoa em nós muito depois de enunciado o derradeiro verso.

NT]NO FERNANDES TORNEOL

A segunda cantiga de amigo que escolhemos para integÍar a pÍesentç antologia pertençea Nuno Femandes Tomeol, trovador da primeira metade do século XIII. Dos mais autênticose talentosos po€tas do tempo, escreysu 13 cantigas de amot uma de escrímio e 8 de amigo, dasquais se considera obra-prima a que se segue, legistrada no Caxcioneiro da l/dticana, sob one 242, e no Cancioneiro da Biblioteca Nacional, sob o rP 641l.

* so : sob; aquesÍas = estasl yelida = foúnosa| verrá : vitâ; louçana = foÍrlosa: mentr'al = fientre al: enquanto outrâ coisâ; quen ben Wrecer = qtrcm fot belà-

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Page 10: Trovadorismo - Cantigas

Cantiga

Levad', amigo, que dormides as maúãas frias;

todalas âves do mundo d'amor dilan:leda m'and'eu!

Levad', amigo, que dormide'las frias maúãas;

todalas aves do mundo d'amor cantavan:

leda m'and'eu!

Todalas aves do mundo d'amor dizian;

do meu amor e do voss'en ment'avian:

leda m'and'eu!

Todalas aves do mundo d'amor cantavan;

do meu amor e do voss'i enmentavan:

leda m'and'eu!

Do meu amor e do voss'en ment'avian;

vós lhi tolhestes os ramos en que siian:

leda m'and'eu!

Do meu amor e do voss'i enmentavan;

vós lhi tolhestes os ramos en que pousavam:

leda m'and'eu!

Vós lhi tolhestes os ramos en que siian

e lhi secastes as fontes en que bevian:

leda m'and'eu!

Vós lhi tolhestes os Íamos en que pousavam

e lhi secastes as fontes u se banhavan:leda m'and'eul'

(Ibidem, vol. lI, PP. 7 l-72.)

Apesar da atmosfera amoros4 não se trata de uma a/áa, visto que lhe faltam, como as-

sinala Giuseppe Tavani ('Motivi dçlla Canzone d'Alba in una Cantiga di Nrmo Femandes

Tomeol'l, ,4rzal4 Napoli: III, 1, 1961, pp. 199-205), os ingredientes próprios, como a recorÉn'

cia do voc.ábulo "alba" no estibilho e a sentinela (ou garla, na alba proveÍrçal), que acordava os

amantss, avisando-os de qualquer perigo, sobretudo a pre§onça do marido ciumento. A cantiga

* lerad=levàrú.ai ledq = contente; i = aí, nos celnlosi en mefit'avidn= traziam na mente (= referiam-se

a)i enmentavak = eq$iv.,le,i.te a en ment' avia ; siror? = pousavam.

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Page 11: Trovadorismo - Cantigas

encerTa o monólogo da moça ao amanhecer, desperta pelo canto da passârada: a sua alegria deamar paÍec€ comrmicar-sc às aves ou nelas encontrar a sua expressão musical, enquanto exortao amante a levantar-se e a comungiü com ela da festiya revoada que a cobÍe e a encanta. Ausen_tes as notaçõ€s eÍóticas a cantiga "yersa sobre um tema tradicional, popular ainda no presenteseculo na Galiza e em algumas vilas portuguesas,, (Carolina Michaêlis de Vasconcelos, Cazcio_neiro da Ajuda, lvol.ll, p. 3,14) e constitui..das coisas mais prodigiosas do nosso antigo lirismo"@odrigues Lapa, Zr'ções de Literdtwq Portuguesa, Época Medieval, 3. ed., Coimbra, CoimbraEÀ., 1952, p. 144). O contentamento da moça afigura-se resultar mais da lembrança do afetovivido, e porventura àcabado, que da continuidade da relação amorosa no dia novo que despon_ta" Assim, o secar das fontes e o tolher dos ramos insinuam o termino do sentimento entre o parde namorados, embora o estribilho, assinalando a persistência da alegria da jovem, acentue aimpressão de que o amor permanecení apesar de o bem-amado haver cortado os ramos e secadoas fontes. A aliciante atmosfera lírica e de flagrância sentimental origina-se precisamente dosimbolismo polivalente que emoldura o monólogo da apaixonada após uma noite de amor.

D.DIMSDas numerosas cantigas de amigo compostas por D. Dinis, salienta-se úma que tem tido

espaço obrigatorio nas antologias do vem.áculo, e que aparece r€gislrlda to Cancioneiro daYaticana, sob o tf l7l, e io Carcíoneirp do Biblioteco Nacional, sob o na 533:

Cantiga

-Ai flores, ai flores do verde pino,se sabedes novas do meu amigo?

ai,Deus,eué?

Ai flores, ai flores do verde mmo,se sabedes novas do meu amado?

ai,Deus,eué?

Se sabedes novas do meu amigo,aquel que mentiu do que pôs comigo?

ai,Deus,eué?

Se sabedes novas do meu Írmado,aquel que mentiu do que mi ájuÍado?

ai,Deus,eué?

- Vós me pÍeguntades polo voss,amigo?E eu ben vos digo que é san'e vivo:

ai,Deus,eué?

Vós me preguntades polo voss'amado?E eu ben vos digo que é viv'e sano:

ai,Deus,eué?

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Page 12: Trovadorismo - Cantigas

E eu ben vos digo que é san'e vivoe seerá vosc'ant'o Prazo saído:

ai,Deus,eué?

E eu ben vos digo que é viv'e sano

e seerá vosc'ant'o Prazo Passado:

, ai, Deus, e u é?'

(Ibidem,PP. 19-20.)

Esta cantiga, das mais belas de quantas escreveu o Rei-Trovador, pode ser considerada

de múltipla classificação: tmta-se de uma tenção, isto é, caÍftíga dialogada, porquanto a moça

interroga o "verde pino" nas quatro primeiras coàras, e o "verde pino" the responde nas res-

tantes. Entretanto, seria também u]í,ra Pastorela, çantiga protagonizada por uma pastora: a

circunstância de o diálogo estabelecer-se em pleno campo permito §upor que ajoYem pertence

àquela condição, e a cantiga, portanto, ao tipo das Pt storelas. Ao mesmo tempo, o ritÍno, â

musicalidade aceterada, resultante dos decassítabos terminados por reftãos em versos redon-

dilhos (de cinco sílabas), permite que igualmente se classifique a cantiga como bailada' Na

verdade, estadam ftente a frente duas solista§; a primeira, que interroga as flores, e a segrmda,

que faz as vezes delas para a respo§ta; ambas sç aliariam às demais joYens presentes para en-

toar o refrão, em que todas instilariam o mesmo suspirar de amor pelo bem-amado ausente'

Por isso, dependendo da perspectiva em que se coloca o leitor, podemos rotular a cantiga de

D. Dinis de tenção ov pastoreld, bailqda. ()bsewem-se, ainda, os seguintas aspecto§: 1) o

caráter festival e cantante dos decassílabos parece quebrar-se com o grito lancinante e deses-

perado, expresso no rcfráo 2) o paralelisn o rigoroso, que corresponde, como já sabemos, a

uma tendência típica da poesia popular; 3) o primeiro verso da terceira coól4 repete o ultimo

da segunda, e o primeiro da sétima Íepete o segundo da sexta. apenas mudando a derradeira

palarra pelo sinônimo equivalente ('amado"/"amigo") ou altemando a posição dos ú[timos

vocábulos ("viv'e sano"/"san'e vivo"): este proce§so de composição poética rec.ebia o nome

da leixa-pren, " deíxa-pteÍrdç" .

Cantiga

Amiga, muit'á gran sazon

que se foi d'aqui con el-reimeu amigo, mâis já cuideimil vezes no meu coragon

que algur morreu con pesar,

pois non tomou migo falar.

Porque tarda tan muito lá,

e nunca me tomou veer,

* pí o-pitheiÍo;u-onde;pór -combinor; san'evivo: sàoevi,vo:'e seen)vosc'ant'o prazo saído

/prazo passado : e esÍaÍá convosco quando terminar o prazo do serviço militar.

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Page 13: Trovadorismo - Cantigas

amlgâ, sl veja praz eÍ,mais de mil vezes cuidei já

que algur morreu con pesar,pois non tomou migo falar.

Amiga, o coraçon seu

era de tomar ced'aqui,u visse os meus olhos en mi;e por en mil vezes cuid'eu

que algur morreu con pesar,pois non tomou migo falar..

(D. Dinis, ibidem, p. 6.)

Cantiga

Oi' oj' eu uma pastor cartar,du cavalgava per uma ribeira,e a pastor estava i senlheira,e ascondi-me pola ascuitare dizia mui bem este cantar:"So lo ramo verde frolido

vodas fazen a meu amigoe choran olhos d'amor."

E a pastor parecia mui bene chorâva e estava cantandoe eu mui passo fui-me achegandopola oi'r e sol non falei rem,e dizia este cantar mui bem:'âi estominho do avelanedo

cantades vós e moiro eu e peno:e d'amores ei mal."

E eu oi'-a sospirar enton,e queixava-s' estando com amorese fazi'uma guirlanda de flores,des i chorava mú de coraçone dizia este cantar enton:"Que coita ei tan grande de sofrer:

* muit'á grun sazon=hâalgmtempo; algur: algum lugaq jgo = comigo'sivejapruer=seerrc.trrttas,'tisfaço; coraçon : desejo.

3l

Page 14: Trovadorismo - Cantigas

amar amigu'e non ,ousaÍ veer!e pousarei so I'avelanal."

Pois que a guirlanda fez a pastor,

foi-se cantand', indo.s'en manselinho,

e tomei-m'eu logo a meu camiúo,ca de a nojar non ouve sabor,

e dizia este cantar ben a paslor:

'?ela ribeira do rio cantando

ia la virgo d'amor: quen amoÍes

á como dormirá, ai bela frol!'*

(Airas Nunes, úüezr, pp. 233 -23 4.1

Cantiga

Levou-s'a louçan4levou-s'a velida;vai lavar cabelosna fontana fria,

leda dos amores,

dos amores leda.

Levou-s'a velida,levou-s'a louçana;

vai lavar cabelosna fria fontana,

leda dos amores,dos amores leda.

Vai lavar cabelos

na fontana fria;passa seu amigo,que lhi ben queri4

leda dos arnores,

dos amores leda.

* du: enquanto, quandoi i: ait se lheira= sozjÍúú; pola:lIÉ(aa; a§@itü = escutaq so = sob;l'odas

= festâs;pasro : devagar; oi'r = ouvir; so, = como de coshrme; renr = nada; esrorn irrro = Éssaro pequeno;

avelanal, a,el.oaedo = plantação de aveleiras; det i = eilqrtffio issn.; de coroço, : do flmdo do coração;

corla: sofrimento; po is que - &pois qÉ:, monselinho: de mansiúo, devagag ca & a rajar rutn ouve

saáor = pois não tiúa prazer algum em vê-la sofrer; v!,Bo : virBem, doÍ|zf'W ti: leÍi-

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Page 15: Trovadorismo - Cantigas

Vai lavar cabelosna fria fontana,passa seu amigoque a muit'ama,

leda dos amores,dos amores leda.

Passa seu amigo,que lhi ben queria;o cervo do montea augua volvia,

leda dos amores,dos amores leda.

Passa seu amigoque a muit'ama;o cervo do montevolvia a augua,

leda dos amores,dos amores leda.'

(Pero Meogo, ibidem, pp.375-376.)

Cantiga

Ondas do mar de Vigo,se vistes meu amigo!

e ai Deus, se verrá cedo!

Ondas do mar levado,se vistes meu amado!

e ai Deus, se verrá cedo!

Se vistes meu amigo,o por que eu sospiro!

e ai Deus, se verrá cedo!

Se vistes meu amadopor que hei gran cuidado!

e ai Deus, se verrá cedo!'*

(Martim Codax, iá idem, p. 441.)

* lançana = fo,íaosa; wlida - fotaosa; fontana = forllei leda = c(,.tterrte; augua = ág{r.,,* yerni = yifá:, levado: encapelado, cheio de ondas.

JJ

Page 16: Trovadorismo - Cantigas

Cantiga de Escárnio e Maldizer

As diferenças entrc estas duas modalidades irmâs da sátira trovadoresca residiriam, se-

guurdo e "Arte de Trovar " que antecede o Cancioneiro da Biblioteca Nacional, no seguintei a

cantiga de ascrímio conteÍia sátira indireta, realizada por intermédio do sarcasmo, da zombaria

e de uma linguagem de sentido ambíguo; a cantiga de maldizer encerraria sátiÍa dircta, agres-

siva, conhrndente, e laaçaria mão duma linguagem objetiva e sem disfarce algum. Entretanto,

tal distinção nem sompro se toma patente, pois volta e meia topamos com cantigas que mistu-

ram os dois processos. A maior parte, porém, das cantigas satíricas era de maldizer.

PERO GARCIABURGALÊS

Pam representar esse tipo de poesia trovadoresca, escolhemos inicialmente uma compo-

sição de Pero Garcia BuÍgalês, Íovador galego da segtmda metade do século XIII, que escre-

veu numerosas cantigas de amor, de amigo e de escámio e maldizer. A cantiga selecionada

paÍa representaÍlhe o talento constitui, sem dúvidÀ um dos momentos mais altos a que subiu

a sátira trovadoresca. Registram-na o Cazc ioneiro da l/qtkanq, sob o ÍP 998, e o Cancioneiro

da Biblioteca Nacioral, sob o n" l33l:

Cantiga

Rui Queimado morreu con amoren seus cantares, par Sancta Maria,por üa dona que gran ben queria,

e, por se meteÍ por mais trobadotporque lh'ela non quis [o] ben fazer,

fez-s'el en seus cantares morrer,

mas ressurgiu depois ao tercer dia!

Esto fez el por üa sa senhorque quer gran ben, e mais vos en diria:porque cuida que faz i maestria,e nos caÍrtares que fez a saborde morrer i e desi d'ar viver;esto faz el que x'o pode fazelmas ouff'omen per ren non [nl o faria.

E non há já de sa morte pavor,

senon sa morte mais la temeria,mas sabe ben, per sa sabedoria,que viver{ dês quando morto for,e faz-[s']en seu cantâr morte prendetdesi ar viver: vede que poder

que lhi Deus deu, mais que non cuidaria.

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Page 17: Trovadorismo - Cantigas

E, se mi Deus a min desse poder,qual oi'el há, pois morrer, de viveçjamais morte nunca temeria.-

(J. J. Nunes, Crestomaíia Arcaica,3e ed.,

Lisboa: Clássica, 1943, p. 400.)

Esta cantiga enquadra-se entre as de escárnio, visto que pero Garcia procura mofarde Rui Queimado (trovador dos fins do século XIII e princípios do XIV) com ..palarras

co_bertas que hajam dous sentidos". Do prisma formal, repare-se que a cantiga aprosenta quatrocobras , uma a mais do que era frequente. A íltíma cobra, com estrutua próp a (um tereeto,enqrürnto as outÍas cobras constitugm estrofos de sete versos), mas vinculada ao corpo daçantiga pela rima, - recebia a denominação de fiinda. As qualio cobras equivalem a trêsfases do percurso satíÍico: a primeim coára funciona como prólogo, ou súmula dos antece_dentes do tema escolhido; as duas seguintes enceÍram a perquirição intelectual do quadroinsólito que Rui Queimado oferecia na sua relação com a dama eleita e a morte: morria (nascanções...) mas permanecia vivo; afinda, servindo de fecho às coáras restantes, guaÍda a"moral da história", o conceito, a sentença moral, que o trovador extrai do caso de Rui euei-mado. No tocante à matéria da canção, Pero Garçia satiriza o vezo que tinha esse poeta, e nãopouÇos ouhos Çonftades do tempo, de confessar, nas suas cartigas, que se consumia de amorpela "dona" dos seus cuidados. Mas como a sua reiterada moíe fosse apenas lírica, o trova_dor acabou por cai em ridículo. E nesse estado pero Garcia o surpreendeu. O tom da compo_sição é, pois, irônico e conceituoso; todav ia, ta pt'lmeira cobra o troyadoÍ enfatiza a sátira aodizer que o seu desafeto "fez-s'el en seus cantares morer,, porque a sua dama ,,non quis [o]ben fazer" (ou seja; atender-lhe os rogos). Note-se, inclusive, o terceiÍo ve$o da mesmacoóra - "mas ressurgiu depois ao tercer dia!" - marcado pelo conteúdo sarcástico e irreve_rente, e a exclamação final, que emprestam um tom de ápice ao relato da situação grotesca emque se enfiara Rui Queimado. Por fim, cabe salientar o seguinte ponto: embora a cantiga deescámio tenda, no geral, a ser à clef q,,et dizer; referir-se a circunstâncias a pessoas encober_tas ou dissimuladas, o cantaÍ de Pero Garcia ainda nos diz alguma coisa graças à sua equaçãohumana, ainda viva nos dias que correm, na medida em que perdura a dissociação entre opoeta-criador e o poeta-homem: Rui Queimado morria como poeta, em imaginação, ao passoque, como homem, se mantiúa vivo.

JOÃO GARCIADE GUILHADE

A segunda cantiga satirica, que a seguir se transÇÍeve, pertence a João Garcia de Guilhade,trovador do século XIII, importante não só pelos recursos poéticos de que era possuidol comopelo número de cantigas que compôs: 21 cantigas de amigo, t5 de maldizer e duas tenções, Acanção escolhida, uma das mais sugestivas e vivazes de quantas criou, vem registrada no Caz_cioneiro da l/aticana, sob o \e 1097, e to Cancioneirc da Biblioteca Nacional. sob o nq 1399:

* en = disso; par : pori porque aida que íaz i maestria = porqte pensa que possui talento; saóor =gosto; i = ai; deri = depois: at: rc (ar úver = reyiver), de novo, outua vez; dês: desde; oí = hoje; poismorrer, de viyet : \iyer depois de morer.

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Page 18: Trovadorismo - Cantigas

Cantiga

Ai dona fea! foste-vos queixarporque vos nunca louv'en meu trobarmais ora quero fazer un cantaren que vos loarei toda via;e vedes como vos quero [oar:

dona fea, velha e sandia!

Ai dona fea! se Deus mi perdonle pois havedes tanto gÍan coraçonque vos eu loe en esta razon,vos quero já loar toda via;e vedes qual será a loaçon:

dona fea, velha e sandia!

Dona fea, nunca vos eu loeien meu trobar, pero muito trobei;mais orajá rm bon cantar fareien que vos loarei toda via;e direi-vos como vos loarei:dona fea, velha e sandia!-

(Oskar Nobiling, I s Cantigas de D. JoanGarcia de Guilhade, Erlangen, 1907,p.67.)

Trata-se, como se yê, de uma cantiga de maldizer, porquanlo o trovador se dirige direta-mente à "dona fea, velha e sandia '. A estrutura revela niüdamonte o ÇaráteÍ popular desse tipode cantiga: além de se arquitetarcm segundo o esquema paralelístico, as coáras finalizam emestribilho. Quanto ao conteúdo, é flâcil imaginar as causas da invectiva do trovador: com cer-teza, a mulher a que ele destina a sátira se júgara merecedora de uma cantiga de amor, e, quemsabe, as atenções do poeta. Este, na resposta, observa as leis do comedimento, visto a interlo-cutora possuir os defeitos que tomavam sua pretensão improcedente e ridícula: "dona fea,

velha e sandia". Na zombaria altiva e superior, posto que cortante e frontal, e na feliz concen-tração de notas satíricas que o tÍovêdor alcança realizar no estribilho, reside a vitalidade dacantiga, também viva naquilo em que retrata uma situação social que persiste, ou seja, a deuma "dona fea, velha e sandia" que anseia ser cortejada por um jovem. Atente-se pam o fatode que a sátira trovadorosca, sobretudo na vertentç de maldizer, por circulat em ambientestabemários, somente por exceção apresentava a moderaçâo de João Garcia de Guilhade: nâoraro acolhia as expressões mais chulas e licenciosas de que é capaz a língua poÍtuguesa, numaverossimilhança que amortece a possívol carga poétiÇa am presença, e enaltece a relevância

* ora - agoru; toda vi,u = semprc, completameÍrte; [andia -lo]uca; que vos eu lne en esto razon - me-receis a justiça de eu lovyá-la]' loaçon : lo]u,ro\ perc = todayia.

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dâs cantigas desse naipe como documonto histórico e sociológico (Yer Cantigas d'Escarnhoe de Mal Dizer, eüção qítica de Ro&igues Lapa, Coimbra, Galáxia, 1965).

Cantiga

Hun infançon me-á convidadoque seja seu jantar loadopor mi, mais non no ei guisado

' e direi-vos por que me-aven,ca iá des ântan' ei jurado

que nunca diga de mal ben.

Diss'el: "poi'lojantar foi dado,load' este jantar honrado":dix' eu: "faria-o de grado,

Mais jurei antan' en Jaen,

na oste, quando fui cruzado,que nunca diga de mal ben".-

([João] Nunes [Camanês] ?,

J. J. Nunes, 1943, p.395.)

Cantiga

Don foão que eu seique á prego de livão,vedes que fez ena guerra(d'aquesto son certâo):sol que viu os ginetes,come boi que fer tavão,sacudiu-s' e revolveu-se,alçou rab' e foi sa via

a Porhlgal.

Don foão que eu seique á preço de ligeiro,vedes que fez ena guerra(d'aquesto son verdadeiro):

* iníançoh : fldalgo de categoria infenoÍ; loado : loiuvado, elogiadof mais non no ei guisado = ÍÍ,asnão estou disposto; ne-ayer: isso me acontece; ca : é gre; des ontan = desde antaího, desde há mútotempo; ei = hei, tenho; EG llurrca diga de fial áez = que nunca diga bem de coisas más;poi,/o = depoisq|Je o; de grado : de bom grado, com prazeq Jaen = cidade da Espal,ha, oste = e\ército cruzddo:guerreiro que tomava parte nas cruzadas.

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sol que viu os ginetes,

come bezerro tenÍeiro,sacudiu-s' e revolveu-se,

alçou rab' e foi sa viaa PoÍugal.

Don foão que eu sei

que há prez de liveldadevedes que fez ena guerra

(sabede-o Por verdade):

sol que viu os ginetes,

come can que sal de grade,

sacudiu-s' e revolveu-se,

alçou rab' e foi sa viaa Poúrgal."

(D. Afonso Mendes de Besteiros.

ibidem, PP.398-399.)

A Prosa

A prosa, na época do trovadorismo, é ropresentada pelas novelas de cavalaria, os liwos

de linhagens, as hagiografias e os cronicões. Os lir,ros de liúagens eram listas de nomes que

estabeleciam nexos genealógicos entre famílias fidalgas. Os cro côes, não raro escritos em

latim, apÍesentam escasso valor literário, embora constituam os primeiros documentos histo-

riográficos em Portugal. Menor ainda é a valia literfuia das hagiograias, também redigida§

naquele idioma. No conjmto, apesar da existência de uma obra-pilma como A Demanda do

Santo Graal, a prodtção em prosa literária dessa época deixou-se ofuscar pelo brilho da poe-

sia trovadoresca.

Novelas de Cavalaria

Originárias da França e, remotamente, da Inglaterra, as novelas de cavalaria resultaram da

prosificação das cazç ões de gesÍa G,oçrrLas de assrmto epico), Organizavam-se em três ciclos: o

ciclo bretão ou arturiano, em tomo do Rei Arhr e os seus cavaleiros; o ciclo carolíngio, ptota-

gonizado por Carlos Magno e os doze pares deFrutça; o ciclo clássico, de temas grecoJatinos.

Somente o cíclo bretão vingou em Portugal, por meio da§ naÍativas vertidas do fiancês. Delas

rcstaram três espécimes: a Históría de Merlim, o José de Arimateia e Á Dernandq do Santo

Graal. Da pnmeira ficou unicamento a tradução espanhola, baseada na portuguesa' quc se per-

deu. O José de Arimaíei.a (ms. no 634 da ToÍe do Tombo) foi publicado em 1967.

* íoõo = f\rlà:úo: qüe á prcÇo de lbdo = q)e se vangloria de ser ligeiro; sor: sou, estou; celtão = ceÍÍo;

sol que = lolo gt e; gineres : cavalos de raça; fer = fere, mordq- tavão: inseto rab : $bo;íoi sa ria =foi-se eÍtbotu; íeweíro : tero; que há prez de liveldade : q1Ê se vanglona de ligei;reza; come can que

sal de grade = cofio cão que sâi de mstos.

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