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O Jeito Empreendedor de Governar

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O Jeito Empreendedorde Governar

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O Jeito Empreendedorde Governar

André Carvalhoconcepção e forma final

Redatores:Alencar Abujamra

Campos Verdes

Edil DuarteOsvaldo Cruz / Cabaceiras

Márcio Rubens PradoTrês Passos

Tito GuimarãesXapuri

A quem faz desua força uma força

para todos.

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Prefácio

Compromisso com a realidade

Carvalho, AndréC331j O Jeito Empreendedor de Governar /

Concepção e organização de André Carvalho —Belo Horizonte: Armazém de Idéias, 2006.272 p. il

1.Contos-reportagens. 2.Ciência política. I. Título

CDU 82-34:070.4132

© 2006ANDRÉ CARVALHO

EDITORANDRÉ CARVALHO

FOTOSSILVIO SIMÕES (CAMPOS VERDES) – ELIAS EBERHARDT E VILSON

MATTOS (TRÊS PASSOS) – HÉLITON RICHARD (CABACEIRAS) –SERGIO VALE (XAPURI) JORGE LUÍS MUNHOZ – (OSVALDO

CRUZ)

PROJETO GRÁFICO E EDITORAÇÃOCOSTA CARVALHO

REVISÃOP. S. LOZAR

TRATAMENTO DE IMAGEMGENTIL FELISBERTO

Este livro foi produzido por

• ARMAZÉM DE IDÉIAS LTDA.Rua Martim de Carvalho, 671 • 6º andar • 30190-090Santo Agostinho • Belo Horizonte • MG •Fone: (0xx31) 3291-0411 • Fax (0xx31) 3292-8298e-mail: [email protected]

Direitos exclusivos de publicação

• SEBRAE – Empresa Brasileira de Apoio às Micro ePequenas EmpresasSEPN Quadra 515, bloco C, loja 32 • Brasilia • DFFone: (0xx61) 3348-7100 • Fax (0xx61) 3347-4120www.sebrae.com.br

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NNNNNinguém que tenha juízo pode dizer que co-nhece o Brasil.

De tão grande, diverso, complexo e surpreen-dente, este nosso país exige uma vida inteira deaplicação e estudo, para revelar um pouco da suarealidade.

Este livro, portanto, não tem a pretensão detraduzir o Brasil, mas é uma tentativa sincera decompreender os imensos desafios que os prefeitosenfrentam em seus municípios.

Selecionamos, nas cinco regiões do Brasil, al-guns dos “prefeitos empreendedores”, criativos e

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desenvolver histórias que relatam o sucesso de ad-ministradores que não tiveram medo de inovar,criar e ousar. Os cinco são exemplos para demaisprefeitos que não têm agido com tal capacidadede identificar espaços e de fazer acontecer.

Temos um brasileiro, JK, que é o maior exem-plo disto. Como prefeito de Belo Horizonte pla-nejou a cidade, e na condição de governador deMinas, para não nos estendermos demais, viu queo estado não tinha estrada e as construiu. Comopresidente, continuou com sua sede de fazer ca-minhos, abrindo até a rodovia que parecia impos-sível; estruturou o setor energético nacional e cons-truiu Brasília, e só isto basta para dizer até ondeele levou nosso Brasil.

Optamos por transformar nossos empreende-dores em personagens reais de sagas que têm otratamento de ficção. Contamos tudo de formaleve e romanceada, sem fugir à realidade dos fa-tos. Assim, enquanto desfruta as histórias, o lei-tor assimila os exemplos e modelos de trabalhodesses prefeitos que romperam com a rotina e mu-daram a vida das comunidades que os escolhe-ram.

dinâmicos, como personagens centrais deste livro.Poderiam ser muitos mais: qualquer um que já foiescolhido Prefeito Empreendedor, mesmo outrosdentre os milhares de municípios brasileiros quenão se inscreveram ainda, mas têm buscado cami-nhos e empreendido iniciativas de promoção dodesenvolvimento, valorizando seus cidadãos, vo-cações, oportunidades e em especial as micro e pe-quenas empresas locais.

Empreender tem, como fundamento básico,procurar o que não foi explorado, dar-lhe caracte-rísticas empresariais, mesmo que em coisa pública,agilizar, fazer crescer, como um bolo bem feito.Empreender é, por intermédio da realização, ali-mentar o sonho de muitos, estabelecendo o circu-lo virtuoso da prosperidade e inclusão, neste casobem próximo às pessoas, em seus municípios.

Selecionamos, em várias regiões do Brasil, umgrupo de prefeitos empreendedores, criativos e di-nâmicos, como personagens centrais do livro. Po-deriam ser muitos mais: qualquer um que já foiescolhido Prefeito Empreendedor. Mas, se são cin-co entre cerca de 1.300 prefeitos assim, é porque,em torno deles, sentimos que era emocionante

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dades do seu povo e de uma firme disposição deabandonar o discurso vazio e buscar resultadosconcretos.

Nosso objetivo é mostrar ao Brasil, sem fanta-sia ou falso colorido, mas de forma divertida e di-nâmica, o que significa um bom prefeito na vidade um município, de uma cidade.

As informações foram colhidas por profissio-nais de imprensa da melhor qualidade, e o textofoi trabalhado por mim com a preocupação de darao leitor uma história que tem começo, meio efim.

Acreditamos que o livro será um grito de aler-ta contra as crenças na predestinação à pobreza e àdependência, que gera a inoperância e a omissão,mas, acima de tudo, será um apelo à responsabili-dade de todos, administradores e cidadãos.

Cada um dos prefeitos que retratamos aqui éum símbolo da resistência, manifesta em atitudes.Ainda que os tempos sejam difíceis, há sempre algoque se pode fazer, e esses prefeitos fizeram muito.

Por isso, nosso desejo é que este livro, que des-taca os prefeitos, se torne, para milhares de gestorespúblicos brasileiros, uma inspiração e uma excelen-

São fatos e histórias que o Brasil precisa conhe-cer, porque demonstram a força que tem um ver-dadeiro empreendedor, do tipo que não enxergana “realidade como ela é” uma limitação, mas queusa sua inteligência, seu talento e sua liderança paraconstruir o mundo como ele deve ser.

As histórias aqui registradas são, portanto, au-tênticas, reais e, ao mesmo tempo, tão emocio-nantes quanto uma boa novela da televisão. His-tórias de homens e comunidades que realizaramavanços importantes em todos os campos: na eco-nomia, gerando empregos e melhor distribuiçãoda renda; na organização social, promovendo averdadeira cidadania; na preservação dos recursosnaturais; na integração das regiões etc.

Partimos do princípio de que reconhecer e di-vulgar casos de sucesso é atitude bem mais útil eprodutiva do que lamentar histórias de fracasso,que costumam ser apenas um diálogo de surdos,no qual todos apontam problemas e ninguém searrisca a buscar soluções.

O sucesso de um prefeito empreendedor resul-ta quase sempre de uma visão correta da realidade,de uma sintonia fina com as demandas e necessi-

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Sumário

Personagens & Cenário ................................15

O Homem que Sonha Verde........................41

Chute a Gol, Sempre ...................................87

A Três Passos do Paraíso .............................125

Encontro das Águas ....................................179

Não Deixo Meu Cariri ...............................225

Iguais em Quase Tudo ...............................263

te companhia, para que no futuro possamos publi-car outro, incluindo dezenas de experiências desucesso na administração municipal.

O sucesso desta publicação se dará quando ashistórias aqui narradas forem algumas dentre mi-lhares. Estaremos então vivendo no Brasil de to-dos!

André Carvalho

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Personagens & Cenário

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ZILÁ MARIA

BREITENBACH

VALTER

MARTINS

Personagens

E todos os prefeitos quetrabalham pensando em suas comunidades

e em aproveitar de cada uma delastodo o seu potencial.

JÚLIO

BARBOSA

HAROLDO

NAVES

ARNALDO

JÚNIOR

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Campos Verdes

Cenário 1

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NA MINA: O JEITO DE DESCER; UM TÚNEL A MAIS DE 50 METROS DE

PROFUNDIDADE; E O EX-PREFEITO HAROLDO, QUE CONHECE DO OFÍCIO,APONTANDO UMA ESMERALDA NA PAREDE.

A CIDADE É PEQUENA E BEM

CUIDADA (PÁG. DE ABERTURA

E ACIMA). JÁ CHEGOU A TER

30 MIL AVENTUREIROS NA

MINERAÇÃO; HOJE TEM 7 MIL

PESSOAS. – JOVEM ARTESÃO

TRABALHA RESTOS DE PEDRAS.

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Osvaldo Cruz

Cenário 2

NA AREINHA DO XISTO, AS CATADEIRAS RETIRAM AS ÚLTIMAS E PEQUENÍSSIMAS ESMERALDAS.NO “GARIMPE E PAGUE”, VOCÊ COMPRA UM CARRINHO DE XISTO E SEPARA AS

PEDRAS DE MAIOR VALOR HÁ QUEM ACHE ESMERALDAS DE MAIS DE 6 MIL REAIS.

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ANTIGO GALPÃO DO IBCVIROU CASA DO

AGRONEGÓCIO. (PÁG.ANTERIOR)INDÚSTRIA DA MODA,CORAIS E ORQUESTRAS

INFANTIS. COMERCIANTES

(COMO NINO), QUE SE

ORGULHAM DA

REFORMA DA VELHA

PRAÇA DA ESTAÇÃO.OSVALDO CRUZ ÉUM SUCESSO.

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Três Passos

Cenário 3IZALTINA OTAVIANE,EX-VEREADORA: “NEM UMA

FILA MAIS PARA

ATENDIMENTO DE SAÚDE OU

CESTAS BASICAS”.O PREFEITO

EMPREENDEDOR WALTER,DE OLHO NO FUTURO

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PATRÍCIA FERNANDA – EMPREENDER SE APRENDE NA ESCOLA. UMA

“MATERNIDADE” EM PLENO FUNCIONAMENTO. ALINE ZIMPEL – A BELEZA DA ENA VIDA DO CAMPO.

UMA FAZENDINHA TÍPICA DE TRÊS PASSOS (PÁG. ANTERIOR). A VENCEDORA DO

PRÊMIO PREFEITO EMPREENDEDOR DE 2003, ZILÁ MARIA BREITENBACH. AS

CONFECÇÕES: UMA DAS PRINCIPAIS RIQUEZAS DA CIDADE.

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CAPIM-LIMÃO, O INSUMO DAS INDÚSTRIAS DE PERFUMES EM SUAS ESTAPAS: ACOLHEITA, A MOEÇÃO E A PARTE QUÍMICA, FEITA PELA ESTUDANTE DEONISE

IRGANG. A ORDENHA MANUAL É APENAS UMA LEMBRNÇA DOS VELHOS TEMPOS.

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A XAPURI FAMOSA DE CHICO MENDES, ENTRE DOIS RIOS.ABAIXO, UM SERINGEUIRO À MODA ANTIGA

Xapuri

Cenário 4

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JÚLIO BARBOSA, NUMA FESTA DA CIDADE.A EMPRESÁRIA ETEL, DO PÓLO MOVELEIRO; E O CHARME DA

CIDADE DENTRO DA AMAZÔNIA (ABAIXO E AO LADO)

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Cenário 5

Cabaceiras

CASA BRANCA, DA ANTIGA INTENDÊNCIA BOLIVIANA, HOJE É UM DOS

MUSEUS DE XAPURI. IGREJA DE SÃO SEBASTIÃO, PREFERIDA PELO POVO, DE

FORTE TRADIÇÃO CATÓLICA. SUA PROCISSÃO FESTIVA É EM JANEIRO

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O ARTESANATO EM COURO DE CAPRINOS JÁ LEVOU A CABACEIRAS GENTE

ATÉ DA ESCANDINÁVIA. E A FESTA DO BODE REI É UM FETIVAL

GASTRONÔMICO E DE ESPANHOL ARTESANATO APRECIADO EM TODO O PAÍS.

CABACEIRAS, NO CARIRI, PERDIA, EM CADA ÔNIBUS QUE PARTIA, ALGUNS DE SEUS

HABITANTES. HOJE, O BODE DÁ EMPREGO A TODOS E A CIDADE É FESTEIRA EPALCO DE GRANDES FILMES. ABAIXO, UMA LOCAÇÃO DO AUTO DA COMPADECIDA.

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Capítulo I

O Homem que Sonha Verde

O PREFEITO, ARNALDO

JÚNIOR, QUE APROVEITOU

DE CABACEIRAS (ACIMA)TODO O SEU POTENCIAL,ATÉ A ARIDEZ E APOUCA CHUVA, EM CENÁRIOS

CINEMATOGRAFICOS: 12FILMES FORAM

REALIZADOS AQUI.

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O Jeito Empreendedor de Governar

OOOOOlho pelo retrovisor e aviso ao Boi:– Há um carro em alta velocidade atrás de nós.– É mesmo. Vai bater na traseira – grita ele, e

joga o veículo na margem da estrada.O ruído do motor, esgoelado até o último

ponto, continua, mas o carro, por um segundo,some do retrovisor. Procuro à esquerda. Ele estáemparelhado, e há uma pistola apontada paranós.

Boi, levado à mesma cena pelo meu violentovirar de corpo, freia em definitivo. O carro arrancacascalho do acostamento, pára e a bala se perde na

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O Homem Que Sonha Verde

do, segura o ombro machucado. Forte como umtouro – daí seu apelido – não mostra a dor quesente.

– Acho que quebrei o ombro – me comunica.– E braços e pernas doem dos arranhões nas pe-dras.

– Dê-se por satisfeito de ainda estar vivo.Ouvimos o som das vozes sem compreender o

que falam. Enfrentam a mata cerrada, mas pare-cem fazer uma diagonal e nos perdem. Pouco tem-po depois, o som de motor partindo.

– Vamos embora. Eles se foram.– Não. Pode ser armação. Quem sabe só avan-

çaram um pouco e voltam, ao perceberem queestamos no nosso carro – eu respondo, enquantoa cabeça, a mil, pergunta: – Quem foi? por quefoi? quem poderia odiar-me tanto?

– Foi pra valer – diz Boi. – Foi pra valer – esuspira.

– Foi. Mas não tem nada com você, não. Achoque sei por que queriam me pegar.

• • •

mata ao lado. O deles só consegue estacionar unsquarenta metros adiante.

Pulamos fora e uso meu trinta e oito cano lon-go para revidar. A gente se protege atrás do carro,e atira. Eles não dão a ré que pretendiam. Descemse protegendo com as portas e vão para trás de seuveículo, provavelmente uma Parati cinza. Atiramsem parar. Peço ao Boi para entrar correndo namata ao lado.

As balas furam o carro com impacto. Perceboque alguém se movimenta à direita, para nos atin-gir. Os tiros, que eles não economizam, parecemvir de armas mais potentes que a minha. Meu re-vólver é de oito balas e não tenho munição dereserva. Já atirei quatro vezes e sei que a muniçãoestá acabando na oitava. Revido com a calma dequem está à beira da morte e vê poucas chancesde sobrevivência. Mas quero viver.

Sinto que Boi já sumiu na mata, procuro atin-gir o homem que, quase rastejando, se põe emmelhor posição para atirar em mim. É minha últi-ma bala e saio correndo e pulo em direção à mata.

Embaraço-me nos galhos, firo-me e caio derepente. No mesmo sulco de terra onde Boi, caí-

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O Homem Que Sonha Verde

Haroldo ligou todos os fatos, e vinte dias de-pois tudo ficou mais claro. Os albergados volta-ram para terminar o serviço.

– Eu conseguira a ajuda da P2 – Polícia Espe-cial da PM, porque meu cabo eleitoral José Cape-la, grande garimpeiro e uma pessoa muito relacio-nada, fora assassinado. Dificilmente o que aconte-cera seria para roubar, até porque os homens nãose achegaram a nosso carro e nem tiraram delecoisa alguma. Foram presos ao voltar, mas não de-lataram ninguém. Além disso, até cerca de R$1.200ali estavam.

– Não conseguimos provar nada e tudo fi-cou desse jeito mesmo, porque é mais fácil, nãoé? – diz Haroldo, com sorriso amplo e zombe-teiro.

Em quase todos os acontecimentos dramáti-cos ou trágicos há um lado cômico ou pelo menosdivertido. Este caso não foge à regra.

– Quando conseguimos chegar à cidade, fo-mos procurar o hospital para tratar do braço in-chado do Boi. Ele havia fraturado a clavícula notombo, talvez por causa do seu peso. Aí, melembrei de telefonar para a mulher e contar o

Assim, Haroldo Naves percebeu que seu so-nho de realizar um grande governo, depois de terreativado o garimpo em sua terra, Campos Verdes,não passava só por suaves caminhos.

Lembrou-se de que, em 1998, o governo es-tadual do PMDB doara à Prefeitura de CamposVerdes, material de construção para fazer 90 ca-sas populares, dentro do programa Meu Lote,Minha Casa, da Secretaria da Solidariedade. E omaterial foi desviado: nem uma construção le-vantada.

Em 1999, a então Secretaria da Cidadania ealguns vereadores da cidade fizeram a denúncia dedesvio desse material. O Ministério Público agiucontra o prefeito.

Em 2001, Haroldo assumiu a Prefeitura e oM.P. chamou-o para entrar como litisconsortena ação. Já haviam sido bloqueados cerca deR$30 mil em dinheiro do antigo prefeito. Foisó a ação ser assinada, no dia sete de agosto de2003, cinco dias depois, aconteceu o atenta-do.

Os executores estavam albergados na dele-gacia de Anápolis.

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O Homem Que Sonha Verde

então distrito de Campos Verdes e que já extraíaminério de cianita.

Num instante, a notícia correu e os pioneirosno garimpo de pedras verdes ali naqueles pastos,João Mecânico e Chico Moita, que, inocentemen-te, vendiam esmeraldas a preços irrisórios, porqueacreditavam que fossem turmalinas; como merasturmalinas, sentiram quão precária era sua profis-são e quão inexplicável os desígnios de Deus paraenricar nela.

Tanto é verdade que o descobridor da mina,daí em diante, sempre trabalhou com esmeraldas enão ficou rico. Além do mais, não recebeu dasautoridades do município de Santa Terezinha nadapor sua descoberta.

Como fogo em rastilho de pólvora, a notíciase alastrou, atraindo para o lugar milhares de ga-rimpeiros (quase todos do Maranhão, Bahia, Mi-nas Gerais, Tocantins e do próprio estado de Goiás).Vinham, conduzidos pela esperança, cada qual umFernão Dias Paes Leme de ambição, e formaram opovoado.

Formigas corredeiras, homens chegavam comseus instrumentos arcaicos: bateia, pás, cordas, lo-

que acontecera. O carro em que estávamos eradela.

Contou e ficou, no mínimo, surpreso com areação: – E o carro, estragou muito? – concluiHaroldo, rindo.

Pisando em esmeraldas

A patrol arrasta a terra a menos de trinta centí-metros da superfície, abrindo uma estrada vicinalque leva à Fazenda São João. Seu condutor, DiolinoGonçalves da Silva, sente que os olhos faíscam emtons verdes. A pá mistura à terra milhares de esme-raldas e o sol se reflete nelas. Doido, pula do tra-tor. Enche as mãos de pedras:

– Esmeraldas, esmeraldas – grita e fala sozi-nho. – Olhem a cor, a cor. São lindas!

Enche os bolsos e procura as autoridades. Ajazida que aflorara estava no município de SantaTerezinha de Goiás, cidade de 13 mil habitanteshoje, que era sede da comarca à qual pertencia o

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O Homem Que Sonha Verde

Duas ou três empresas ricas se instalaram, pro-curando esmeraldas mais profundas. Empregava,cada uma delas, cerca de 200 pessoas. Ali, tudoera profissionalizado: funcionários revistados, ao fimde cada turno. As catadoras de pedras no meio doxisto, também.

Mas fora as mineradoras, além dos pequenos ga-rimpeiros, a cidade já possuía 30 “serviços”. É este onome que se dá, no garimpo, a uma boca de mina, degarimpeiro tarimbado e que emprega outros profissio-nais, entre oito e 20 pessoas. Furavam e explodiam.Arrancavam da terra o xisto, batiam-no em uma espé-cie de liquidificador gigante e catavam as pedras. Eramtantos os que fendiam a terra em túneis, sem planeja-mento nem orientação, que já se temia que CamposVerdes chegasse a ser uma Serra Pelada. A diferença éque Campos Verdes é uma cidade sem montanhas, asesmeraldas estavam à flor da terra e os estragos nãoeram vistos tão facilmente. Os garimpeiros sangravamo solo, mas ninguém sabia que o maior tesouro estavaem centenas de veios profundos, no fundo da terra.

nas para armar barracas simples, panelas, o neces-sário. A pedra se achava à flor da terra.

Era 1986, ao redor da estrada do milagre, ha-via mais de 27 mil pessoas. Levavam água até ospastos e bordas do terreno, peneiravam a terra ecolhiam as esmeraldas.

Alguns se atreviam a furar bocas de minas e des-ciam por elas cada vez mais. Sem técnica, sem quali-ficação profissional, sem respeito ao meio ambiente.Achavam esmeraldas de alta qualidade, ficavam ri-cos, saíam de seus abrigos de lona e começavam aconstruir casas, algumas boas, outras tão baixinhasque era preciso agachar para se entrar nelas. Na noi-te, suados, muitos aventureiros em casas assim tinhammilhões de reais em pedras, guardadas debaixo docolchão. Não havia tempo para o conforto. Era pre-ciso buscar mais e mais, cada tatu com sua ânsia.

Cerca de trinta mil pessoas levam à emancipa-ção política, que aconteceu em l988. O nome dacidade, de sonoridade e conotação poética, pas-sou a ser conhecido em todo o mundo. Ali, aspedras eram quase na superfície, e apesar de pe-quenas, maravilhosas. Tinham o verde que as faziavaler mais.

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Mas levar a família foi uma exceção: o que ocor-re mais freqüentemente é o garimpeiro sair da ci-dade deixando mulher e filhos, apenas com a espe-rança de um incerto retorno. Levantamento daPrefeitura diz que duas mil mulheres devem vivernesta situação, casadas várias vezes ou sendo mãese pais de família, quase sempre se sustentando pe-los programas sociais.

Luzia Pereira da Silva, 34 anos, é uma delas.Foi abandonada duas vezes e, hoje, sem empregoe vivendo como as outras – sustentada pelo gover-no – se desdobra para ser a provedora das duasfilhas, cada uma de um relacionamento.

– Quando cheguei aqui – conta, com voz can-sada e melancólica – não tinha nada, nem mesmoum lugar para ficar, e o jeito foi trabalhar na lancho-nete do meu primeiro marido. A gente fazia baciadasde pão-de-queijo e vários outros salgados. A vendaera na mesma hora: acabava tudo em 15 minutos.Até as crianças tinham muito dinheiro. Depois, omeu marido foi embora, o segundo também, e,hoje, dependo da boa vontade da Prefeitura e dacaridade das pessoas. E nem adianta sair atrás deemprego, porque não tem mesmo.

Dinheiro a rodo

No período que vai da descoberta das esmeral-das até a emancipação da cidade, como aconteceem quase todos os garimpos, o dinheiro corria fá-cil: fortunas foram feitas e perdidas. Da mesmaforma que entrava, a moeda saía com extrema fa-cilidade.

Sumia em noitadas, bebidas e compras de bensde consumo, desnecessários em local que não pas-sava de um lugarejo pobre. Havia ali centenas decarros do ano e antenas parabólicas.

Vários casos da época comprovam esta saga. Ode Normando Vieira da Silva, de 35 anos, que veiode Jacobina, na Bahia, atrás da riqueza das esme-raldas, em 1986, no auge do garimpo, merece sercontado. Conseguiu ganhar algum dinheiro, cons-truiu uma pequena casa para a família e ali viveudurante alguns anos. Desiludido com a decadên-cia do garimpo, desmanchou a casa, vendeu omaterial da construção para outros garimpeiros,juntou a família, colocou os móveis em um cami-nhão e pegou o caminho de volta.

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te de um irmão, os pais resolveram voltar às suasorigens e se fixaram em Campos Verdes.

Haroldo mudou-se para Goiânia em 1984,onde concluiu o 2º grau no Colégio Olga Mansur.Aí, começava a se revelar o futuro político: foi lí-der do Grêmio, durante o período em que o paíspassava pelo processo de redemocratização, depoisde 15 anos de ditadura.

Em 1988, mudou-se para Campos Verdes eaí montou um bar-restaurante e, em seguida, umafarmácia, que passou a ser sua principal fonte derenda. No ano seguinte, entrou para o Partidodos Trabalhadores, onde ficou até o ano de 1996.Em 1992, candidatou-se a vereador, pelo PSDB,e teve 480 votos – a maior votação da história domunicípio até hoje. Mas não foi eleito, porque opartido não atingiu o coeficiente eleitoral exigidopela legislação.

Em 1995, foi secretário municipal de Saúde, e,depois, trabalhou no governo estadual, na Secre-taria de Cidadania e Trabalho, como chefe doDepartamento de Prestação de Contas, onde par-ticipou da regulamentação e implantação do pro-grama Renda Cidadã.

O garimpeiro Elísio Pinheiro, 46 anos, um dosprimeiros a chegar, ficou rico a ponto de forrar ocolchão com as notas que recebia, em um únicodia de extração de pedras. Sem se preocupar como futuro, não fez um pé-de-meia e nem se preocu-pou em construir uma casa decente para morar.Hoje, sobrevive com o pequeno salário que recebede uma grande empresa mineradora.

Com o desaparecimento das esmeraldas, osaventureiros foram embora, o dinheiro também, ea cidade entrou em um processo de decadênciacada vez mais acelerado. Poucas pessoas acredita-vam que havia uma chance de recomeçar.

Um deles era um jovem farmacêutico prático,que tinha suas raízes ligadas à cidade desde a in-fância: Haroldo Naves.

Filho de Pedro Silvério Naves e Amélia SoaresNaves, Haroldo nasceu a 24 de setembro de 1966em uma casa de pau-a-pique no município de SantaTerezinha, onde estudou até a segunda série, mu-dando-se com a família para Campos Verdes, ondecompletou o ensino fundamental.

A família depois passou por Anápolis, eMiranorte e Xambioá, em Tocantins. Com a mor-

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de maior circulação de Goiás. É um velho hábito,que poucos têm em Campos Verdes. Mesmo ten-do chegado a 27 mil habitantes um dia, a cidadenão tem uma banca de jornal. Uma manchetechama sua atenção: Campos Verdes vai ser umaCidade Fantasma.

Um bolo na garganta enodoa a felicidade deter sido eleito, mesmo tendo a certeza de quemudará tudo para melhor. Mas era triste: as pesso-as desmanchavam as casas para aproveitar telhas,madeiras e vitrôs, porque não tinham valor comer-cial. A casa mais cara talvez custasse seis mil. Quan-do não eram desmanchadas, casas simples valiamtrezentos reais. A principal atividade econômica domunicípio estava praticamente acabada. Apenasduas minas altamente qualificadas atuavam ainda.

– Foi aí que nasceu a idéia do Programa deDesenvolvimento Sustentável do Município deCampos Verdes, em cinco pontos. Primeiro, omapeamento geológico do município. Nele, reu-nimos todos os dados geológicos que se puderamencontrar. Aqui em Goiás havia a Metago, o ór-gão fomentador da mineração, que depois se trans-formou em Agin e hoje é a Superintendência de

Em 1996, concorreu à Prefeitura ainda peloPT, e perdeu.

A Cidade Fantasma

Se a esmeralda desaparece, com ela vão-se osaventureiros. Em 2000, os moradores fixos redu-ziram-se a 6.012. De um próspero principado,Campos Verdes começou a freqüentar páginas dejornal como o retrato fiel da decadência econômi-ca. O comércio dizimou-se, o desemprego atingiuíndices de países à beira do abismo e os problemassociais chegaram a pontos críticos.

Por ironia do destino, Haroldo consegue sereleito prefeito no ano de 2000, bem no auge dadecadência. Quando tomou posse, em janeiro de2001, iniciou um tratamento intensivo na cidade,receitando altas doses de empreendedorismo e pla-nejamento.

Vinte dias antes de sua posse, 11 de dezembrode 2000, Haroldo Naves abre O Popular, o jornal

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mineradoras para trinta e cinco, entre as ativadas eas reativadas”.

Haroldo tinha na cabeça três grupos de pesso-as que trabalham com pedras: minerador é o donoda mineração; o garimpeiro é o autônomo quedesordenadamente bateia a região ou compra par-tidas de xisto, que lava e de onde se extrai a esme-ralda; e o trabalhador em mineração que é o fun-cionário na mina, no sub-solo, os lavadores de xistoe as catadeiras de areinha, numa só classe.

Todos fazem parte da cadeia produtiva. Porisso, Haroldo tratou de procurar os bonsmineradores. Conseguiu trazê-los e gerou 1.800empregos diretos. A cidade fantasma saiu de pou-co menos de 6.000 habitantes para algo em tornode 10.000. O ensino fundamental, que estava emcerca de 200 alunos na rede municipal, abriga hojequase 2000.

A segunda fase foi tentar agregar valor à pro-dução. O homem que sonhava verde criou umaincubadora de lapidação, tipo uma escolinha depreparação de pedras e artesanato. Ela ainda fun-ciona e Haroldo, durante quatro anos de gover-no, levou seus alunos a feiras de São Paulo e Brasília

Geologia e Mineração. Fizemos um acordo comeles, enquanto eu planejava ações de incentivo aocampo e de criação de escolas para formar artesãoe lapidadores, os que dão formato às pedras.

A primeira coisa seria – decidiu Haroldo –mapear a terra e sondá-la para encontrar novoscorpos mineralizados. Se as mineradoras profissio-nais estavam encontrando, por que não os peque-nos, de que a cidade precisa tanto? Tinha estadocom os grandes, proposto uma parceria, ajuda. Masnão mostraram nenhum interesse.

– Chamei geólogos, contratei sondas de altaqualidade. Trabalhamos duro e encontramos es-meraldas no fundo da terra. Agora, era chamar osbons garimpeiros que se tinham ido. Mas ouseimais. No último ano de meu governo, contratei,para melhores resultados no futuro, um levanta-mento aero-geofísico, que não pôde ser acabadoem meu mandato. Como o futuro prefeito fomoseu e meu grupo que apoiamos, não tinha dúvidasque ele prosseguiria o já feito. Está pronto e levan-tamento, falta a análise dos dados geofísicos, inter-pretar tudo, para sabermos exatamente onde estãonovos veios. “Mas, mesmo sem isto, saímos de duas

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proprietário de todas as terras daqui. A gente preci-sa da licença definitiva do DNPM sobre as áreaspara trazer os investidores. Nós tivemos alguns gru-pos de capitais internacionais que me disseram: “Ôprefeito, como é que nós vamos investir um, doismilhões de dólares, se nós só temos a permissão paraa lavra garimpeira?” Mesmo assim, conseguimos tra-zer 35 mineradoras para cá, que empregaram l800pessoas, e temos 60 lavadores de xisto.

No lavador de areinha, temos catadeiras. Aareinha é mineralizada e as moças tiram dela mi-núsculas esmeraldas, que servem para fazer, porexemplo, alianças, brincos e adornos.

Em outra vertente, como os alunos de Enge-nharia de Minas, Geologia, Topografia e GestãoAmbiental têm de fazer estágio em campo, Harol-do investiu no sentido de fazer de Campos Verdesum centro de geo-treinamento. Estudando nasminas que têm um material didático e prático fan-tástico para eles, vêem como é feito e, ao mesmotempo, juntam a prática à teoria. Até Haroldoaproximar pessoas tão diferentes, os garimpeiros ti-nham muita restrição com o engenheiro de minase o geólogo.

para expor os trabalhos. Tudo em parceria com oFunmineral, que é o órgão de financiamento dogoverno do estado para os artesãos que aprovei-tam os dejetos da exploração. Ele fez tambémgrandes feiras de pedras, que encheram a cidadede novo, de gente de todos os cantos de Goiás ede fora de lá. Os que mais comemoravam isto eramou poucos hotéis e as casas particulares que acaba-vam por dar hospedagem.

Um estranho dueto de donos

O caso de Campos Verdes em relação à mine-ração é atípico. O município foi emancipado, masa terra é de um proprietário particular.

– Temos sempre dificuldades para obter o direi-to de uso definitivo do solo junto ao DNPM, que éo órgão regulador da exploração de produtos mi-nerais. Eu costumo brincar – continua Haroldo –que Campos Verdes é a única cidade do mundoque tem um prefeito e um dono, já que ele é o

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mos uma infra-estrutura para que se tornasse pos-sível este tipo de visitação. E inventamos um pro-jeto chamado “Garimpe e Pague”, onde as pesso-as compram carrinhos de xisto a preços diversos eelas próprias separam as pedras em uma bancadaprópria. O que a pessoa achar, leva para si. Cria-mos a Associação dos Mineradores, para que insti-tucionalmente tivéssemos uma entidade que os re-presentasse e nos ajudasse numa fiscalização paragarantir a qualidade do setor.

Haroldo abriu novos caminhos para os garim-peiros proporcionando-lhes cursos rápidos degemologia, dando ênfase ao princípio de que elesnão podem enganar os compradores, mas têm odireito de tirar o máximo proveito do seu produtoem termos de negócio. A conscientização foi gran-de e parece que o resultado foi positivo.

– Até a minha chegada, os trabalhadores emmineração recebiam menos de um salário mínimomensal pelo seu serviço – fala Haroldo. Nós fize-mos um trabalho de conscientização com osmineradores no sentido de que os trabalhadoreseram, no final, associados deles. Assim, deviam pa-gar pelo menos um salário mínimo e garantir a

Durante a campanha de Haroldo, os santinhose folhetos, além do rosto dele, mostravam umasonda. Isto fez com que os garimpeiros acreditas-sem mais na tecnologia. Três geólogos para fazerum plano. Em fevereiro, Haroldo levou um planopara a Agin em Goiânia, e ouviu lá dentro: “Foi aprimeira vez que nos apresentaram aqui um proje-to pronto e acabado”. A avaliação que se tinha éque 90% do garimpo não havia sido explorado,tanto que o trabalho que foi feito ia no máximoaté 150 metros de profundidade. Já no levanta-mento aero-geofísico, no final do mandato, foi até300 metros de profundidade. O certo é que secontinua achando pedras.

– Fizemos também trabalhos paralelos de cons-cientização em várias áreas, como por exemplo, natrabalhista, com cursos de segurança em parceriacom o Ministério do Trabalho, diminuindo o nú-mero de acidentes. Para mostrar a qualidade denossas pedras criamos a Feira da Esmeralda. Ela foiuma vitrine para os mineradores, garimpeiros eartesãos. Paralelamente, criamos o turismo mine-ral, incentivando a vinda de pessoas de fora paravisitar as minas. Chamamos os mineradores e cria-

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aí até hoje. Abrimos um posto odontológico, comum atendimento que não existia, e reformamos eampliamos o Hospital Municipal. A Vigilância Sa-nitária veio aqui, na região do Vale São Patrício,em 2002, e o nosso hospital foi o único que nãofoi fechado. Todos os demais não se enquadravamnas novas normas e até hoje nosso hospital funcio-na bem. Antes, 80% das crianças, filhas de pais da-qui, não nasciam em Campos Verdes: a certidãode nascimento era de Santa Terezinha, Goiânia evárias outras cidades. O pessoal não confiava nemna equipe médica, nem no hospital. Com areativação da cidade, o quadro passou a ser o in-verso, principalmente nos dois últimos anos degoverno: o povo de Santa Terezinha passou a setratar aqui e tivemos problemas. A despesa aumen-tou muito e eu tinha um quantitativo de receitaque não cobria o aumento. Ele foi gerado, princi-palmente por causa de mulheres que queriam fa-zer períneo e laqueadura. Isto me obrigou a umcontrole mais rígido.

Um setor que mereceu a maior atenção deHaroldo Naves desde o primeiro dia de governofoi o educacional. Como reflexo da decadência

eles uma participação no lucro. Então, se o traba-lhador está tirando mil carrinhos de xisto, tem di-reito a uma percentagem, em um acordo feito en-tre eles. É claro que a pessoa se sente mais motiva-da para trabalhar.

– Os reflexos de tudo o que estou falandoaconteceram logo e podem ser vistos por qualquerum. É só olhar a rua principal e ver as fachadas dascasas e lojas comerciais. Embora não seja nenhu-ma maravilha, ela tem um visual e um conjuntoharmonioso, para uma cidade do tamanho da nos-sa. Antes, no período da decadência, estava tudoem ruínas.

Vereadores na escola

Na área médica, Campos Verdes se ressentiado fato de só ter um profissional da saúde, umúnico médico.

– Aí, implantamos o Programa Saúde da Fa-mília, trouxemos mais dois médicos e os três estão

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– O primeiro Conselho Tutelar da Infância naregião foi o daqui. Os cinco conselheiros eleitospela comunidade fazem um trabalho de conscien-tização das famílias e também no sentido de evitarque os adolescentes, principalmente as meninas,caiam na prostituição. Os garimpos são, tradicio-nalmente, conhecidos por atrair mulheres, algu-mas quase crianças, que atendem os aventureirosem seus momentos de solidão. O Conselho estácompletando cinco anos e foi um trabalho fantás-tico.

Quando sentiu que alguns projetos esbarravamna falta de visão de alguns, Haroldo tratou de tra-balhar a Câmara.

– Senti a necessidade de aprimorar os conheci-mentos de quem trabalhava comigo. Por isso, emum primeiro momento coloquei um vereador, queera o presidente da Câmara, e mais quatro secretá-rios municipais para fazer o curso de Gestão Públi-ca na UEG. Na segunda fase, eu mesmo me ma-triculei junto com outros sete vereadores. Os oitovereadores concluíram o curso e hoje são gestores,e boa parte deles está fazendo pós-graduação. Éum curso mais rápido, de três anos: parte deles

que a cidade vivia, a educação estava em situaçãocaótica.

– Sem modéstia, fiz um grande trabalho na áreae ganhamos vários prêmios educacionais no estado.Descentralizamos a administração municipal, com oConselho Municipal do Fundef, fundado pelos pro-fessores. Formamos 130 professores: primeiro, cria-mos o Pró-Formação, substituindo o magistério e,depois, o curso de Pedagogia. Levamos o pessoalpara as Faculdades de Uruaçu, em cursos feitos desexta-feira a domingo, durante o período letivo e emhorário integral, nas férias escolares. A Faculdade éda Universidade Estadual de Goiás, mas é paga: aPrefeitura pagava a mensalidade, dava alimentação etransporte. Outra realização foram os cursos de alfa-betização para jovens, além da idade escolar e deadultos No primeiro, há o caso de um vereador da-qui, o Jorginho, que concluiu o primeiro grau, fez osupletivo e entrou para a faculdade. Já entre os adul-tos, conseguimos chegar à marca de 800 pessoas al-fabetizadas.

Embora não se enquadre especificamente naárea educacional, outra realização de Haroldo écitada com muito carinho:

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geologia, de topografia, de sondagem, enfim, doutoda a infra-estrutura de que você precisar. Eu vim,tomei a frente da coisa e o trabalho começou. Eusabia que era uma empreitada de médio a longo pra-zo e, graças a Deus, os resultados estão aparecendo.

– Eu também tinha no Rio de Janeiro uma fá-brica de artesanato mineral e meu maior problemaera a falta de mão-de-obra. Pensei em trazer umafábrica dessas para cá, mas precisava de apoio. OHaroldo topou e fez ainda mais: montou um cursode artesanato na Prefeitura para ensinar o ofício.Quer dizer, o projeto empregou pessoas que esta-vam sem trabalho e ensinou uma profissão. Alémdisso, aproveita os rejeitos da exploração, que anteseram jogados fora. Eu continuo com a minha fá-brica aqui na mina, apesar de não ter mais apoiopolítico. Isto tem levado muita gente a abandonara profissão de artesão. O meu artesanato já foi ex-posto em várias capitais brasileiras e tenho um distri-buidor exclusivo em Caldas Novas e Foz do Iguaçu.

Depois de tanto trabalho, e um milhão e meiode investimentos, sempre achando pedras quase semvalor, ele alcançou, no começo de março de 2006,o seu objetivo: chegou ao veio que procurava, va-

concluiu o estudo durante o meu mandato e aúltima turma em março do ano passado, quandoeu já havia deixado a Prefeitura.

O atual presidente da COOP-CAMP – Coope-rativa de Extração de Minério de Campos Verdesde Goiás é o garimpeiro Kley Torres, proprietário daTitam Mineração. Esta é a forma com que ele seapresenta para todas as pessoas, mas o seu nome debatismo é Temístocles Moura Torres.

Carioca de 53 anos, bem falante, brincalhão esempre com um sorriso nos lábios, ele é uma pes-soa que já faz parte da história da cidade, emboranão possa ser incluído entre os pioneiros da explo-ração de minério.

– Eu comprei pedras aqui, em 1986, no auge dogarimpo, porque tinha uma joalheria no Rio de Janei-ro e vim atrás de preços melhores. Aí, me interessei poruma mina. Não foi um bom negócio por uma série demotivos, entre os quais o principal foi o de não estarpresente para administrar bem o empreendimento.Chegou a um ponto que pensei em desistir.

A situação começou a mudar em 2001:– Quando o Haroldo assumiu, ele me fez um

convite: você vem para cá e eu lhe garanto a parte de

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– Eu tive um caso que me marcou muito e quefaz parte do folclore do município – diz Nival Nunes,um dos mineradores que voltaram a Campos Verdesdurante a administração de Haroldo. – Aconteceuem setembro do ano passado e foi manchete de pri-meira página nos jornais de Goiânia e também devárias televisões. Eu e dois empregados meus ficamossoterrados, a mais de 40 metros de profundidade ecom água por todos os lados, cobrindo parte dosnossos corpos. Mais de sete horas ali e o pessoal lá emcima achava que a gente tinha morrido.

Nival continua:– Mesmo sentindo-me no outro lado da vida,

procurava incentivar os soterrados, dizendo que agente ia se salvar, que o pessoal já estava procuran-do um jeito de nos tirar dali e coisas desse tipo. Apequena bolha de ar que nos mantinha vivos foiesquentando de tal jeito, com nossa respiração e ocalor do corpo, que a gente tinha de baixar a ca-beça e molhar até o nariz. Estávamos cozinhandopor causa do ar quente, da falta de ar, da impossi-bilidade de respirar. Ao mesmo tempo, a parte queficava mergulhada, da cintura para baixo, sentiafrio, muito frio.

zou, no linguajar típico dos garimpeiros, achou umcaminho novo, repleto de pedras verdes. Espera re-cuperar seu investimento nos próximos quatro me-ses com uma produção contínua e já faz planospara contratar muita gente.

O carioca virou campo-verdense de quatro cos-tados, tanto que até constituiu uma nova família.Desquitado, se casou com uma jovem que conhe-ceu no projeto da Fábrica de Artesanato.

Nosso fotógrafo, Sílvio Simões, desceu pelopoço de Kley, de l50 metros, acompanhado deHaroldo. Sentiu-se morrer lá dentro, tal o calor eo aperto. Haroldo, acostumado a acompanhar seusgarimpeiros, saiu rindo.

O bafo de Deus

Sílvio, no entanto, está desculpado pela mo-leza. Há histórias incríveis sobre a coragem aque chegam os homens que ambicionam as pe-dras. Vejam:

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– Você tá vivo ou morto?Apesar da situação, Nival e outros tiveram von-

tade de rir. Binha era um fiel empregado, cheio decisma com os mortos. Nival gritou de novo queestava vivo e, pouco depois, eram salvos.

Quando chegaram à boca da mina, foi uma festa.A cidade toda lá. Muitos falavam em luto oficial: umferiado de três dias. Na verdade, os quase mortos eramtrês amigos de Haroldo, que acreditaram no seu mila-gre de desenvolvimento, e que ali estavam, trabalhan-do para que a cidade se regenerasse de um longo tem-po de abandono. Era traumático perdê-los

Nival Nunes, minerador desde l98l, que já pas-sara por Nova Era, em Minas Gerais, Bahia e Por-to Lacerda, em Mato Grosso, sempre atrás da for-tuna arrancada do seio da terra, hoje vai a encon-tros religiosos todas as semanas. Nunca mais be-beu, nunca mais foi a um forró.

Baseado em seu passado de lutas e depioneirismo, Nival Nunes analisa a situação queencontrou em sua volta para Campos Verdes, jun-tando seus sonhos aos de Haroldo Naves:

– Haroldo, na verdade, redescobriu a esmeral-da de Campos Verdes e fez um bem enorme para

– Eu não sabia, mas a cidade estava mobiliza-da para nos salvar. Até o Corpo de Bombeiros deGoiânia já tinha sido chamado e corria para che-gar a tempo. Não chegou – continua contandoNival Nunes.

O pai dele, um velhinho de uns setenta anos, aquarenta metros dali, era dos que mais faziam for-ça, puxando e esticando as cordas, tirando água elama de xisto. E a mãe, do lado, se irritava comum vizinho que dizia não haver mais esperanças:

– Vê lá se o meu filho morreu. Não, ele estávivo e a gente vai tirá-lo de lá. Eu confio em Deus.

Na verdade, Nival Nunes já não tinha esperan-ças. Ele, que nunca crera em nada, estava sentin-do o bafo de Deus, preso em uma bolha de ar,entre as camadas de água que vieram dos dois tú-neis e se encontraram no local.

– Deus – disse Nival – me mostre que vocêexiste.

Ouviu uma voz chamando o seu nome. Pen-sou que era alucinação, tamanho o calor e friojuntos. Ouviu de novo e reconheceu:

– Oh, Binha, nós estamos aqui.O homem não acreditou:

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promessa de algumas autoridades de que o pro-cesso de mineração terá prosseguimento, assimcomo o de prospecção. É o que esperamos.

A cidade, de fato, se despovoa mesmo outravez. Mas, além de Kley, outro garimpeiro vazouagora em março. Graças às sondagens de Harol-do.

Bom para muitos

Não foram só os garimpeiros que se beneficia-ram com a administração de Haroldo Naves. Pes-soas sem nenhuma ligação com o garimpo tam-bém conseguiram melhorar e, em alguns casos,mudar de vida por causa de projetos ligados à mi-neração.

No “Garimpe e Pague”, Carlão pediu um car-ro cheio de xisto. Qualquer pessoa pode comprarum carrinho de mão, destes de construção, e elepróprio fazer a garimpagem, lavando aquelas pe-dras. O xisto é tirado do fundo da mina e, quando

a cidade. Antes, Santa Terezinha é que era conhe-cida mundialmente como a produtora e, depoisdele, é que Campos Verdes passou a ser reconheci-da como tal. A emancipação de Campos Verdesnão foi em 1988 mas, sim, depois da implantaçãoda Feira da Esmeralda.

Acontece agora uma coisa – diz Nival, em tomveemente – que me entristece muito: o descasocom a nossa situação. Outro dia, o atual presiden-te da Associação procurou o prefeito, pedindo queele nos desse uma audiência, porque o garimpocorre o risco de morrer novamente, por falta deapoio político. E o prefeito nos disse que, para ele,dez casas populares eram mais importantes do quenós. Isso nos entristeceu muito, porque todo mun-do sabe que o vale do São Patrício se auto-susten-tou por causa do garimpo: hotéis, comércio, tudo.Antes, era tudo construído em Santa Terezinha.Porque aqui, você pode ver pelo mapa, é fim delinha. Não há estrada, não há mais nada depois denós. Quem chega, gosta de garimpo, é tatu mes-mo. E quer algo precioso, a esmeralda. Nós preci-samos é da continuação do trabalho anterior, in-clusive com novas prospecções e estudos. Temos a

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baiana Rita Ribeiro de Almeida. Há 20 anos, veiocom a família para montar uma pequena padaria.

– No início, o negócio foi muito bom, mas,depois, chegamos a perder quase tudo. Haroldodevolveu pra gente a situação antiga, mas hoje commaior segurança. Não há mais bandidagem e nemprostituição. Sem ajuda, os mineradores não dãomais empregos.

Quem ajuda no comércio da baiana é EdvanRodrigues dos Santos, o Jacuba. Para ele, todosda cidade dependem do sucesso do garimpo. “ÉDeus em primeiro lugar e Haroldo em seguida”.

Haroldo era contra a cobrança de impostos,indiscriminadamente, porque queria estimular o se-tor produtivo e gerar empregos.

– Se você começa a arrecadar num lugar tãopobre, qual o estímulo que o investidor tem emrelação ao município? – pondera.

Na verdade, o garimpeiro precisa de ajuda paracomprar seus equipamentos. No Código MineralBrasileiro, a esmeralda foi enquadrada nas pedrassemi-preciosas e o imposto é de apenas 0,20%. Par-te fica com a União, outra com o governo estadu-al, e outra, para o município. É muito pouco, quase

você o escolhe, processado. Se tiver pedra grande,que apareça logo, não é vendido. Mas, se não...Carlão era um jovem trabalhador de um depósitode material de construção. Pegou o carrinho e co-meçou a vasculhar. Explodiu em seus dedos umapedra verde, límpida. Ele quase morre de susto.Mesmo passando por tantos atravessadores, Carlãoconseguiu seis mil reais nela.

O dono do depósito queria ir embora; os temposdas vacas magras haviam chegado. Carlão comprouo comércio, para pagar o resto quando pudesse. Hojetem o maior depósito da cidade e ao seu nome foiincorporado o da firma: Carlão da Comacol. Hoje,para a cidade, ele é um homem rico.

José Camelo e um amigo compraram dez car-rinhos de xisto por R$400,00 e encontraram umapedra, que foi vendida por R$15 mil. Depois, sou-beram, acabou revendida por 40 mil. Oatravessador neste negócio existe mesmo e não temjeito. Faz parte da cultura e todo mundo aceita,porque muitos mineradores são corretores tam-bém.

Muita gente simples se beneficiou e ainda sebeneficia indiretamente do garimpo. É o caso da

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– Liga, Haroldo, Liga – eu digo– Não. Se eu fechar as janelas e ligar o ar, eles

vão achar que eu sou metido e não querocumprimentá-los – responde ele, fazendo o milési-mo aceno de mão do dia – porque eu querocumprimentá-los. São meus eleitores.

Haroldo por ele mesmo

– A gente deve ter responsabilidade na mis-são que está cumprindo. Eu não gosto de jo-gar culpa nas costas dos outros, quando acon-tece um fracasso ou um insucesso. Às vezes,quando há um sucesso, procuro dividir com oscompanheiros que participaram da empreitada.Sobretudo, se for na administração pública,porque você tem uma assessoria que o ajuda afazer o trabalho.

Sou aficionado das pesquisas: eu acho quequem conhece a realidade municipal, tem maischances de acertar. Estabelecemos a pesquisa em

nada. Só num segundo momento, quando a pro-dução de jóias chegasse a um patamar elevado, iriarepresentar um valor significativo.

O município é muito novo e vai completar 18anos de autonomia agora em 2006. Haroldo ocupao quinto mandato na Prefeitura, mas por lá já passa-ram oito prefeitos. No mandato de 93 a 96, passa-ram quatro pessoas. Foram eleitos o prefeito e o vice.Cassou-se o prefeito e o vice assumiu. O prefeito elei-to perdeu o mandato na Justiça Eleitoral e o vice-prefeito caiu porque era acusado numa ação. Assu-miu o segundo colocado que, no finalzinho do man-dato, também foi cassado. Por fim, assumiu o seuvice, que conseguiu concluir o mandato.

Quando Haroldo entrou, havia umas 60 em-presas registradas na cidade, e quando saiu deixou180, a maioria de comércio e mineração. Há mui-tos bares, mas a maioria não é registrada.

– Tudo foi feito sem prejudicar o interesse dequem pudesse voltar à cidade para trabalhar sério eengrandecê-la.

Haroldo nos fala isto no seu Santana, que nãoé novo, mas tem ar condicionado. Ele não estáligado e a cidade é quente, estorrica.

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tura equivocada de romper o modelo administra-tivo de gestão anterior, por questões menores, atépor ciúme. Eu acho que precisaria ter uma seqüên-cia. E não concorri à reeleição, porque sabia que,ao final de oito anos, este ciclo poderia acabar e euser julgado pior que por um mandato apenas. Aspessoas tendem a não ver o trabalho dos executi-vos que se reelegem. O que precisa ter uma se-qüência não é a pessoa que está no cargo, é oprojeto da comunidade. O próprio Sebrae, nestaquarta edição do projeto Prefeito Empreendedor,atribui pontos positivos ao prefeito que dá conti-nuidade aos projetos de outra administração, parafins de premiação.

É indispensável que haja esta seqüência admi-nistrativa, independente de ser o partido A, B ou C.

Sobre a atual administração, que nosso grupoajudou a eleger, acho que cada gestão tem um mo-delo de administrar. Quando você está trabalhandoem uma situação em que entende que aquele mo-delo está dando certo, que você está contribuindode forma decisiva e coerente com o projeto, vocêpermanece fiel a ele. Da mesma forma, quando co-meça a se sentir excluído ou sentir ciúme pelo seu

todas as áreas, para fazer um planejamento estra-tégico. Não só da potencialidade econômica, mastambém do ponto de vista social, inclusive da criseagro-pecuária, da qualidade da terra, toda esta pes-quisa tem de ser feita. Nós realizamos o planeja-mento estratégico com o objetivo de fazer o mu-nicípio avançar nestes quatro anos em que fiquei àfrente do Executivo.

É possível aumentar a produção agropecuáriade Campos Verdes. Nós até já conseguimos umpouco nestes quatro anos, embora seja um pro-cesso gradativo. Mas tenho certeza de que podemelhorar sensivelmente.

Os especialistas, os técnicos, as pessoas que têmqualificação querem fazer o seu trabalho, mas épreciso que o agente público lhes dê condições detrabalhar. Nós demos a oportunidade, e não sópara aqueles que tinham conhecimento, mas pro-curamos também qualificar outras pessoas que nosassessoravam para adquirirem capacitação técnicae tornarem-se especialistas, para nos ajudar em vá-rias áreas. Eles continuaram na atual gestão, masestão saindo. Eu atribuo isto à falta de uma se-qüência administrativa. No Brasil ainda há esta cul-

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podemos avançar muito ainda na questão mine-ral, mas é necessário investimento de maior valor.O custo operacional é mais alto e você precisa teraumento de produtividade, para que o projeto sejaviável economicamente.

Eu tentei várias vezes atrair empresas de grandeporte para o município, mas primeiro é preciso re-solver o problema do solo de Campos Verdes. Exis-te uma demanda jurídica, já que os proprietários daterra, Antônio Rosa e Afrânio Rodrigues, entendemque o terreno é deles e não permitem que a Agên-cia Ambiental tire a licença do Meio Ambiente.

Então, está emperrado nisso aí e dificulta queum grupo de peso invista um, dois milhões de dó-lares, em uma área que está com pendência judici-al. É preciso resolver esta situação. Na minha opi-nião, a solução é desapropriar. Seria o melhor emais rápido. Já há a consciência do Poder Judiciá-rio de nossa comarca de que, se o poder PúblicoMunicipal fizer o depósito da desapropriação, elesemitem a posse do município imediatamente.

Hoje, eu me sinto triste, diante do risco de vera cidade diminuir e o povo ir embora de novo.Fizemos um processo de recuperação do municí-

próprio trabalho não crescer, aí às vezes você pro-cura abandonar aquele projeto. É aquela famosaSíndrome de VIC – Vaidade, Inveja e Ciúme.

Hoje, eu estou na assessoria do governador deGoiás e como consultor do Sebrae. Dentro das nos-sas possibilidades, estamos ajudando a comunidadena área social, incentivando as micro e pequenasempresas, por meio da Agência de Fomento do Cré-dito, com juros mais baratos e maiores prazos decarência. Agora, estamos com um projeto junto àSuperintendência de Geologia e Mineração para in-terpretação dos dados aero-geofísicos, cujo levan-tamento fiz no final do nosso mandato. Até hoje,não foi feita a leitura desses dados e estamos tentan-do que o governo estadual banque a empreitada,que talvez fosse uma função do município. Isto podetrazer para os nossos mineradores a possibilidade deatuar em minas até 300 metros de profundidade.

Entendemos que as nossas jazidas só foram ar-ranhadas. Mais de 80% não foram explorados ain-da: segundo uma avaliação geológica, o valor de-las é de 5 bilhões de dólares. Nós temos exemplos,como o da Colômbia: lá se tiram esmeraldas atécom 1.300 metros de profundidade. Ou seja, nós

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Caminha firme para novas posições em prol doVale de São Patrício, onde está sua cidade. Cami-nha na verdade sobre milhões de dólares de pedrasverdes, esmeraldas de alta qualidade. Os passos jo-vens são firmes. Ele sabe aonde quer chegar. Echegará.

pio, que estava no caminho de ser uma cidade fan-tasma. Nós conseguimos reverter a situação: a ci-dade voltou a crescer, as pessoas retornaram e acre-ditaram.

Campos Verdes voltou a gerar, render, dar em-prego, trabalho e infelizmente, por falta de seqüên-cia administrativa, corre o risco de voltar a mingüar,se não houver investimentos no setor das esmeral-das. Os moradores estão perdendo a fé no poten-cial econômico do município e esta falta decredibilidade, junto com a falta de apoio, faz comque as pessoas se mudem. Só espero que não che-gue à situação em que encontrei Campos Verdesem 2000. A cidade e seus habitantes não mere-cem uma reprise.

• • •

É assim Haroldo Matos. Um homem que so-nha. Agora, caminhando em meio à artéria princi-pal de Campos Verdes, revê sua obra. Há fotos emque a avenida larga já não existia. Hoje, uma lojaatrás da outra, todas com bom acabamento, algu-mas de gosto apurado.

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Capítulo II

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– NNNNNão acredito, Osvaldo! Eu não acredito quevocê vai sair de novo. Sabe há quantos dias vocênão almoça em casa? Sabe há quanto tempo vocênão brinca com o Valtinho? O menino está cres-cendo sem pai, homem de Deus. Maldita hora emque você se meteu nessa política!

Dona Elvira ainda podia se lembrar da festa decomemoração da vitória do marido OsvaldoMartins, nas eleições municipais daquele ano de1959. Às vésperas de completar 34 anos, fora elei-to na pacata Osvaldo Cruz, município do oeste deSão Paulo. Elvira comemorou. O marido estava

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café. A família se dedicava à compra e venda decereais e, posteriormente, desenvolveu-se em vári-as atividades agrícolas, comerciais e industriais. Foivereador, prefeito, e ao morrer, deixou um herdei-ro político que o superou, Valter Martins, um doscinco vencedores do Prêmio Sebrae Prefeito Em-preendedor em 2002.

Para a mãe, no entanto, os sofrimentos nãohaviam acabado:

– Valtinho, que negócio é esse de UNE, meufilho? Você vai ao colégio é para estudar e não parafazer política! Você está igualzinho a seu pai comessa mania de querer mudar o mundo!

Dona Elvira fingia-se aborrecida com os movi-mentos do filho, mas no fundo dos olhos qual-quer um leria a palavra ternura. Era impossível nãogostar de vê-lo assim, sempre ativo, sempre defen-dendo um ideal. Lembrava mesmo o pai. Mas per-cebia no menino uma coisa que não sabia muitobem explicar: ele era detalhista demais. Valtinhovivia anotando tudo. Tudo mesmo, até conversasdesnecessárias. Depois ficava ali, horas, com o pa-pel na mão, lendo e balançando a cabeça, como sefalasse consigo mesmo.

feliz, isso era o que importava. Afinal, trabalhoutanto para chegar até ali. E ela, Elvira, mal via ahora de ver o marido em casa de novo, perto dafamília.

Já prefeito, havia muito mais motivos para re-clamações.

– Pai, vamos jogar só uma partida de botão?– Depois meu filho, papai já está atrasado para

uma reunião na Prefeitura.– Ah, não! Você nunca pode brincar comigo!

Ontem, eu fiquei esperando até tarde para você leraquela história pra mim. Você nem chegou!

Valtinho não entendia por que, além do paiestar sempre fora de casa, quando chegava tinhasempre alguém com ele. Mas gostava quandoConceição, a empregada da família desde o casa-mento de seus pais, dizia, com os olhos brilhan-do, que seu Osvaldo era um homem muito im-portante que só pensava em melhorar a vida dopovo da cidade.

Lembrado em toda a região como um exce-lente administrador, o ex-prefeito Osvaldo Martins,já falecido, era um homem do comércio. Chegoua Osvaldo Cruz ainda jovem, no auge do ciclo do

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A mulher simples oferece um café. Deve ser ocentésimo do dia. Ele bebe com um sorriso.

– Ô Valtinho, arruma um jeito d’eu trabalhar!Se você for eleito prefeito resolva esse negócio defalta de emprego pra nós, meu filho. Não está dan-do mais para viver só com o dinheiro do velho. Osmeninos precisam de calçado, de caderno, e as coi-sas no armazém estão pela hora da morte. O jeitoé eu também arranjar um meio de ganhar dinhei-ro.

– Está bem, dona Rosa, me diz uma coisa: oque é que a senhora sabe fazer?

– Ah meu filho, eu sou dona de casa. Nuncasaí para trabalhar, sempre cuidei da lida. E nemtenho muito estudo.

Ele anota na agenda: “É preciso qualificar asmulheres do lar”. E repete mais ou menos isso, empalavras mais simples:

– Não desanime, dona Rosa. Vou dar um jeitoda senhora aprender a fazer muita coisa que dádinheiro. Eu garanto à senhora, não há de faltartrabalho para quem quer trabalhar.

Em 120 dias Valtinho visitou 98% das casas domunicípio de menos de 30 mil habitantes. As con-

Ao lançar-se candidato à Prefeitura da cidadenaquele ano de 1996, Valter Luiz Martins já haviaocupado o cargo de vice, de 1983 a 1988. Deci-dira que seu plano de trabalho seria elaborado apartir de todas as necessidades apontadas pelosmoradores do município.

Já casado com Marilza, repete com ela tudo oque a mãe havia vivido.

Casa por casa

– Mulher, vou visitar 100% das casas de Osval-do Cruz. Quero ouvir o povo, Marilza. Queroque me digam o que está faltando, o que é impor-tante, o que precisa melhorar.

Marilza, diferente da mãe dele, gosta de políti-ca e não reclama das ausências. Conhece o ho-mem com quem se casou de véu e grinalda, e porquem continua apaixonada como no primeiro dia.Sabia que se ele decidiu visitar todas as moradiasiria chegar muito perto disso.

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agora era outra e demandava custos, busca desolução.

Não se lembrava exatamente em que ritmose deu a desativação da Companhia, que maistarde havia sido substituída pela Rede Ferroviá-ria Federal. Tudo que podia recordar era que otrem, verdadeiro coração pulsante da cidade, tra-zia e levava cartas, encomendas, cargas e pesso-as queridas. Um dia, deixou de apitar. Foi estra-nho o dia em que a mãe, toda vestida para viajaraté Marília, tomou uma jardineira. O carro subs-tituía o trem, que, naqueles tempos, pouco api-tava. Só era usado para cargas. Já não levava etrazia pessoas. Ninguém mais corria à estaçãopara ver quem chegava, quem partia. Um dia, oapito se calou definitivamente. No outro, as ca-sas da colônia de ferroviários estavam vazias.

– Precisamos dar um jeito nisso. Não bastasseessa confusão toda de prostitutas e drogados, aqui-lo ali está levando dinheiro da Prefeitura. Quantasvezes, num semestre, mandamos limpar o matagal?

– Mas tem que limpar, prefeito! Se não limpa-mos, o lugar fica cheio de ratos e mais perigoso –afirma um assessor.

versas, anotadas, serviam para ele matutar em casa,como a mãe o via quando mais jovem.

Novos trilhos para o problema

A polícia foi chamada mais uma vez para pôrordem no matagal da FEPASA: uma briga feiaentre duas prostitutas e um rapaz que vendia dro-gas. Isto era uma rotina.H

Valtinho lembrava com saudade dos temposda estrada de ferro da Companhia Paulista, queinstalara em 1949 uma vilazinha para seus funcio-nários, ao lado da estação.

Ainda podia ver as crianças jogando bola narua, as mulheres dependurando roupas no varal,os homens com o uniforme da companhia ferro-viária e o trem, indo e vindo, enchendo a cidadecom o som alegre das rodas sobre os trilhos queele, Valtinho, imaginava ouvir dizer: “Com licen-ça, estou passando, estou passando, estou pas-sando...” Bons tempos aqueles, mas a realidade

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A antiga estação, restaurada, abriga hoje a Se-cretaria de Cultura, Lazer e Turismo. A doentevila da Fepasa, antro de prostitutas e drogados, éhoje um espaço agradável onde ficar.

Além do centro comercial o lugar abrigou tam-bém a rodoviária e o Corpo de Bombeiros.

É um centro comercial tão forte, que só umhomem, Fernando Maschio, o Nino, pode expli-car, com o carinho que tem pelo lugar:

– Olhe aqui, minha loja de material de cons-trução tem 435 metros quadrados de áreaconstruída e a gente faz questão de servir umcafezinho para quem vem aqui. Quer um?

Está contente com o negócio. Tem orgulho daloja, imensa, em comparação com a outra que abri-ra, ainda rapazola, em frente à igreja matriz, nocentro da cidade. Aos 32 anos, Nino se sente reali-zado. Já pagou o prédio próprio. Não deve nemum tostão. E às vezes sente, por baixo do chão, otrepidar do cortejo de vagões que testemunhou nainfância.

– Mãe, vou ver a procissão!– Que procissão, Nino?– Do trem, mãe!

– Mas tem de haver uma solução, meu amigo.O mato cresce, a Prefeitura vai lá e limpa. Os mar-ginais infestam o lugar, a polícia vai lá e dispersa.Está errado, está errado. Tem muita gente moran-do naquela região, os jovens que estudam a noitevoltam tarde para casa e passam por lá. Já viu aescuridão daquilo?

– Mas o que é que a gente pode fazer? A vilapertence ao estado.

– Eu sei, eu sei. Vamos transformar essaabóbora em carruagem. O matagal vai deixarde ser fonte de despesa e preocupação e se tor-nar fonte de renda, benefício, para OsvaldoCruz.

As negociações entre Valtinho e o governo doestado levaram meses. Finalmente, a Prefeitura com-prou a área da Fepasa e iniciou ali, sem demora,um projeto de revitalização. Tratores destruíramas velhas casas, agrimensores desenharam nova ave-nida, em pouco tempo havia 14 lotes para vender,licitados, com bom preço e possibilidade de paga-mento em até 36 meses, de forma que o centrocomercial e de lazer receberia comerciantes de bomnível.

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em tudo. Usa a cooperativa de mão-de-obra, outrodos grandes projetos de Valtinho que encantou seusmunícipes. Ele cumpria a promessa de campanhadando às mulheres tantos empregos e se afinava comuma das vocações da cidade. Osvaldo Cruz tinhana época uma indústria, a Lino Forte, que precisavamuito de costureiras. Valtinho não teve de inventar:bastava apenas ensinar o ofício às mulheres. Procu-rou o Sebrae e, em seguida, o governo do estado.Ambos ajudaram com o projeto de capacitação everbas para máquinas e instrumentos necessários.

A Prefeitura não só deu apoio total à criação dacooperativa, como bancou, no início, todas as despesas.

Serviço não faltou às costureiras de OsvaldoCruz. Trabalharam dias seguidos na confecção demais de 30 mil peças de uniformes, posteriormen-te doados a alunos das escolas municipais.

O curso de panificação do Centro de Capacitaçãofoi comprovadamente um sucesso. Mulheres queMarilza viu chegar tímidas, meio perdidas, tanto àpanificadora quanto ao curso paralelo de alfabetiza-ção de adultos, agora já conversavam, contavam coi-sas da própria vida. Ler, escrever e ter uma profissão,está provado, é o melhor remédio do mundo para

– Eta, menino, você tem cada uma!Nino ficava lá, a certa distância: 9, 13, 16... O

menino contava os vagões. Depois, corria para veros passageiros que desembarcavam.

– Vai ser o que quando crescer, Nino?– Eu vou ser comerciante, tio Zé.

Lições para governar

– Que maravilha, Valtinho, não se fala em outracoisa na cidade. As mulheres de Osvaldo Cruz apren-dendo um oficio, produzindo e recebendo! O povoestá feliz, meu filho. Quer coisa melhor do que ter seupróprio dinheirinho? Essa cooperativa foi uma bênção.

– Pois não é que é, minha mãe? E agora, com essenegócio que a Marilza inventou de dar enxovais pararecém-nascidos, estamos com mais de 600 mulherestrabalhando ali dentro. As máquinas não param.

A primeira-dama é tão empreendedora quantoo prefeito. Envolvida num projeto total de atendi-mento às gestantes carentes do município, pensa

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– Uma coisa que eu acho imprescindível é queo político seja coerente tanto nas escolhas que fazquanto na postura que assume. Um exemplo: odiscurso tem que ser afinado com a prática. Nãoposso falar uma coisa e fazer outra. Eu não confioem político assim.

A opinião firme de Valtinho é influenciada pelo cur-so de Direito que não o levou à advocacia, e por outro,de Gestão Empresarial, que usa em seus cargos públicose na concessionária Volkswagen, de que é dono.

Por isso, não se envergonha de ser insistenteaté conseguir o que deseja.

– Se me dizem que há um único caramelo e sãomuitos os pretendentes, corro atrás, faço os diabos, elevo, nem que seja a metade do caramelo! – costumadizer o prefeito sem arredar pé de seus propósitos.

• • •

– Mas que interessante esta bolsinha de garrafaplástica! – o próprio prefeito se surpreende.

Convidado de honra para a formatura da pri-meira turma do curso extra-curricular Jovem Em-preendedor, em escolas do município, o prefeito não

desinibição. Muitas dessas mulheres já faziam parteda Associação Artesãs da Farinha.

– Já reparou que não fazem mais fila na portado SOS para pedir cesta básica? – perguntou donaAna, a que havia pedido emprego ao prefeito, numencontro com ele.

– Pois é, dona Ana, mas não é só de pão que agente vive não, viu? Quero a senhora hoje lá naPraça da Matriz para ver o coral.

O Projeto Guri, implantado pelo prefeito, tirouas crianças da rua. Viraram músicos. Aprenderam atocar instrumentos e a cantar afinados. Dali, saíramduas orquestras e o coral formado por 150 menores.

À noite, a Praça da Matriz, entupida de gente,aplaudia os jovens artistas da cidade.

É de manhã que começa o dia

Valtinho foi vice-prefeito de Osvaldo Cruz em1983 pelo PMDB. Em 1988 foi um dos fundado-res do PSDB, seu partido atual.

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Italianíssimo

Um prêmio nacional, uma viagem à Itália, e láestava ele concedendo entrevista à imprensa, fa-lando a prefeitos de dezenas de municípios, reuni-dos naquele auditório de um clube de Andradina,no interior de São Paulo, ansiosos por ouvir suasexperiências de prefeito empreendedor.

– Na vida, não há bola perdida. Na tentativa demarcar um gol, o centroavante chuta dez, vinte ve-zes. Pode não acertar, mas haverá outra partida.Do mesmo modo, pode marcar logo de primeira.O importante é chutar para gol – ensina o prefeitoàquela platéia impressionada pelos dados apresenta-dos e os resultados comprovadamente obtidos.

O repórter prestara atenção a cada palavra da-quele homem simples, que chegou carregado degráficos e confirmava, com eles, cada informação:

– Prefeito, como é essa história de ser empre-endedor? Aprende-se na escola? – indaga.

Valtinho sorri e responde sem rodeios:– Embora eu acredite que o empreendedor já

nasce feito, há um lado cultural importante. Mas

se recusava a admirar-se com a criatividade das cri-anças. Meses antes, em visita à cidade de São Josédos Campos, descobrira numa feira de jovens em-preendedores a possibilidade de se trabalhar commateriais que habitualmente vão para o lixo. Voltoua Osvaldo Cruz entusiasmado. E, mais uma vez,foi em busca de auxílio.

– Cavalcanti, no meu município eu quero queas crianças aprendam essa questão de empreende-dorismo dentro da escola e desde o primeiro ano.

O Sebrae forneceu apostilas e treinamento para osprofessores que viriam a ser os agentes difusores nasescolas. O resultado, Valtinho contemplava ali: brin-quedos e peças utilitárias estavam à venda sob o olharatento daqueles jovens empreendedores. Aprenderama produzir, vender, fazer caixa, reaplicar o capital.

A Câmara aprovou, agora é lei. Osvaldo Cruzfoi o primeiro município do país a transformar emlei o Projeto Jovem Empreendedor. E Cavalcante,o gerente do escritório regional, já levou o progra-ma para mais dois municípios.

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Martins uma daquelas oportunidades únicas quea vida traz e às quais temos de nos agarrar.

A divulgação levou muita gente à cidade. Pes-soas chegando de toda a parte, telefonemas, men-sagens eletrônicas. Tamanha foi a demanda de pe-didos de informação que a Prefeitura de OsvaldoCruz acabou criando uma comissão só para aten-der pessoas que chegavam do Mato Grosso, Paraná,Minas Gerais, Goiás e principalmente do estado deSão Paulo, para saber o que havia na cidade.

Foram meses de visitas, palestras Brasil afora etrocas de informações. E de muito trabalho. Oprefeito continuava atento ao dia-a-dia da cidadee aos próximos projetos.

A semana em Turim fechara com chave de ouroa maratona de viagens, visitas técnicas e descober-tas. Ali, o hábito de anotar se revelou improduti-vo. A rapidez dos acontecimentos, o volume deinformações, o ritmo intenso de visitas a departa-mentos e empresas, exigiam agilidade.

O gravador e a câmara fotográfica substituí-ram o bloco de notas. A viagem rendeu muitosrolos de filmes, dezenas de fitas cassete e uma ma-leta de material impresso. E tudo o que Valtinho

creio mesmo que se o político já tem um poucodisso dentro de si e exercita, pratica e tem parcei-ros, suas chances de ser um prefeito empreende-dor são muito maiores. Vejo o empreendedorismotambém como necessidade. Guimarães Rosa diz:“Sapo não pula por belezura, mas porque é neces-sário, senão cobra engole”. Ser um político em-preendedor, que atua nas áreas que seus eleitoresesperam, é quase uma nomeação para as eleiçõesseguintes. Sou prefeito pela segunda vez e não tivedificuldade nenhuma para chegar aqui. Amo o quefaço e fazer coisas que ajudam a uma vida melhoré profundamente gratificante.

A viagem à Itália mexeu definitivamente com acabeça do prefeito. Mal podia esperar para mostrarem Osvaldo Cruz todas as novidades e, mais queisso, para colocar em prática as idéias que lhe fervi-lhavam no cérebro.

O prêmio Mário Covas de Prefeito Empreen-dedor 2002 trouxera muito mais que prestígio evisibilidade. A série de palestras e o contato comprefeitos de outros municípios, as viagens a algunsestados brasileiros, que possibilitaram a troca deinformações e experiências, pareciam a Valter

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produtores encontrariam ali suporte e facilidadesnas negociações. Passaria a ser fácil comprarinsumos e máquinas agrícolas com preços e prazosmelhores.

Valtinho tinha outra pedra no sapato: o antigoprédio do Instituo Brasileiro do Café, o IBC, aban-donado, à mercê dos marginais. Um dia, um deseus assessores chega com a má notícia:

– Desta vez foi sério, Valtinho. Botaram fogona casa maior do IBC. Quando a polícia chegou earrombou a porta estavam lá os três, completa-mente drogados, tentando desesperadamente apa-gar o fogo.

Na área de 50 mil metros quadrados ainda es-tavam de pé o galpão de 1.080m2, três prédios,originalmente construídos para residência, e umescritório de 180 m2. Uma estrutura fantástica,abandonada à própria sorte.

O complexo foi criado na época de ouro docafé na região. No galpão eram armazenados osgrãos comprados pelo governo. Ali se fazia o con-trole de preços. Com o passar dos anos, a ativida-de cafeeira foi diminuindo. O Instituto foi perden-do suas funções até chegar ao abandono total.

desejava, ao embarcar de volta ao Brasil, à sua Os-valdo Cruz, era convocar aquela reunião com aAssociação Comercial e seu secretariado, assesso-res e empresários. Queria discutir com o grupotudo o que poderia ser aplicado no município.

Sempre juntos

Em Turim Valtinho reforçou uma de suas ver-dades: nem sempre se pode seguir sozinho. Res-paldados por associações fortes, os empresários ti-nham condições de competir. A convite da OIT,Organização Internacional do Trabalho, os prefei-tos empreendedores ali estavam e Valtinho, em es-pecial, ficou atento à situação da China e da Coréia,países que estão se expandido por todo o mundo ecompetindo no mercado internacional, graças àforça de grandes associações.

Os exemplos inspiraram a criação da Casa doAgronegócio. Ela nasceu com a proposta de con-gregar, reunir, coordenar todas as associações. Os

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pos, ele vinha se queixando da necessidade de umtrator em sua roça. Não havia dinheiro. Naquelatarde, ouviu a notícia de que a Prefeitura tinhacomprado três tratores, mais implementos, e doa-do tudo à Casa do Agronegócio. Eles seriam em-prestados a quem realmente precisasse.

A área do IBC abrigou ainda empresas priva-das, que geraram centenas de empregos. No mes-mo espaço, aproveitando o terreno, a Prefeituracriou um viveiro municipal de desenvolvimento demudas de café, maracujá, mamão, árvores frutífe-ras e plantas ornamentais. Chegou a produzir edisponibilizar para os agricultores da região maisde um milhão e meio de mudas de café.

Muitos não entendiam o raciocínio do prefei-to ao contar, durante o cafezinho na padaria, queas mudas estavam gerando de 200 a 300 postosde trabalho.

– Faça as contas – disse ele a Jeremias, um ve-lho simpático, sempre na pracinha. – Se pensar quecada 5 mil mudas de café precisam de alguém paraserem plantadas e cuidadas, criamos sim, de 200 a300 novos postos, número que triplica em épocade safra.

O enorme terreno era mato puro. Como asportas estavam bem trancadas, marginais e vicia-dos entravam pelo telhado.

Volta e meia o prefeito se surpreendia, pensan-do numa solução para a área do IBC.

Sair em busca de apoio era tarefa à qual Valtinhoestava acostumado. Não foi difícil conquistar a sim-patia das autoridades federais para sua nova em-preitada.

– Vencemos mais essa, Isaltina, a área do IBC énossa!

– Como assim, Valtinho, que está dizendo?– Conseguimos os prédios por um aluguel sim-

bólico.O prédio do IBC de Osvaldo Cruz foi o pri-

meiro no Brasil a ser transferido para o município,a título de aluguel. Ali foi estabelecida a Casa doAgronegócio.

• • •

Para o senhor Joaquim, pequeno produtor decana-de-açúcar, a Casa do Agronegócio represen-tou, literalmente, a salvação da lavoura. Há tem-

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nuto sequer, de que ele conseguiria os prédios doIBC. Estava acostumada ao estilo daquele homemde quem o povo da roça costumava dizer: “Esse aítira leite até de onça macho”.

Valtinho possuía também a capacidade de trans-formar problemas em vantagens. Foi assim com aárea da Fepasa, e também não fora diferente com aobra abandonada de um prédio que viria a abrigara Prefeitura. Além do que, trabalhava como se omundo estivesse prestes a acabar. Num ritmo tãointenso que até fazia lembrar o Juscelino Kubitschek.Sempre querendo realizar muito em pouco tempo.

– Valtinho agendou uma visita ao então minis-tro da Educação, Paulo Renato. Na hora marcada,sentou-se em frente ao ministro, expôs suas idéiase sacou da pasta a lista com 20 mil assinaturas quereforçava o seu pedido: queria um curso superiorde Administração para o seu município e prédio,avisou ao ministro, ele já tinha. Naturalmente, es-tava se referindo ao prédio inacabado da Prefeitu-ra. E também se faz desnecessário dizer que a ci-dade ganhou a faculdade – enaltece Isaltina.

A discussão seguia acalorada naquela noitequente de setembro em que o prefeito de Osvaldo

– Ah, bom, eu não tinha pensado nisso. Mas,ô Valtinho, os camaradas vão lá, pegam as mudas,plantam, lucram e a Prefeitura fica no prejuízo?

– Não, Jeremias, eles vão me pagar o custo dasmudas. Depois de dois a três anos começam a pro-duzir, então, pagam.

Houve um ano em que a seca castigou muitoa lavoura de café. Ao mesmo tempo, em outraregião do município, uma chuva de pedra arrasoutudo. Valtinho chamou os técnicos da Prefeitura efoi ver de perto. Os dois fatores climáticos derru-baram a produção. O prefeito foi à Câmara Muni-cipal, apresentou a questão aos vereadores, queanalisaram, verificaram a documentação e concor-daram em que os produtores só pagassem seus in-vestimentos um ano depois.

Criar soluções

Isaltina Otaviani Silva, vereadora do PMDB nosdois mandatos de Valtinho, não duvidou, um mi-

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do interior da Bahia, Maracás, região seca e áridaque ganhou um sistema de irrigação e passou acultivar flores. Lembrou-se de Santa Helena, noParaná, um pequeno município voltado para o tu-rismo e a criação de aves.

– Faltou dinheiro – provoca o prefeito – use acriatividade. Você vai ao Sebrae, eles te dizem:“Dinheiro não temos. Mas podemos fazer um pro-jeto. E temos como treinar, capacitar...”.

É possível avançar, mesmo sem dinheiro – re-petia, quantas vezes fosse necessário, a quem qui-sesse ouvir.

• • •

O ventilador velho chia esganiçado na mesinha.Mas dona Neusa Nicoletti, acostumada àqueleventiladorzinho azul velho de guerra, nem sequerdesviava os olhos das peças que costurava rápido,com habilidade, e ia jogando na caixa ao lado,lotada àquela hora do dia. A colega Rosilda se apro-xima.

– Dona Neusa, ô dona Neusa!Ela tira os olhos do trabalho:

Cruz se reuniu para conversar com seus colabora-dores diretos. Um, entre eles, achava que a Prefei-tura deveria aumentar os impostos, já que conce-dia tantos benefícios à população. Valtinho reagiuenergicamente:

– A realidade que vivemos é uma prova de quenão é necessário aumentar imposto para conseguirrecursos. Nós sabemos disso melhor do que nin-guém! Falta recurso, usa-se a criatividade. É comcriatividade, bons projetos e bons parceiros que sefaz uma boa administração, mesmo sem dinheiro.E nós aqui em Osvaldo Cruz sabemos disso, gente.

A idéia de que a criatividade é um grande ins-trumento a serviço de um prefeito empreendedorseria reforçada depois do prêmio. Passados os fes-tejos nos municípios, os prefeitos escolhidos bota-ram o pé na estrada numa série de viagens de in-tercâmbio. Valtinho viu de perto e citava, entusi-asmado, à sua equipe, as ações que estavam sendodesenvolvidas em pontos completamente distintosdo país. Falava da experiência de Xapuri, no Acre,onde o prefeito do PT trabalhou em função dasseringueiras; de Campos Verdes, em Goiás, cujaaposta foi nas esmeraldas; de uma pequena cidade

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latas vazias e nada na panela, em que as costuras sim-plesmente começaram a rarear. A moda de comprarroupas prontas e de alugar vestidos de festa havialevado, dia após dia, cada uma de suas freguesas.Aquelas que ficaram eram tão pobres quanto ela, malpodiam pagar por uma pecinha ou outra.

Um curso foi a outra boa notícia daquele perí-odo. Além de ter onde trabalhar iria aprender cos-tura industrial. Deus estava finalmente olhando parabaixo. Era o que pensava dona Neusa enquanto afuncionária da Prefeitura fazia as perguntas e iaanotando os seus dados.

E vivam as parcerias!

Osvaldo Cruz, a caçulinha do estado de SãoPaulo, passava por dias de conquistas diárias, trans-formações e progresso. Viver naquela cidade, ternascido ali, fazer parte daquela comunidade, eramotivo de orgulho. Osvaldo Cruz era exemplo parao Brasil. Todo dia chegava gente de toda a parte,

– Desculpe Rosilda, eu não estava te ouvindo.– Nossa, faz um tempão que estou aqui com

este suco! Quer um pouquinho de refresco deacerola? –pergunta, com a jarra na mão.

– Hum, vou recusar não. Este calor hoje estáde matar.

– Quantas peças já foram hoje?– Com esta que estou terminando agora, são 28.– Já dá um troquinho para o leite e o pão, né?– Pois é, e você, lá na mesa de passar, está ren-

dendo, com este calor?– Ihhh, virgem Maria, não está fácil não.Neusa Nicoletti trabalha fora de casa há seis

anos. Antigamente se dividia entre as tarefas decasa e o serviço na máquina de costura doméstica.Costurava dia e noite, para garantir sozinha o sus-tento da casa. Desde que perdera o marido a vidaera assim, pedalando na máquina até os olhos fe-charem e os braços despencarem, de pura exaustão.

A notícia de que a Prefeitura estava criando umacooperativa e ainda ajudando a quem não podia pa-gar para fazer o registro de autônomo, necessáriopara os que desejavam trabalhar na cooperativa, che-gou como um presente de Papai Noel naquele dia de

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va, treinamos, capacitamos, fomos ao governo doestado, trouxemos o Banco do Povo, que financiaos trabalhadores com juros de 1% e até 36 mesespara pagar. E você veja só: não há inadimplência!

– Como assim?– O produtor paga quando começa a vender,

o cidadão que obtém um financiamento no Ban-co do Povo paga religiosamente todo mês.

– No meu município não seria assim! Isso tema ver com a índole do povo, Valtinho!

– Não, meu amigo! Prefeito é um líder, temobrigações, responsabilidade de criar, buscar alter-nativas, temperar tudo com uma boa dose de oti-mismo, fazer as pessoas acreditarem. Como eu dis-se antes, de que adiantam grandes idéias, se eu nãoconseguir mobilizar, trazer as pessoas para junto denós? Prefeito sozinho não pode fazer. Ele pode terferramentas, instrumentos para fazer, mas ele temque ter essa liderança, conversar, dialogar, abrir, ce-der. Agindo assim, a população se motiva, participa,contribui.

querendo saber, conhecer os projetos, descobrir osegredo, entender o milagre.

– Milagre? Não tem milagre nenhum! – repe-tia Valtinho constantemente. – Não tem milagre.A questão é de iniciativa, idéia, vontade, união –esta palavra é importante.

O prefeito, sentado diante do visitante, tomamais um gole de água, fixa aquele homem e con-clui o raciocínio.

– O primeiro ponto, para mim, é a credibilidadeque gera apoio. As pessoas têm que acreditar nosprojetos. Isto traz as boas parcerias. E isso tudosomado, as idéias, a união, os bons parceiros, achoque isso tudo compõe uma fórmula eficiente paratrabalhar essa questão da geração de oportunida-de de trabalho no país.

– Mas e os gastos, prefeito, e a verba para reali-zar todos os projetos?

– O que nós gastamos de dinheiro? Pratica-mente nada. Mas, e o investimento que fazemosnas pessoas? Pegamos um prédio de 10 mil metrosquadrados, com custo zero. Pegamos um terrenoque era um matagal e fizemos dele um centro co-mercial, a custo zero. Formamos uma cooperati-

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– Ah, meu amigo, é fácil, se contar com você, oSebrae, a Associação Comercial, as pessoas, deputa-dos, governo do estado, governo Federal, Sindica-to Rural e, principalmente, se todos tiverem confi-ança em cada um dos projetos que forem surgindo.

• • •

Na condição de vice-prefeito (83-88) Valtinhoexerceu, durante quatro anos, a função de presi-dente do Osvaldo Cruz Futebol Clube, o Azulão.A dificuldade de tocar uma equipe de futebol pro-fissional, naquela época, fez com que as atividadesfossem paralisadas. O time retornou já no final dosegundo mandato de Valtinho, graças a uma par-ceria com o MAC, Marília Atlético Clube, que ce-deu os atletas.

O Azulão chegou à final do campeonatopaulista de 2005 e vem se destacando no futeboldo estado de São Paulo. Valtinho reconhece queos méritos são do seu sucessor.

– O prefeito Pigozzi constituiu uma nova dire-toria que vem desenvolvendo excelente trabalho.O futebol em Osvaldo Cruz é uma tradição.

O grupo do Oeste

As parcerias celebradas no município haviamampliado as possibilidades e coroado de êxito to-dos os projetos. Osvaldo Cruz, em relação a seushabitantes, era campeã em número de CursosEmpreendedorismo (Empretec), realizados nos úl-timos dez anos. Não havia, de fato, como falar emmilagres.

O Grupo do Oeste, projeto dos caminhoneiros,crescia a olhos vistos. Parecia, aos outros municípios,inverossímil que uma cidade de menos de 30 milhabitantes pudesse contar com 300 bi-trens, um seg-mento de carretas utilizadas no escoamento de grãos.

No início eram pequenas transportadoras comum, dois caminhões. Embalados pelo espírito decooperativismo que tomou conta da cidade, elestambém ganharam um projeto cujo requisito prin-cipal era a capacidade de se unir. Hoje, juntos, com-pram pneus mais baratos, negociam as menorestaxas de juros e conquistam os melhores clientes.

– Prefeito, se eu puder aproveitar metade dassuas idéias no meu município, estou feito!

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A atual administração, a cargo de Wilson Apa-recido Pigozzi, do PV, investe na instalação de umafábrica de estopa, para aproveitar as sobras de reta-lhos das fábricas de tapetes.

O Ministério da Justiça doou ao município asmáquinas necessárias. Junto à fábrica o prefeito pre-tende implantar uma usina de reciclagem de lixo.A renda obtida com este trabalho deverá ser rever-tida em cestas básicas para a população.

Os números não mentem

Quando Valtinho chegou à Prefeitura, em1996, era outro o cenário. O município arrecada-va 6,9 milhões. Em cinco anos houve aumento de207% na arrecadação e queda nos impostos, gera-da pela isenção de tributos aos membros das coo-perativas de mão-de-obra que ganhavam até doissalários mínimos.

A Prefeitura também promoveu justiça tribu-tária. Aquele que podia pagar e não pagava foi

Quando meu pai foi prefeito havia um futebol muitobom aqui. Nosso time não perde a sua identidadee a paixão dos torcedores.

• • •

O projeto da incubadora de empresa júniorfoi uma das últimas ações de Valtinho. Nasceuem 2004 e teve continuidade na administraçãoatual.

A incubadora reúne um grupo de pequenas emicro-empresas previamente inscritas. Pelo perío-do de dois anos essas empresas trabalham com aincubadora sob a orientação do Sebrae.

O aluguel do espaço onde está instalada é pagopela Prefeitura. O único compromisso financeirodos empresários é com o pagamento de despesasde água, luz e telefone. O valor das faturas é rate-ado entre todos. Passados dois anos, prontas paracaminhar com as próprias pernas, as empresas dei-xam a incubadora, cedendo lugar a outras. O pro-jeto prevê a instalação de sete a oito empresas decada vez, e a possibilidade de geração de 120 a130 empregos, no período.

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– Por mais que você faça, e procure dar opor-tunidades para as pessoas, em oito anos de manda-to, sempre deixará de fazer muita coisa, e nem sem-pre consegue agradar a todos. Acho que, apesarde termos feito um grande trabalho nestes oitoanos, cometemos alguns erros, no entendimentode alguns. E a oposição se aproveitou disso.

– A construção de um presídio no municípiofoi um desses pontos. Mas hoje ele dá mais de250 empregos, todos com um nível de saláriorazoável. Eu diria até, bom, se comparado compadrões da região. Na sua construção foramofertados mais de 400 postos de trabalho. Istoajudou a melhorar a nossa arrecadação, sem com-prometer a qualidade de vida e aumentar impos-tos. No meu modo de entender, não foi ruimpara o município. Até o presente momento nuncaaconteceu nada que pudesse mudar a vida daspessoas para pior. Mas existem aqueles que sãocontra.

– O Portal iluminado, construído logo à en-trada da cidade, foi outro fato explorado na cam-panha. A oposição entendeu que a obra não erauma prioridade e usou também o argumento.

notificado e teve de regularizar sua situação. Oorçamento do município em 2004 foi de 24 mi-lhões de reais.

• • •

Valtinho não fez sucessor. Seu grupo políticoapoiou o médico Walter Góes, morador de Osval-do Cruz desde 1981. O médico foi vereador epresidente da Câmara no primeiro mandato deValtinho, de 1997 a 2000. No segundo mandatofoi vice-prefeito.

– A campanha foi muito difícil, pois o adversá-rio foi o Pigozzi, político antigo e experiente, quejá tinha sido prefeito e vereador por vários manda-tos. Disputou várias eleições de prefeito, inclusivea primeira em que concorremos como vice em1982. Ganhamos dele e depois foi também comele que disputamos as duas outras que vencemospara prefeito – sempre com diferença pequena. Poraí você tem uma idéia de como são disputadíssimasas eleições em Osvaldo Cruz – conta Valtinho.

O fato de não fazer o sucessor encontra explica-ção tranqüila e equilibrada na voz do ex-prefeito:

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Capitulo III

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Mas Valtinho, muito sereno, faz ainda outrareflexão:

– Também acho que a população quis mudar.É um direito do eleitor e Pigozzi é cheio de quali-dades. Isto é comum, em política. Não existe ne-nhuma campanha igual a outra. Cada eleição tema sua característica, e nesta última foi a nossa vezde perder – explica o ex-prefeito que, apostou emações integradas de apoio às micro e pequenasempresas, facilitou o acesso ao crédito, investiu nacapacitação de mão-de-obra e gerou emprego erenda para a população.

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AAAAAcaso?Coincidência?Realidade?Nunca saberei.Mas é impressionante a presença das mulheres

em todos os planos, projetos e empreendimentosque deram a Três Passos o grande prêmio do Pre-feito Empreendedor 2003 e que motivaram a mi-nha presença na surpreendente cidade incrustadana região noroeste do Rio Grande do Sul. Essadescoberta do desempenho feminino na trajetóriado município gaúcho nasceu logo no meu primei-

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Confesso, com alívio, que Três Passos foi mui-to mais do que eu esperava. Seus ares e lugares; ojeito de ser da sua gente; seu progresso e sua pros-peridade liquidaram o meu ceticismo de jornalistacalejado e superaram as minhas expectativas maisotimistas.

Daí, não precisei inventar elogio algum paraeles.

Restou-me contar os porquês da minha sur-presa.

O que faço agora com entusiasmo, por ter co-nhecido uma cidade onde o futuro é visível, sólidoe promissor. Nascido da vontade e da determina-ção de uma comunidade inteira. Foi muito bomdescobrir que, em certos lugares, mais do que aforça, a união faz milagres.

E os imigrantes chegaram

Chegamos a Três Passos após 470 quilôme-tros de viagem desde Porto Alegre – felizmente

ro encontro com a ex-prefeita Zilá MariaBreitenbach e a atual vice-prefeita, Rejane LuísaRichter. Pelos sobrenomes, vocês já notaram, osdescendentes dos imigrantes alemães imperam ali.

Como diríamos na gíria típica dos anos 70, elasestão em todas. Em todos os lugares. Desde a Pre-feitura até a menor das propriedades. Passando pe-las indústrias de confecção, pelos laboratórios, pelasfábricas de doces, pelos pólos de produtos quími-cos, até os pomares e os currais dos minifúndios –média de 10 hectares – existentes na região.

Por toda a parte, as mulheres estão lado a ladocom os homens, fazendo e vendo brotar da terra osprogramas e projetos que, como já disse, deram aTrês Passos o Prêmio Nacional do Prefeito Empreen-dedor, em 2003. Também em 2001 e 2002, a cida-de foi finalista regional do Prêmio, brilhando entre os496 municípios do Rio Grande do Sul. Em 2005,ganhou o Selo de Prefeitura Empreendedora.

Pois que Três Passos foi, para mim, o exemplomaior do que a união de uma comunidade, pro-movida pela Prefeitura em parceria com o Sebrae,pode fazer para escapar da letargia, da mesmice edo conformismo.

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não. Decisões desse gênero eram comuns naquelestempos de guerra, embora ela estivesse quase nofim. Só que ninguém sabia. E então Três Passos,emancipada de Palmeira das Missões, transformou-se em cidade no dia 28 de dezembro de 1944.

Como lugar de pouso e vivência, Três Passosexistia desde 1879. Tempos em que o governoimperial mandou instalar uma colônia militar na-quela região do noroeste do Rio Grande do Sul,com a missão de patrulhar a estrada, ou melhor, apicada que ligava Palmeira das Missões ao Rio Uru-guai, na fronteira com a Argentina. Uma precauçãocostumeira naqueles tempos, quando as regiõesfronteiriças eram campo certo para cruentas dis-putas territoriais. Ainda mais com uns vizinhos da-queles.

Por causa das terras férteis, da fartura das águas,da madeira abundante e da segurança oferecidapelos soldados, os colonos começaram a ocupar aregião. O fluxo cresceu nos primeiros anos do sé-culo XX, com a chegada de imigrantes europeus.Principalmente alemães, que se instalaram numaárea a 35 quilômetros da colônia militar, onde jáexistia o povoado de Três Passos – nome originá-

rodados em ótimas estradas. Eu e meus compa-nheiros de viagem, o consultor do Sebrae, AndreiMartinez, e o fotógrafo Elias Eberhardt, hospe-damo-nos no Hotel Três Poderes. Na manhã se-guinte, fomos nos encontrar com Zilá e Rejane,que nos receberam para uma conversa na RádioDifusora Celeiro, de propriedade da ex-prefeita.A conversa só começou, verdadeiramente, depoisda oferta primeira da hospitalidade gaúcha, emque as boas-vindas se traduzem numa cuia de chi-marrão. Não à toa vi, em todos os jornais gaú-chos que li, anúncios vendendo garrafas térmi-cas. Uma arma sem a qual o gaúcho não vive. Éa garrafa térmica com água quente numa mão; ea cuia de chimarrão na outra.

Mas, antes, precisamos conhecer a história deTrês Passos.

Três Passos, como cidade, é jovem. Foi emanci-pada durante a 2ª Grande Guerra. Alguns historia-dores dizem que a emancipação foi precipitada por-que os descendentes de alemães que viviam no mu-nicípio representavam um perigo para os países alia-dos. Daí a decisão do governo de vigiar de perto apopulação e as autoridades locais. Não é para rir,

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– Quando venci as eleições e me tornei prefeita,encontrei a situação muito ruim. Três Passos erauma comunidade desmotivada, desunida, sem es-perança. Ninguém tinha planos, nem propostas,nenhuma sugestão. O êxodo rural era galopantepor aqui. Os rapazes e moças, principalmente, saí-am das fazendas, e até da cidade, para procuraremprego nas fábricas, nos escritórios e nas lojasdaqui e de outras localidades.

A primeira pergunta que me fiz, logo que to-mei posse, foi: “O que é que posso trazer praTrês Passos, para acabar com o êxodo e motivar apopulação, principalmente as pessoas que aindavivem e trabalham no campo?”. Concluí logo quenão adiantaria trazer, por exemplo, uma empre-sa, uma companhia, um negócio que não tives-sem alguma ligação ou sintonia com a nossa co-munidade. E, pior, para os quais não pudéssemosoferecer ao menos um pouco de experiência e,claro, mão-de-obra qualificada. Mão-de-obraqualificada era produto raríssimo em Três Passos.Eu acreditava, e acredito até hoje, que a falta demão-de-obra qualificada é sinônimo de decadên-cia econômica. Não tínhamos mão-de-obra e nem

rio dos três córregos que serviam de passagem eforneciam água potável para as tropas do exércitoe os viajantes que demandavam aquelas bandas.

A partir daí, o lugar cresceu, ocupando umaárea que ia até as barrancas do turbulento Rio Uru-guai, que ali separa o Brasil da Argentina.

Hoje, com o desmembramento do seu territó-rio em vários municípios, Três Passos distanciou-sedo Rio Uruguai. Ocupa área de apenas 273 quilô-metros quadrados, onde vivem 25 mil habitantes –censo de 2000 –, 30 por cento deles no campo.

Primeiro, a comunidade

Zilá não é mais prefeita. Foi eleita pela pri-meira vez em 1996, reeleita em 2000 e teve seuvice, Carlos Alberto Canova, e a secretária deEducação, a Rejane, eleitos, respectivamente,prefeito e vice-prefeita, em 2004. Trocado o jácitado chimarrão por um cafezinho, Zilá con-tou para nós:

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– Enquanto o Balcão funcionava, implantamoso Programa de Desenvolvimento e Renda – Proder,que fez a avaliação das potencialidades e vocaçõesdo município. Dessa avaliação, surgiu o Plano deGestão Pública e Estratégico para Três Passos.

Para garantir a participação total da comuni-dade nos programas, o Sebrae ficou com a incum-bência de convocar as lideranças urbanas e ruraispara que as reuniões não tivessem nenhum traçopersonalista, político ou ideológico. Queríamosunir todo mundo em torno de uma causa maiorque os nossos anseios e desejos pessoais: a causa danossa comunidade.

Foi uma beleza. Identificadas as prioridades eas potencialidades do município, descentralizamosas reuniões e decisões, promovendo uma consultapopular. Uma verdadeira pesquisa para verificar seaquilo que estávamos começando atendia aosanseios e às prioridades da população. Essa consul-ta foi importante, pois muitos dos convocados paraas primeiras reuniões não compareceram porquenão puderam abandonar o trabalho.

A pesquisa foi feita nos seis distritos que com-põem o município – o da sede e os localizados na

qualquer projeto que capacitasse empresários, fa-zendeiros, professores e trabalhadores rurais e ur-banos. A capacitação torna as pessoas competiti-vas porque, se o trabalho tem qualificação, o mu-nicípio pode oferecer boas alternativas e oportu-nidades, atrair os investimentos.

– Vendo um quadro assim, num lugar comtantas potencialidades, senti que não poderia agircomo costuma agir a maioria dos prefeitos recém-eleitos. Ou seja, não poderia tentar criar e mon-tar, sozinha, um programa de desenvolvimentopara Três Passos. Eu teria que me preocupar pri-meiro com a comunidade; e, depois, com a Pre-feitura. O primeiro parceiro que procurei foi oSebrae. Eles tinham tudo aquilo de que precisá-vamos para implantar um plano de desenvolvi-mento, um plano que incluísse toda a comunida-de, e não um plano isolado da administração,implantado de cima para baixo.

– Para começar, trouxemos o Balcão. Monta-mos um escritório para o técnico que eles manda-ram para cá, e demos a ele um auxiliar, funcionárioda Prefeitura. Eles ouviam as nossas demandas e asencaminhavam para o Sebrae.

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desanimou os produtores. Os poucos que se man-tiveram explorando o ramo, mal e mal consegui-am fornecer 3% da matéria-prima necessária para ofuncionamento da fábrica da Sadia que existia nomunicípio. Falava-se até que a fábrica iria emborapara outro lugar. Até então, a coisa funcionavaassim: cada produtor tinha um chiqueiro com al-guns porcos. De raças misturadas, sem qualidade,de produtividade incerta, sem mercado. Os por-cos eram criados sem acompanhamento, controlee higiene, coisas que hoje são exigências comuns,corriqueiras. A idéia desses produtores era traba-lhar com uns 50 suínos em cada propriedade. E irvendendo a produção no varejo, quando surgissea oportunidade. Não havia organização, preocu-pação com a qualidade, preços, aprimoramento daprodução e aumento dos rebanhos.

– Para mudar essa situação – conta Zilá – co-meçamos o Programa de Expansão da Suinocultura– PES. As metas: abertura de novos empreendi-mentos; modernização e expansão das criações exis-tentes; incremento da renda e melhoria das condi-ções socioeconômicas dos produtores; aumento daarrecadação municipal; garantia da permanência da

zona rural: Floresta, Alto Herval Novo, Santo An-tônio, Bela Vista e Padre Gonzales. Assim, cadalocalidade e cada bairro nos mostraram suas ne-cessidades e, principalmente, suas prioridades nasáreas da saúde, da educação, da agricultura, domercado de empregos, do comércio e do lazer.

Obtidas e analisadas as respostas, passamos aotrabalho prático.

Uma prioridade maior

O primeiro lugar, absoluto, das prioridades dosprodutores rurais ficou com a suinocultura, umadas mais fortes potencialidades de Três Passos. Osdescendentes dos imigrantes alemães herdaram dosantepassados, além da exuberante culinária, o amore a experiência na criação, no trato e na comerciali-zação dos suínos. Até os meados dos anos 80, TrêsPassos era chamada de Capital Nacional daSuinocultura. Perdeu esse título por causa da pestesuína, que dizimou os rebanhos e empobreceu e

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tes completam um mês de nascidos, são manda-dos para os que cuidam das “creches”, onde osleitões ficam até atingir 22 quilos – o produtor IloFokinck opera uma UPL – Unidade Produtora deLeitões – e tem que transferir um número fixo deleitões para a terceira categoria de criadores, aque-les produtores encarregados da engorda e da en-trega à Sadia para o abate. O produtor Ruy Hass,por exemplo, entrega àquela empresa 80 porcostodas as quartas-feiras.

O programa gerou também o Foro de Gestãodo PES e o Festival Suíno Nota 10, com a partici-pação do Comitê de Turismo Municipal. Esse even-to está na terceira edição, e vem cumprindo combrilho sua missão: atrair investimentos, novos pro-dutores e estimular o consumo da carne suína eseus derivados. Disseminou-se até pela região: “Osmunicípios ao redor nos imitaram e estão se dan-do muito bem”.

Para resumir o êxito do Programa, que uniunuma mesma causa muitos cidadãos e entidades –produtores, Prefeitura, vereadores, Sadia, Associa-ção dos Produtores, Comitê da Suinocultura, Nú-cleo de Criadores de Suínos, Emater-RS e Sindica-

Sadia; manutenção dos produtores, suas famílias eempregados no campo; atração de novos investi-mentos; geração de empregos; e, meta latente epossível, a recuperação do título de Capital Nacionalda Suinocultura.

A primeira medida, após a realização do Se-minário de Diagnóstico Estratégico, que teve par-ticipação maciça dos produtores e entidades rela-cionadas, foi recuperar a confiança dos produto-res. Especialmente daqueles que tinham resistên-cia ao principal cliente – a Sadia, porque não ti-nham condições de atender suas exigências sani-tárias e preventivas. Para começar, mandamos umprojeto para a Câmara de Vereadores, aprovadopor unanimidade, propondo apoio econômico aosprodutores. Com a participação da Sadia, passa-mos a dar a cada produtor 5 reais por suíno alo-jado. E mais recursos financeiros a fundo perdidoe máquinas. E as inovações e as especializaçõesforam surgindo.

Os criadores de Três Passos, entre eles as famí-lias Hass e Fokinck, dividiram-se em três categori-as: os que cuidam das “maternidades” – onde fi-cam as porcas gestantes e os filhotes. Quando es-

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agroindústria; aportar novas tecnologias e suportetécnico; melhorar processos de gestão e produção;conquistar novos mercados; estimular parcerias efazer de Três Passos uma das lideranças daagroindústria no Rio Grande. Desde o começoesses objetivos estão sendo cumpridos. Os agricul-tores se esforçam ao máximo para terem o direitode aplicar o selo Passo Saudável nos seus produtos,direito só possível após a fiscalização do rigorosoServiço de Inspeção Municipal. Em 2003, o Pro-grama tinha a participação de 200 produtores –16 deles em pleno uso do selo de qualidade. Asagroindústrias geraram um mercado com cente-nas de empregos diretos.

As previsões dos participantes e colaboradoresdo Passo Saudável são as mais otimistas possível.Especialmente quando se referem à aguardente decana, cuja produção está crescendo muito; aosembutidos de carne suína; aos derivados do leite;às frutas e aos hortigranjeiros industrializados. Amão-de-obra se qualifica cada vez mais, graças aoscursos periódicos de capacitação, dos quais partici-pam a Prefeitura, o Senai e a Unijuí. As outrasentidades integrantes do Programa orientam, fi-

to dos Trabalhadores Rurais – basta dizer que, hoje,a suinocultura representa 17% do PIB municipal eos produtores de Três Passos fornecem de 18 a20% da matéria-prima indispensável para a produ-ção da Sadia. Empresa que, ao invés de sair deTrês Passos, duplicou a sua produção e inicia umgrande plano de expansão.

Um passo saudável

Um dos primeiros projetos saídos do seminá-rio do Proder foi o Programa de Fortalecimentoda Agroindústria, que criou o selo de qualidadePasso Saudável, marca respeitada da agroindústrialocal. As ações desenvolvidas tiveram a participa-ção das secretarias municipais da Indústria e Co-mércio, da Agricultura, e dezenas de entidades,desde órgãos técnicos de pesquisa até redes de su-permercados. Seus objetivos eram muitos e ambi-ciosos: desenvolver uma marca local; valorizar aprodução e o consumo; organizar o setor da

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mos a uma autêntica fazendinha. Fazendinha, sim,pois a área dos Schaab, como a grande maioria daspropriedades de Três Passos, nem chega aos 10hectares, a média local.

A família Schaab nos recebe. Sentamo-nos àsombra de uma árvore, pois o sol castigava o po-mar da casa. Suavizado pela leve brisa que sopravado arvoredo, localizado nos fundos, arejando abraveza do verão gaúcho. Patrícia é uma guria,com absoluto jeito de menina, beirando os 15 anos.Tímida, sorridente, pouco falante. O pai é maisum pequeno fazendeiro dos milhares daquelas ban-das. Quando fomos visitá-los, sentíamo-nos beminformados, preparados para a conversa. Sabíamosda participação de Patrícia nos programas de edu-cação rural que modificaram profundamente a vidadas famílias dos agricultores de Três Passos. Maisainda: sabíamos do papel decisivo exercido por elana mudança da vida dos Schaab para dias de pros-peridade, de confiança no futuro.

Patrícia falou muito do programa “SemeandoEducação e Saúde na Agricultura Familiar” e, prin-cipalmente, da sua vida na escola e das experiênciasvividas. Abelhudo, lancei-lhe a pergunta:

nanciam e assessoram os agricultores desde a pro-dução e a comercialização até as viagens de estu-do e promoção e participação de feiras. Entre asprincipais, destacam-se a Agência de Desenvolvi-mento da Prefeitura, chefiada por Sérgio RobertoGranich, e as associações dos Fruticultores –Frutipassos – e dos Hortigranjeiros – Hortipassos,Emater-RS, Sindicato Rural, Sindicato dos Traba-lhadores Rurais, CREA, Cacis, Cotricampo,Banrisul, Banco do Brasil, Sicredi, CCCL,Superpassos, Super10 e a Câmara de Vereadoresde Três Passos.

Patrícia e os pés de figo

Numa tarde fomos visitar a família Schaab.Acompanhado dos colegas de viagem e de doistécnicos agrícolas, orgulhosos integrantes do pro-grama “Semeando Educação e Saúde na Agricul-tura Familiar”, de onde surgiu a figura franzina eadolescente de Patrícia Fernanda Schaab. Chega-

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paramentada daquele jeito, lembrei-me, na hora, deuma história que marcou minha infância, a história do“Jeca Tatu”. Escrita por Monteiro Lobato e que de-veria ser reeditada e distribuída em todas as casas efazendas do Brasil. No final do livrinho, Lobato falasobre os conceitos de higiene, de saúde e de adminis-tração que o Jeca aprendeu e aplicou na sua família ena propriedade rural. Ficou tão entusiasmado com osensinamentos, que obrigou todo mundo da sua fa-zenda a calçar botas: a mulher, os filhos, as galinhas, ospatos, os bois, as vacas, o cavalo, o burro, até o ca-chorro. A engraçada metáfora ensinava o quanto ainformação, a conscientização e a participação podemfazer para redirecionar e melhorar nossas vidas.

Eu matutava essas lembranças e comparações,enquanto a sessão de fotos prosseguia. Entre umflash e outro, o senhor Schaab mostrava os pés defigo que, este ano, produzirão dois mil quilos defrutos. E informava que, ano que vem, dobrará aárea plantada e, conseqüentemente, a safra, pre-tendendo produzir quatro toneladas de figos.

A história de Patrícia põe no mesmo prato osresultados dos programas “Semeando Educação eSaúde na Agricultura Familiar” e “Programa de

– Patrícia, qual a coisa mais importante quevocê aprendeu na escola nesse tempo todo?

Ela nos olhou, surpresa. Parou. Pousou pensa-tivos dedos sobre os lábios. Em estado de acanha-da timidez, respondeu, baixinho:

– Ah, o que que eu mais aprendi? Bah, foi asonhar...

Íamos emendar a pergunta, mas o fotógrafoElias Eberhardt nos interrompeu:

– Vamos bater umas fotos ali, na plantação defigos?

Patrícia pulou da cadeira e azafamou-se:– Vamos, sim. Vou lá dentro me preparar.Eu, urbano e cético, pensei: “Essa menina, na cer-

ta, irá ajeitar os cabelos, passar batom, vestir uma roupacolorida...”. Fomos andando para o pomar, onde vice-javam centenas de pés de figo, quando Patrícia voltou.Nada de cabelos penteadinhos. Nem batom, nem ves-tido novo. Patrícia veio calçada de botas amarelas, mui-to usadas; luvas comuns; e uma blusa sobre o vestido.Para nosso espanto, informou-nos, com orgulho:

– É assim que eu trabalho aqui na nossa plantação.E, a pedido do fotógrafo, abraçou um pé de figo e

preparou-se para a foto. Ao ouvir e ver Patrícia

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terno e partir para a conquista de novos clientes,até em outros Estados. Todos eles, que aderiramao associativismo, estão às vésperas de ver sua coo-perativa legalizada. O processo está na fase final.Antes da cooperativa, eles fundaram e participamdas associações dos Fruticultores – Frutipassos – edos Hortigranjeiros – Hortipassos, sempre com oapoio da Prefeitura, da Emater-RS e do Sindicatodos Trabalhadores Rurais.

Voltando às minhas lembranças, para o JecaTatu tudo aconteceu com a conscientização e oconhecimento. Para Patrícia e os agricultores deTrês Passos, tudo está acontecendo porque se uni-ram para aprender e transformar, juntos, os so-nhos em realidade.

Uma fazendeira modelo

História puxa história. Da casa da Patrícia fo-mos para a fazenda do senhor Sérgio Zimpel, o paide Aline, uma moça muito bonita. A ascendência

Incentivo à Fruticultura”. O que era antes umacultura quase nativa nos pomares e roças, limitadaà produção de conservas e doces caseiros, está setransformando numa poderosa agroindústria. Aprodução dos pomares e hortas de Três Passosquintuplicou em pouco mais de três anos. Em2006, com a expressiva média de 10.000 quilospor hectare, os agricultores produzirão 600 tone-ladas de frutas, verduras e legumes. Número queesperam ver crescer em 2007, quando os poma-res, as hortas e os cultivares atingirão a maturida-de. Com destaque para os pêssegos, figos, uvas eplantações alternativas, como os pepinos.

Lori Fell, que entrou para o Programa de In-centivo à Fruticultura há três anos, é a gerente danovíssima fábrica de doces e conservas. Adminis-tra a nascente agroindústria, instalada num galpãoda zona rural. Ali se fazem a estocagem e obeneficiamento das frutas e dos hortigranjeiros, emforma de geléias, compotas, frutos cristalizados,conservas e picles.

A descendente de imigrantes alemães – maisuma! – informa que os agricultores pretendem au-mentar a produção para solidificar o mercado in-

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mos andar pra frente, para melhorar a vida detodo mundo. Na minha escola eles começaramcom o programa “Semeando”, que me interes-sou desde o começo. Lembro até que mudaramo currículo da escola. Três vezes por semana umtécnico agrícola vinha dar aula pra nós, no tur-no da tarde. Nesses dias, a gente almoçava lá etinha aulas teóricas e práticas. Ninguém conse-gue imaginar quanto aquelas aulas me puserampara pensar”.

Como acontecia em todas as escolas rurais,Aline, o técnico agrícola e os colegas plantaramuma horta e um jardim, lugares onde eram da-das as aulas práticas. Em pouco tempo, os pro-dutos da horta estavam enriquecendo a meren-da escolar. Cada aluno tinha de fazer um proje-to agrícola para ser desenvolvido na propriedadeda família, que era visitada também pelo técni-co. A família de Aline trabalhava com vacas lei-teiras e criava também alguns porcos. A produ-ção era de 50 litros de leite por dia, muito abai-xo do potencial da fazenda. Seu Zimpel se davapor satisfeito, pois criava o gado à moda antiga,naquele estilo do “meu avô criava assim, meu

alemã brilha nos seus cabelos louros, nos olhosazuis, no jeito de princesa, no rosto cor de rosa.Chegou até a ser convidada, quando tinha uns 16anos, para seguir a carreira de modelo. Nem quissaber. Recusou na hora, “porque meus ideais eramoutros. Desde que tive as primeiras aulas de técni-ca agrícola na escola, eu descobri que podia me-lhorar muito minha vida aqui na fazenda. Traba-lhei duas vezes na cidade e não suportei. Volteipara casa. Eu nunca quis saber dessa história deshopping, de festas, de viajar pra cá e pra lá. Sabeso que sempre eu quis? Viver aqui no campo, traba-lhar na lida”.

Nosso espanto, urbano e consumista, foi ób-vio. Como uma garota, bonita daquele jeito, con-seguia viver ali, em meio a vacas e leitões, respiran-do aquele sossego silencioso e calmo do campo?

A resposta à nossa indagação mental veio rápi-da e certeira:

– Quando eu estava na escola, na sétima sé-rie, em 1998, o pessoal da Prefeitura estava an-dando pelo município afora oferecendo uma por-ção de programas. Eles diziam que queriam aca-bar com a calmaria de Três Passos para poder-

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dução, para transformar sua fazenda num negó-cio lucrativo e de futuro.

Uma semeadura infalível

Por causa disso, seu Sérgio decidiu participarde todos os programas e cursos oferecidos pela Pre-feitura para dar aos produtores a oportunidade deter uma indústria leiteira promissora e lucrativa:

– Fizemos o Renda Leite e todos os outroscursos. Quando não era eu, era minha mulher. Senão era ela, era a minha filha.

O Renda Leite é um dos programas surgidos logoapós a avaliação do Proder, que listou as ações bási-cas para deslanchar a produção de leite no municí-pio. Começando pela definição dos produtores pelapecuária leiteira. E participação nos programas cria-dos para o desenvolvimento das atividades agrícolas:

Capacitação dos Agricultores – cursos técni-cos, seminários, dias de campo, viagens de estudose áreas de pesquisa.

pai criava assim, então eu vou fazer assim tam-bém”. Foi a hora de Aline entrar em cena. Ca-pacitada com os conhecimentos adquiridos naescola, voltou um dia da aula determinada a sa-cudir a pasmaceira da sua casa. Procurou o pai esugeriu, mandando:

– Pai, o técnico agrícola falou na escola quenós temos que melhorar e aumentar a nossa pro-dução de leite. E, pra começar, nós temos que teruma sala só para a ordenha. Uma sala que tem deestar sempre limpa, com boa aparência. Vamos fa-zer uma aqui?

Seu Zimpel escutou, sentiu a determinação dafilha. E humildemente concordou:

– Vamos fazer essa tal de sala nova. Quem sabevai dar certo?

Aline sabia que sim. Tanto que seu Zimpel nãose satisfez em apenas seguir rigorosamente os cri-térios que a filha lhe ensinou para fazer a sala deordenha. Pouco tempo depois, entrou para o Pro-grama Renda Leite, porque descobriu, ao ver osprimeiros resultados da nova sala de ordenha, queaprender e empreender coisas novas era o melhorcaminho para mudar de vida, para melhorar a pro-

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xo à sua propriedade de 17 hectares, “seu” Zimpelplaneja chegar aos 800 litros/dia até o final desteano. Mas com a participação efetiva de Aline, queconsolidou a sua vocação de fazendeira ao com-prar, há dois anos, um terreno de 12 hectares, vizi-nho à fazenda paterna.

A menina que não quis ser modelo, a moçaque é fazendeira, diz, com um orgulho que nemtenta disfarçar: “Eu quero explorar minha terra ameu modo, seguindo tudo o que aprendi na esco-la. Terminei o 2° grau e talvez faça faculdade. Achoque vou fazer administração rural. Não quero sairdaqui. Mesmo que surja um gatinho bonitão dacidade para eu me casar, não saio. Ele terá quemorar aqui”.

Uma das decisões que sacudiu a letargia de TrêsPassos foi a montagem de um novo currículo paraas escolas rurais. O currículo vigente era, até en-tão, eminentemente urbano. O novo, vigente desde1998, é inteiramente voltado para a realidade docampo, da área rural. Até os livros de textos distri-buídos nas escolas priorizam e valorizam as ativi-dades e a vivência dos agricultores e suas famílias.Para que o programa “Semeando”, logo acoplado

Alimentação Leiteira e Recuperação e Fertili-zação do Solo – projeto conectado ao Programade Expansão da Suinocultura, para utilização, naspastagens, do adubo orgânico oriundo das pocil-gas.

Melhoramento Genético – inseminação artifi-cial; seleção de matrizes; cursos de genética; in-centivos para a compra, alimentação e sanidade deterneiros (bezerros); criação de terneiros em con-domínio.

Infra-estrutura – abertura e manutenção dasestradas rurais; melhoria e modernização dos está-bulos, salas de ordenha, etc.; implantação de pos-tos de recepção do leite; instalação da telefoniarural.

Reativação da Associação dos Bovinocultoresde Leite, tendo como base o cooperativismo e oassociativismo.

Hoje, a fazenda dos Zimpel produz 500 litrosde leite por dia. Dez vezes mais do que produziaquando Aline voltou da escola naquela tarde de1998. Na época, a média por vaca era de 10 li-tros/dia. Hoje, a média pulou para 25 litros/dia.Tendo comprado um terreno de 11 hectares, ane-

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lhorar os níveis de informação e de capacitação dameninada e das suas famílias, com a melhoria daqualidade de vida.

O pólo do vestuário

Outra atividade tradicional de Três Passos, que,em 1998, vivia a mesma estagnação dos produto-res rurais, era o setor do vestuário.

Existia na cidade uma grande empresa deconfecção e comércio – a 3 Passos. Foi criadapelo senhor Osvaldo Bender, um veterano alfai-ate, que percebeu que a sua profissão estava emdeclínio, no rumo do desaparecimento. Numgesto instintivo, viajou para São Paulo, ondeconfirmou seu sentimento de que sua profissãoestava a caminho do fim. Comprou, então, gran-de partida de roupas prontas. Ao voltar para TrêsPassos, vendeu-as rapidamente, com grandes lu-cros. Descobriu o novo caminho. Fechou a al-faiataria e montou uma fábrica, passando a co-

ao programa “Jovem Empreendedor”, fosse umsucesso, a Prefeitura fez investimentos considerá-veis. Mas lógicos e pragmáticos: salários decentespara professores, agentes de saúde e veterinários;transporte gratuito para os alunos e os profissio-nais envolvidos nos projetos; implantação de labo-ratórios e bibliotecas nas escolas; plantação de hor-tas escolares e jardins; material didático gratuito.Enfim, os jovens e crianças aprenderam e apren-dem nas escolas municipais como se tornar agri-cultores e empreendedores, apoderando-se dasnoções básicas de agricultura, pecuária,agroindústria, saneamento e meio ambiente. Nes-se setor, recebem educação ambiental e adquiremconhecimentos sobre o tratamento da água, dosesgotos e do lixo. É também nas escolas, com na-tural extensão para as propriedades rurais, que osmédicos, técnicos, agentes de saúde e enfermeirasda Secretaria Municipal da Saúde ensinam e traba-lham nas áreas de proteção à saúde, higiene, acom-panhamento das gestantes, desenvolvimento dascrianças de zero a cinco anos, aleitamento mater-no, nutrição, prevenção e controle das doenças.Enfim, tudo o que se ensina nas escolas visa a me-

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reciclagem dos empresários nas áreas da admi-nistração, produção e criação; otimização dacompetitividade na qualidade, nos preços e navariedade dos produtos; modernização das fá-bricas; apoio tecnológico e de modelagem; cria-ção de cooperativas; e ampliação do mercadode empregos. Os melhores resultados do diag-nóstico foram a qualificação e a consolidação dosetor, fazendo de Três Passos um verdadeiro emoderno Pólo do Vestuário. O acerto das deci-sões tomadas a partir do diagnóstico evidenciou-se na criação, pelas universidades de Caxias e deIjuí, de um curso de capacitação para os indus-triais e empresários de Três Passos. Os própriosdonos das empresas freqüentaram o curso du-rante um ano.

O senhor Nelson Yunges foi um deles. Ele éproprietário da Cincinnati Jeans. A indústria tinhacinco anos, em 98, quando as coisas começaram aacontecer. Ele e os seus quase cem empregadosnão perderam, nem perdem, nenhum dos cursos:

– Participamos de todos. A capacitação é fun-damental para nós. Hoje, a qualidade do produtonem é diferencial mais. Nós temos é que oferecer

mercializar diretamente sua produção. Um su-cesso, visível hoje nas dezenas de lojas e cente-nas de viajantes-vendedores espalhados pelo ter-ritório gaúcho.

Enquanto a 3 Passos crescia e se expandia, asoutras 25 manufaturas, que tinham boa presençano cenário regional e até um comportamentocompetitivo, marcavam passo, sem vislumbrar apossibilidade de crescimento e ampliação do seumercado. A prefeita, consciente da vocação e dapotencialidade de Três Passos no setor, começounova parceria com o Sebrae para revitalizar a in-dústria. O primeiro passo foi reunir os industriaisdo setor:

– Na primeira reunião, eles entenderam que,além de muito esforço e trabalho, teriam que seunir. E, principalmente, eles tinham de se capa-citar, modernizar suas atividades, para poder cres-cer e se firmar no mercado. Promovemos umseminário para fazer um diagnóstico da situa-ção, que mostrou uma união raríssima entre in-dustriais concorrentes e de onde surgiram as se-guintes decisões: criação de um centro comerci-al e de uma entidade representativa da classe;

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meçou em 1992. Vendia lingerie de porta em por-ta. Quando descobriu o fascínio que essas delica-das peças íntimas exerciam sobre as clientes, mon-tou uma fábrica. Em 1998, fez o primeiro cursooferecido pela Prefeitura e pelo Sebrae: o de quali-dade total. E não parou mais. Expandiu o merca-do para Santa Catarina, enquanto sua mulher,Juçara M. R. Petry e sua filha, Tayna R. Petry, asestilistas da fábrica, faziam cursos de moda, estilo edesign na Universidade de Caxias.

A transformação de Três Passos num pólo dovestuário é produto da união, do envolvimento,da participação de todos os empresários. Sem dis-tinção, sem injunções políticas, sem antagonismos.União que teve o estímulo e a participação de or-ganizações como a Agência de Desenvolvimentoda Prefeitura, as Universidades de Caxias e de Ijuí,o Senai, a Cacis, o Sindilojas e as entidades repre-sentativas dos industriais da área de confecções – oSindicato do Vestuário do Noroeste do Estado doRio Grande do Sul, a Associação das Indústrias doVestuário de Três Passos (VestPassos), e o Sindica-to Patronal do Vestuário, que abriga atualmente210 empresas de 72 municípios da região.

aos compradores algo mais além da qualidade.Então, nosso lado mais competitivo, incluídos ospreços, é estar em dia com as tendências, os novosmodelos, os avanços da moda.

Mostrando a cara

– Nos primeiros anos, íamos às feiras, princi-palmente à Fenit, para ver o que os concorrentesestavam fazendo. Hoje, nós “mostramos a cara”nas principais feiras do Brasil – a Fenit, em SãoPaulo; a Feira Nacional de Inverno – Fenim, emGramado e muitas outras. E expandimos nossomercado para outros estados brasileiros e até paraa Argentina.

O maior sucesso da Cincinnati é a linha Sioux,voltada para o público jovem, que “fica encantadocom as nossas roupas “transadas, fashion, trilegais”.Um pouco de gíria não faz mal a ninguém...

Já Carlos José Petry, dirigente da “Ju ModaÍntima”, é um dos pioneiros em Três Passos. Co-

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novos mercados e uma liderança inconteste emtoda a região, a indústria da confecção é honrosareferência para Três Passos.

A Rota do Yucumã

Um dos mandamentos fundamentais do em-preendedorismo – “Aproveitar as oportunidades forado comum para começar um negócio” – é cumpri-do com entusiasmo pela comunidade de Três Pas-sos no setor do turismo. A oportunidade maior é oSalto do Yucumã. Ali pertinho, coisa de uns 40 qui-lômetros, na fronteira com a Argentina. Yucumã éo maior salto longitudinal do mundo, estendendo-se por 1.800 metros dentro do cânion que acom-panha o Rio Uruguai. A catarata está no ParqueEstadual do Turvo, que abriga a maior das florestasainda existentes no Rio Grande do Sul, numa áreade 17.500 hectares, onde se refugiam mais de 200espécies de aves e muitos animais ameaçados deextinção. Em 1998, a parceria do município de Três

Hoje, as etiquetas mais vistosas das indústri-as são o selo de qualidade total; a logomarcaúnica para todas as peças produzidas em TrêsPassos; os 419 empregos diretos; a produçãomensal de 88.500 peças (dados de 2002); o ple-no funcionamento das escolas Técnica de Designe de Qualificação Técnica para os Jovens; a Ro-dada Bianual de Negócios. E planos estão emandamento: a Prefeitura, em parceria com os pe-quenos produtores, está comprando um plotter– máquina de modelagem computadorizada,que corta e modela as roupas com o máximoaproveitamento dos tecidos. Será usadoalternadamente nas confecções que ainda nãotêm condições de adquirir, sozinhas, esse equi-pamento de última geração; e se acelera o planode a Prefeitura comprar, em parceria com os em-presários, uma área (já escolhida) de 6.500metros quadrados para a instalação do pólo in-dustrial e comercial da indústria do vestuário –as fábricas no fundo e, na frente, as lojas de co-mercialização dos produtos.

Hoje, com a ampliação das indústrias, com onível de empregos em expansão, a conquista de

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com o ensino obrigatório do turismo nas esco-las municipais; elaboração de um calendário anualde eventos, onde se destacam a Feicap – FeiraIndustrial, Comercial, Agroindustrial e de Servi-ços – e o Festival de Suínos Nota 10, criadopara popularizar o consumo da carne suína evalorizar e incluir a gastronomia local no turis-mo emergente. Os três-passenses esperam do-brar, em 2006, o número dos dois mil visitantesque participaram do Festival em 2005.

Onde há fumaça, há lucros

Ecologicamente correta pode até não ser. Masa fumicultura é atividade importante e tradicionalem Três Passos. Tradicional demais nas áreas daprodução e da comercialização, já que se trata decultura que vem de tempos bem antigos. Pararevitalizar o setor e criar uma alternativa segura derenda para os pequenos produtores, foi criado oPrograma da Fumicultura.

Passos com a vizinha cidade de Derrubadas foi oembrião do atual consórcio, que congrega 31 mu-nicípios da região para explorar a Rota do Yucumã.

Enquanto promovia esse envolvimento regio-nal, a Prefeitura cuidava do turismo interno, a par-tir do aproveitamento das potencialidades locais,criando-se um pólo turístico-ecológico-religioso ede aventuras. Hoje, além do Salto do Yucumã,Três Passos oferece aos turistas visitas programadasao santuário do Padre González – um mártir lo-cal, assassinado em 1924, venerado pela popula-ção da região e em processo de beatificação noVaticano; o turismo rural e de aventuras, que podeser vivido em cinco fazendas selecionadas e equi-padas para receber os visitantes. Três Passos parti-cipa, ainda, de uma empresa binacional de Turis-mo – a Bocorés – fundada em parceria com a cida-de vizinha de Misiones, na Argentina.

Tudo isso se tornou possível com a criaçãodo Conselho e do Fundo Municipal de Turis-mo, que promoveram a instalação da infra-es-trutura indispensável a esse novo e rendoso ne-gócio: incremento da rede hoteleira, dos restau-rantes e do comércio; capacitação da população,

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va e espontânea do fumo: plantavam em pequenasáreas, esperavam o crescimento das plantas ao sa-bor das incertezas climáticas e vendiam asincipientes safras aos primeiros que aparecessem.Nem discutiam preços. E por serem pequenos pro-dutores e isolados, cada um tocava sua lavoura semse importar com o vizinho, ninguém pensava emconquistar um mercado seguro e garantido paravender a produção irregular.

A implantação do Programa da Fumiculturavirou o jogo, propondo objetivos ambiciosos, ba-seados na união preconizada pela doutrinacooperativista: criar uma alternativa segura de ren-da para os pequenos produtores; usar a mão-de-obra familiar, pois a cultura do fumo é de fácil ma-nejo e acompanhamento; facilitar empréstimosbancários; disponibilizar máquinas e equipamen-tos de terraplenagem para a construção de galpões,de estufas e de melhoria dos acessos viários às la-vouras e à sede da propriedade. E, o principal emtermos econômicos: garantia de compra de toda asafra, a preços de mercado.

Quando o Programa foi lançado, havia poucomais de cem produtores em Três Passos, plantan-

Pisar na grama, nos tempos em que os meni-nos usavam calças curtas, era infração. Uma infra-ção leve, pecadinho dos mais veniais. O guarda-civil, de conveniente pança enorme e vistoso uni-forme azul, nos perdoava a transgressão com umsorriso e um “sai, vai andando”, amigo e cordial.Hoje, pisar na grama é coisa grave. É um absurdoecológico digno do mais incorreto e abominávelcidadão. Fumar, então, beira a crime inafiançável.A cada dia, os coitados dos fumantes são “mais”banidos dos ambientes fechados, das repartiçõespúblicas, dos restaurantes, dos aviões e demais ex-clusões vigentes.

E plantar fumo? É coisa que afronta a ecolo-gia? É um atentado ao meio ambiente? Boas per-guntas para serem respondidas por quem se habili-tar e que não interessam aos plantadores de fumode Três Passos. Principalmente os produtores dodistrito de Bela Vista, que estão plantando comtecnologia moderna, desde que aderiram ao Pro-grama da Fumicultura, lançado logo no início dagrande virada de Três Passos rumo ao desenvolvi-mento e à prosperidade. Até então, os plantadoresda região faziam a cultura tradicional, quase nati-

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tura formou um Consórcio para o Tratamento dosResíduos Sólidos Urbanos – Citresu – com osmunicípios vizinhos de Bom Progresso, CampoNovo, Crissiumal, Humaitá, São Martinho e SedeNova. Zilá explicou:

– Nós tínhamos um lixão a céu aberto, geran-do sérios problemas ambientais e sociais. Os muni-cípios ao nosso redor também eram pequenos, olixo era pobre, não gerava lucro algum. Juntos,conseguimos financiamentos, compramos o terre-no e começamos a construção da Central de Tria-gem, Reciclagem e Compostagem dos ResíduosSólidos Urbanos. Ficou pronta no final de 1999 ehoje processa 32 toneladas de lixo por dia.

Segundo a prefeita, esse consórcio chama aatenção de toda autoridade que visita a região,porque é um consórcio que deu certo:

– Geralmente, os prefeitos, nem bem se reúnem,começam a brigar e cada um vai pro seu lado.

Na formação do Citresu, isso não aconteceu. Oque deu tempo, enquanto durava a construção daCentral, de Três Passos implantar um projeto deeducação ambiental nas associações de bairro, nosclubes de serviço e nas escolas rurais e urbanas –

do em 110 hectares. Em 2003, já existiam 350produtores unidos numa cooperativa, cultivando370 hectares, que produziram mais de 700 tone-ladas de fumo – quase 49 mil arrobas, que são aunidade de peso utilizada para negociar o produ-to. Como cada arroba foi vendida, em 2003, porR$55, os produtores de Três Passos puderam co-memorar, naquele ano, o belo retorno de R$7 milpor hectare plantado.

Um lixo pobre

Para um centro urbano do porte de Três Pas-sos, o lixo representa o principal problema na áreado meio ambiente. Ou os “resíduos sólidos”, comose deve dizer para que nos encaixemos no ecologi-camente correto.

Três Passos sofria com o problema por causado alto custo da coleta e do transporte do lixo, dafalta de uma estação de tratamento e da inexistênciada coleta seletiva. Isso até 1998, quando a Prefei-

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– O nosso lixo ainda é muito pobre. Nós nãotemos muito vidro, não temos muita lata; é muitopouco material para reciclar.

A saúde das famílias

Os habitantes de Três Passos bateram, em2002, um recorde de que podem se orgulhar parasempre, pois é imbatível e incomparável: a taxazero de mortalidade infantil. Uma conquista maisnotável que, para Zilá e Rejane, só aconteceu porcausa do referendo que a Prefeitura fez, em 1998,na sede e nos cinco distritos do município, parasaber das demandas da comunidade na área dasaúde:

– As demandas foram muitas. E algumas eramtão difíceis de atender que estão em andamentoaté hoje. A UTI do hospital regional, por exem-plo, pedida pela comunidade da sede, só ficará pron-ta em setembro deste ano. E, assim mesmo, por-que a Prefeitura conseguiu a ajuda do Lions Inter-

uma das escolas rurais hoje fabrica papel reciclado,embalagens e cartões. E de criar o Conselho Muni-cipal de Proteção ao Meio Ambiente, dedicado es-pecialmente ao reflorestamento da mata ciliar dorio Herval Novo, que é a fonte de água do municí-pio. Anualmente, a Prefeitura promove a Semanado Meio Ambiente. A criação do Citresu e a im-plantação da coleta seletiva provocaram osurgimento de uma inédita classe de trabalhadoresem Três Passos: os catadores de lixo. Hoje, quaseuma centena de pessoas se dedicam à nova profis-são. Uma senhora chegou a informar aos fiscais daPrefeitura que “tirava” mais de três salários-míni-mos por mês com a “catação”. Aí, o dilema: o pla-no da Prefeitura era tornar a usina auto-sustentável,exatamente à base da coleta seletiva. E agora, comodesempregar tamta gente?

Mas esse é um problema até agradável em com-paração à situação do município antes da instala-ção do Citresu. E está a caminho da solução, poiso diálogo entre as partes vem ocorrendo de ma-neira cordial e amistosa.

Mas Zilá desabafa, insistindo num pontocrucial:

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mento das gestantes e o acompanhamento dosbebês nos primeiros meses de vida.

Antes, as crianças maiores eram atendidas emgrupos nos postos. Havia filas, muitas ficavam sematendimento, não existia um programa específicoque cuidasse delas:

– Nós fizemos um contrato com os pediatrasdo município. Eles próprios organizaram um lo-cal. E atendem, gratuitamente, por um valor fixomensal pago pela Prefeitura, todas as crianças e jo-vens até 18 anos. Desde 1999, nenhuma criançaficou sem atendimento; não existem mais filas.

– Posso dizer, com orgulho, que o nosso aten-dimento às crianças chegou aos cem por cento emmatéria de eficiência – conclui Zilá.

Uma porta sem chave

Para implantar os programas nas escolas, princi-palmente nas escolas rurais, a Prefeitura e o Sebraecriaram, com a participação da Universidade Regional

nacional – a prometida contrapartida financeira doEstado nunca veio.

As comunidades urbana e rural pediram, tam-bém, mais postos de saúde. A Prefeitura foi além:criou os postos e implantou o programa “Saúdena Família”, que diminuiu, em mais de 50 porcento, as internações no hospital.

Os médicos e os agentes de saúde fazem visitasperiódicas às casas e às escolas, e, além do atendi-mento médico normal, conversam e ensinam aadultos e crianças noções básicas de higiene, deprevenção e de saneamento.

– Essa descentralização dos serviços de saúde –explica Zilá – melhorou a qualidade de vida, poispassou a existir um monitoramento da saúde dapopulação, com o apoio financeiro da Prefeituraaté para os diagnósticos. Coisa que exigia alto in-vestimento financeiro, muito acima das nossas ca-pacidades. Por isso, fizemos um consórcio com al-guns municípios vizinhos e conseguimos preçosespeciais e subsidiados para os exames de média ealta complexidade.

O controle e o planejamento familiar tambémentraram na programação, havendo o monitora-

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– Sim, uma chave, porque na minha casa nãotem fechadura. Tem é um buraco lá, com um bar-bante para fechar a porta. Eu quero a chave por-que, tendo ela, vou arranjar uma fechadura para anossa porta.

Ao chegar à 8ª série, os alunos começavam oprograma Jovem Empreendedor, quando estavammais maduros e falando abertamente de negócios.As crianças foram capacitadas, tanto na cidade,quanto nos distritos e fazendas, aproveitando-sesempre a realidade local.

O Pólo Oleoquímico

A citronela é outro exemplo de como Três Pas-sos cumpre à risca um dos mandamentos funda-mentais do empreendedorismo: identificar umaoportunidade e investir. O cultivo da citronela, na-tiva por ali, é tradição bem antiga na região, abran-gendo os dois lados da fronteira Brasil-Argentina.Por causa dessa tradição, os produtores locais da

de Ijuí, um curso de capacitação para os professo-res. Trouxeram de Minas Gerais o professorFernando Dolabela, um dos maiores nomes doempreendedorismo nos meios universitários brasi-leiros. Ele iniciou o curso e sugeriu aos professoresque executassem nas escolas atividades lúdico-di-dáticas direcionadas para o espírito de liderança, aauto-estima e a decisão de começar coisas novas.Os professores trabalharam não só as crianças ejovens com essa pedagogia do empreendedoris-mo, mas também suas famílias. Deram dezenas deaulas noturnas a mães e pais, que fizeram cursosde capacitação baseados no “Aprender a Empre-ender” e em noções básicas de cooperativismo eassociativismo. Ensinaram a todos, pais e filhos, aquerer mais do que ganhar um singelo salário mí-nimo num emprego qualquer na cidade. Eles de-veriam realizar os seus sonhos no campo, e tinhamtudo para fazer isso.

E quantos sonhos surgiram! Um aluno disseao professor que seu sonho era ser locutor e ele iriamontar uma rádio na escola. Outro contou que oseu maior sonho na vida era ter uma chave.

– Uma chave?

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produtos orgânicos, exige volume de produção equer constância no fornecimento. Afora o forneci-mento de orgânicos, os produtores de Três Passosnão podem garantir, ainda, volume de produção econstância no fornecimento.

Perfumes, temperos, fitoterapia

Mas vão em frente. Ainda mais agora que oPólo Oleoquímico, coordenado pelo pró-reitor docampus da Unijuí, professor Luiz Volney MattosViau, chegou à maturidade. Esse pólo é, na reali-dade, uma usina-piloto, onde se fazem a extraçãode óleos essenciais e o plantio experimental de es-pécies destinadas à produção das indústrias de cos-méticos, perfumes, condimentos e fitoterápicas.Nele, estão sendo cultivadas e estudadas 63 espé-cies, através do intercâmbio tecnológico com aUniversidade de Caxias e o Centro de Pesquisa deFlorestas e Conservação do Solo – Fepagro – deSanta Maria-RS.

perfumada planta foram os primeiros a serem in-cluídos nos projetos e programas criados e desen-volvidos pela Prefeitura de Três Passos em parceriacom o Sebrae, a Secretaria Estadual de Ciência eTecnologia e a Universidade Regional de Ijuí. Pre-tendiam organizar a cadeia produtiva da citronelae de outras plantas aromáticas, medicinais e condi-mentos. E dar o suporte técnico para que o seucultivo passasse a ser uma alternativa como fontede renda e de trabalho para a agricultura familiar,especialmente nas “áreas declivosas” das pequenaspropriedades, impossível de serem mecanizadas.

O mercado brasileiro exportador dessas plan-tas aumentou em 120% nos últimos anos. E omercado importador cresce em disparada, mormen-te na área dos chás e temperos. Em 2004, porexemplo, o Brasil importou cerca de 300 tonela-das de cominho, 150 de orégano e 70 de coentro.

Esses números das áreas de exportação e im-portação acabam sendo um estímulo para qual-quer produtor. Especialmente para os de Três Pas-sos, que começam a conquistar uma importantecarteira de clientes, mas conscientes das suas limi-tações. Sabem que o mercado é seletivo, prefere os

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centradas na citronela; no capim-limão (erva-cidreira); no alecrim; na lavanda; no eucaliptoglobulus e na citriodora. Trinta produtores já traba-lham com o selo da certificação orgânica; outros25 estão ampliando as áreas de plantio e se prepa-ram para obter o selo; e todos planejam formar, emparceria com a Prefeitura, uma cooperativa. Já têmalguns clientes fixos no Rio Grande do Sul, em Mi-nas, no Rio de Janeiro e no Paraná. Uma grandeindústria de Porto Alegre chegou até a propor acompra de toda a produção.

A volta

Saímos de Três Passos às seis horas da manhãdo sábado, 11 de março de 2006. Os termôme-tros marcavam 26 graus. Um calor tão intensoquanto as ondas de calor humano que nos envol-veram nos três dias que passamos com aquela gen-te. Trouxe comigo muitas lembranças. A primeira,a lembrança da cidade brasileira mais limpa que eu

Em convênio com uma empresa importadorade São Paulo, estão em desenvolvimento o plantioe os estudos de viabilidade ambiental e econômicade especiarias, como orégano, manjerona,cominho, erva-doce, louro, funcho, coentro emanjericão.

A universitária Deoniza Mrozinski Irgang, quefaz seu estágio curricular da Unijuí no Pólo, nosmostra com orgulho os lugares onde trabalha: asede, com escritório administrativo e salas para cur-sos e treinamentos e desenvolvimento detecnologias; o salão, onde se faz a extração dasessências; a unidades de lavagem e secagem dasplantas; a unidade específica para produção demultimistura, complemento alimentar distribuídonos postos de saúde do município; a estufa para aprodução de mudas; o laboratório com detectorde massas para análises químicas e controle de qua-lidade e a área experimental para a introdução eavaliação de novas espécies aromáticas e medici-nais. A comercialização da produção é feita direta-mente pela Unijuí.

As plantações se vêm ampliando – a massa verdeda erva-cidreira chega a 3 mil quilos/mês – e estão

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Capítulo IV

Encontro das Águas

vi na minha vida. Uma cidade justa, porque não vimendigos, nem meninos e meninas perambulando,abandonados, nas suas largas ruas e avenidas. Semconfusão e barulho no trânsito, razão do silênciocampestre que domina os seus ares azulados. E,principalmente, trouxe mais do que uma lembran-ça, uma certeza inexistente na maioria dos muni-cípios do nosso país: os planos, os projetos, osempreendimentos que eu vi e comprovei não se-rão interrompidos. Têm e terão continuidade, nãovoltarão atrás. Nesse aspecto, o lugar é tambémuma exceção: Zilá foi eleita prefeita em 1996;reeleita em 2000; e teve seu vice, Carlos AlbertoCanova, e sua secretária de Educação, Rejane LuísaRichter, eleitos, respectivamente, prefeito e vice-prefeita de Três Passos, em 2004.

Assim, independentemente de arengas políti-cas, de pressões retrógradas e de ambições pesso-ais, a bonita cidade do noroeste gaúcho continua-rá sua irresistível caminhada rumo ao seu futurode prosperidade: quem aprendeu a empreender,não pára nunca mais.

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– QQQQQuem é ele?– É o Júlio, Júlio Barbosa, nosso bom prefeito,

de 1996 a 2004. Um empreendedor, um homemde bem e reconhecido. Um homem premiado pelotalento e por sua capacidade de trabalho.

– E aquela mulher ao lado dele?– Uma legenda. Depois eu falo dela. Xapuri

tem em sua longa história, de mais de 100 anos,os antes e os depois. Antes da seringa e depois daseringa; antes das enchentes e depois das enchen-tes, antes da madeira e depois da quase destruiçãode florestas majestosas...

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Encontro das Águas

contro dos dois rios que somam suas águas e cor-rem para o norte, os rios Xapuri e Acre. Umadaquelas pessoas era a dona Vicência.

– Quem for a Xapuri e não entrar no Restauran-te Tia Vicência, é como ir a Roma e não ver o papa– diz o guia e repórter Eugênio. – Ela, com 77anos, faz questão de comandar a sua famosa cozi-nha, que oferece o prato tradicional pato, porco egalinha caipira. Seu restaurante fica na rua 6 de Agos-to, no fundo corre o rio Acre. É mais uma das pes-soas que sabem bem a história de Xapuri, ela co-nhece profundamente. Tia Vicência prefere falar so-bre a saga dos Arigós, nome dado no interior doBrasil a pessoas tidas como bobas, daí entender TiaVicência que seus familiares e companheiros de via-gem eram verdadeiramente arigós, afinal eles foramenganados. Todos acharam que integrar o exércitodos “Soldados da Borracha” era encontrar o cami-nho da riqueza, pela extração do látex.

– Ela está conversando com Júlio, que hoje é vice-presidente do Conselho de Seringueiros, com sede emRio Branco, mas todos os fins de semana ele está aquie com certeza está marcando um almoço, um jantarcom convidados especiais, com certeza novos empre-

– ...tem antes do Chico Mendes e depois dasua morte, morte que trouxe a vida e que fez re-nascer nossas florestas, a defesa dos seringais e davida dos homens da mata...

– Isso mesmo, e hoje Xapuri tem o antes e odepois do prefeito empreendedor, premiado naci-onalmente, o Júlio Barbosa.

Este diálogo aqui transcrito foi gravado pelorepórter da Folha Nacional, Elton Bulhões, envia-do a Xapuri, no Acre, para localizar e entrevistarum dos maiores madeireiros da região. Ao seu ladocomo guia, cicerone e repórter-fotográfico auxiliarestava o polivalente enfermeiro, radialista e jorna-lista Eugênio Ramos.

– Aquela mulher com o Júlio é dona Vicência,uma cearense que chegou aqui menina. Veio comos pais, naquela engrenagem de exploração da matae de destruição de gente, os homens que, em umtempo não muito distante, formaram o exército dos“Soldados da Borracha”. Converse com ela.

Naquele dia chuvoso, em um dos raros mo-mentos de estiagem, além dos dois jornalistas, trêspessoas estiveram na praça São Sebastião, um dosmais belos retratos da Amazônia, diante do en-

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Encontro das Águas

bosa – ex-prefeito, mas nós o chamamos de nossoprefeito Júlio. É um seringueiro.

– Um seringueiro?– Sim, ele sempre foi um homem da flores-

ta. Júlio nasceu no Seringal Cachoeira, emXapuri, em 1954. Quando ele tinha 4 anos deidade, a família se mudou para uma Colocaçãoperto da cidade de Xapuri, onde moraram por2 anos e ele teve a oportunidade de estudar,porque era perto. A escola ficava a uma horade viagem. Lá ele concluiu a terceira série pri-mária.

– Ele continuou os estudos?– Não. Quando estava com 13 anos seu pai,

por dificuldades financeiras, teve que voltar para oseringal, dentro do que é hoje a Reserva ChicoMendes. Julio parou de estudar e trabalhou de 68a 88 na atividade da seringa, cortando. Vinte anosna atividade da borracha. Não houve um únicoque ele tenha parado de cortar seringa. Vinte anosna floresta fizeram um homem.

endedores. Júlio continua na trilha que o marcou emnossa história quando foi prefeito e mudou tudo.

– E Tia Vicência?– Quando chegou a Xapuri, moça, vinha do

Nordeste, como tantos outros. Subiu até Belémno navio Comandante Hiper. Da capital do Pará,pegou outra embarcação para descer até onde seencontram os rios Xapuri e Acre. Isto foi em 1943,em plena guerra, a segunda grande guerra do sé-culo XX. Seus pais foram atraídos pela propagandade Getúlio Vargas de que era preciso povoar o Acre.

– Mesmo não encontrando nada do que foidito, já que estava em Xapuri e com dificuldadepara retornar ao Nordeste a família decidiu ficar.Com o tempo Vicência passou a amar a cidadeque lhe dá sustento e fama com seu restaurante.

O seringueiro virou prefeito

O primeiro homem a aparecer na praça e queconversa com Tia Vicência é o prefeito Júlio Bar-

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Iniciei este trabalho. Começou na nossa co-munidade, depois diretamente na organização dosindicato. A partir dos anos 80, a luta foi amplia-da. Não era mais só o Sindicato tentando reunirseringueiros em suas Colocações, era muito mais aluta por uma alternativa diferente de vida, atravésdos programas de educação e saúde, de desenvol-vimento econômico, com a implantação de coo-perativas. Eu realmente participei deste processotodo, tanto no trabalho de saúde, quanto na edu-cação e no estabelecimento de cooperativas.

Neste cenário, a partir de 85/ 86, com a cria-ção do Conselho Nacional dos Seringueiros, no IEncontro, realizado em Brasília, começou a dis-cussão sobre um novo conceito de reforma agráriapara a Amazônia, voltada para a criação de reser-vas extrativistas. Entramos no cenário nacional, naépoca do início de toda a discussão sobre a ques-tão da ecologia e do meio-ambiente, que a gentenem sabia o que era.

A aliança entre os movimentos sindicais e am-bientalistas denominada Movimento dos Verdesfortaleceu a luta em Xapuri, no estado do Acre, eem toda a Amazônia.

Quem somos nós?

Naquela época, na floresta amazônica, o Brasilganhava um novo brasileiro. Aquela criança cor-tando a seringa, extraindo o látex, forjou um ho-mem para a liderança. A dura batalha de forma-ção, que temperou aquele que sairia do seringalpara administrar uma Prefeitura, tem registro.

Júlio lembrou essa época, quando se prepara-va para assumir a Prefeitura, e ele conta sua histó-ria.

– Neste período todo – diz Júlio Barbosa –tivemos algumas mudanças, pela necessidade denos organizarmos, com a chegada do novo mo-delo de ocupação da Amazônia, com a entradadas grandes empresas de agropecuária.

Foi quando surgiu, em 62, o sindicato e tive-mos a criação das Comunidades Eclesiais de Base,através da Igreja Católica. Só em 78, portanto,dez anos depois de estar no seringal, foi que co-mecei a participar diretamente, tanto do sindicatoquanto das Comunidades de Base, através dosNúcleos de Evangelização.

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A filha vira mãe e depois avó

A terceira pessoa era o cozinheiro João LopesMendes Filho.

– Aposentei-me e comecei a viver, sobrevivi aum banco, hoje sou bom cozinheiro, respeitado esolicitado, sem o talento e o tempero de TiaVicência, mas eu conto histórias.

Ele conta mesmo e é capaz de horas a fio, alidiante das águas dos rios Acre e Xapuri, resgatar ahistória do comandante Plácido de Castro, agri-mensor, medidor de terras, assim como de Fawcett,o inglês desaparecido na selva, também agrimen-sor. Os medidores de terra eram os homens maisimportantes na hora de dizer – aqui é Brasil, aquisão suas terras, aqui é Bolívia, aqui é a terra dosbolivianos – enquanto, nos palácios de Petrópolis,homens da nobreza brasileira e republicanos daBolívia dividiam e legitimavam as terras da riquezado Império da Borracha, o ouro vegetal do séculoXIX e início do século XX.

João Mendes gosta tanto desta história como dahistória do “nosso prefeito”, o empreendedor Júlio.

Surgia assim uma liderança nacional, credenci-ada, respeitada e dinâmica.

– Acho que tudo isto tem um sentido muito cla-ro. Eu acho – diz Júlio – que em tudo que aprendina nossa organização, começando na minha comu-nidade, depois expandindo para o município, depoiso estado, depois a nível nacional, existe este fato queleva a esclarecer por que hoje considero normal “sairde dentro do seringal e chegar a prefeito de Xapuri”.

– É tudo muito simples, é uma história com muitasalianças no Brasil inteiro, e essas alianças foram muitoimportantes no nosso processo de organização e deobtenção de resultados concretos. Ganhar a eleição emXapuri foi a página final de um trabalho desenvolvidodurante 20 anos. Não foi nenhuma surpresa o resulta-do da eleição, havia por trás de tudo a resistência, a luta,a organização e a busca de participação da comunida-de no processo de gestão política. Assim, concluo que omais importante é que nenhuma luta, nenhum esforço,é uma luta, um esforço isolado, de um mas, só da soci-edade, da qual todo o povo participa.

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certificado internacional FSC de Bom Manejo Flo-restal. Cito este resultado para dizer que, com oapoio de quem entende de projetos e degerenciamento, nós não falhamos, seguimos as pe-gadas de gente amiga da natureza e rompemos gar-galos para a produção sem destruir nossas florestas.

Com o empreendedorismo dando os primei-ros passos, inicia-se a possível concretização do so-nho e do que está por vir. Um exemplo é a fábricade preservativos, que deverá empregar 150 pesso-as com mão-de-obra direta, além da fábrica de pi-sos – tacos ou tábuas corridas – que poderá em-pregar 50 trabalhadores.

– Para concretização desse sonho, encontra-seem andamento o pólo moveleiro, uma usina debeneficiamento do látex e outra de castanha.

O governo estadual dá continuidade ao proje-to da fábrica de pisos, que será a redenção do mu-nicípio. Faz parte do projeto de manejo, ou seja,explora a floresta sem agredi-la. A árvore é como agente: nasce, cresce, envelhece e morre. Então,nós temos que tirá-la, mas com manejo. Tira-se aavó e deixam-se as netas e as filhas. A filha vira mãee depois avó.

– Empreendedor reconhecido e premiado, Jú-lio mudou tudo aqui, mudou o destino desta nos-sa gente e os resultados não virão daqui a 100anos, já vieram.

João Mendes traz um de seus pratos da culiná-ria do Amazonas e lembra o que Júlio encontrouem Xapuri, em 1996, quando assumiu a Prefeiturapela primeira vez, e o resultado oito anos depois,já que foi reeleito.

– Júlio sabia das dificuldades, sabia que tinhaem mãos uma Prefeitura pequena e que, mesmoassim, poderia construir um modelo, em curto pra-zo. Tínhamos uma única serraria, o Agenor era oúnico madeireiro de Xapuri, a única indústria, tí-nhamos os seringueiros, duas usinas, uma debeneficiamento de castanha e outra de borracha,desemprego total.

– Era sua obsessão transformar Xapuri, criar umpólo industrial com a madeira, a agricultura, a pe-cuária e o extrativismo, compondo um mosaicopara o trabalho e a riqueza.

– E o que ele fez?– Veja, com os projetos de beneficiamento do

látex, da castanha e da madeira, Xapuri obteve o

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nado, mas nunca do contra. Ele precisa participardos programas desenvolvidos pela sociedade comoparceiro”, diz João Mendes.

A implantação do Pólo Moveleiro de Xapuri,já em andamento, está sendo possível com as par-cerias dos governos federal e estadual, Prefeitura,Sebrae e ASS, que assumiram a parte logística etécnica.

– Mesmo independente da gestão de governo,tornam-se importantes as parcerias para empurrar oque já está implantado. O povo espera muito daPrefeitura. Sei que hoje o projeto anda com maisforça, após a formação da cooperativa de pequenosempreendedores. Perder eleição não é bom, mas apopulação é dona de seu destino. Os jovens queaprenderam no pólo já estão na terceira turma e oprocesso ainda é lento, mas é a maneira de os capa-citar e fazê-los chegar à condição de sua própriamarcenaria. Há falta de mais cursos profissionalizan-tes, num momento em que o governo se preocupamais com o lazer e o esporte. Sei, também, queainda não foi possível eliminar o atravessador noque toca às castanhas e ao látex. O povo brasileiroainda não faz diferença de projetos com política

João Mendes prossegue:– Sei que com a vinda de técnicos italianos em

marcenaria temos bons cursos profissionalizantespara jovens, que não tinham ocupação na cidade.Hoje já podem ser encontrados aqui jovens profis-sionais de marcenaria. Quem tinha condições man-dou os filhos para estudarem fora. Por exemplo,meu filho foi para Prudente de Morais, em SãoPaulo, onde se formou em Direito. Eu o trouxepara advogar aqui.

Dá outros exemplos:– Na década de 70, muitos foram para Rio

Branco. Agora, eles estão esperançosos de ficar poraqui. Meu sonho é ver a cidade crescendo e setornando atração turística. Eu já emprego seis pes-soas e vejo na implantação do turismo ecológicouma alternativa para Xapuri.

Os projetos das usinas de beneficiamento co-meçaram na administração anterior de dois man-datos do prefeito Júlio Barbosa, hoje vice-presi-dente do Conselho de Seringueiros. Júlio foi vere-ador também por dois mandatos em Xapuri. Eleentende que o governo é passageiro, mas a socie-dade permanece. “Um prefeito pode até ser alie-

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– Demos uma mão no processo de tornar acidade patrimônio mundial da humanidade, masnão temos informação de seu andamento – finali-za o ex-prefeito.

Aqui é lugar de florestas

Depois do encontro na praça São Sebastião,em Xapuri, Elton Bulhões e Eugênio Ramos havi-am marcado uma entrevista com a desenhista eempresária paulista Etel Carmona, uma mineira deParaisópolis que foi para São Paulo e fez o seu ca-minho para a Amazônia. Ela chegou a Xapuri, em2000, pelas mãos do governador Jorge Viana e doprefeito Júlio Barbosa. Nasceu, assim, com ela, comdona Etel Carmona, o Pólo Moveleiro, uma his-tória de amor à floresta e um compromisso com oshomens do planeta.

Ela já fez muito nestes seis anos. Fez. E fazersempre tem sido seu desafio. Jovens de Xapuri via-jaram para a capital paulista e aprenderam na fábri-

eleitoral. Às vezes vota protestando ou para agradara grupos. Isso foi ruim para Xapuri, que não temsuas florestas por cultivo, como acontece no MatoGrosso, São Paulo e Espírito Santo. Por exemplo, aprodução de preservativos com produtos nativos éuma garantia a mais na qualidade. O administradormunicipal necessita dar espaço para outros e eu nãosou político de briga. O povo de Xapuri me adora eem todos os finais de semana estou lá – desabafa oex-prefeito Júlio Barbosa.

Ele entende que a pecuária é importante parao estado, mas que não podem derrubar mais flo-restas do que já derrubaram. Entende que nomomento não há clareza por parte da Universida-de Federal do Acre sobre a importância do desen-volvimento do estado. A universidade se preocupamais com agronomia, zootecnia, geografia e edu-cação física no campus de Xapuri, seria melhor quepreparassem os universitários para a realidade local.Júlio chama a atenção para o pólo turístico, quedeverá ser forte contribuição para o crescimentode Xapuri. Há interesse da população, mas depen-de de como age o gestor municipal, que precisacativar o turista que visita a região.

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entalistas e autoridades no assunto do mundo in-teiro. A reserva é formada por comunidades quetêm suas posses de terra entre Xapuri eEpitaciolândia.

Etel sente que sua missão em Xapuri é agregarvalores à floresta e mostrar que as árvores valemmais em pé do que no chão.

A questão de a floresta estar no chão, da des-truição das árvores, é analisada a partir da vissãoque se tem ao passar pela estrada asfaltada de aces-so a Xapuri: as matas tombadas e pastos com boispor todos os lados. Árvores centenárias queima-das, e ainda estão lá seus troncos escurecidos pelofogo.

Ela entende que nada disso leva a nada, “sótraz a destruição, sendo terrível para o meio ambi-ente”.

A vida de Etel é entre a Amazônia e São Paulo,e a finalidade de sua empresa é a produção de mó-veis e peças artesanais, como brinquedos para cri-anças, porta-jóias, caixas de giz, entre outros.

Uma ponte de Etel para a vida, um exemplopara os cidadãos. Ela sabe de que são capazes oshomens quando se dão as mãos.

ca de São Paulo a arte e o ofício da madeira. Sur-giram os mestres no trabalho da madeira e o apren-dizado continuado para quem trabalha.

Etel afirma:– Estou fazendo minha parte, o resto é com

o governo, através do envolvimento de mais pes-soas. É preciso que o governo incentive os maio-res empresários para o manejo. Não tenho receiodo meu trabalho aqui. Eu não me envolvo compolítica. No início, havia o receio do povo deXapuri de que eu vinha aqui por ser uma pessoarica, uma gringa que vinha para explorá-los. Logoeles viram que isso não era verdade. Eu fiz ques-tão de mostrar que vim para trabalhar. Eu os tra-tei com cidadania e respeito. Ainda acham queeu sou uma mulher rica. Sou, na verdade, umatrabalhadora.

O trabalho sob orientação da empresária, quecomeçou em 2000, já valeu a Xapuri o título deprimeiro projeto de manejo florestal comunitáriocertificado do Brasil. O projeto fica no distrito deCachoeira, numa reserva extrativista. Quando dasua implantação, ali estiveram líderes comunitári-os de 35 países e atrai, permanentemente, ambi-

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veis são antigos e contam a história da fundação dacidade – esclarece Eugênio. – O governo não sódeu a tinta, como a mão-de-obra para o trabalho.

Um dos casarões ficou sem pintura. Um empre-sário não entendeu a proposta e resistiu, não permi-tindo a pintura de seu estabelecimento comercial.

– Irinelda sonha com um desenvolvimentomelhor para sua cidade e que as pessoas valorizemos conterrâneos, e não busquem gente de fora paraocupar os poucos empregos existentes aqui.

A mulher fala da indústria e de como defendeuo emprego para o povo de Xapuri, destacando ocrescimento da produção de móveis e trabalhosartísticos.

– A expectativa é de maior crescimento. Paraisso, é importante o apoio dos governantes.

Sua esperança é de que cheguem a Xapuri novosempresários, a exemplo da patroa Etel, para que omunicípio conheça maior desenvolvimento. Reconhe-ce que está tendo uma boa ocupação, mas seu desejoé dar continuidade à sua qualificação profissional, mes-mo já tendo se formado em Educação Física.

Conta que o núcleo da Universidade Federaldo Acre, UFAC, em Xapuri, está recomeçando com

Júlio Barbosa, o seringueiro que virou prefeito, olíder que saiu da floresta, reconhece o valor dos que,como Etel Carmona, mudam a vida das pessoas.

Os homens e as mulheres da madeira

Eugênio Ramos chama a atenção do repórterElton Bulhões para Irinelda Silva.

– Ela é o braço direito de Etel Carmona. Acre.Etel é a mulher que compreendeu o desafio que éser empresária aqui, extrair a riqueza da floresta egarantir a sobrevivência dela e de todas as suas ri-quezas.

– Irinelda é de onde?– Ela é daqui mesmo, nasceu em Rio Branco,

mas vive e trabalha em Xapuri.O dois caminham para o restaurante de João

Mendes pela rua do Comércio, no centro de Xapuri.Todas as casas do centro foram revitalizadas como apoio do governo do estado.

– As casas tiveram reformada a parte externa, enesta rua em que predomina o comércio, os imó-

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o administrador garante que a creche já se encon-tra em nível europeu. E acrescenta:

– Pelo aprendizado na marcenaria já passaramduas turmas de jovens, rapazes em sua maioria.Em março de 2006 entrou para a oficina a terceiraturma. Eles recebem formação prática e teórica vi-sando o projeto sócio ambiental, dando continui-dade à proposta de que a floresta dê sustentaçãode vida tanto ao homem do campo como ao dacidade.

Aldenor não é marceneiro e a oficina fica porconta do mestre Raimundo Graça Severiano deFreitas: são mais de 33 anos de experiência no Senai.Aldenor cuida da parte teórica como professor, le-cionando conhecimentos gerais da região doXapuri, do Acre e do Brasil. Leciona, também,Matemática, considerando fundamentais os cálcu-los para a feitura dos móveis.

O Pólo Moveleiro de Xapuri já alcançou reco-nhecimento nacional e internacional. Aldernor res-salta a parceria com uma ONG italiana que ajudana parte administrativa, o que tem possibilitadoalcançar o objetivo básico do projeto, que é o detransformar jovens carentes em marceneiros pro-

os cursos de Letras, Pedagogia e Matemática. Elanão deseja largar o emprego, mas conjugar horá-rios para fazer outro curso.

No galpão da empresa, que funciona no pólomoveleiro na periferia da cidade, todos conside-ram que há um desafio maior do que a implanta-ção de indústrias, “aqui construímos um exemplo,somos uma célula de outras semelhantes que de-vem se propagar pela Amazônia”.

Irinelda apresenta Aldenor Ferreira da Silva.– É a peça chave do projeto da formação de

jovens na área de marcenaria em Xapuri. É o ad-ministrador da Organização para o Desenvolvimen-to Econômico-Social Sustentável (ODESS), quetem participação ativa em nosso dia-a-dia.

Creche européia

Este projeto abrange não somente a área demarcenaria, mantém uma creche com 120 crian-ças de idade entre três e quatro anos. Orgulhoso,

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Participaram, como instrutores voluntários,mestres marceneiros do conhecido pólo moveleirode Como, na Itália.

A área moveleira tem a parte da ODESS e daAZ, de propriedade de Etel Carmona. O pessoalque cuida da extração na mata não manda toda aprodução para o pólo moveleiro, que ainda nãotem capacidade de trabalhar toda a matéria-prima.Boa parte da madeira, da castanha e do látex évendida para São Paulo, outros estados e até ou-tros países.

No caso da castanha, o extrativista colhe, que-bra e vende em sacas para a cooperativa. O mesmoacontece com a borracha, sendo que uma partedo látex vai para a usina de Xapuri e outra paraSena Madureira. Mas o administrador do pólo in-dustrial tem esperança de um dia comprar todo omaterial vindo da mata.

Entre os novos formandos está uma mulher.Mafra Virgínia tem 19 anos e é da terceira turmade marceneiros. Ela afirma que ainda não tem co-ragem de montar uma indústria sozinha.

Recebe, por mês, mais de um salário, depen-dendo de sua produção. Seu grupo, quando tem

fissionais, como já aconteceu nos últimos dois anos.A cada ano, forma-se uma turma que, ao deixar opólo, está capacitada para montar uma nova em-presa.

O ensino para os jovens não é apenas comotrabalhar a madeira, mas de consciência de umasociedade sustentável tanto na área rural como naurbana, em busca da preservação da floresta e dacidade. Aldenor considera que o Sebrae é funda-mental na parceria com a ODESS, especialmenteno contato com os segmentos sociais, fomentan-do a necessidade de dar formação aos jovens. Alémda capactação técnica, ali se formam empresários etodos participam da compra de material e da ven-da dos produtos, com conhecimento da parte ad-ministrativa.

A cargo da ODESS estão a montagem de no-vos galpões e a compra do material a ser trabalha-do, com pagamento parcelado. Os jovens mar-ceneiros começam a pagar 40% do valor do ma-terial que lhes foi destinado, a exemplo domaquinário, e devolvem parceladamente para aODESS os valores devidos, como se faz em umacooperativa.

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de querem, eles precisarão ter força de vontade eperseverança.

– O que temos, o que conquistamos ainda ésó um pouco da realidade, mas já é um sonho veresse projeto ser realizado.

O santo e os homens de negócios

É ali na praça dos Dois Antigos Grandes Rios,o rio Acre e sua cor ocre e o rio Xapuri e suaságuas verdes, também chamada de Praça São Se-bastião, que se traçam todos os caminhos. Riostraçados pelas velozes voadeiras, grandes balsas queconjugam o avanço dos homens; também pelasestradas abertas na floresta, como chagas, atraves-sando fronteiras e agora ligando oceanos. Ali passao caminho que unirá o Atlântico ao Pacífico – umanova fronteira de nações e de novas riquezas.

No mais, o destino de Xapuri fica nas mãos deSão Sebastião, na esperança de conseguir graças,muitas graças, entre elas a de fazer, de construir

muito trabalho, passa mais tempo no galpão, oque aumenta o retorno financeiro.

Ao seu lado, Armando Araújo, também umjovem profissional, acha que já dá conta do reca-do em uma marcenaria. Sua esperança é conseguirum mercado maior para a colocação do que suaturma produz. Tanto Mafra quanto Armando játrabalham em outro galpão cedido pela escola.Todos os futuros empresários-marceneiros garan-tem que, se não tivessem aprendido a profissão,estariam ociosos, pois não pretendem sair de Xapuri.

Para o mestre marceneiro, formado pelo Senaina década de 60, o amazonense Francisco Patrício,em Xapuri desde 2003, na vida o que se busca é oresultado, daí a necessidade de analisar bem a pro-dução.

– Com o incentivo que estes jovens vêm ob-tendo, eles podem progredir e ter grande esperan-ça de um futuro melhor. As turmas que chegampara aprender marcenaria não dão trabalho, já pos-suem um bom nível de formação.

Entre seus conselhos para aqueles jovens está ode que é preciso pensar no mundo, não trabalhan-do apenas visando Xapuri, mas para chegarem aon-

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pre passando uma temporada na “boa terra”. Nãoé o caso de Armando Nogueira, jornalista, nem dosex-ministros Adib Jatene e Jarbas Passarinho, nemde Glória Peres, a novelista da Globo, que cresce-ram em outras terras. Eugênio Ramos voltou parao Acre, como muitos outros profissionais. Técnicoem enfermagem é também radialista e jornalista.

Eugênio diz que Xapuri é uma terra promisso-ra, uma cidade conhecida em nível mundial. Estereconhecimento é um fator positivo e está ligado acausas que a humanidade e os principais órgãosinternacionais valorizam.

Por sua vez, o presidente da Associação Co-mercial, Industrial e de Serviços Agrícolas deXapuri, João Honorato Cardoso, entende que aspessoas estão se unindo mais, “todos buscam par-cerias que agreguem valores de renda e crescimen-to”.

As parcerias, segundo pensa, devem ser busca-das com os poderes executivos, envolvendo todosos processos de economia de Xapuri, visando a umfuturo melhor e integrando todas as forças.

No caso da Associação Comercial, ressalta Joãoque o comércio tem poder muito grande em uma

esse futuro, que hoje mobiliza o povo acreano, e aesperança do emprego. Por trás da devoção está arealidade do rendimento financeiro com as festivi-dades do dia 20 de janeiro, consagrado ao santo.

É ainda hoje a data em que mais se compra emais se vende na cidade, com a presença de pe-quenos, médios e grandes comerciantes. E é a As-sociação Comercial que constata o movimento fi-nanceiro, com lucros tanto para os camelôs comopara os donos de hotéis e pousadas. Os restauran-tes e as lojas ficam bem movimentados entre osdias 17 a 21 de janeiro, e há quem compare acidade a Veneza no período medieval.

As ruas ficam cheias de pessoas trançando porentre barracas. Elas vêm de todos os lados, especi-almente dos municípios de Brasiléia eEpitaciolândia, os mais próximos de Xapuri, atémesmo de Cobija, a capital do Departamento dePando, na Bolívia, na fronteira com o Brasil e amenos de 60 quilômetros de Xapuri, como contaa revista que descreve o Centenário de Xapuri,publicada pela Prefeitura Municipal.

Milagre ou não, uma realidade é que muitosacreanos estão voltando, uns para ficar, outros sem-

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estado, trazendo palestras, treinamentos participa-ções e, aí, fazendo um trabalho de pé no chão emXapuri e em todos os demais municípios com des-taque para o associativismo.

– Os habitantes da cidade, um tanto indivi-dualistas, já começaram a mudar. Estamos fa-zendo um trabalho para que essa cultura mudee que todos venham participar do associativis-mo.

– Em negócios não há milagre, há trabalho –observa Elton Bulhões afirmando, mas, como pa-receu uma pergunta, Eugênio completou.

– Há um milagre comercial, em Xapuri, todo20 de janeiro. É o dia de São Sebastião.

Outras histórias

O encontro com o madeireiro CapistranoBueno de Assis fora marcado para o restaurante deJoão Mendes. Era o principal objetivo da viagemde Elton Bulhões ao Acre.

cidade, mas que é importante que as pessoas quetrabalham no comércio reconheçam esse seu papele sua força de estar buscando as parcerias certas.

Jovem, ele tem, também, um sonho para a suaXapuri. Deseja que as pessoas comecem a se inte-grar e a entender melhor todo o processo de desen-volvimento do município. Ele diz que o setor pú-blico tem apoiado as instituições, os organismos emovimentos sociais, e que o mais importante queas pessoas deveriam estar dizendo hoje é “quais sãoseus problemas, discutindo e indo atrás de alternati-vas, em vez de perguntarem o que nós precisamos”.

Na visão do líder comercial, a comunidade deXapuri, como muitas comunidades, vive uma culturamuito antiga e que precisa ser mudada, mas é comtempo e muito trabalho. O prazo necessário paraessa mudança, previsto por João, não é imediato.

– Aqui esta mudança começou há seis ou seteanos, em cima da necessidade de agrupar forças ede se organizar. Essa visão, – explica João – foitrazida por um grupo de jovens do setor comerci-al, o que permitiu sonhar com novos tempos.

Para ele, o Sebrae é um dos parceiros mais for-tes hoje no Acre, estando instalado em todo o

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fugindo de mais uma das tantas secas, nasceu noAcre e conta com orgulho a difícil luta do exércitodos “Soldados da Borracha” de que seus pais fize-ram parte. São homens que construíram naquelasflorestas fechadas e isoladas um Brasil diferente.

– Naquela época, o Acre ainda pertencia à Bo-lívia – ele fala, já assumindo sua face de contadorde histórias. Os pais de João Mendes chegarampara cortar seringueiras em busca do látex.

– Os bolivianos não faziam este tipo de serviço,que dá muito trabalho no meio de uma selva quesuga e devora os trabalhadores. Uma tarefa despro-porcional, um desafio diário em que muitos tomba-vam, onde as doenças, notadamente a malária, con-sumiam centenas, milhares de seringueiros. A In-tendência, montada pelos bolivianos era em Xapuri,então território da Bolívia, e cobrava altos impostoscom feroz controle, sobre a produção, que não ti-nha outro canal de escoamento, sernão o rio”.

E o xapuriense João Mendes conta outrosmomentos da histórica luta pela independência doAcre. Baldes, canecas, facas, botas, chapéus, serrase espingardas ornamentam a varanda da Estância,verdadeiro museu da atividade dos seringueiros.

– É um experiente empresário, conhecemo-nosna Suíça. Sua visão soma-se à de Etel Carmona.Este passou por todas as fases da extração predató-ria da madeira ao atual estágio de conservação emanejo, tão importante para toda a região.

Na Estância, o dono João Mendes oferece pro-dutos da floresta, desde a famosa mistura de melsilvestre com guaraná e mingau de banana, até atapioca e cuscuz, que imita a broa de fubá dosmineiros.

Juntam-se a ele, em Xapuri, outros cinco res-taurantes, dois bares maiores e dois salões de forró.É uma cidade tranqüila. O último homicídio sedeu há mais de um ano por questões familiares.Furtos são poucos. Droga, pouca. Devido ao es-casso serviço, apesar de alguns inquéritos em an-damento, a polícia civil de Xapuri conta apenascom um escrivão e três detetives. O delegado ficaem outra cidade maior e quase não vai por ali. Apolícia militar tem, na guarnição de Xapuri, umcabo e dois soldados.

Em seu comércio, bar, restaurante, pousada, JoãoMendes oferece também suas histórias. O filho denordestinos, cujos avós foram para o Amazonas,

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– Estamos na fase de busca de uma economiasustentável. Não contentes com a retirada do látex,os seringalistas passaram a derrubar as matas paraexportar madeira. Entendemos que é possível ex-plorar a Amazônia sem agredi-la.

João Mendes conta que Xapuri é hoje uma ci-dade em busca do desenvolvimento sustentável,através do empreendedorismo.

– Pode-se dizer que a luta continua lenta, mashá sonho e esperança. É possível que, com as açõesdos governos federal e estadual, Xapuri ache o ca-minho do desenvolvimento, daí a busca e o en-contro de parcerias quando damos os primeirospassos rumo ao desenvolvimento social.

Quem entra hoje em Xapuri, logo depara coma maioria de casas de madeira, algumas no estilopalafita. Os telhados são de latões em forma detelha e várias casas já receberam amianto.

Xapuri, parece ser um lugar pacato, e é. Suapopulação, consciente, sabe bem o que quer, ga-rante João Mendes.

As casas de palafita estão bem conservadas,especialmente as da Rua do Comércio, e formamum berço da cultura brasileira e um conjunto

Ao contar uma breve história da independên-cia, João Mendes retorna à sua Xapuri de hoje paradestacar a força dos cidadãos na busca do desen-volvimento do município.

Ele sente-se orgulhoso em dizer: -A Xapuri dehoje melhorou muito.

Sua economia era o seringal, com os seringuei-ros sofrendo muito para coletar o látex. Não haviaestrada de acesso à selva e o meio de transporte eraapenas o rio Acre. A outra maior riqueza do lugaré a castanheira; dois fatores de subsistência peloextrativismo na mata.

Com a abertura da BR-364, que passa porCuiabá, com o objetivo de ligar o Acre à Bolívia eao Peru, saindo no Oceano Pacífico, muitos serin-gueiros deixaram Xapuri, indo para Rio Branco. Aestrada incrementará o turismo ecológico na re-gião.

– O brasileiro gosta de ir a Cuzco, no Peru, eno caminho, conhecerá Xapuri. Esta rodovia per-mitirá a exportação de madeira e carne bovina,pois grandes pastagens e imensos rebanhos se alas-traram pelo Acre afora.

E prossegue:

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da de janeiro, em pleno inverno do hemisfério nor-te, com frio de 10 graus negativos. Naquela noitee madrugada, enquanto aguardávamos o vôo parao Brasil, ele me concedera uma entrevista e agorairíamos a uma nova etapa.

Pensando naquela entrevista e no ano em queeles se encontraram, Elson perguntou.

– 1996? 1995?– Janeiro de 96 – disse o empresário.– Lá estávamos protegidos por roupas pesadas

– disse Elton.– Aqui, temos que nos proteger do calor e de

mosquitos.– Com roupas também.Capistrano Bueno discutira com veemência a

ocupação da Amazônia por grupos internacionais,centrando suas análises de empresário com experi-ência internacional na discussão de uma políticaadequada, em que a comunidade nacional tivesseparticipação efetiva e em que ficasse claro para to-dos os desafios daquele momento, com o mundoenvolvido pelas imposições da globalização.

– O ponto forte da Amazônia é a atividadeflorestal.

arquitetônico admirável que já pode dar à cida-de o título de Patrimônio Mundial da Humani-dade.

– Seremos e somos um patrimônio da huma-nidade, mas aqui se operou outra grande trans-formação, que foi a administração de oito anosdo prefeito Júlio Barbosa, de 1996 a 2004. Sãoprojetos que buscam a sustentabilidade a partirdo manejo florestal comunitário. Com estas açõesiniciadas em 1996, concentra-se a população nabusca de empreendimentos sustentáveis, com focono uso racional dos recursos florestais, em dire-ção à geração de empregos e de renda para aque-les que ali vivem.

Homem de madeira

– Aí está o Capistrano Bueno.Levantei-me para cumprimentar o empresário

da madeira que conheci há algum tempo no aero-porto internacional de Genebra, numa madruga-

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de forma errada, quando o beneficiamento é feitode forma inadequada, o que acontece? Uma ma-deira que é de alta qualidade acaba como produtode segunda. Qualidade destruída pelo transporteinadequado e somam-se ainda problemas de cli-ma, de armazenamento, deficiência de tudo, atéde qualidade de mão-de-obra. Então tudo resultaem desperdício total. Não se trata de identificarculpados, porque o que acontece é ruim para to-dos, é ruim para o governo, para os empresários, éruim para a população e para todo o ecossistema.

Para João Mendes, a solução está na ampla discus-são de todas estas questões, abrindo o leque do eco-nômico, do social e do político, “sem aquela coisa docorporativismo”, como bem falou o nosso prefeito JúlioBarbosa, ao assumir pela primeira vez a Prefeitura deXapuri, quando disse que tínhamos que acabar comdiscussões isoladas, com o madeireiro discutindo pralá, o pecuarista pro outro lado e os seringueiros pra cá;hoje a preocupação é de que esta discussão tem queser de todos e com as comunidades.

– É. É a sua riqueza, por isso os grandes gru-pos empresariais que desenvolvem atividades comalta tecnologia no mundo inteiro, têm oportuni-dade de chegar aqui ao Brasil através da Amazô-nia. Exemplo disto são a Malásia, a Tailândia e aIndonésia, que há décadas investem no mundointeiro, garantindo para si reservas de florestastropicas e já conseguiram na África, estão conse-guindo na América Central e vão conseguir noBrasil e em toda a América Latina, principalmenteno Brasil, Colômbia e Equador.

– Investimentos altos?– Empresários investem 300 milhões de dóla-

res na atividade madeireira, com alta tecnologia,com aproveitamento completo de tudo. Para nósnão se trata estabelecer políticas de incentivo decrédito, mas do incentivo tecnológico.

– Qual é o gargalo?– O grande gargalo de tudo isso, no meu pon-

to de vista, é a qualidade do investimentotecnológico, que é muito ruim. Se você não temum produto de boa qualidade, não coloca no mer-cado internacional com muita facilidade. A madei-ra produzida na Amazônia, quando há exploração

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Não contentes com os cortes, atearam fogoaos troncos para a morte lenta das árvores.

Os troncos ficam dispersos pelo vasto verde nosmeses de dezembro a junho. Não se sabe se é porcrença, mas os criadores inserem um garrote pretono meio dos nelores brancos à espera da engordanatural com capim.

Vejo as castanheiras, elas atingem mais de 35metros de altura e são risco para o rebanho. Naépoca da frutificação, os cachos caem ao solo ecaso atinjam algum novilho na cabeça é mortecerta, no lombo ou dá contusão ou afeta a espi-nha.

De tempo em tempo, faz-se a vermifugaçãopara que o rebanho continue competindo com amadeira de lei da Amazônia brasileira. Não é maiscomum naqueles corredores ver os macacos-pre-gos e nem mesmo os esquilos que se alimentamde castanha.

Um pacote de castanha de dois quilos custaR$ 2,00 na Cooperativa dos Castanheiros. É qua-se o mesmo preço da que fica nas sacas empilhadasnas bocas das matas, até onde dá para chegar oautomóvel. Depois, só tratores, caminhões ou ca-

Cada seringueiro tem suas histórias

BR-317, a Estrada da Borracha, agora tam-bém a Estrada do Boi. Eu também tenho minhahistória para contar, mas não é a história da estra-da. É a história da floresta nas margens da estrada.

Estou na estrada de volta a Rio Branco, capitaldo estado do Acre, onde se constrói não só umanova rodovia ligando oceanos, mas onde também seconstrói uma nova civilização, e para se ter uma novacivilização há que elaborar novos conceitos sobre ohomem e sobre a sociedade, e ele ali está, o conceitode florestania, os direitos do homem da floresta, ohomem diferente do homem da cidade, o homemcidadão. Agora, temos o homem e a sua florestania.

A estrada é um imenso corredor asfaltado compoucos buracos nas pistas. Quilômetros em retassem cruzar sequer um veículo. Dos dois lados per-de-se na contagem quem quiser saber quantos boishá em cada divisão de pasto.

Observa-se, por entre os rebanhos, os tocos deárvores de até 80 centímetros de diâmetro, todosincinerados.

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danificar o meio ambiente. É a orientação para osmoradores e produtores que vivem em assentamen-tos agroextrativistas no coração acreano.

Na cidade, a luta é pela transformação do quea floresta oferece. E apenas com ela é que Xapuri,por exemplo, manterá sua população, embora oturismo ecológico possa ser um grande negócio.Para isso ainda há que ter muito preparo, do quese encarrega a Universidade Federal do Acre, quemantém um núcleo quase fechado por falta de alu-nos na cidade dos xapurienses.

A maioria dos estudantes é de filhos de serin-galistas e muitos buscam oportunidade de empre-go em outros estados. Eles voltam por se sentiremmais à vontade perto da família, o que tem servidode base para a manutenção da cidade, aliada aorendimento de pensão dos pais aposentados.

É por tudo isso que se busca uma saída paraXapuri e há seis anos, desde 2000, vêm sendo im-plantados vários projetos que serão alento para amão de obra jovem desempregada da cidade.

Vem à minha cabeça agora a figura de Luiz daSilva Pereira, seringueiro. Ele é presidente da Coo-perativa Agroextrativista de Xapuri, a CAEX.

minhonetes mais fortes. Em época das chuvas, oacesso às bocas de matas é feito por tratores ou nolombo de jegues.

E cada seringueiro tem suas história para con-tar, enfurnado dias e dias em pleno matagal, dandocorte nas seringueiras centenárias que ainda estãode pé, em busca do látex que escorre primeiro paradentro da canequinha e depois é levado para o bal-de. Com muito fogo, em seguida passam a formaras bolas de borracha já semelhantes aos pneus decarros. Ganham as formas definitivas nas fábricas depneus. Orgulho daquele povo é o nome Xapurinuma marca famosa de pneus. A mercadologia fun-cionou e a fábrica vendeu muito.

Anda-se mais para obter o látex, embora peque-nos sítios à beira dos corredores de asfalto matem asaudade dos aposentados, que insistem em ter ma-tas de seringais, visto que podem ser replantadascomo acontece em outros estados. A diferença éque os seringais nativos oferecem melhor qualidadedo látex que os cultivados fora de seu habitat.

E a vida continua seguindo no Xapuri, quebusca sustentação para seus filhos com base nomanejo controlado da exploração da floresta sem

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eram mandadas para Belém, no Pará, por navio,quando o rio Acre era mais caudaloso.

De volta a Xapuri

Um carro se aproxima e pára; vai para Xapuri.São agentes comunitários treinados pelo ServiçoBrasileiro de Apoio A Médias e Pequenas Empre-sas (Sebrae). Eles vão clareando os caminhos dasustentação de um povo que quase perde o rumodo viver bem.

– Hoje, há na sociedade xapuriense a consci-ência da importância do gestor. Há o reconheci-mento de que a política passa, mas as realizaçõescontinuam.

São palavras do ex-prefeito de Xapuri, JúlioBarbosa, que esteve à frente da cidade de 1996 a2004.

E é nas palavras de alguns de seus filhos que sevê como o município volta às origens na busca daexploração sustentável de seus bens naturais. É um

A cooperativa foi criada pelos produtoresque queriam sua independência e sair da mãodos atravessadores. Todo o objetivo era volta-do para os associados venderem melhor seu pro-duto.

Ainda na estrada, lembrei do Chico, a últimapessoa de quem me despedi ao pegar o caminhode volta a Rio Branco. Chico é funcionário mu-nicipal aposentado. Francisco Silva de Oliveira, ex-vigia da Casa Branca, onde funcionava a Inten-dência da Bolívia no início do século XX, à beirado rio Acre. Como vários outros xapurienses, or-gulhosos do seu estado e da sua história, Chicosabe bem a história e guarda os nomes daquelesque lutaram para tornar o Acre independente daBolívia.

Nascido no seringueiro de Santa Fé, distrito deXapuri, também conhecido por “Colocação”, elelembra que é costume o seringueiro pôr um nomeno seu pedaço de terra. O dele era o seringal da“Revolta”.

Chico chegou a Xapuri aos 19 anos, depoisque o pai morreu em 1959. Sua lembrança era deque toneladas de látex extraídas de 62 seringais

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Capítulo V

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exemplo que precisa ser conhecido pelos demaispequenos municípios brasileiros que ainda não en-contraram a saída para o crescimento que garantaa seus filhos uma boa qualidade de vida.

A receita de cada participante direto dos proje-tos empreendedores não termina com a esperançae já há os que entendem como é importante so-nhar com os pés no chão. Suas lideranças acredi-tam na solução local pelo empreendedorismo.

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UUUUUm adolescente deixa seu pequenino municí-pio de Cabaceiras, no Cariri paraibano. Pede bên-ção ao pai e à mãe e é abençoado com lágrimasescorrendo no rosto dos três. Segue de caminho-nete, único meio de transporte em 1979, paraCampina Grande, a 69 quilômetros de sua cida-dezinha. A poeira da estrada cobre o que fica paratrás. Em sua cabeça um só pensamento: vencer evencer.

Na segunda cidade da Paraíba – Campina Gran-de – seu lugar já estava reservado no ginásio. Logocomeçava a se dar conta de que a vida ali não era

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O sangue empreendedor do jovem já fervia nasveias. Queria era passar pelos sítios, conversar napraça, participar das reuniões comunitárias.

Como melhorar a realidade de seu povo, era apergunta que ele mais fazia a si próprio. Solução,havia de ter. E ele, inquieto por natureza, não erahomem de se conformar com uma triste sina. Seupovo haveria de conhecer dias melhores.

O famoso Projeto Rondon, no auge naquelaépoca, o fisgou, por intermédio de um padre, paraparticipar, em nome de Cabaceiras, de atividadesrelacionadas a pesquisas e organização social.Arnaldo já cursava Letras na Universidade de Cam-pina Grande. A oportunidade foi o ponto de par-tida (e fundamental) para sua vida política. Viviano meio de gente ligada às mais diversas formas demovimentos comunitários: gente de sindicatos ru-rais, pastorais de base, partidos políticos de esquer-da. Nos encontros, os grupos de jovens ajudavamna preparação, avaliação e planejamento das açõesdos projetos.

As reuniões, realizadas nas dependências doconvento Ipuarana, na cidade de Lagoa Seca, se-guiam até altas horas. Arnaldo saía animado pela

tão sofrida como em Cabaceiras. O povo tinhamais conforto, daí sua segunda angústia: estavavivendo melhor que os seus.

A caminho da vitória, custasse o que custasse,logo estava participando do movimento estudantilde sua escola, o que mais tarde o levou ao CentroAcadêmico e ao Diretório Central dos Estudantes.

– Neste fim de semana vou voltar a Cabaceiras.Oh, saudade!

O dinheiro, sempre curto, não permitia, apesarda pouca distância, visitas semanais à sua cidade.Mas Arnaldo Júnior economizava no lanche, noalmoço, e ia tratando de juntar os troquinhos quegarantiriam, na falta de uma carona providencial,o embarque na camionete.

A estrada é de terra e o calor não tem piedadede ninguém naquela região do Cariri, e, como aviagem era quase sempre de carona – em carroceriade caminhões, ou na caminhonete de passageiros– a cabeça esturricava.

Uma vez em Cabaceiras, parava pouco em casa.– Puxa, Arnaldo, nós morremos de saudade e

você quase não fica com a gente – reclamava amãe.

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dar por essa trilha. Faltava dinheiro, estrutura, mas so-brava idealismo e vontade de vencer. Indiferente aoscomentários, gastando os solados dos únicos sapatos,andava pelas ruas e comunidades, a pedir votos. Ia oraa pé, ora de bicicleta, ou pegando carona em carros,motos e caminhões. Numa verdadeira via-sacra, con-seguiu visitar grande parte do povo do pequeno mu-nicípio, levando seus propósitos como candidato.

E foi assim que o menino venceu as raposas. Em1986, era um dos vereadores mais votados na região.Começava, desta forma sua atividade política, em li-nha direta com as aspirações do povo de Cabaceiras.

Após tomar posse, Arnaldo ocupou importantesfunções na Câmara Municipal. Logo no início, setornou vice-presidente da mesa diretora. Ainda noprimeiro biênio, foi presidente e relator das principaisComissões Legislativas Permanentes. Já no segundobiênio, conseguiu eleger-se presidente da casa. Partiupara o segundo mandato de vereador em 1992, sen-do reeleito com votação superior à do primeiro. Maisuma vez foi escolhido presidente da Câmara, sempreincluído nas principais atividades da população.

O nome de Arnaldo crescia de forma impressi-onante. Era ele o candidato preferido daqueles que

certeza de que tudo é possível, desde que lutemospelos nossos ideais.

O menino vence os caciques

Aos 18 anos, o moço de Cabaceiras decidiutomar um caminho definitivo. A intenção era amesma de sempre: resolver os problemas de seupovo do semiárido Cariri. Candidatou-se a verea-dor em Cabaceiras, pelo PSDB. Sua iniciativa eraousada e impactante, mas encarada pelos políticosda época como coisa sem seriedade.

– Um menino de 18 anos se metendo a fazerpolítica! – zombava uma velha raposa da região.

Estava certo de que todo aquele arroubo nãopassava de entusiasmo juvenil.

– Não vai longe; daqui a pouco ele mete os péspelas mãos, fica apavorado e corre para a barra dasaia da mãe! – divertia-se outro.

A família de Arnaldo não tinha nenhuma tradiçãopolítica. Era gente simples. Ele foi o primeiro a envere-

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Vergonha da terra

Ao tornar-se prefeito, o menino pobre do Caririainda assistia, entristecido, ao espetáculo dosconterrâneos deixando a terra natal, engrossandoa fileira do êxodo, um dos maiores da região doCariri. O fato lamentável deixava cada vez maisbaixo o nível de auto-estima da população. Os jo-vens já se sentiam constrangidos de dizer que eramfilhos daquela terra.

– Tô indo, Arnaldo. Aqui não tem nada pragente fazer.

– Mas, se todos nós pegamos a estrada, comoé que fica?

– Sabe, tem dia que me envergonho de minhaterra. Nenhuma chance pra gente.

Ao ouvir isto de um de seus amigos, Arnaldosentiu-se diante de um desafio maior que ele, mai-or que o Brasil, até então sempre chorando seuNordeste e não lhe dando chances de crescer.

O jovem prefeito não tirou da cabeça o depoi-mento do amigo. Sentia que, para o administra-dor de uma cidade, estado ou nação, só há dois

almejavam por mudanças e enxergavam no idea-lismo e na determinação do jovem vereador umcaminho de futuro para sua terra.

– Conseguir a vaga de candidato na estruturaconservadora da época foi mais difícil que disputara eleição – comenta Arnaldo.

Torna-se o prefeito mais jovem da história deCabaceiras e o primeiro vereador elevado à condi-ção de administrador municipal.

Quatro anos mais tarde, com a possibilidadede reeleição, o menino sonhador veio a ser o can-didato e recebeu 70% da votação, maior percentualjá conseguido por um prefeito em Cabaceiras.

No segundo mandato se inseriu ativamente nomovimento municipalista da região do Cariri e doestado da Paraíba. Foi presidente da Associaçãodos Municípios do Cariri Paraibano (AMCAP) esecretário-geral da Federação das Associações dosMunicípios da Paraíba (FAMUP). Continua filiadoao PPS, exercendo função de secretário-geral dopartido no estado.

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Na cabeça de Arnaldo, uma melodia insistente:Só deixo o meu Cariri no último pau de arara.

Deu bode

Arnaldo via dali um Brasil de costas para a durarealidade de uma região que amargou décadas dedesprezo, mas que gerou enredos baseados emlembranças amargas e belas, como o próprio Autoda Compadecida, de Ariano Suassuna; primeiro,espetáculo teatral aplaudido no mundo, depoismine-série e, posteriormente, filme, rodado emCabaceiras.

Arnaldo via, mas não perdia a fé, aquela que, jádisseram, remove montanhas. A ordem era cons-truir, mas o que construir com aquele povo escra-vo das políticas assistencialistas e paternalistas? Erapreciso levar àquela gente a liberdade de ousar, decriar e de agir.

E o prefeito desafiava: que arda o sol trazendoa sequidão que aniquila os fracos, mas o que ele

caminhos: acomodar-se diante dos obstáculos ouenfrentá-los de peito aberto. Era preciso impedir oêxodo, evitar criminalidade e prostituição, era pre-ciso dar esperanças a seu povo.

Como arma, ele tinha a seu favor a juventude.Sem ilusões ou fantasias, sabia que a solução sóviria com muito trabalho e dedicação, para a supe-ração dos graves e antigos problemas da cidade.

O caminho já não era aquela estrada poeirentade quando deixou Cabaceiras na carroceria de umacaminhonete. Precisava seguir o rumo dacriatividade e começar logo a transformar aquelapaisagem esturricada pelo sol inclemente, aquelechão quase deserto, em atração para quem nãoconhecia o semiárido paraibano.

Começou a pensar no que via quando a poeirabaixava na estrada de terra, por onde deixava e vol-tava à sua Cabaceiras. Viu nos lajedos esbranquiça-dos, na vegetação da caatinga, na hospitalidade deseu povo e nos encantos naturais, repletos de perso-nagens fascinantes, o primeiro passo a caminho doprogresso. Estava naquela gente humilde, vítima dasprolongadas estiagens, o caminho do resgate daauto-estima que faz brotar a cidadania.

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Lá estava ele, ora encorajando, ora mostrandoo benefício que o bode levaria aos municípios daregião. E não faltaram os incrédulos, a turma docontra, aqueles que nem mesmo tentam, prefe-rem apostar no fracasso.

– Isso não é boi, Arnaldo.– Mas é muito melhor – sorria o prefeito –. No

estrangeiro, há lugares onde comem muito maiscarne de bode e de carneiro do que de boi ouporco. Pode acreditar que vai dar certo.

E deu. O animal se tornou a salvação do Cariri.Se houve quem dissesse que em terra de homembode é rei, esse blasfemou, pois a religiosidade nacaatinga é canto de fé e realização. O prefeito re-conhece que rei é o Senhor. Mas logo abaixo dele,no sertão, o bode é quase como a vaca na Índia:uma entidade sagrada.

Pouco a pouco, a população de Cabaceiras co-meçou a entender que era necessário o aproveita-mento correto de potenciais locais. Começava ailuminar o semiárido a certeza de que o caminhoreal para o trabalho e a geração de renda é atravésdo desenvolvimento de forma integrada e susten-tável.

buscava deveria funcionar nem que fosse comosimples esperança de dias melhores. Arnaldo sentiaque o progresso beirava Cabaceiras, como váriosoutros municípios do Cariri. O bastante eraencontrá-lo. E o encontro se deu com os berrosde animais dóceis, produtivos, berros que cortama caatinga e sinetes que entoam o mesmo som nopescoço do bode.

Arnaldo via que Cabaceiras possuía um granderebanho de caprinos e ovinos, e ainda, que essesanimais se adaptavam perfeitamente às condiçõesambientais da região. Os bodes ali, pastando, ber-rando, bem à sua frente. O prefeito tem uma vi-são, clara, real: estava ali, o tempo todo, a saída. Obode é a fonte de renda de Cabaceiras. O bodetraria empregos ao município.

Criado em praticamente todas as casas, o ani-mal garantia o sustento da criançada, fortalecia osossos dos velhos. De agora em diante, seria o pro-duto principal do Cariri.

– O Sul vive de bois. Eles vendem o leite, ex-portam a carne e ainda lucram com os subprodutos.Em Cabaceiras, com os bodes, não será diferente.– repetia o prefeito.

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O discurso do prefeito, naquelas reuniões, sur-tiu efeito. Em 1998, era criada a Arteza-Coopera-tiva dos Artesãos e Curtidores de Couro de Ribei-ra de Cabaceiras. Com ela, vieram os bons parcei-ros e os cursos de capacitação, como o de modela-gem e desenho que ampliaram as possibilidades deprodução dos artesãos. Os tempos de produtosexclusivamente voltados para os vaqueiros ficarampara trás. A pele de bode tornou-se, então, materi-al para confecção de cintos, sandálias, bolsas, bo-nés, chapéus e adornos como colares, pulseiras ebrincos.

A Arteza atraiu para o município importantesparceiros, que, hoje atuam de forma integrada, pormeio de um grupo gestor formado pelo Sebrae,Senai e GTZ, órgão de cooperação técnica ecientifica do governo alemão. Além desses parcei-ros, há ainda, o Centro de Tecnologia do Couro edo Calçado, o CTCC, a Secretaria da Indústria,Comércio, Turismo, Ciência e Tecnologia do Go-verno da Paraíba e a Prefeitura Municipal.

Os parceiros avaliam, planejam, promovem ebuscam, junto a outros parceiros, os apoios neces-sários ao desenvolvimento da atividade. Já conse-

O bode tornou-se objeto de estudos e pesqui-sas em várias partes do país. Em Cabaceiras, maisimportante que os bois do Sul, aproveitado do cas-co ao chifre. O Projeto de Aproveitamento daCadeia Produtiva da Ovinocaprinocultura da cida-de desdobrou-se em várias ações combinadas. Sur-giu então uma série de programas.

O Programa de Beneficiamento da Pele en-sinou ao povo técnicas de curtimento e trans-formação em artesanato. A arte de curtir a pelee utilizá-la na confecção de produtos que inte-gram a indumentária do cavalo e do vaqueiro,uma cultura centenária do município, estava pra-ticamente abandonada. Os jovens não se ani-mavam com a atividade. Queixavam-se do chei-ro forte, das péssimas condições de trabalho edo baixo rendimento gerado. No primeiro anode seu mandato, Arnaldo começou a reunir-secom artesãos e curtidores.

– O único caminho para mudar essa realidadeé a organização, que só uma cooperativa pode nosoferecer. Com o cooperativismo, o associativismoe a integração chegaremos a algum lugar. Sozi-nhos, será difícil.

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segou, houve trabalho e a qualidade final da pelemelhorou sensivelmente. Encontra-se instalado emCabaceiras um novo curtume construído, ainda,na gestão de Arnaldo Júnior, através do governodo Estado e do governo Federal. O curtume temcapacidade de processar até 500 peles por dia.

Atento à evolução dos tempos e inteiramenteligado na questão ambiental, o prefeito percebeu aimportância de preservar a centenária tradição eprincipal característica como diferencial no merca-do. Em Cabaceiras o curtimento é feito pelo pro-cesso natural, o chamado curtimento vegetal, uti-lizando-se uma planta nativa da região, o angico.Nada de cromo, o produto químico mais utiliza-do atualmente.

A preocupação ecológica provocou outra açãopositiva: o projeto de reflorestamento do angicona região, que também gera trabalho e renda. Paraviabilizar isto foi construído um viveiro de mudasda planta. Elas são distribuídas entre os curtidorese artesãos, que iniciaram o processo de plantio emsuas próprias terras. Atualmente, a UniversidadeFederal de Campina Grande, por meio do depar-tamento de Engenharia Florestal, desenvolve pes-

guiram, entre outras conquistas, capacitação ge-rencial, comercial e também de diversas áreas deprodução, a construção do curtume coletivo e suamodernização tecnológica, a instalação de umaincubadora, a aquisição de novas e modernas má-quinas, participação em feiras e rodadas de negó-cios regionais e nacionais e a criação de banco deinsumos.

Atualmente, as atividades empregam diretamen-te 80 famílias, beneficiando 300 pessoas no muni-cípio, homens e mulheres, jovens e adultos. Osprodutos da Arteza são comercializados em todoo Brasil, presentes nas principais feiras de artesana-to nacional, eventos turísticos, agropecuários e emlojas do gênero. São uma das referências do arte-sanato da Paraíba.

Os curtidores que, com toda a razão, se quei-xavam das péssimas condições de trabalho, nãoforam esquecidos. A partir da capacitação propici-ada pelo intercâmbio com o Centro de Tecnologiado Couro e do Calçado de Campina Grande, e daadoção de novas formas de manejo e utilização detecnologias, o interesse pela atividade renasceu.Quem pretendia partir em busca de emprego sos-

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da proteção para os animais. Assim surgiu o traba-lho artesanal com o couro.

Quantidade sem qualidade

Era necessário melhorar a qualidade do reba-nho. Havia quantidade, mas nada de qualidade.Arnaldo pensava dia e noite numa forma de en-frentar as tradições culturais e melhorar a genética.Um rebanho de 20 mil cabeças sem qualidade,não mudaria, de forma alguma a realidade do lu-gar. Foi bater, de novo, à porta do Sebrae. Surgiaentão a Associação dos Criadores de Caprinos eOvinos do Município de Cabaceiras. Estava aber-ta mais uma temporada de treinamentos, cursos,especializações e oportunidades de trabalho.

A associação tinha no início apenas trinta e cin-co membros; depois de estruturada, passou a co-ordenar todas as ações do programa com o supor-te e supervisão da Prefeitura. A Prefeitura adquiriu14 reprodutores de alta linhagem produtiva das

quisas voltadas ao plantio do angico na região equanto ele pode crescer.

Aos poucos, Cabaceiras ficou sendo referênciana caprinocultura. De vários estados, chegavamcompradores de bodes, a ponto de se temer aextinção do rebanho. Mas nada disso aconteceu.Hoje, o bode está em toda a parte e a expectativaé de que o rebanho dobre, em poucos anos, ape-sar do abate para couro e carne. O artesanato daCooperativa Arteza garante ganho mensal que vaide R$ 400 a R$ 1.000 mil por mês, aos curtidorese artesãos. Gente que vivia às custas de pais apo-sentados, hoje tem a sua renda assegurada. Fugirda seca para a região Sudeste deixou de ser o so-nho da população. Hoje, todo mundo pensa emtrabalhar e ampliar o seu negócio.

O berço da atividade coureira em Cabaceiras éo povoado rural chamado de Ribeira. A históriado lugar dá conta de que passavam ali muitos va-queiros. Algumas senhoras perceberam que eles ti-nham necessidade do gibão para entrar no matoem que as árvores são baixas, tortuosas, a maioriacom espinhos. Aquelas senhoras começaram a pro-duzir o gibão, as selas e os chapéus de couro, além

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Hoje, nas cidades grandes, os médicos receitamleite de cabra para crianças alérgicas aos outros ti-pos de leite. Como é que nós temos tanta cabra enão tiramos proveito disso? – perguntava-se o pre-feito, já partindo para a ação.

Em dezembro de 1996, foi organizada e le-galmente criada a ASCOMCAB, Associação dosCriadores de Caprinos e Ovinos do Município deCabaceiras. Estavam a um passo da instalação dausina de beneficiamento de leite caprino, o queaconteceu logo em seguida, com o apoio do pro-jeto Cooperar. Foi, então, que Arnaldo percebeuque a introdução do leite de cabra na merendaescolar seria possível.

Atualmente a ASCOMCAB integra os progra-mas governamentais de Leite do estado e FomeZero do governo Federal. Diariamente são libera-dos cerca de 500 litros de leite para atender aosmunicípios de Cabaceiras e Barra de São Miguel.

O programa deu certo. A usina está assumin-do a posição de pólo do Cariri Oriental, benefici-ando mais, criando novas oportunidades de em-prego e proporcionando maior injeção de recursosno município.

raças saane, parda-alemã, muciana e anglonubianae os colocou à disposição dos criadores. Eles tam-bém compraram mais quatro novos reprodutoresda raça saane e, num sistema de rodízio, vão ten-do cabras cada vez de melhor qualidade.

Uma parceria com a Emepa-Empresa Estadualde Pesquisa Agropecuária, levou à Associação oprojeto de inseminação artificial, iniciado com tre-zentas matrizes com aptidão para corte. O projetotem quatro anos e atendeu mais de 100 produto-res do município e já se pode observar o cresci-mento qualitativo do rebanho local.

Cabaceiras se destacava como possuidora deum dos maiores rebanhos do estado da Paraíba,totalmente voltado para o corte. Mas não se pro-duzia no município sequer uma xícara de leite decabra para a comercialização. Completamentedesestimulados pela rejeição do mercado ao pro-duto e pela ausência de meios de beneficiamentodo leite, os produtores viviam indiferentes à possi-bilidade de lucrar com a atividade. Mas o prefeitonão concordava com a idéia.

– Todo mundo aqui tomou e ainda toma esseleite. Está provado que é bom, faz bem à saúde.

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sou em ganhar dinheiro com o animal. Acreditavaque rentável era criar bois e vacas. Após participarde cursos de capacitação, concluiu que o custopara criação de vaca na seca era bem maior do quemanejar cabras. Antes de participar do projeto, seurebanho vivia disperso pelo mato. Com freqüênciacabritinhos recém-nascidos, soltos na caatinga, sa-ciavam a fome de cachorro-do-mato e carcarás quehabitam o lugar.

Hoje, Dadá tornou-se um dos dirigentes daAssociação de Criadores e também, depois de ca-pacitado, Agente de Desenvolvimento Rural –ADR, prestando assistência técnica no manejo dosrebanhos e no controle da sanidade animal, a ou-tros colegas produtores. Dadá afirma com orgu-lho:

– A diferença tem sido muito grande. Antiga-mente se tirava o leite das cabras sem separar obode. Isso fazia com que o leite ficasse com o cheiroforte. Ninguém se preocupava em limpar as tetasdas cabras e não se fazia nenhum teste de verifica-ção da qualidade do leite. Hoje em dia, lavamos asmãos e as tetas das cabras; fazemos o teste damamite e coamos o leite.

Uma história exemplar: saindo do centro dacidade de Cabaceiras, a poucos quilômetros, é pos-sível chegar ao sítio de um dos maiores criadoresde bodes do município. Após passar por várias ár-vores de algarobeira, planta nativa da região e umbom alimento para as cabras, chega-se ao sítio deJosé Nilo Pereira Irmão, de 50 anos, mais conhe-cido por Zé Preto. Sua propriedade tem 30 hecta-res e o curral onde prende as cabras, durante anoite, é todo trançado de varas.

José só tomou gosto pela atividade quandocomeçou a participar da Associação dos Criado-res Locais, a Ascomcab. No seu entender, o au-mento do criatório de cabras, cujas técnicas ino-vadoras só chegaram ali pelas mãos de Arnaldo,é a salvação do Nordeste. Zé Preto aproveitoubem os incentivos dos governos Federal, Esta-dual e Municipal, e os conselhos dos técnicos naárea. Hoje, ele já pode pagar duas pessoas paratrabalhar com ele no sítio, cuidando do reba-nho.

Outro caso exemplar é de Francisco MartinsPereira, conhecido como Dadá, que, mesmo to-mando leite de cabra desde pequeno, nunca pen-

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Subnutrição, nem para bodes

Dizem que o estômago do bode aceita tudo,até papel. Mas no Nordeste acabaram descobrin-do que o bicho tem mesmo é um enorme instintode sobrevivência. Come qualquer coisa. Mas, nomunicípio de Arnaldo Júnior, boa carne e bomleite não combinam com subnutrição. Sem com-plemento alimentar, de nada adiantaria melhorargeneticamente o rebanho.

Entrava em cena o apoio de importantes par-ceiros: Sebrae, Emepa, Emater e a Empresa Bra-sileira de Pesquisa, a EMBRAPA-Semiárido. As-sim, descobriu-se que o uso planejado e diversifi-cado de opções forrageiras, nativas ouintroduzidas, pode aumentar a chance de suces-so dos sistemas de produção pecuária. A Embrapasugeriu que, no primeiro ano, fosse cultivada umaárea maior com forrageiras anuais, em relação àsperenes, para garantir uma suplementação míni-ma aos animais.

A forrageira típica do sertão do Nordeste é apalma, resistente à seca, tradicionalmente utilizada

Hoje, Dadá tem um rebanho com 150 cabras,60 leiteiras.

Outro exemplo é o do jovem presidente daAscomcab, Henry Pombo, de apenas 23 anos deidade, que estava prestes a deixar sua família e suaterra natal em busca de ganhar a vida noutras para-gens. Filho de Severino Pombo, conhecido vaquei-ro da região e antigo criador de vacas, o pai lhedizia que ganhar dinheiro, só criando boi. QuandoHenry foi falar em criar cabra, ele achou que o filhoestava endoidando. Depois de muita insistência ex-plicando que poderia dar certo com a chegada doprograma do leite e com os incentivos que a Prefei-tura estava oferecendo, o pai cedeu um pouco econcordou em separar um pedaço de sua proprie-dade para o filho criar algumas poucas cabras.

Hoje, Henry conta com um rebanho de 45cabras selecionadas, produz em média 60 litros dia,com uma renda em torno de R$ 1.800,00. O in-teressante é que seu pai passou também a criar ca-bra, depois do exemplo.

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Bode, o Rei

Quando o bode virou emprego, posto de tra-balho e renda, Arnaldo já andava certo de quehavia em Cabaceiras uma outra vocação: o turis-mo e a cultura. Aquele prefeito, que brincou combodes e cabras em sua humilde infância, percebiaque a caprinoovinocultura poderia render muitomais que carne, leite e artesanato. Era chegada ahora de incentivar o envolvimento de outros seg-mentos da comunidade no negócio.

As escolas do município passaram a estudar ahistória da caprinocultura e do turismo nos con-teúdos curriculares. Alunos da oitava série de umaescola de ensino fundamental produziram umirreverente “vocabodário”, a partir de um traba-lho de pesquisa sobre expressões populares usadasno dia-a-dia da região.

Até em seu próprio nome, Cabaceiras é inte-ressante. Ele veio de uma rama da região, que dácomo fruto a cabaça. A fruta é parecida com aabóbora. Embora seja de fácil produção na zonarural, hoje quase não há cabaças no município.

como alimentação para os animais. Seria a palmamais um elo na corrente de ações desenvolvidaspela Prefeitura, rumo à independência econômicado município.

Uma reunião com produtores e associaçõesdefiniu a criação de um programa voltado ao in-centivo do plantio de palmas. Outro parceiro vali-oso, a Emater, contribui com uma série de pales-tras, cursos e dias de campo. A Prefeitura compraum trator e o entrega à Associação de Criadorespara o preparo da terra. Surge uma nova atividadegarantindo o sustento do projeto-mãe, a criaçãodos bodes e suas derivações.

O projeto vai de vento em popa. Mais de 100produtores da região foram atendidos, 2.500 hec-tares de terra foram beneficiados. A Prefeitura con-seguiu o apoio do Banco do Brasil e Banco doNordeste. A Associação consegue, junto aos ban-cos, financiar o custeio agrícola com taxas de 4%ao ano, pagas, portanto, sem sacrifícios. O finan-ciamento garante ração e insumos.

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o suficiente para ser coadjuvante em 12 filmes, decurta e longa metragem, produzidos na cidade.

Os artistas do cordel, artesãos das palavras, can-tam a terra como ela é, nua e crua, de beleza úni-ca. E o turista fica animado, feliz, movimentandoa cidade. O dinheiro deixado evita os pedintes nasante-salas das Prefeituras, e livra os prefeitos do pi-res na mão, buscando minguadas verbas.

– Aliás, sobre verbas, tenho opiniões próprias –diz Arnaldo. – Minguadas, sim, mas podemos acres-centar a elas o fermento da criatividade. Bem gas-tas, em projetos de retorno rápido, não mendi-gando, usando o Sebrae como fomentador, qual-quer prefeito administra bem.

Os cenários dos filmes rodados em Cabaceirasainda estão lá. Pedaços de Eucatex, moldados emmassa, bem semelhantes ao casario da região, caemaos poucos. A imagem de Nossa Senhora pintadaé Fernanda Montenegro. E ela nem esteve ali,quando foi filmado o Auto da Compadecida. Tru-ques de cinematografia que muitos meninos sim-ples de Cabaceiras hoje já entendem.

Logo abaixo, o parque onde os bodes são ex-postos em feira de animais, para venda, vê-se o

Mas a nova leva de prefeitos cuida de mandarplantá-la, para manter a referência. Com a novafase, a cabaça, utilizada como recipiente para água,servirá, também, para trabalhos artesanais.

Em Minas, o trabalho com a cabaça chega atal qualidade que ela é vendida para o Sul comocuia de chimarrão, substituindo a cuia origináriado Rio Grande do Sul. No Cariri, a cabaça partidaao meio, como cuia, é medida de alimentos, espe-cialmente de farinha de mandioca, e serve para la-var arroz. Na próxima festa do Bode Rei, haverácuias de chimarrão, cuias para medir alimentos eaté cabacinhas, que servirão de caneca com que osvisitantes vão poder tomar “xixi de cabrito”, bebi-da alcoólica típica da região. É a recuperação daplanta em pleno Cariri.

A Divisão de Cultura da Prefeitura criou a Com-panhia de Cultura Bode Rei, com o espetáculoBumba, meu Bode, sucesso de público e crítica, umadas grandes atrações do Festival de Folclore da Fun-dação Joaquim Nabuco no Recife e no Festival Na-cional de Artes, o Fenart, em João Pessoa, na Paraíba.

A caatinga descobre a vida. Há o caririense,capaz de tocar numa orquestra sinfônica; talentoso

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Sebrae, a Emater, a Emepa, a Universidade Fede-ral da Paraíba, as Secretarias de Agricultura e Ci-ência e Tecnologia do Governo da Paraíba, Asso-ciações de Criadores, Federação de Criadores ePbtur, um enorme incremento. A festa é um fenô-meno nacional, por ser tão diferente de outros en-contros em que as pessoas se fixam muito na dan-ça e nos espetáculos.

Cinqüenta mil pessoas vão a Cabaceiras todosos anos, em dias próximos ao aniversário da cida-de, comemorado em 4 de junho. Quando a datacai em um fim de semana, fica ainda melhor.

Para 2006, os organizadores programaram gran-des novidades. Uma delas, o Big Bode Brasil, umaparódia do programa da televisão. Alguns bodes se-rão confinados e filmados. O filme será inserido napágina da Prefeitura de Cabaceiras e as pessoas detodo o Brasil poderão acessar e votar, via Internet,nos animais que considerarem mais charmosos. Decinco animais selecionados um vai ser eleito o BodeRei. O proprietário receberá um prêmio em dinhei-ro. Também receberão prêmios os donos das ca-bras que derem mais leite. O que vale é a brincadei-ra sadia, que transforma a cidade durante o período

lugar onde são confinados os que, nas proximida-des do 4 de junho, em pleno São João, serão can-didatos a Bode Rei, com direito a coroa e manto.

Big Bode Brasil

A festa do Bode Rei é uma senhora atração.Criada há sete anos, reforça a imagem do animal,como símbolo da região, ao mesmo tempo emque promove a cadeia produtiva da ovinocaprino-cultura. A festa é comentada em toda a mídia doNordeste. Reúne um grande festival de animais,produtos, serviços e cultura, ligados ao mundo doscaprinos e ovinos. Há concursos, palestras, clínicastecnológicas, debates, desfiles, leilões, espetáculosmusicais, apresentações de grupos folclóricos emuita gente bonita. Atrai turistas da Paraíba, dosestados vizinhos e até do exterior.

A festa do Bode Rei surgiu em 1999. O even-to criado pela Prefeitura Municipal, na gestão deArnaldo, teve nas parcerias celebradas com o

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volver o governo, o segmento privado e a socieda-de civil com base na discussão, planejamento e tra-balho em busca do desenvolvimento local, inte-grado e sustentável, como ele aprendeu desde bemmoço, vereador aos l8 anos.

Hoje é ele quem deixa seu gabinete refrigera-do de secretário do Turismo, no governo daParaíba, para voltar à terra, como na época de es-tudante, e visitar sítios e associações, conferindoquase toda semana como tudo vai indo.

Sorte na continuidade

Quem quiser conhecer como se faz gestão pú-blica com o mínimo recurso de orçamento, devebuscar aprendizado em Cabaceiras, onde o atualprefeito, Ricardo Jorge de Farias Aires, do PSB, dácontinuidade ao que Arnaldo plantou.

Antes das intervenções do empreendedorismoem Cabaceiras, era um marasmo só. Município commais de l70 anos de emancipado, um dos mais anti-

em um grande picadeiro, onde todos riem, se diver-tem e comem a melhor comida do Cariri. Nada háno Brasil que se aproxime desta festa.

• • •

Tantas ações acabaram resultando num saltoespetacular na economia de Cabaceiras. O Índicede Desenvolvimento Humano (IDH) da cidadesubiu. Já ocupa o posto de oitavo melhor do esta-do. Seu índice de alfabetização, segundo o IBGEde 2000, é o quinto melhor da Paraíba, hoje osexto estado em relação à situação da adolescên-cia, como aponta o relatório da Unicef.

O empreendedorismo elevou a auto-estima dapopulação. Ainda não se pode dizer que não háadversidades no Cariri. Elas existem, mas o povotem certeza de que é possível viver com orgulho edignidade, trabalhando na própria terra.

Para Arnaldo Júnior, os resultados das açõesempreendedoras são bem simples: alicerçam-se naintegração, no associativismo e no cooperativismo,atrelando sua atividade ao Pacto Novo Cariri, emgestão compartilhada. São ações que devem en-

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Hoje, esse aspecto climático é virtude. Cenário decinema, destino turístico consolidado. Até daEscandinávia já chegou gente ao Cariri, gente quevê beleza no deserto, que se cansou do Saara edescobre o Brasil.

Ricardo brinca:– Aqui todo mundo é artista de cinema. São

tantos os que fizeram ponta nas seis grandes pro-duções a que servimos de locação, que nos senti-mos em Hollywood.

Quase todos os municípios do Cariri têm escri-tores. Alguns vendem bem, principalmente quan-do se dedicam a cordéis. Juntando essas vocaçõesfoi possível fundar o Instituto Histórico e Geográ-fico do Cariri (IHGC), com 105 cadeiras. Recen-temente foram contados mais de 200 títulos comtemas regionais, principalmente cordéis, belos cor-déis de cada cidade da Paraíba.

A ecologia ganha um espaço generoso nessaspublicações. Mas há também os velhos temas re-correntes: dramas, paixões, lutos.

Em dezembro de 2005, quando foi realizadaa Mostra Cultural de Cabaceiras, a Prefeitura pres-tou homenagem aos moradores que participaram

gos núcleos da Paraíba, a despeito de seus valoreshistóricos, Cabaceiras sempre foi lembrada como si-nônimo de seca, miséria e atraso. Lá nem chovia: éo município de menor índice pluviométrico da fe-deração, o pólo seco do Brasil. Chegou a entrar nalista de várias regiões que poderiam abrigar o depó-sito de lixo atômico do país, no ano de 1984.

Conseqüências mais marcantes desse quadro: ci-dade sem destaque regional, vista como fim de mun-do, lugar onde nada dava ou poderia dar certo. Pes-soas anestesiadas pelo pior dos remédios: “A gentetem de ir como Deus quer. Seja feita a vontade Dele.”

Cabaceiras tinha o maior índice de êxodo daregião. Deve haver uma população de cabaceiren-ses, residindo fora, maior do que a existente nomunicípio de 5 mil habitantes. O Cariri representa20% do estado da Paraíba, sendo habitado por 180mil moradores, ou seja, 5% dos 3,5 milhões deparaibanos.

• • •

Cabaceiras continua sendo o município ondemenos chove no país. Mas as coisas mudaram.

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geiros. Trinta jovens de Cabaceiras foram paraCampina Grande, através do Senac, fazer o cursode guia de turismo. Todos se preparando paramelhor receber o visitante. Preparo que envolve,inclusive, o aprendizado de outros idiomas, comoo espanhol e o inglês.

Os jovens que trabalham na recepção de turis-tas não têm salários fixos da Prefeitura: recebemdos visitantes e levam ainda uma porcentagem so-bre a venda do artesanato ao turista. Recentemen-te foi aberto aos condutores um estágio remune-rado pela Prefeitura, no Museu Histórico deCabaceiras. Ali aprendem mais ainda sobre o mu-nicípio, inclusive sobre o conteúdo místico doLajedo de Pai Mateus. É um local que oferece aoturista paisagens rochosas, uma das característicasda região da caatinga. Ao redor podem ser vistosjardins de cactos, macambiras e bromélias.

Ali existem vestígios dos povos indígenas, deanimais gigantescos e do homem pré-histórico, quemarcou sua passagem com inscrições rupestres.Algumas dessas preciosidades arqueológicas já fo-ram transferidas para o Museu Natural da cidade,onde ossos enormes e pedras aguardam análise. A

como figurantes no filme Auto da Compadecida.Um diretor de teatro foi contratado para reprodu-zir uma cena do filme. Foi o maior sucesso. Comotambém foi considerada de alto nível a participa-ção de um grupo de universitários, que apresen-tou músicas instrumentais eruditas e música popu-lar de Caetano Veloso e Gilberto Gil. Eles mostra-ram que ali não existe apenas o forró de pé-de-serra, outra tradição do Cariri.

Boa herança

O Pacto do Cariri, movimento que envolvetoda a micro região e não apenas Cabaceiras teveem Arnaldo Junior um dos grandes articuladores.Uma das propostas do Pacto é o investimento nosjovens do lugar. A integração da nova geração aoartesanato, música e turismo, em diversos municí-pios do Cariri, aponta novos caminhos. Pelo Pac-to, o Sebrae leva para a região cursos de conduto-res que aprendem como receber os turistas estran-

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Capítulo VI

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outra atração turística é a Pedra da Saca de Lã,referência aos antigos fardos de algodão.

Na praça principal da cidade, quase em frenteao templo católico, a administração Arnaldo Juniormandou instalar uma estátua do Bode Rei, da raçabôer, criado para produção de carne. O detalheque lhe valeu a homenagem é que, aos cinco me-ses, já dá 30 quilos do produto.

Cabaceiras caminha para ser tombada comopatrimônio nacional, devido à preservação das ca-racterísticas arquitetônicas dos sobrados edificadosno século XIX.

A busca do caminho para incrementar o turis-mo na região, abre as portas para que as cidades semobilizem e criem estrutura para receber o turista.Entre ambientes de seca que poucos conhecem,no meio de milhares de bodes e cabras que for-mam um cenário também pouco visto, e o místi-co de lugares que antes não tinham nenhum va-lor, esta é mais uma daquelas regiões que os brasi-leiros precisam conhecer.

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OOOOO que há de comum entre estas pessoas, qua-tro homens e uma mulher, que administraram suascidades?

Eles se destacaram entre milhares de outros pre-feitos, e o Brasil tem exatos 5.561 municípios.

Eles mudaram a face e o destino de suas cida-des.

Foram capazes, talentosos, eficientes. Criativos.Persistentes.

Entre os critérios do empreendedorismo polí-tico, está o fortalecimento dos pequenos negóciose da cultura empreendedora, estão a seriedade e a

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também um homem da floresta, um seringueiro,nascido num seringal, e que, diante da decadên-cia de sua cidade e da região, tomou a si a obses-são de transformar “tudo aquilo” e mudar o desti-no de todos.

Valter Luiz Martins, em Osvaldo Cruz, na di-visa de São Paulo com Mato Grosso do Sul eParaná, entrou em cada uma das casas e pergun-tou ao seu povo o que ele queria. Eleito, resgatoua dignidade de mulheres e de homens que sonha-vam trabalhar, espalhou pequenas e micro empre-sas e multiplicou inúmeros negócios.

Em Três Passos, no noroeste do Rio Grande doSul, Zilá Maria Breitenbach tirou sua cidade da le-targia, da mesmice e do conformismo e marcoupresença até na menor das propriedades rurais, pas-sando pelas indústrias de confecção, pelos laborató-rios, pelas fábricas de doces. Agiu criando um pólode produtos químicos e perfumes, e sobre pomarese currais dos minifúndios, onde os porcos hoje sãoum grande negócio. Antes, esteve quase extinto.

Da Amazônia, de São Paulo, dos povos gaú-chos, apaixonados por grandes estádios de fute-bol, chega-se à cidade de Campos Verdes, em

capacidade para resolver os problemas da popula-ção.

São pessoas que se comprometeram com a ge-ração de trabalho e de renda, com o desenvolvi-mento de suas comunidades e com suasustentabilidade. Isto é, garantiram a continuida-de das atividades econômicas por eles deflagradas.

Tudo isto os faz iguais.Quatro homens e uma mulher. Iguais também

a tantos outros brasileiros, tão empreendedores oumais do que eles, espalhados em suas áreas, nossetores públicos ou privados, referências e exem-plos.

São homens e mulheres que constroem, dia adia, um país com que se sonha e que já é realida-de. Homens e mulheres que souberam olhar paraoutros homens e mulheres de suas cidades e, jun-tos, abriram largos horizontes. Amplos horizontesdo trabalho e da fartura, da engenhosidade e dasolidariedade.

O que os faz diferentes é a vocação e o talentopara realizar a diferença: Júlio Barbosa, em Xapuri,com o pólo moveleiro, garantiu a preservação dafloresta e multiplicou os homens da madeira. Ele,

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única identidade: o empreender, o fazer, o mudarvelhas coisas em novo e transformar o novo emêxito político e empresarial.

Esta identidade é que os faz transformar cida-des fantasmas e florestas destruídas em comunida-des alegres e ricas; produtores arruinadas pela pes-te suína em pujantes empresas de pequenosproprietários.Quando a patrol arrasta a terra e, amenos de trinta centímetros da superfície, a pámistura milhares de esmeraldas e o sol se refletenelas, a riqueza está implantada e nasce uma cida-de de trinta mil habitantes. Poucos anos depois,há fome, miséria, e menos de seis mil moradores.A esmeralda se esconde no fundo da terra. Mas delá brota de novo, porque bastam parcerias que le-vem o chão a ser perfurado em grandes profundi-dades, por sondas modernas. Bastou acreditar. Oemprendedor acredita.

E quando o prefeito, líder de seu povo, crê etrabalha, é possível a quem escreve presenciar ce-nas de profunda beleza.

• • •

Goiás, onde, depois de várias derrotas, HaroldoNaves obteve o comando da Prefeitura. Percebeulogo que seu sonho de realizar um grande gover-no não passava só por suaves caminhos. Sofre umatentado, mas prossegue. Recomeça o trabalho demineração, fura a terra com sondas, e sabe quehoje a cidade se assenta sobre milhões de dólaresde esmeraldas.

Nos sertões do Nordeste, em Cabaceiras, a his-tória não seria diferente, a vocação empreendedo-ra deu frutos, e Arnaldo Júnior, vencedor do Prê-mio Sebrae Prefeito Empreendedor 2003, sabe daimportância da ação conjunta, do podermultiplicador da arte e do trabalho. Por isso, eleestá presente, nas terras do Cariri, nas reuniões dasfamílias, desde os l8 anos, e se torna o vereadormais jovem do Brasil.

Hoje, Cabaceiras, na Paraíba, é uma cidade deempreendedores e faz artesanato tipo exportação,com a pele de bodes, animal que é o grande trun-fo de sua transformação. E sua festa do Bode Reiatrai gente até de outros países.

Diferentes regiões do país, diferentes situações,diagnósticos diferentes e todas unidas por uma

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– Ah, o que que eu mais aprendi? Bah, foi asonhar...

Nisto, todos os que realizam e empreendemsão iguais. Sonham.

Na casa da família Schaab, no Rio Grande doSul, surge a figura franzina e adolescente de Patrí-cia Fernanda Schaab.

Ali é uma autêntica fazendinha. Fazendinha,sim, pois a área dos Schaab, como a grande maio-ria das propriedades de Três Passos, nem chega aos10 hectares, média local.

À sombra de uma árvore, pois o sol castigava opomar da casa, suavizado pela leve brisa que so-prava do arvoredo, localizado nos fundos, arejan-do a braveza do verão gaúcho, está Patrícia, umaguria com absoluto jeito de menina, beirando os15 anos.

Tímida, sorridente, pouco falante. O pai é maisum pequeno fazendeiro, dos milhares que traba-lham por aquelas bandas. Patrícia fala muito doprograma Semeando Educação e Saúde na Agri-cultura Familiar e, principalmente, da sua vida naescola e das experiências vividas.

– Patrícia, qual a coisa mais importante quevocê aprendeu na escola nesse tempo todo?

Ela olha, surpresa. Pára. Pousa pensativos de-dos sobre os lábios. Em estado de acanhada timi-dez, responde, baixinho: