o jardim das aflições - olavo de carvalho

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  • O JARDIM DAS AFLIES

  • OLAVO DE CARVALHO 4

    OBRAS DE OLAVO DE CARVALHO

    1. Universalidade e Abstrao e Outros Estudos. So Paulo, Speculum, 1983 2. O Crime da Madre Agnes ou: A Confuso entre Espiritualidade e Psiquismo. So Paulo, Speculum,

    1983 3. Astros e Smbolos So Paulo, Nova Stella, 1983 4. Smbolos e Mitos no Filme O Silncio dos Inocentes. Rio, IAL & Stella Caymmi, 1993 5. Os Gneros Literrios: Seus Fundamentos Metafsicos. Rio, IAL & Stella Caymmi, 1993 6. O Carter como Forma Pura da Personalidade. Rio, Astroscientia Editora, 1993 7. A Nova Era e a Revoluo Cultural: Fritjof Capra & Antonio Gramsci. Rio, IAL & Stella Caymmi,

    1994 (1a ed., fevereiro; 2a ed., revista e aumentada, agosto). 8. Uma Filosofia Aristotlica da Cultura: Introduo Teoria dos Quatro Discursos. Rio, IAL & Stella

    Caymmi, 1994. 9. O Jardim das Aflies. De Epicuro Ressurreio de Csar Ensaio sobre o Materialismo e a

    Religio Civil. Rio, Diadorim, 1995. 10. O Imbecil Coletivo: Atualidades Inculturais Brasileiras. Rio, Faculdade da Cidade Editora e Academia

    Brasileira de Filosofia, 1996 (1a ed., agosto; 2a ed., outubro; 3a ed., abril de 1997 ; 4a, maio de 1997; 5a, janeiro de 1998; 6a, abril de 1998).

    11. Aristteles em Nova Perspectiva. Introduo Teoria dos Quatro Discursos. Rio, Topbooks, 1996. 12. O Futuro do Pensamento Brasileiro. Estudos sobre o Nosso Lugar no Mundo. Rio, Faculdade da

    Cidade Editora (1a ed., agosto de 1997; 2a ed., maro de 1998). 13. Como Vencer um Debate sem Precisar Ter Razo. Comentrios Dialtica Erstica de Arthur

    Schopenhauer. Rio, Topbooks, 1997. 14. A Longa Marcha da Vaca para o Brejo & Os Filhos da PUC. O Imbecil Coletivo II. Rio, Topbooks,

    1998.

  • OLAVO DE CARVALHO

    O Jardim das Aflies

    DE EPICURO RESSURREIO DE CSAR:

    ENSAIO SOBRE O M ATERIALISMO E A RELIGIO CIVIL

    PREFCIO DE

    BRUNO TOLENTINO

    Segunda Edio, Revista

  • OLAVO DE CARVALHO 6

    Copyright 1998 by Olavo de Carvalho

    Capa e planejamento grfico:

    Ateli 19 Assessoria em Comunicao

    R. das Laranjeiras, 531 / 16

    F. (021) 225.1806

    Fax (021) 245.2920

    Rio de Janeiro RJ

    CIP-Brasil. Catalogao-na-fonte

    Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.

    Todos os direitos reservados pela

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    R. Visconde de Inhama, 58, gr. 413 CEP 20091-000

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  • PREFCIO, POR BRUNO TOLENTINO.....................................................................9

    O JARDIM DAS AFLIES

    LIVRO I: PESSANHA................................................................. 19

    CAPTULO I: A NOVA HISTRIA DA TICA.....................................................21

    1. Introduo. O que Epicuro veio fazer aqui, ou: Biografia deste livro21

    2. As conferncias do MASP ........................................................................... 28

    3. Pessanha e o pensamento Ocidental........................................................ 31

    LIVRO II: EPICURO.................................................................. 51

    CAPTULO II: COSMOLOGIA DE EPICURO.........................................................37

    4. Uma profisso-de-f epicurista. A matria segundo Epicuro .............. 37

    5. Um piedoso subterfgio.............................................................................. 39

    6. A imaginao dos deuses. A eviternidade............................................... 41

    7. Epicuro crtico de Demcrito.................................................................... 42

    CAPTULO III: TICA DE EPICURO.......................................................................44

    8. O remdio de todos os males...................................................................... 44

    9. A abolio da conscincia......................................................................... 46

    CAPTULO IV: LGICA DE EPICURO....................................................................52

    10. A fumaa e o fogo....................................................................................... 52

    11. O convite ao sono...................................................................................... 53

    12. A Servido Voluntria.............................................................................. 56

    13. Dos ces de Pavlov ao lava-rpido cerebral ....................................... 58

    CAPTULO V: A NDOLE DO EPICURISMO.........................................................65

    14. Porcarias epicreas.................................................................................. 65

    15. A fuga para o jardim................................................................................. 69

    LIVRO III: MARX.................................................................... 133

    CAPTULO VI: A SUBSTITUIO DO MUNDO.................................................75

    16. Epicuro e Marx .......................................................................................... 75

    17. Comentrios 11 Tese sobre Feuerbach........................................ 77

    18. A tradio materialista ............................................................................ 82

    LIVRO IV: OS BRAOS E A CRUZ..........................................89

    CAPTULO VII: O MATERIALISMO ESPIRITUAL.............................................91

    19. A divinizao do espao (I): Pobres bantos ........................................ 91

    20. A divinizao do espao (II): O infinito de Nicolau de Cusa ........... 94

    21. A divinizao do tempo (I): A fora dos meios..................................105

    22. A divinizao do tempo (II): Beaux draps ...........................................114

    CAPTULO VIII: A REVOLUO GNSTICA....................................................120

    23. Reviso do itinerrio percorrido .........................................................120

    24. O vu do templo .......................................................................................121

    25. Leviat e Beemoth ...................................................................................127

    LIVRO V: CSAR REDIVIVUS................................................130

    CAPTULO IX: A RELIGIO DO IMPRIO.........................................................131

    26. De Hegel a Comte....................................................................................131

    27. Translatio imperii. Breve histria da idia imperial. ........................133

    28. O Imprio contra-ataca ..........................................................................147

    29. Aristocracia e sacerdcio no Imprio americano (I) .......................149

    30. Aristocracia e sacerdcio no Imprio americano (II) ......................159

    31. De Wilhelm Meister a Raskolnikov. .....................................................162

    32. As novas Tbuas da Lei, ou: O Estado bedel .....................................168

    CAPTULO X: NA BORDA DO MUNDO.............................................................176

    33. Retorno ao MASP e ingresso no Jardim das Aflies........................177

    Post-scriptum. LPIDE: DE TE FABULA NARRATUR ............................................194

    BIBLIOGRAFIA ..........................................................................................................196

    NDICE ONOMSTICO .............................................................................................206

  • OLAVO DE CARVALHO 8

    NOTA DO AUTOR SEGUNDA EDIO

    pesar dos elogios de Antonio Fernando Borges, Vamireh Chacon, Roberto Cam-pos, Josu Montello, Herberto Sales, Leopoldo Serran e muitos outros, este livro no mereceu do pblico a ateno que se concedeu generosamente a seu irmo

    menor, O Imbecil Coletivo. Vai para a segunda edio aps dois anos, quando o com-panheiro teve quatro em seis meses. No entanto dos dois o melhor e o nico que constitui propriamente um livro, coisa unida e coesa, com comeo, meio e fim, enquan-to O Imbecil no passa de uma coletnea de notas de rodap que no couberam no rodap. Solicitando humildemente a parcela de audincia a que julga ter direito, O Jardim comparece limpo e correto, melhorado em detalhes de linguagem e sem as gralhas mais visveis da primeira edio. Mas no aumentado: se h um livro em que o autor disse tudo o que nele queria dizer, este. S repito o apelo a que o leitor no o leia de vis e saltado, mas pela ordem dos captulos e peo que entenda isto como receita mdica, que, cumprida mal ou im-precisamente, trar mais dano que benefcio.

    OLAVO DE CARVALHO

    A

  • O JARDIM DAS AFLIES 9

    PREFCIO BRUNO TOLENTINO

    e quando em quando na vida do esprito desanuvia-se aquele cu plm-beo e baixo em que Baudelaire via a tampa da marmita na qual, segundo ele, ferve a humanidade. So raros esses momentos, mas de uma clareza

    prpria a desnudar como nunca os plos extremos de uma velha e enfumaada questo: ver ou no ver. Quem quer que tenha lido de cabo a rabo este livro h de convir que vive um destes momentos privilegiados. Tanto mais se, como eu, tiver suado frio por semanas sob o peso das centenas de impenetrveis pginas que nosso mais reputado e menos aspeado filsofo atual, o anestesiador de geraes uspianas, Dr. Gianotti, dedicou recentemente s investigaes do surrado materialismo lingstico de Wittgenstein. No estou desmerecendo do esforo de ningum, estou celebrando meu alvio de que a tampa da marmita se tenha afastado de mim o bastante para deixar-me perceber, no tanto aon-de leva o labirinto lingstico do vienense em sua verso paulistana (cest assez que Quintilien lait dit... ), mas onde comeam meus inadiveis problemas de bra-sileiro acuado h dcadas pela futilidade do ininteligvel. Soube-o enfim graas claridade que, paradoxalmente, fui encontrar na lio de trevas deste livro, O Jardim das Aflies. Com efeito, achei-me no plo oposto perplexidade em que vivia durante a leitura que digo?! durante a suadssima minerao que empreendi nas duras e obscuras galerias sublinguais daquele celebrado duo: o asctico autor do Tractatus (ou das Investigations?) e o ex-Papa Doc, atual Papa plido da enru-bescedora tropa-de-choque investigada neste jardim de aflies. Afortunada-mente neste ltimo, como a tampa que subitamente abandona a marmita, es-

    perava-me um convite a bem outro tipo de investigaes: as que se ocupam de verificar o real a partir da inteligncia e dos fatos, nunca a partir dos fatos segundo a intelligentzia. Sedimentado atravs dos sculos pela perspiccia de uma nobre linhagem, esse mtodo de investigar o como e o porque do ser-no-mundo, viga mestra de todo esforo de verificao filosfica, tem a vantagem de respeitar os dados do real, inclusive os pressupostos do saber acumulados pela tradio, em vez de buscar substitui-los, dados e fatos, pelo mundo-como-idia, inevitavelmente sempre a idia do mundo mais em voga a um certo mo-mento. No momento esse lapso de um tempo mental que no acaba de acabar-se ainda, e outra vez acabo de constat-lo at exausto, de estirpe marxis-ta, de marca universitria e de cunho dogmtico-materialista, os trs insepa-rveis elementos da doutssima Trindade que se prope a recriar o mundo. Contra tudo isso, e em particular contra a espcie de Gabinete do Dr. Cali-gari em que se vai transformando entre ns a veneranda idia de Universida-de, insurge-se com toda a lucidez o vigor deste livro. Obra eletrizante, rica e complexa, mas de fcil leitura justamente por causa e no a despeito da formi-dvel erudio em que se firma. A esse respeito, uma advertncia apenas, ni-ca justificativa intruso de um prefcio em obra to lmpida, perfeitamente capaz de tudo dizer por si mesma. Que o leitor leve em conta o carter, no tanto do autor, ou mesmo de suas idias, mas da tarefa que se props. Refrat-rio leitura transversal ou salteada a que s vezes incita, o argumento central deste aflitivo jardim evolui maneira de um crescendo para desafiadoramente elucidar-se apenas nas duas partes finais: Os Braos da Cruz e Csar Re-divivus so a sstole e a distole do corao vivo desta obra alarmante. Assim, dos dados de um problema aparentemente sem maior importncia no plano das idias (que importa, a quem de fato pense o mundo, o sufocante mundinho dos cortesos e doutores de mais uma trpica Bizncio?), o autor extrai uma estonteante exposio de significaes, numa viso inquietante do sentido uni-versal da aventura da inteligncia moderna. Inclusive, ou sobretudo, de seu sentido cuidadosamente oculto.

    D

  • OLAVO DE CARVALHO 10

    S que, diferena de compndios bem mais ao gosto do dia, este livro no resduo de tese de doutoramento nem se prope a enfeitar a carreira de mais um philosophe local cevado na massuda monotonia dos gabinetes la page. Ao contrrio, tudo o que aqui vai tem a ver e urgentemente comigo, com voc, leitor, com os que somos e continuamos a ser submetidos a uma contnua barragem de slogans e esoterismos a transpirar intenes nem l to ocultas assim. Claro, o olhar que pe tudo isto a nu vem do olho agudo de um filsofo nato, ou seja, de um sujeito que no pode no pensar, por menos que assim fazendo consiga caber nos moldes, invariavelmente aliengenas, de um conhe-cido e bem mancomunado establishment. Passamos a ver claramente o que por estas bandas nos vem tapando a mente e sufocando o esprito, graas cora-gem intelectual de um erudito que no se esconde atrs do que sabe, antes nos convida a examinar com ele o que investiga, expe, explica. O que certa gente quer e persegue com uma obstinao de cachorro magro, o que andou e anda fazendo em nome da inteligncia como desdentados lees de circo, ficar per-feitamente claro ao longo do passeio em que nos guia a agudeza da leitura que Olavo de Carvalho faz da histria das idias no Ocidente. Graas a sua ine-xaurvel erudio e incontornvel honestidade intelectual, torna-se enfim pos-svel dar esse passeio para fora das brumas do obscurantismo idealista doubl de pedantismo acadmico. E d-lo com toda a clareza atravs de um assusta-dor pomar de aflies, ou seja, de imposturas orquestradas como filosofia e penduradas ao nada como amoras de mentirinha. O leitor, ao acompanhar um filsofo de verdade em sua minuciosa e exaustiva investigao de um embuste, s tem a perder suas iluses a respeito da seriedade dos donos da hora, por detrs de suas ctedras como abutres encapuzados em togas e ttulos. Mas que o leitor no se apresse, no h como tomar esta obra apenas como a hbil ampliao de um panfleto. H que l-lo at seu eletrizante gran finale para perceber todo o escopo deste livro singular. Seu mtodo de composio, primeira vista paralelo aos procedimentos sinfnicos de um Sibelius, por e-xemplo, calca-se no entanto em modelos bem mais antigos e provveis. tal-vez o primeiro esforo de Olavo de Carvalho para pensar em pblico segundo

    sua Teoria dos Quatro Discursos, proposio de seu ensaio pioneiro, Uma Filoso-fia Aristotlica da Cultura (IAL & Stella Caymmi Editora, Rio, 1994). Segundo o Aristteles de Olavo de Carvalho, da esquematizao objetiva que atribui a um conjunto de dados sensveis uma figura dotada de sentido (Potica), ema-nariam interpretaes discordantes fortalecidas no confronto das vontades que as apoiam (Retrica). Sobre essa massa crtica do acmulo dos esforos retri-cos seria ento possvel o exame dialtico que, confrontando e hierarquizando, indicaria o sentido de uma soluo racional (Dialtica). S ento tornar-se-ia factvel estabelecer mtodos e critrios propriamente cientficos, capazes de levar a questo a uma resoluo maximamente exata (Lgica). A tarefa espe-cfica do filsofo seria, portanto, a de colher as questes ao nvel retrico e elabor-las em hipteses formais para as entregar busca de uma soluo lgico-cientfica. Nada de estranhar, assim, que trabalho to mpar, e em ltima anlise to aterrador quanto o estrilo de um despertador meia-noite, parta de impres-ses subjetivas para, atravs do combate retrico, montar as oposies que s na concluso (naquelas duas ltimas partes, ou Livros, no sentido agostiniano) vai-se definitivamente elaborar, um tanto paradoxalmente maneira de um tutti orchestrale, num conjunto de investigaes dialticas. Longe de constitu-rem um empecilho ao entendimento, a gnese como a elaborao da obra aqui ajudam muito o leitor: a mim pareceu-me muitssimo estimulante progredir atravs da multiplicidade de temas e planos que faz a trama compsita deste livro, como nos adverte uma nota do autor. O qual, nisto ao menos, acha-se logo em excelente companhia: no Ocidente a filosofia ps-helnica teve muito cedo entre seus cumes obras como as Confisses de Santo Agostinho, para citar apenas um compsito que primeira vista pouco tem de ostensivamente filosfico, como o entendem os atuais pupilos do Dr. Caligari. A pedantaria engordaria bem mais tarde, a presente identificao entre filosofia e adi-posidade de jargo fenmeno to moderno quanto os enlatados de supermer-cado.

  • O JARDIM DAS AFLIES 11

    Misto de memrias e ensaio filosfico, de reportagem e panfleto, de poltica e de metafsica, a leitura deste livro (s antpodas do tijolao com que acaba de brindar-nos o acima citado mentor de uma filosofia to nativa quanto uma agncia de importaes, ou de substituio de importaes) sua leitura, rea-firmo, faz-se por isso mesmo apaixonante e como que compulsiva; seu peso erudito, sem nada perder em densidade, acaba por no pesar. Surpreendente v-lo sair da mesma pena que ainda recentemente nos dava uma rigidssima teoria dos gneros, (v. Olavo de Carvalho, Os Gneros Literrios. Seus Fun-damentos Metafsicos, IAL & Stella Caymmi Editora, Rio, 1993). Mas talvez o autor, maneira de todo poeta frente prpria potica, no se tenha dado um cdigo seno para submet-lo s necessrias infraes do ato criador... Uma conferncia sua semi-indita (A dialtica simblica, existente apenas como apostila didtica no Seminrio Permanente de Filosofia e Humanidades do Instituto de Artes Liberais do Rio de Janeiro)

    1 ajudou-me a elucidar algo mais

    o mtodo deste pensador originalssimo at mesmo na forma a que molda seu discurso. que, ao quanto pude perceber, diferena do modelo hegeliano a dialtica de Olavo de Carvalho no buscaria uma sntese temporal futura, mas antes recuaria a condies prvias, principiais, a bem dizer. No se trataria aqui do conhecido modelo tese-anttese-sntese, mas sim, em caminho inverso, de um movimento tripartite oposio-complementao-subordinao. Ou seja: nosso homem parece partir de uma anttese observada no campo dos fatos para hie-rarquizar os termos opostos e resolv-los no princpio comum de que emanam. O qual, por natureza, sempre anterior queles termos, ora lgica, ora crono-logicamente, e no raro ambas as coisas. At ento eu no havia encontrado este mtodo aplicado construo de uma sistemtica propriamente filosfica, mas nele pareceu-me reconhecer a rica tradio da hermenutica simblica. Mais uma surpresa num pensador inclassificvel, e por isso mesmo no meu ver indispensvel hoje, espcie entre ns, e por conta dos provados e clssicos va-lores que o forjaram e o sustm. J no hesito mais: tenho o pensamento de 1 Reproduzida no volume A Dialtica Simblica. Ensaios, I, em curso de publicao pela Faculdade da

    Cidade Editora.

    Olavo de Carvalho por paradoxalmente intemporal e atualssimo, spero e lcido, insubmisso e frtil para muito alm das meras conjunturas de nossa douta e crnica tropicalidade atvica. Sua forma mentis foi evidentemente forjada a fogo, no corpo a corpo do autodidata sem alternativas num pas ocupado pela legio dos ressentidos ou pelos batalhes de imbecis, como ao tempo da formao intelectual do autor era cronicamente o nosso, por dcadas entre o fuzil da Redentora e o realejo utopista de nossa incurvel e festiva intelligentzia. Sim, Olavo de Carvalho (pa-rece incrvel naqueles tempos de tanta seca!), a exemplo de Machado de Assis, Capistrano de Abreu Manuel Bandeira, Murilo Mendes, Lus da Cmara Cas-cudo, Joo Cabral de Melo Neto, Mrio Ferreira dos Santos, Miguel Reale, Caio Prado Jr. e tantos outros espritos livres da raa, teve que aprender qua-se sozinho a imensido do que hoje sabe, e talvez por isso mesmo o tenha sabi-do inscrever no mrmore candente da mais limpa tradio letrada do Oci-dente 2. Leitor multilinge, incansvel e metdico, partiu very advisely do seu e nosso Pai de Todos , Aristteles, saudou e desnudou os belos fantasmas do platonismo, passou reverente pela nata da sabedoria escolstica de Sto. Toms de Aquino a Leibniz, aportou a Schelling e a Husserl, estes dois gigantes mo-dernos, para chegar de olho aberto a Kurt Gdel e a ric Weil, pelo que me pareceu perceber. Per strada circunvolteou sabiamente seja o pot-pourri lilipu-tiano dos hoje inmeros e celebrados philosophes, seja o etreo campo minado do gunonismo, sem pisar-lhes a uns e outros seus explosivos ovos de cobra, thank God! Resta que nada disto aceitvel, menos ainda familiar, ao nosso encruado marxismo universitrio, como se v. Como se tem visto, tal receita prpria antes ao recebimento de aspas aposto ao seu justssimo ttulo de filso-fo, muito mais merecido que aos diplomas, PhDs, ctedras, honrarias, subven-

    2E no s no Brasil que a decadncia das universidades acaba por revalorizar o autodidatismo: A todos os meus melhores alunos de graduao eu digo para no cursarem ps-graduao. Faam qualquer outra coisa, garantam a sobrevivncia do jeito que for, mas no como professores universitrios. Sintam-se livres para estudar literatura por conta prpria, para ler e escrever sozinhos, porque a prxima gerao de bons leitores e crticos ter de vir de fora da universidade. ( Harold Bloom, Harold Bloom contra-ataca, Folha de S. Paulo, 6 de agosto de 1995. )

  • OLAVO DE CARVALHO 12

    es e sabujices de nosso perigosssimo establishment pensante; ou antes, pen-dante, neologismo de rigueur ante tantas pednticas pendncias e dependncias das infindveis listas de importaes canonizadas. que, como toda verdadeira vocao filosfica, a de Olavo de Carvalho incompatvel com o alinhamento compulsivo (e repulsivo) a que nos vm acos-tumando por aqui os donos de ctedras et caterva. Os tremeliques de Mademoi-selle Rigueur, to ao gosto da fbrica de esterilidades diplomadas com sede Rua Maria Antnia, So Paulo, SP, se por um lado desencorajaram de munir-se de ttulos prestigiosos aquele que dentre ns hoje possui talvez o intelecto mais corajosamente individual entre seus pares, acabou por avis-lo sobre o que de fato valia o que perdeu. Sem dvida a circunstncia dessa solido de-fensiva e profiltica o ter, not least, ajudado a balizar justamente o terreno minado da autocastrao por timidez, subservincia ou simplesmente descaro, to patentes em nosso incipientssimo e prudentssimo intellectual output. Nesse empolado contexto, sua fulgurante crtica do binmio Epicuro-Marx pura heresia, antema, suicdio. Mas a quem lhe importaria alongar a sobrevida na cidade do mortos, dos zumbis, dos hipnticos hipnotizados? O suicdio em termos acadmicos de Olavo de Carvalho, patenteado uma vez mais neste livro imperdovel, soa-me como o clarim de uma adiada e temida ressurreio da independncia crtico-filosfica da nao. Com esta sua rigorosa e instigante investigao de aflies mais um livro do campineiro fora dos eixos segundo os importadores das frmulas da inveno da roda , Olavo de Carvalho volta a nos dizer em alto e bom som: basta de sestas sombra da utopia e do marasmo mental, so mais que horas de acordar para cuspir... e pensar! Quanto a mim, que onde deixei um pas encontrei trinta anos depois um acabrunhante acoplamento de pedantaria e show business, a alegre festa no velrio acaba uma vez mais! com este admirvel livro, nosso retrato assustador, O Jardim das Aflies. Que os mortos enterrem seus mortos: sai da frente, leitor...

    Rio, julho de 1995.

  • O JARDIM DAS AFLIES

    DE EPICURO RESSURREIO DE CSAR:

    ENSAIO SOBRE O MATERIALISMO

    E A RELIGIO CIVIL TOPBOOKS

  • AGRADECIMENTOS

    MUITA GENTE me ajudou a realizar o projeto deste livro: BRUNO TOLENTINO, a quem li os rascunhos da obra, me incentivou sem des-canso a que a completasse, numa poca em que tudo em minha vida me convidava a dispersar meus neurnios em trabalhos menores. LUCIANE AMATO, CLAUDETTE ALVES DUCATI e J BRITO ouviram a lei-tura de muitos captulos, dando-me apoio moral e muitas sugestes valiosas. DANTE AUGUSTO GALEFFI e seus alunos da Universidade Catlica do Salvador devolveram-me a confiana nos jovens estu-dantes brasileiros de filosofia leitores sem os quais este livro no faria sentido. JOS ENRIQUE BARREIRO, KTIA MEDEIROS, LUIZ AFONSO FILHO, MARIA ELISA ORTENBLAD e PAULO VIEIRA DA COSTA LOPES me ajudaram, de vrios modos, a superar encrencas da vida prtica que sem sua generosa interferncia teriam me absorvido por comple-to e talvez inutilizado o meu pobre crebro por alguns anos. ROXANE ANDRADE DE SOUZA, MERI ANGLICA HARAKAVA e SANDRA TEIXEIRA re-solveram mil e um pequenos e grandes problemas que teriam adiado sine die a publicao deste livro. Esta obra pertence, por afeio e gratido, um pouco a cada uma dessas pessoas.

    OLAVO DE CARVALHO

  • ...the War by Sea enormous & the War by Land astounding, erecting pillars in the deepest Hell to reach the heavenly arches.

    WILLIAM BLAKE

    ... sangrenta futilidade, de um tipo to ftuo que era impossvel calcular-lhe a origem por qualquer processo racional, ou mesmo ir-racional, de pensamento. Pois a irracionalidade malvola tem os seus processos lgicos prprios. 3

    JOSEPH CONRAD

    Car si dsireux quon soit de trouver une cause naturelle ces tra-giques abrrations, comment justifier leur raffinement, ce je ne sais quoi dinutile, de superflu, qui rvle un got lucide, une lucide d-lctation?

    GEORGES BERNANOS

    3 Trad. Ltitia Cruz de Moraes Vasconcellos ( O Agente Secreto, Rio, Imago, 1995 ).

  • LIVRO I

    - PESSANHA -

  • CAPTULO I.

    A NOVA HISTRIA DA TICA

    1. Introduo. O que Epicuro veio fazer aqui, ou: Biografia deste livro

    It is strange to find that, here and in other parts of South Amer-ica, men of undoubted talent are often beguiled by phrases, and seem to prefer words to facts.

    JAMES BRYCE4

    M ESCRITOR EDUCADO, como um bom convidado mesa, no deve ir logo de entrada falando de si mesmo. Transgrido aqui as boas maneiras por neces-sidade intrnseca do assunto, que no obstante consiste posso garantir

    em coisas cuja relevncia transcende infinitamente a pessoa do autor. A necessidade a que me refiro provm do seguinte: este , dentro de certos limi-tes, um livro de filosofia, e uma tese filosfica pouco significa se amputada das ra-zes que a ela conduzem e das motivaes geradoras da pergunta a que responde. Da a convenincia de garantias preliminares contra um duplo equvoco possvel: de um lado, o leitor pode acolher ou repelir a tese em abstrato, no ar, sem saber a que coisas e seres se refere na vida deste mundo; de outro, pode rejeitar de cara a for-mulao mesma da pergunta, sem tomar o cuidado de seguir at o fim o fio dos ar-gumentos onde se manifestar, s ento, o seu verdadeiro sentido. Contra o primeiro desses equvocos, devo advertir que as opinies expressas no comeo so apenas um comeo; que aceit-las ou rejeit-las in limine impedir-se

    4 South America: Observations and Impressions, London, Macmillan, 1912, p. 417. No trecho citado, o autor refere-se especificamente ao Brasil.

    de entender aonde levam; que o leitor, ao tomar posio pr ou contra logo nas primeiras pginas ou, pior ainda, ao fund-la numa impresso do momento , estar se enganando a si prprio, tomando este livro como expresso de opinies prontas, quando ele , como h de ver quem o leia at o fim, substancialmente uma investigao; investigao que, do meio para diante, toma de fato um rumo bem diverso daquele que parecia anunciar no comeo

    5.

    Mas contra o segundo dos males mencionados s cabe o recurso de contar os fatos, de expor a situao real e vivida de onde a pergunta emerge. No caso deste livro, isso absolutamente obrigatrio: os acontecimentos que o sugeriram determi-naram as condies em que foi escrito as quais, portanto, fazem parte do assunto. Digo ento que o miolo destas pginas redigi numa s noite de maio de 1990, sob o impacto da averso que haviam despertado em mim as palavras de Jos Amrico Motta Pessanha, ouvidas algumas horas antes numa conferncia sobre Epi-curo no ciclo de tica que a Secretaria Municipal de Cultura promovia no Museu de Arte de So Paulo. Isto projetar talvez a imagem de um fantico, a espumar de clera ante a opinio adversria. Mas no foi nada disto. O que Pessanha suscitara em mim no fora uma discordncia, fantica ou razovel, indignada ou mansa. Fora uma perturbao da alma, uma decepo, uma tristeza desesperanada, uma agita-

    5 Habituado por uma longa autodisciplina a suspender o juzo at encontrar uma evidncia ou uma prova

    suficiente, surpreendo-me ao notar o quanto essa habilidade pode ser deficiente em intelectuais militantes afeitos a buscar numa idia antes seu poder de mobilizao do que sua veracidade intrnseca. A carncia absoluta dessa habilitao pode chegar a ser mesmo uma conditio sine qua non para a aquisio de respei-tabilidade em certos crculos universitrios, principalmente norte-americanos, mas tambm alguns brasilei-ros, onde vigora o pressuposto dogmtico de que uma idia ou doutrina qualquer nada mais pode ser que a expresso do desejo de poder de uma classe, de uma raa, de uma cultura, de um pas, e de que, nesse sentido, a presso coletiva e a intimidao autoritria so meios no apenas legtimos mas preferenciais do debate intelectual. Compreendo perfeitamente que as pessoas intoxicadas por essa atmosfera enxerguem ou finjam enxergar um mero truque de retrica na minha afirmao de no ter partido de convices pron-tas. De pouco adiantar alegar que fui perfeitamente sincero, pois, para essa gente, a sinceridade individual no tem valor, j que o indivduo no pensa e sempre, querendo ou no, sabendo ou no, apenas o bone-co de ventrloquo de um interesse coletivo que salta sobre as intenes do coitado e diz pela sua boca o que bem entende. Deixo a essas criaturas a tarefa extremamente cientfica de desencavar das sombras o secreto autor coletivo destas pginas, e permaneo, malgrado tudo, na convico nada acadmica de hav-las escrito eu mesmo. [Nota da 2a. edio].

    U

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    o soturna carregada de maus pressgios. Meras opinies no produzem este efei-to. O ttulo prometia delcias 6, mas ali eu s encontrara pesares e aflies. O Jar-dim de Epicuro parecia-se estranhamente com o Jardim das Oliveiras . Cheguei em casa pela meia-noite e, no conseguindo pegar no sono, varei a madrugada anotando objees e protestos que, contra minha vontade consciente de adormecer e esquecer, no cessavam de brotar como reaes de um organismo febril invaso de uma toxina. Era isto, precisamente: as frases de Pessanha eram um entorpecente, que entrava pelos ouvidos da platia, envenenava os crebros, movia o eixo dos globos oculares, fazendo ver tudo diferente do que era, num giro louco da tela do mundo. Um pblico de quinhentas pessoas submetera-se intoxi-cao com sonsa alegria, numa deliqescncia mrbida, como crianas a seguirem um novo flautista de Hamelin, sugestionadas pela voz melflua, pelo jogo de imagens que dava s lorotas mais bvias um intenso colorido de realidade. Puro feitio, no melhor estilo Lair Ribeiro. Eu sara dali em estado de estupor, sem crer no que acabara de presenciar. Em casa, tentando adormecer, via em alucinaes as poltronas do MASP lotadas de zumbis sem olhos. Saltava da cama com a cabea fervilhando. Tudo o que a platia no quisera ver parecia ter se condensado no meu subconsciente, exigindo vir to-na. Querendo ou no, eu me tornara o sintoma denunciador de uma neurose co-letiva. O que mais me impressionava, na trama de erros tecida por Pessanha, era a sua densidade. No havia ali uma nica brecha por onde pudesse se introduzir uma dis-cusso inteligente. Cada palavra parecia calculada para desviar a ateno do ou-vinte, impedi-lo de olhar o assunto de frente, fix-lo num estado de apatetada passi-vidade ante o fluxo de sugestes, hipnotiz-lo e arrast-lo delicadamente pela argola do nariz at uma concluso que ele j no estaria mais em condies de julgar e qual se curvaria com um sorriso de felicidade idiota e um mugido voluptuoso. O grumo compacto de absurdidades exalava uma radiao debilitante sobre as inte-ligncias, produzia a acomodao progressiva a um estado de penumbra, de lucidez

    6 As Delcias do Jardim: a tica de Epicuro. Mais tarde foi publicada no volume coletivo tica, So Paulo, Companhia das Letras, 1991.

    diminuda, at que, perdida toda vontade de enxergar, a alma da vtima se amoldasse s trevas como num leito fofo, aspirando o adocicado perfume do esquecimento. No sei se me fao compreender. H uma grande diferena entre o doutrinador que mete simplesmente na cabea das pessoas uma idia errada e o feiticeiro que as adoece, debilitando suas inteligncias para que nunca mais atinem com a idia certa. O primeiro move-se no reino das palavras, que podem ser enfrentadas com pa-lavras. O segundo exerce uma ao quase fsica, produzindo feridas num estrato profundo que os meros argumentos no atingem. Feridas insensveis, que s come-aro a doer quando for tarde para cur-las e quando a lembrana de sua origem estiver demasiado apagada para que se possa identificar o rosto do agressor. Discordar, mesmo com veemncia fantica, seria a to descabido quanto ten-tar deter um assaltante fora de citaes do Cdigo Penal. A ao do feiticeiro passa ao largo da conscincia, como uma neurose, um vcio, uma droga; ela salta por sobre a mente, remexe os rgos dos sentidos, move tendes e msculos, ins-taura novos reflexos involuntrios; ela se esquiva ao olhar humano e vai exercer seu domnio diretamente sobre o macaco residual que habita em ns; ela no pode ser desfeita pela persuaso racional. Sa dali enjoado como um autntico careta sai de uma festinha de embalo. No que nunca tivesse visto coisa igual. Vira muitas, mas somente produzidas por feiticei-ros confessos, por profissionais da dominao psquica, no recesso de seitas obscu-ras que no se adornavam do prestgio da autoridade acadmica nem se abrigavam sob a proteo do Estado. Vira-as tambm em demonstraes de hipnose, de Pro-gramao Neurolingstica, de tcnicas psicolgicas que, reduzindo o crebro huma-no a uma passividade vegetal, ao menos no proclamavam, com isto, estar lhe transmitindo cultura, autoconscincia, juzo crtico. O que me espantava era que esse gnero de manipulao, prprio somente para o tratamento de doentes mentais ina-cessveis comunicao consciente, ou ento para usos perniciosos e ilcitos, tivesse deixado o recinto das clnicas psiquitricas e das seitas ocultistas, para ser emprega-do por acadmicos como um sucedneo da transmisso de idias. Eu estava consci-ente, doloridamente consciente do declnio intelectual brasileiro, da debacle do ensi-no universitrio, mas nunca imaginara que a coisa pudesse baixar a esse ponto. Su-

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    punha que a reduo do pensamento tagarelice ideolgica fosse o limite inferior da decadncia, consolava-me com aquelas palavras que as avs sempre dizem quando a gente despenca da bicicleta: Do cho no passa. De sbito, o cho se abrira: pelas mos de Pessanha, o pblico era convidado a mergulhar num abismo de in-conscincia, na treva sem fim de um definitivo adeus inteligncia. Eu nunca tinha visto Jos Amrico Motta Pessanha. Mas conhecia sua fama e havia notado nela um trao peculiar: seus ouvintes saam fascinados, tecendo ao conferencista os maiores elogios, mas se mostravam incapazes de dar qualquer no-o clara do que ele dissera. Guardavam uma impresso difusa, intraduzvel em pa-lavras, envolta num halo de prestgio mstico. A alguns objetei que o mesmo aconte-cia aos ouvintes de Hitler, mas em resposta recebi aquele sorriso de condescen-dncia desdenhosa com que o detentor de um segredo beatfico marca a distncia que o separa do profano. Apaziguei minhas inquietaes explicando essa reao como esnobismo do pblico, sem suspeitar que ela pudesse fornecer algum indcio quanto ao carter do orador. Imaginei apenas que fosse um sujeito abstruso, a quem a platia indenizava com tanto mais fartura de aplausos fteis quanto maior a quota de compreenso que lhe sonegava. Nada, mas absolutamente nada, me fazia antever o que encontrei no MASP. No consegui conciliar o sono. Aps cinco tentativas falhadas, assumi que era um sintoma vivo e me encaminhei ao div mais prximo a mquina de escrever para verbalizar os contedos neurticos que a magia de Pessanha injetara em meu crebro. Como sempre acontece em tais situaes, verbaliz-los foi o bastante para exorciz-los, desfazer o macabro encantamento, recuperar o senso do real momen-taneamente entorpecido pelas artes de um feiticeiro. Esse exorcismo constitui duas quintas partes do presente livro, onde, ao fio dos argumentos de Pessanha, examino a filosofia ou seja l o que for de Epicuro, de modo a curar-me dela para sem-pre.

    Na noite seguinte, li o manuscrito para uma roda de amigos e o guardei, tencio-nando dar-lhe mais tarde uma forma final e remet-lo a Pessanha, com o convite para uma rplica, se lhe interessasse, antes da publicao em livro. Imprevistos e correrias de uma vida anormalmente repleta deles impediram-me o retorno a este trabalho, que ficou jazendo, interminado e tosco, no fundo de uma gaveta, e me acompanhou em uma mudana de cidade e cinco mudanas de casa. Ocupaes variadas desviaram-me para outros assuntos. Larguei Epicuro, esqueci Pessanha. No fundo, era o que eu queria. Foi s em fins de 1992 que, cogitando as razes da sbita e inusitada po-pularidade adquirida pela palavra tica, me dei conta do papel que tivera aquele ciclo de conferncias na preparao discreta de acontecimentos que depois iriam avolumar-se e desabar sobre o pas como uma tempestade. Ele fora um sinal de lar-gada, quase inaudvel, da campanha pela tica na Poltica. Tive ento um impulso de retomar este trabalho. Mas, na maaroca de papis que trouxera de So Paulo comprimida em cinqenta e tantas caixas, no pude en-contrar o manuscrito. Nos meses seguintes, o curso dos eventos polticos tomou um rumo imprevisto e, para mim, esclarecedor. A campanha da tica, que comeara como um amplo movimento de conscientizao moral, empenhado em desarraigar da nossa mentali-dade poltica alguns vcios seculares, foi estreitando cada vez mais seus objetivos, at concentr-los num alvo nico e imediato: a retirada do Sr. Fernando Collor de Mello da Presidncia da Repblica. Alcanada esta meta, a campanha festejou o evento como se ele tivesse dado plena satisfao aos seus anseios, como se as mais profundas exigncias morais da nao tivessem sido cabalmente saciadas mediante a simples dispensa daquele infausto mandatrio. Meditando os eventos luz do preceito de Hegel, segundo o qual a essncia de uma coisa aquilo em que ela enfim se torna, achei ento que a destruio poltica do Sr. Collor de Mello, e a conseqente ascenso das esquerdas posio domi-nante, tinham sido realmente os nicos objetivos da campanha, que no comeara propondo metas to gerais, amplas e profundas, seno para melhor atingir o alvo particular, estreito e raso que lhe interessava. verdade que tout commence en

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    mystique et finit en politique, mas o espantoso, no episdio, era a desproporo entre a quantidade de mystique que se mobilizara e a mesquinhez do seu resultado poltico. Uma campanha de escala nacional que se apoia numa retaguarda filosfica, apela a todas as foras intelectuais da civilizao, convoca as luzes dos sbios do passado e se d todos os ares de uma revoluo cultural, s para eliminar um adver-srio poltico ou meia dzia deles, realmente um daqueles casos em que o excesso de chumbo s faz ressaltar pateticamente a mngua de passarinhos. Governantes muito mais poderosos que o Sr. Collor, e mesmo Estados e regimes inteiros, tinham sido derrubados com muito menos investimento intelectual. Mais tarde, quando a campanha voltou carga, desta vez contra deputados e empreiteiras, a tica que se reivindicava assumiu de vez sua verdadeira natureza de mero impulso de vingana poltica voltado contra alvos descaradamente seletivos

    7. Tudo isso muito normal

    em poltica, onde cada faco procura sempre se arrogar o monoplio do bem. O estranho era que a inaudita mobilizao da classe intelectual no desse campanha nem mesmo um arremedo de rigor, de seriedade, de autoconscincia moral; que a farsa de uma tica reduzida a grosseiras expresses de ressentimento parecesse contentar a todos os crebros incumbidos, em princpio, de ser exigentes consigo mesmos. Aparentemente, os ncoras de TV tinham se tornado guias e orientadores da intelectualidade mais pomposa e autoritria, que se deixava guiar ao som de slo-gans, com festiva credulidade, como se a destruio de seus desafetos polticos valesse a abdicao de toda inteligncia crtica. Amigos com quem comentei o caso explicavam-no pelo revanchismo: como macacos a espancarem a ona morta, os esquerdistas buscavam uma compensao por duas dcadas de humilhaes, perse-guindo os remanescentes de uma ditadura que no tinham conseguido vencer e que s se desfizera, enfim, por vontade prpria. Mas a explicao, embora parcialmente verdadeira, no me satisfazia. A revanche era tardia demais, os inimigos j estavam quase todos mortos ou esquecidos, e os militantes da moral no relutavam em recru-

    7 A onda de ira nacional contra Collor e depois contra os deputados envolvidos em desvios de verbas so

    casos ainda mais estranhos, quando comparados persistente indiferena ante o escndalo das polonetas (emprstimos irregulares ao governo comunista da Polnia), que trouxe ao Brasil muito mais prejuzo do que o ex-presidente e todos os anes do Congresso somados.

    tar para suas tropas notrios servidores dos governos militares, como o senador Jarbas Passarinho. No era possvel que, decorrido tanto tempo, o desejo de vin-gana ainda tivesse fora bastante para obnubilar todas as inteligncias, para atirar ao limbo as exigncias mais comezinhas do amor verdade, em troca de resultados polticos de valor duvidoso. Estvamos, enfim, diante de um fenmeno estranho, cuja singularidade, no entanto, parecia escapar inteiramente queles mesmos que o protagonizavam8. E conjeturei ento talvez fosse possvel encontrar, na esqui- 8 Documentei o bastante a esquisitice ambiente em O Imbecil Coletivo para poder me dispensar de enume-rar novamente aqui os sinais da patologia mental que ento acometeu a inteligncia brasileira. S para dar um exemplo, um aspecto estranho, que pareceu escapar totalmente aos melhores observadores, foi este que na segunda fase da campanha a guerra contra Joo Alves & Cia. anotei num artigo que escrevi para a revista Imprensa: Pelo furor investigativo com que os jornais e a TV abrem as latrinas, destapam os ralos, vasculham os esgotos da Repblica, parece que o Brasil, dentre todos os pases, tem a imprensa mais ousada, mais independente, mais empenhada em descobrir e revelar a verdade. Porm o mais admir-vel, nela, a unanimidade da sua adeso a esse objetivo. No h neste pas um s jornal, estao de rdio ou canal de TV que se exima da obrigao de informar, que procure mesmo discretamente abafar denncias, proteger reputaes, acobertar suspeitos. Todos, mas todos os rgos de comunicao, sem excees visveis, esto alinhados no ataque frontal corrupo, que verberam em unssono, com a afinao de um coro multitudinrio regido por uma s vontade, por um s esprito, por um s critrio de valores. No exrcito da moralidade pblica, no h defeces. Foi a uniformidade do noticirio que permitiu fixar na retina do pblico a imagem de um Brasil dividido em justos e pecadores, mocinhos e bandidos, sem quais-quer ambigidades ou meios-tons. Imagem na qual a linha demarcatria da tica se sobreps mesmo s divises de partidos, de interesses, de ideologias, terminando por neutraliz-las e por no deixar mostra seno duas faces, a de Caim e a de Abel, esta vociferando sua indignao nas praas, aquela esgueirando-se pelos corredores, tramando golpes, apagando pistas, num sombrio meneio de cobra. Esse unanimismo no teria poder sobre as conscincias se no inclusse, entre os temas dominantes do seu discurso, a cele-brao de si mesmo: a condenao dos polticos corruptos , ao mesmo tempo, e no raro explicitamente, a glorificao da imprensa livre que os investiga e desmascara. Ningum hesita em ver nesse fenmeno o comeo de uma nova era: levado pela mo da imprensa, o Brasil atinge o portal da maturidade democrtica. Mas, a quem fez seu aprendizado no jornalismo ouvindo dizer que imprensa diversidade, que democracia pluralismo de opinies, essa unanimidade no pode deixar de parecer um tanto suspeita. Anormal histo-ricamente, ela . Nunca, em qualquer lugar ou poca, se viu um caso como este, de uma nao em peso abdicar de suas divergncias internas para formar frente nica sob uma bandeira to vaga e abstrata quanto a tica. Nem pases em guerra, movidos pela necessidade de unir-se em defesa de bens mais palpveis contra perigos mais imediatos e letais, lograram homogeneizar a tal ponto o discurso dos seus jornalistas. O que est acontecendo no Brasil um fenmeno mpar na histria da imprensa mundial. Um fenmeno tanto mais estranho quanto recente a introduo da palavra tica no vocabulrio popular brasileiro e rapidamente improvisada, com xito fulminante, sua promoo ao status de ideal unificador de todo um

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    sitice geral do ambiente ptrio, um princpio de explicao para aquilo que eu vira no MASP. Diante dessa expectativa, no pude mais adiar a retomada deste trabalho. Revi-rando de novo meus papis, agora com o empenho investigativo de um araponga do PT, localizei o manuscrito e fiz-lhe os acrscimos que quela altura me pareciam necessrios. Nada alterei nele em substncia. Apenas mudei um pouco a ordem, acrescentei os livros finais e este comeo. Toda a parte inicial do 2 ao 17 o texto de 1990, cortado de excrescncias, aumentado de esclarecimentos indispensveis e melhorado espero nos detalhes da expresso. Algumas correes foram bem minuciosas, mas deixaram inalterado o sentido do conjunto. Acrescentei tambm muitas, muitas notas de rodap. Muitas e longas. Notas de rodap so uma das mais amveis invenes humanas. Alm da sua funo moral de testemunharem o justo reconhecimento de um escritor para com seus fornecedores de material; alm da economia que nos facultam ao abreviar um argumento mediante saltos que a indi-cao de um mero ttulo preenche; alm da aparncia verdadeira ou falsa de probi-dade cientfica de que revestem o contedo de um livro; alm do benefcio peda-ggico de abrirem para o leitor um leque de estudos complementares; alm mesmo do inegvel deleite psicolgico que um autor pode tirar da ostentao erudita, alm de todas essas coisas apreciveis e reconfortantes, elas nos do algo ainda melhor. Elas representam, dentro do corpo de um livro, as sementes de outros tantos livros possveis, as linhas de investigao que tiveram de ser abandonadas para que o livro pudesse chegar a um ponto final. Abandonadas mas no desprezadas. Sua presena nas notas manifesta a confisso de que este no o nico nem o melhor dos livros possveis sobre o seu assunto. O mesmo autor deste, daqui de onde fala ao distinto

    povo. Jamais uma palavra-de-ordem emanada de um estreito crculo de intelectuais ativistas logrou alas-trar-se com tal velocidade pela extenso de um continente, sem que ningum se lembrasse de objetar que a rapidez com que se propagam as palavras est s vezes na razo inversa da profundidade de penetrao das idias. ( Unanimidade suspeita, em Imprensa, maio de 1994; reproduzido em O Imbecil Coletivo ). Se o conhecimento, como diz Aristteles, comea com o espanto, a falta da capacidade de espantar-se um grave sintoma de apatia mental na nossa intelligentzia.

    pblico, pode agora mesmo vislumbrar em pensamento outros tantos melhores. Mas escrever, por ora, s pde escrever este. Hoje surpreendo-me de ter podido escrever tanto numa s noite. Mas, pensando bem, no poderia ter sido de outra forma. A fala de Pessanha era to cheia de subentendidos, de intenes veladas, de mensagens camufladas para uso dos happy few, que, mais que contest-la, era preciso desvend-la, mostrar toda a cosmoviso que ela trazia de contrabando por baixo do sentido explcito das palavras. Como esta cosmoviso, por sua vez, convocava reforos de eras pretritas para dar apoio a uma poltica do presente, no se poderia elucid-la sem ampliar formidavelmente o crculo das investigaes, com muitas idas e vindas entre a superfcie da poltica atual e as camadas mais profundas de uma antigidade quase esquecida. To vasta era a rea das implicaes, que arriscaria perder de vista a forma do seu conjunto quem se aventurasse a percorr-la aos poucos, alguns metros por dia. Para fazer face influncia difusa e embriagante que as palavras de Pessa-nha espalhavam no ar como um spray, era preciso um sobre-esforo de compactao, que espremesse numa rea limitada e visvel a multido variada de fantasmas evanescentes. No creio que isto se pudesse fazer seno tudo de uma vez, num lance sbito de espadachim ou de pintor zen, para conservar, na multiplicidade dos temas e dos planos de abordagem, a unidade de uma intuio simultnea 9.

    A notcia da morte de Jos Amrico Motta Pessanha, ocorrida no incio de 1993, mas da qual s tomei conhecimento muito depois, no alterou em nada minha disposio de publicar este livro, j pronto, na parte que a ele mais de perto se refe-

    9 tambm esta multiplicidade de temas e planos que explica a trama compsita deste livro, misto de memrias e ensaio filosfico, reportagem e panfleto, poltica e metafsica, esoterismo e fait divers, religio comparada e sei l qu mais coisa em suma incatalogvel, que no se esperaria ver assinada pelo mesmo autor de uma rigidssima teoria dos gneros ( v. Olavo de Carvalho, Os Gneros Literrios. Seus Funda-mentos Metafsicos, Rio, IAL & Stella Caymmi Editora, 1993 ). Mas, se fixei com tal apuro as distines entre os gneros, foi justamente para poder, em caso de necessidade, melhor mistur-los. E, na verdade, no h o que no caiba na minha definio de ensaio.

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    re, desde 1990. Sustentam essa minha deciso trs razes. A primeira que, apesar da veemncia com que contesto aqui as idias de Pessanha, nada digo contra sua pessoa, nem poderia faz-lo se quisesse, por ignorar tudo a respeito. A segunda que a morte de um filsofo no torna verdadeiras as idias falsas que tenha defen-dido, nem exime do dever de contest-las, para defesa e esclarecimento dos vivos, quem no tenha podido faz-lo em vida dele. A terceira que aquilo que possa ter havido de maligno na influncia de Pessanha sobre o pblico no veio dele enquanto indivduo, mas enquanto membro atuante de um grupo; grupo este que continua vivo e passa bem 10. Quanto ao tom, o deste livro s vezes de uma franqueza que destoa, reconhe-o, em debates letrados, pelo menos na media luz da hipocrisia que se tornou o padro oficial da linguagem educada nacional. Mas no se trata aqui de discutir idi-as, de confrontar na serenidade de uma comum devoo cincia vrias imagens da realidade, para encontrar a melhor. As idias, para certas pessoas, no so imagens da realidade: so poes mgicas, de que se servem para enfeitiar o pblico e co-loc-lo a servio de fins com que, lcido e informado, ele no se prestaria a colabo-rar de maneira alguma. E um feitio no se discute no plano terico: um feitio des-faz-se, mediante a exibio dos chumaos de cabelos e dos retalhos de roupas da vtima, que o feiticeiro, em furtiva incurso, escondeu entre restos de cadveres. No se trata, portanto, de refutar argumentos errneos, emitidos com a inocncia de uma equivocada busca da verdade. Trata-se, como em psicanlise, de desenterrar velhas mentiras esquecidas, de desocultar intenes que chegam a ter algo de sinis-

    10 Pouco depois dos acontecimentos narrados nesta Introduo, ele atacou novamente, com um ciclo denominado Artepensamento. Em 26 de setembro de 1994, com o ttulo mudado para Arte de Viver, a palestra de Pessanha sobre Epicuro, gravada em vdeo, foi transmitida pela TV Educativa do Rio, numa programao que reproduzia resumidamente o ciclo de tica do M ASP , sob a direo do mesmssimo A-dauto Novaes que organizou o evento de 1990. Eis como a morte do pensador d mais fora de difuso s idias que ele defendeu em vida. Conservado e industrializado pela tcnica, o veneno epicreo pode agora ser distribudo em massa, enobrecido e como que santificado pela morte de seu revendedor local. Em junho de 1995, o mesmo grupo realizou o congresso Libertinos/Libertrios, que incluiu comemoraes pagas com dinheiro pblico do bicentenrio do marqus de Sade, e muitas palavras de louvor a Laclos, Crbillon e similares. S falta, como diria Paulo Francis, editar em papel-bblia as obras completas de Julius Streicher.

    tro, de revelar o mal para que perea exposto luz, amputado da escurido que o alimentava e protegia. No fao este trabalho com prazer. Fao-o por uma obriga-o interior, da qual fugi o quanto pude, como o testemunha o atraso deste livro em relao aos fatos que o motivam. Fao-o com resignada boa vontade, mas no con-sigo esconder a repugnncia que sinto ao lidar com esse gnero de materiais. Algu-mas expresses mais fortes, que emprego no texto, espero que me sejam perdoadas como naturais desabafos de um homem que tem de falar sobre o que preferiria es-quecer. Alguns leitores talvez digam que dei uma importncia desmesurada a um aconte-cimento superficial e passageiro: a refutao de uma simples conferncia no requer todo um livro. A objeo no seria de todo despropositada, se este livro tomasse a conferncia de Pessanha por seu objeto, e no por simples ocasio e sinal para mostrar, num giro por dois milnios de histria das idias, o crculo inteiro das con-dies remotas que a possibilitaram, e das quais ela extrai toda a significao que possa ter para alm das miudezas polticas que constituem sua motivao imediata. Essas condies que so o tema do livro. Um evento de porte bem modesto pode tornar-se assim elucidativo do movimento maior da Histria, quando nele se cruzam de maneira identificvel as foras que se agitam superfcie do dia e aquelas que vm, num esgueirar soturno, desde o fundo dos sculos. Um escritor cujo nome no me ocorre sugeriu, para simbolizar o cmulo da insignificncia, a altercao de dois velhinhos num asilo. Esqueceu-se de dizer que o ncleo do enredo dA Monta-nha Mgica de Thomas Mann, livro que condensa todo o drama das idias do s-culo XX, no passa da altercao entre dois velhinhos Naphta e Settembrini no asilo de tuberculosos em Davos. E Perez de Ayala fez dos bate-bocas entre dois velhinhos de miolo mole Belarmino y Apolonio o resumo da universal al-tercao; no fim os velhinhos fazem as pazes... ao reencontrar-se num asilo. Como se v pelo exemplo dessas belicosidades geritricas, aquilo que pouco significa por si mesmo pode significar muito pelas causas que revela. No fim deste livro o leitor ver como o personagem dos primeiros pargrafos ter se tornado pequeno o eco dbil e longnquo que repete s tontas, na periferia da Histria, a cantiga milenar do engano.

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    De outro lado, o hbito brasileiro de olhar as manifestaes culturais como um adorno suprfluo impede de enxergar as tremendas conseqncias prticas que as idias filosficas, mesmo difundindo-se apenas num estreito crculo de intelectuais, podem desencadear sobre a vida de milhes de pessoas que nunca ouviram falar delas e que, se ouvissem, no as compreenderiam. Ora, nada se parece mais a um adorno exterior, a um incuo passatempo botnico de nefelibatas, do que uma con-ferncia sobre o Jardim de Epicuro no estilo floreado de Motta Pessanha. No en-tender do superficialismo brasileiro, s mesmo a um doido varrido como eu ocorre-ria ver ali algo de mortalmente srio e perigoso. Mas, por olhos doidos ou sos, o que vi estava l, escondidinho e letal sob as flores. Posso provar isto, mas no vou faz-lo na Introduo porque o fao no restante do livro. Para liquidar de vez com a objeo, permito-me citar o nico autor do qual pos-so me gabar de ter lido tudo quanto escreveu, e pelo qual nutro uma certa estima mista de melancolia e decepo: eu mesmo. Uma lei constitutiva da mente humana disse esse autor em A Nova Era e a Revoluo Cultural concede ao erro o privilgio de poder ser mais breve do que a sua retificao. Ademais, como o leitor ver sobretudo nas ltimas pginas, este livro no se limita a desfazer um ou vrios erros, mas aponta, positivamente, a direo onde de-vem ser buscadas as verdades que eles renegam e renegando encobrem. H aqui os esboos de uma interpretao global da histria cultural do Ocidente moderno, que seria talvez melhor apresentada se em forma sistemtica e fora de qualquer contexto polmico. Essas idias so a origem primeira e a meta do trabalho, que somente pelo valor ou desvalor delas admite ser julgado, e no pela importncia muita ou pouca dos fatos, locais e momentneos, que deram ocasio e pretexto ao seu apa-recimento.

    Ainda um pedido. Que o tom deste livro, e sobretudo o fato de ser esta j a minha terceira obra de combate11, no levem ningum a concluses precipitadas 11 As anteriores foram A Nova Era e a Revoluo Cultural. Fritjof Capra e Antnio Gramsci e O Imbecil Coletivo: Atualidades Inculturais Brasileiras.

    sobre o temperamento do autor, sujeito pacfico e tolerante at o limite da paspalhi-ce. que a crtica, segundo dizia John Stuart Mill, a mais baixa faculdade da inteli-gncia, e na ordem de publicao dos meus escritos preferi comear de baixo, da ruidosa atualidade, reservando as partes mais altas e serenas para melhor ocasio, e deixando-as mostrar-se apenas, por agora, sob a forma de apostilas de meus cursos privados, enquanto as idias amadurecem e se revestem de uma forma verbal me-lhor12. Meus alunos podem atestar que a polmica est longe de constituir o centro dos meus interesses. Tambm declaro peremptoriamente que no tenho a menor ilu-so de influenciar no que quer que seja o curso das coisas, que vai para onde bem entende e jamais me consulta (no que alis faz muito bem). Meu propsito no mudar o rumo da Histria, mas atestar que nem todos estavam dormindo enquanto a Histria mudava de rumo. No escrevi este livro pensando em seus efeitos polticos possveis, mas simplesmente em esclarecer um pequeno crculo de amigos e leitores que desejam ser esclarecidos e me julgam capaz de ajud-los nisso. Nem mesmo pretendo mudar a opinio de quem goste da sua. Hoje em dia as pessoas criam opinies como animais de estimao, sucedneos do afeto humano. Quanto s minhas, trato-as a po e gua, ginstica sueca e chibatadas, levando mui-tas delas morte por definhamento, a outras estrangulando no bero ou esmagando-as a golpes de fatos que as desmentem: fico com as que sobrevivem. No posso recomendar esse regime s almas sensveis, mas desconheo outro que possa nos colocar na pista da verdade, supondo-se que a desejemos. E se aqui submeto idias alheias a esse tratamento impiedoso, porque algumas delas j foram minhas e, como disse Goethe, contra nada somos mais severos do que contra os erros que abandonamos.

    12 Minha nica iniciativa, at agora, de divulgar essa parte mais interior do meu trabalho com a publica-o do livro Uma Filosofia Aristotlica da Cultura. Introduo Teoria dos Quatro Discursos ( Rio, IAL/Stella Caymmi, 1994 ) deu mais encrenca do que todas os meus escritos de polmica. O episdio est documentado em Aristteles em Nova Perspectiva ( Rio, Topbooks, 1996 ).

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    2. As conferncias do MASP Na gritaria geral contra a falta de tica, ergueu-se finalmente a voz da filosofia para clarear as idias do povo e indicar nao o caminho do bem. da tradio os filsofos abandonarem o silncio da meditao para ir discursar s gentes, nas horas de escndalo e runa. Scrates ia pelas praas cobrando os direitos da conscincia, aviltada pelos abusos da retrica. Leibniz, chocado com a guerra entre cristos, clamava pela unio das igrejas. Fichte, do alto de um caixote de beterrabas, convocava os alemes defesa da honra nacional pisoteada pelo invasor. No de hoje que a filosofia assume o encargo de guiar o mundo, quando ele, desorientado e perplexo, j no consegue se guiar por si mesmo. To necessrios so os filsofos nessas horas, que, no havendo nenhum mo, as naes nomeiam filsofos honorrios, ou, em terminologia mais moderna, bini-cos. Foi assim que surgiu o termo philosophes, que, grifado ou entre aspas, designa os idelogos da Revoluo Francesa. A diferena simples: um filsofo busca a explicao do real segundo a sua prpria exigncia de veracidade e segundo o nvel alcanado por seus antecessores; um philosophe busca explicaes na estrita me-dida do mnimo que o mundo exige daqueles a quem segue. Discursando do alto de um caixote de beterrabas, ambos podem fazer igual efeito, pois a diferena est num plano acima do que o pblico enxerga. Para este, Voltaire filsofo tanto quanto Leibniz ou Aristteles. No caso brasileiro, a incumbncia de figurar no papel de conscincia filosfica nacional foi atribuda ao grupo de professores universitrios que orbita em torno de Marilena Chau, titular da Secretaria Municipal de Cultura, organizadora do ciclo de tica do MASP e, last not least, autora de um premiado Convite Filosofia, on-de so servidas aos convidados algumas lies preciosas, como por exemplo a de que na lgica de Aristteles o acidente um tipo de propriedade mais ou me-nos o equivalente a dizer que na geometria de Euclides o quadrado um tipo de crculo.

    Vejamos o que a conscincia filosfica nacional, assim representada, pde fazer para reconduzir aos bons caminhos da tica uma nao perdida.

    O intuito declarado dos organizadores do curso era triplo: dar um esboo crono-lgico das principais doutrinas ticas, lanar luz sobre a questo da falta de tica no pas e popularizar o debate a respeito, abrindo-o para um pblico de quinhentos e tantos leigos. A seleo dos temas e o contedo das conferncias terminaram por desmentir os dois primeiros objetivos e anular o terceiro. Em todo debate cientfico ou filosfico, a compreenso de uma nova tese de-pende do conhecimento do estado da questo. Status qustionis termo da ret-rica antiga o retrospecto das discusses at o presente, com a criteriosa discri-minao dos tpicos abrangidos e por abranger, das teses consensualmente admiti-das e das que continuam em litgio. Quem fale aos leigos sobre um assunto da sua especialidade est implicitamente obrigado, pela tica da vida intelectual quando tem, a oferecer-lhes, como fundamento primeiro da argumentao, um sumrio do estado da questo no consenso dos estudiosos. Opinies prprias, novas ou diver-gentes que o orador acaso tenha a apresentar s podero ser compreendidas e dis-cutidas com proveito se forem vistas no quadro desse consenso, mesmo que dele divirjam e sobretudo quando divergem, porque toda divergncia diverge de alguma coisa e s no confronto com ela adquire sentido; Benedetto Croce dizia que s se compreende um filsofo quando se sabe contra quem ele se levantou polemicamen-te. Se porm o especialista, o professor, o homem investido de autoridade acad-mica apresenta sua opinio solta, isolada, sem os nexos que a ligam positivamente ou negativamente ao consenso e tradio, o pblico leigo fatalmente a tomar como se fosse ela mesma a expresso desse consenso, e dar s palavras de um s indiv-duo ou do grupo que ele representa o valor e o peso de uma verdade univer-salmente admitida pelos homens cultos. tambm um preceito elementar do mtodo cientfico no apresentar uma teoria nova sem provar primeiro que as anteriores no bastam para explicar os fenmenos de que trata. um meio de evitar a proliferao de teorias inteis. Desse preceito,

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    que vlido tambm em filosofia, decorre uma norma prtica: as novas teorias que devem apresentar suas razes contra as velhas, e no estas contra aquelas. Como num duelo, cabe ao desafiado a primazia na escolha das armas. Dessa norma, por sua vez, flui a obrigao de tica pedaggica a que me referi: toda teoria nova, quando apresentada a um pblico leigo, deve ser mostrada como tal, recortada e contrastada sobre o pano de fundo do consenso que ela confirma ou desmente. Nunca deve ser exibida sozinha, ocupando todo o espao e fazendo as vezes do consenso. Quem assim a empregue estar se aproveitando da ignorncia alheia para fazer-se de autoridade. No deveria ser preciso fazer tais recomendaes a pessoas to cheias de cons-cincia tica que, no conseguindo mais cont-la em si, sentiram o urgente impulso de derram-la sobre toda a nao, ou pelo menos sobre quinhentas cabeas. Mas a verso que o ciclo apresentou da histria das idias ticas bem diferente daquela a que o pblico teria acesso caso se dirigisse a qualquer das histrias da filosofia que circulam em formato de livro. uma verso peculiar alternativa, digamos que tem todo o direito de ser defendida contra o consenso, mas no tem o direito de posar em lugar dele perante um pblico que o desconhece. Por exemplo, o captulo referente filosofia grega resumiu-se a duas confern-cias: a de Jos Amrico Motta Pessanha sobre Epicuro, que em detalhe comento mais adiante, e a da convidada francesa, Nicole Loraux (alis excelente), sobre os sentimentos ticos na tragdia grega. Epicuro, no consenso quase universal, no propriamente um filsofo menor, mas alguma coisa menor do que um filsofo. Vere-mos adiante. E a tragdia grega, como obra de arte, carregada ademais de obscuros simbolismos arcaicos, admite muitas outras interpretaes ticas que no somente aquelas destacadas por Nicole Loraux (que seria, creio eu, a ltima a neg-lo). No fim das contas, o pensamento tico grego ficou ali reduzido ao filete escasso e mar-ginal do epicurismo e a um vago e misterioso sentimento coletivo escoado entre os versos de Sfocles, squilo e Eurpides. Nem uma palavra sobre Plato, Aristteles ou o estoicismo: sobre os trs sistemas completos que constituram o essencial da herana moral grega s civilizaes europia e islmica.

    Ningum nega aos organizadores do ciclo o direito de reinterpretarem a Histria o quanto queiram. Nem mesmo o de desfigur-la em nome de uma teoria qualquer, alterando a hierarquia dos fatos e as propores dos valores, removendo para um canto os nexos principais articuladores do conjunto e puxando para o centro um detalhe qualquer de sua preferncia, por insignificante e banal que seja. Apenas se pede, a quem assim proceda, a fineza de declarar de antemo seu propsito de a-presentar uma verso nova e heterodoxa da Histria, e no a Histria, em sentido corrente. Uma histria da tica grega que eleve Epicuro ao primeiro plano em lugar de Plato e Aristteles no tem como evitar, no mnimo, o rtulo de extravagante. Mas cometer extravagncias com o ar inocente de quem procede segundo a praxe mais rotineira aquilo que, na tica popular, recebe o nome de cara-de-pau. E nada mais confortvel para um cara-de-pau do que poder contar com a sonsa aprovao de uma platia novata, incapaz de atinar com a extravagncia do seu procedimento. A, ao abrigo de todo olhar de censura, ele se espalha: deita e rola. Rolando, rolando, o cabotinismo elevado a princpio historiogrfico foi cair num descalabro ainda pior ao tratar da filosofia medieval: espremeu-a toda, com seus quase mil anos de Histria, numa s conferncia, e mesmo a s a abordou, com seletividade feroz, por um nico e privilegiado aspecto, tomado assim, pela massa crdula dos ouvintes, como a quintessncia do assunto. Que aspecto foi esse, to especial? A moral agostiniana da autoconscincia? A tica tomista da escolha razo-vel? A pedagogia moral de Hugo de S. Vtor? O indeterminismo moral de Duns Scot? Nada disso. Nenhum desses tpicos nem dos muitos outros em que se subdi-vide a tica medieval nos livros de Histria da Filosofia foi considerado significativo o bastante para representar, no MASP, a essncia da Idade Mdia. O tema ali en-carregado de figurar como amostra suprema do pensamento medieval foi... o tri-bunal da Santa Inquisio! Historicamente, um quid pro quo. Instaurada oficialmente em 1229, essa instituio como frisou Alexandre Herculano nasceu dbil e desenvolveu-se gradual e lentamente13. Seu perodo de atuao mais intensa, que a revestiu da ima-

    13 V. Alexandre Herculano, Histria da Origem e Estabelecimento da Inquisio em Portugal, Lisboa, Bertrand, s/d, t. I, p. 25.

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    gem sangrenta que tem para ns hoje, s comea a partir de 1400: em pleno Renas-cimento. As fogueiras da Inquisio continuaram depois a arder pela Idade Moderna a dentro, alcanando um mximo de furor nos sculos XVI e XVII. Isto to medi-eval quanto a fsica de Newton. Mesmo o sculo do estabelecimento oficial da Inquisio, o XIII, que no coin-cide, repito, com o da sua atuao efetiva, j apenas o finzinho da Idade Mdia: o princpio da sua dissoluo, com a ecloso das primeiras manifestaes de auto-nomia nacional, das quais a prpria disseminao das heresias, causa imediata da abertura do Santo Ofcio, um dos principais sintomas. Em terceiro lugar, o perodo de atividade inquisitorial mais significativa j pos-terior, de dois sculos, ao fim do ciclo de produo e publicao das principais o-bras filosficas medievais, que vai do Proslogion de Sto. Anselmo (1070) at as Reportata Parisiensia de Duns Scot (1300), passando pelos livros de Pedro Lom-bardo, Pedro Abelardo, Alexandre de Hales, Guilherme de Conches, Hugo e Ricar-do de S. Vtor, Sto. Alberto Magno, Sto. Toms de Aquino e S. Boaventura. Para completar, nenhum desses filsofos exerceu qualquer cargo no Santo Of-cio nem teve com esta entidade contatos seno episdicos, que no marcaram signi-ficativamente o contedo de suas obras14. 14 O nmero de balelas que circulam a respeito da Inquisio assombroso. Elas constituem uma captulo importante do fabulrio popular do senso comum, diria Gramsci que sustenta a crena na superio-ridade do mundo moderno e de seus intelectuais. Eis algumas: l A Inquisio atrasou o desenvolvimento cientfico, proibindo a circulao dos livros que traziam novas descobertas. Basta examinar o Index Librorum Prohibitorum para verificar que nele no consta nenhuma das obras de Coprnico, Kepler, Newton, Descartes, Galileu, Bacon, Harvey e tutti quanti. A Inquisio examinava apenas livros de interesse teolgico direto, que nada poderiam acrescentar ao desen-volvimento da cincia moderna. ( Em caso de dvida, leia-se A Inquisio, por G. Testas e J. Testas v. Bibliografia no fim deste volume. ) l Giordano Bruno foi um mrtir da cincia, condenado pela Inquisio por defender teorias cientfi-cas. Giordano Bruno no fez nenhuma descoberta, nenhuma observao, nenhum experimento cientfi-co. Nem sequer estudou as cincias modernas, fsica, astronomia, biologia ou matemtica. As disciplinas que lecionava eram tipicamente medievais: lgica, gramtica e retrica o trivium. Ele desprezava a nova mentalidade matemtica, e todos os cientistas matematizantes, de Galileu a Descartes, mostraram a maior indiferena pela sua obra, cujo maior mrito justamente o de ter antecipado muito do que hoje podemos dizer contra a cincia moderna ( v. Paul-Henri Michel, La Cosmologie de Giordano Bruno, Paris, Her-mann, 1975. ). Ele no foi condenado por defender teorias cientficas, mas por prtica de feitiaria, que na

    Associar, assim, Idade Mdia com Inquisio, e sobretudo filosofia medieval com Inquisio, um descalabro cronolgico equivalente ao de apontar Fernando Henrique Cardoso como ministro da Fazenda de D. Joo VI. Os philosophes do MASP conhecem to bem ou melhor do que eu todas essas datas, e no podem t-las trocado por engano. Eles sabem perfeitamente bem que a Idade Mdia um bode expiatrio das culpas de perodos histricos posteriores, que a sua fama inquisitorial obedece definio stendhaliana da fama: conjunto dos poca era crime. No sei se a acusao era procedente, provavelmente no era, mas aos que julguem um absurdo preconceito de eras pretritas imputar feitiaria, de modo geral, qualquer carter criminoso, recomendo a leitura do ensaio de Claude Lvi-Strauss, O Feiticeiro e sua Magia ( em Antropologia Es-trutural, trad. Chaim Samuel Katz e Eginardo Pires, Rio, Tempo Brasileiro, 1975 ), sobre a realidade das mortes por enfeitiamento. Para completar, a pesquisa histrica mais recente revelou que Bruno esteve muito provavelmente envolvido em atividades de espionagem contra a Igreja Catlica (v. John Bossy, Giordano Bruno e o Mistrio da Embaixada, trad. Eduardo Francisco Alves, Rio, Ediouro, 1993). l A Inquisio instituiu a perseguio aos judeus. As matanas de judeus, promovidas por deve-dores espertos ou por monges fanticos, eram um hbito consagrado na Pennsula Ibrica. No conseguin-do reprimir a ral enfurecida, o Rei de Portugal pediu que o Santo Ofcio se incumbisse dos processos por usura, de modo a tirar qualquer pretexto que legitimasse as atrocidades dos justiceiros populares. Insti-tuindo os processos regulares, a Inquisio controlou e enfim extinguiu as matanas. verdade que a In-quisio se mostrou preconceituosa contra os judeus, mas se em vez de julg-la por um padro moral abstrato e utpico a comparamos com as alternativas reais existentes na poca, entendemos que ela foi um mal menor: a nica alternativa era o massacre ( v. Alexandre Herculano, op. cit. ). l A Inquisio instituiu a tortura generalizada. A tortura era considerada um procedimento leg-timo e praticada em toda parte desde a Grcia antiga. Durante quase toda a Idade Mdia, caiu em desuso, sendo reintroduzida na justia civil graas redescoberta tipicamente renascentista dos textos das antigas leis romanas. O que a Inquisio fez foi seguir o uso ento vigente na justia civil, mas limitando-o severamente, no permitindo que o acusado fosse torturado mais de uma vez e proibindo ferimentos san-grentos ( v. Testas, op. cit. ). Deve-se portanto Inquisio o primeiro passo efetivo que se deu contra o uso da tortura, o que deveria ser considerado um marco na histria dos direitos humanos. A tortura ilimi-tada foi depois reintroduzida pelos comunistas, na Rssia, sendo seu exemplo imitado em seguida pelos nazistas e fascistas. l O processo de Galileu foi um caso de perseguio inquisitorial. Bem ao contrrio, o processo foi uma pizza, uma farsa concebida pelo Papa padrinho de Galileu para que seu protegido se livrasse de um grupo de inquisidores fanticos mediante uma simples declarao oral sem efeitos prticos, aps a qual ele pde continuar divulgando suas idias sem que ningum voltasse a incomod-lo ( v. Pietro Redon-di, Galileu Hertico, trad. Jlia Mainardi, So Paulo, Companhia das Letras, 1991 ). Os philosophes de modo geral no ignoram essas coisas, mas falar delas no bom para a sua sade e suscitaria desconforto na platia.

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    equvocos que a posteridade tece em torno de um nome. Mas tambm sabem que essa fama est profundamente arraigada na crendice popular, onde a plantou uma sucesso de obras de fico de grande sucesso, de O Poo e o Pndulo de Edgar Allan Pe at O Nome da Rosa de Umberto Eco15. E, j que o pblico acredita na lenda, para qu desmenti-la? Por que no tirar proveito dela? O proveito que se tirou, no caso, foi o de evitar qualquer exame da filosofia me-dieval, desviando as atenes para um assunto mais truculento, logo, mais vistoso, com a vantagem adicional de que essa filosofia, sem ter sido contestada diretamente ou mesmo discutida, ficou assim rodeada de uma aurola sangrenta. Por automtica extenso, a aurola terminou por rodear tambm o Catolicismo de modo geral, a que aquela filosofia se associa intimamente. Em matria de retrica a arte de al-canar o mximo de persuaso com o mnimo de argumentos , foi um tour de force admirvel: enlamear a reputao do adversrio, sem ter precisado sequer mencionar o seu nome. Mas fica a pergunta: Para qu? Com que finalidade um grupo de intelectuais declaradamente empenhados na salvao moral do pas se envolve num empreendi-mento to comprometedor como esse de contar ao povo uma Histria da tica que falta com a tica para poder falsificar a Histria?

    3. Pessanha e o pensamento Ocidental Uma pista podia ser encontrada, talvez, em Jos Amrico Motta Pessanha, um dos mais destacados membros do grupo. Na escolha das obras que compem a srie Os Pensadores da Editora Abril, de que Pessanha fora organizador e editor, j 15 Na verdade a lenda surgiu um pouco antes: A Idade Mdia foi denegrida, no incio da Renascena, por vcios que realmente pertenciam aos seus detratores; a Histria oferece muitos exemplos de censura trans-ferida... Essa impresso sobre a Idade Mdia parcialmente um produto dos Romances Gticos do sculo dezoito, com seus quadros sombrios de cmaras de tortura, teias de aranha, mistrio e desvario ( Lewis Mumford, A Cultura das Cidades , trad. Neil R. da Silva, Belo Horizonte, Itatiaia, 1961, p. 23 ). A prova de que a velha aparelhagem cnica do romance gtico ainda funciona o sucesso de O Nome da Rosa.

    se manifestara, com alguns anos de antecedncia, a mesma seletividade deformante que agora inspirava o programa da tica. O mais significativo da filosofia escolstica Sto. Toms, Duns Scot, Ockam fora ali todo espremido num s volume, mais ou menos do mesmo tamanho daqueles concedidos individualmente ao economista John Maynard Keynes, ao antroplogo Bronislaw Malinovski e at mesmo a Voltai-re, grande retrico e jornalista que, como filsofo, no pode ser levado a srio. As distores no paravam a: Pessanha achara indispensvel dar todo um volu-me a Kalecki, um economista que no citado em nenhuma Histria da Filosofia

    16,

    ao mesmo tempo que omitia Dilthey, Croce, Ortega, Lavelle, Whitehead, Lukcs, Jaspers, Cassirer, Hartmann e Scheler. Procurando, na ocasio da edio, explicar-me as razes de escolhas to bizarras, conjeturei que Pessanha talvez no tivesse desejado ilustrar a Histria da Filosofia, mas sim a Histria das Idias. Nesta dis-ciplina, as teorias no se tornam dignas de ateno pelo seu valor intrnseco, mas pela sua repercusso pblica, por seus efeitos poltico-sociais, valham elas o que va-lham. A se explicaria o ttulo da srie (pensador um termo mais vago e abran-gente do que filsofo) e tambm a incluso de autores menores, como Condillac, Helvtius e Dgerando, tpicos philosophes 17. Mas logo tive de abandonar essa hiptese, visto que a coleo inclua obras que s exerceram influncia em crculos bem delimitados, como por exemplo as de Witt-genstein e Adorno, e omitia outras que produziram verdadeiras revolues, como as de Jung e Ren Gunon, que arrombaram as portas do Ocidente para a invaso das idias orientais, ou as de Spencer e Thomas Huxley, que injetaram o evolucionismo nas veias espirituais do mundo. Sem falar, claro, de Lnin ou Gurdjieff. Enfim, o leitor dOs Pensadores, se formasse por esta s coleo sua imagem da histria do pensamento, acabaria por conceb-la bem diversa daquela que pode-

    16 Por que essa honra concedida a um nico economista, de figurar entre os filsofos, se ele jamais publi-cou um nico trabalho de alcance filosfico e se entre seus colegas de ofcio houve muitos que foram fil-sofos de pleno direito, como Friedrich Hayek e Ludwig von Mises? A resposta s pode ser uma: do ponto de vista uspiano um economista marxista mais filsofo que qualquer filsofo liberal. 17 A direita tambm tem seus philosophes, alguns de primeira ordem pela qualidade literria e pela influn-cia poltica de seus escritos De Maistre, Donoso Corts, Maurras, por exemplo , mas foram omiti-dos.

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    ria obter em qualquer livro ou curso da matria (exceto, claro, o curso da USP, onde impera o grupo de Pessanha). Para complicar mais ainda o imbroglio, a srie Os Pensadores, num pas onde se publicam poucos livros de filosofia18 e onde as edies estrangeiras s so aces-sveis a uns happy few, acabou por adquirir uma autoridade comparvel da Bibliothque de la Pliade ou dos Oxford Classics, representando, aos olhos do pblico, a imagem do pensamento universal. Enfim, o programa da tica no fizera seno prosseguir, em outra escala, a obra de deformao que Pessanha j havia iniciado por conta prpria. Mas ainda sobrava a pergunta: qual o sentido do empreendimento? Foi s quando ouvi a conferncia de Pessanha que pude compreender, retros-pectivamente, o princpio a que obedecera a seleo dos livros: Pessanha no havia procurado mostrar o passado, mas moldar o futuro. No escolhera os livros nem pelo seu valor, nem pela sua importncia histrica, mas pela repercusso que ele mesmo pretendia lhes dar. Ele no quisera refletir a Histria das Idias na imagem dos textos, mas produzi-la no campo dos fatos. A escolha no refletia um critrio terico, mas a deciso de uma prxis. No se tratava de Histria, mas sim de estra-tgia e mercadologia. O mesmo esprito parecia ter orientado a seleo dos temas para o curso de tica, e por ele pude captar tambm, retroativamente, a inspirao talvez inconsci-ente de todos os ttulos da srie de eventos promovidos pela Secretaria de Cultura: o olhar que aquela gente lanava sobre o mundo no refletia a imagem de um obje-to, mas projetava sobre ele o sentido de uma paixo. O crculo de Pessanha no 18 Na verdade publicam-se muitos, mas no os de primeira necessidade. Em Contraponto, Aldous Huxley diz de uma personagem que, se lhe dessem o suprfluo, ela dispensaria o essencial. Parece ser isso que os editores brasileiros pensam do leitor. At hoje no temos Aristteles completo em portugus, e o Plato de Carlos Alberto Nunes, editado pela Universidade do Par, jamais chegou ao Sul-Maravilha, que se cr muito letrado porque encontra nas livrarias as ltimas modas filosficas nacionais ( leia-se: estrangeiras ). Tambm nos faltam as obras principais de Hegel ( s temos a Fenomenologia e textos menores ), de Leib-niz, de Kant, Schelling, Fichte, Husserl, Dilthey, Hartmann e no sei mais quantos. Mas temos Simone de Beauvoir quase completa, muito Foucault, muito Antonio Gramsci, sem contar Fielkenkraut, Fukuyama e todos os outros filsofos de alta rotatividade. por isto que, malgrado suas distores, a srie Os Pensa-dores se tornou, na falta de concorrentes, um item indispensvel da bibliografia filosfica nacional.

    era uma comunidade cientfica empenhada em descobrir o real, mas um grupo mili-tante decidido a fabric-lo19. Nessa operao, Pessanha desempenhava uma funo estratgica, no s como editor dOs Pensadores, mas tambm por ser, na teoria e na prtica, um grande conhecedor da Retrica, discpulo que era de Chaim Perelman, o grande renovador dos estudos retricos no sculo XX, cujos trabalhos ele foi, salvo engano, o primei-ro a divulgar no Brasil. Mas Perelman distinguia, seguindo a tradio, entre o retor e o retrico: entre o orador persuasivo e o estudioso da cincia retrica. Perelman era essencialmente um retrico, um investigador e codificador dos princpios da argu-mentao retrica. Pessanha, por seu lado, qualificou-se sobretudo como retor, como um mestre da persuaso, como um orador e homem de marketing. E no lhe faltaram ocasies para manifestar o seu talento (que antes de empregar na persuaso poltica ele testara numa srie de fascculos de culinria, na mesma editora). Juntos, a srie Os Pensadores e os trs eventos O Olhar, Os Sentidos da Paixo e tica sem contar a militncia pedaggica nas ctedras da USP formam o mais vasto empreendimento de persuaso retrica j realizado neste pas por um grupo de inte-lectuais ativistas imbudos de objetivos polticos bem determinados, e dispostos a sedimentar, no plano da luta cultural, as bases para a conquista desses objetivos. Isto ainda no nos d uma resposta quanto aos motivos ltimos da seleo dos temas no curso de tica, mas j nos coloca numa pista importante: se ali a verdade sofreu graves distores, no foi por casualidade, mas para dar seguimento coerente a uma ao iniciada muito antes. Que inteno est a subentendida e quais os valo-res que nela se incorporam, o que teremos de descobrir numa anlise mi-croscpica da conferncia de Pessanha. Mas antes mesmo de entrarmos em mais detalhes, o que foi constatado at agora j nos adverte que a estranha conjuntura referida no 1 deste livro era ainda mais estranha do que parecera primeira vista.

    19 Da a receptividade, um tanto envergonhada, que se deu nesses crculos filosficos s idias de Richard Rorty, filsofo pragmatista segundo o qual a linguagem no pode dar uma imagem do real mas somente uma expresso dos nossos desejos, e segundo o qual, no podendo encontrar universais na realidade, a filosofia deve fabric-los mediante a propaganda e a ao poltica. V. a propsito os captulos Armadi-lha relativista e Rorty e os animais no meu livro O Imbecil Coletivo: Atualidades Inculturais Brasilei-ras ( Rio, Faculdade da Cidade Editora, 1995 ).

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    Pois, se j havia uma inusitada desproporo no volume de recursos culturais mobili-zados para a consecuo de um alvo to pequeno quanto a simples destituio de um mandatrio corrupto, mais esquisito ainda era que uma elite universitria, elevada liderana intelectual de uma reforma tica de escala nacional, se mostrasse to ignorante das regras mais elementares da tica intelectual, to vida de falsificar a Histria, prostituir a cincia e conduzir o povo por um caminho enganoso, tudo em nome de objetivos morais que seriam alcanados bem mais rpida e facilmente pela velha e boa linha reta. E quanto mais eu remexia o assunto, mais inexplicvel a coisa toda me parecia. No havia remdio, portanto, seno uma sondagem em pro-fundidade, que remontasse s razes intelectuais primeiras em que se inspirara aquela nova e singular concepo da tica. Era preciso nada menos que interrogar Epicuro.

  • LIVRO II

    - EPICURO -

  • CAPTULO II.

    COSMOLOGIA DE EPICURO

    4. Uma profisso-de-f epicurista. A matria segundo Epicuro As Delcias do Jardim, segunda conferncia do ciclo de tica, pronunciada por Jos Amrico Motta Pessanha, no foi uma simples exposio da filosofia de Epicuro: foi uma rasgada profisso-de-f epicurista e uma declarao de guerra a todos os crticos de Epicuro. O epicurismo foi ali pintado como uma das maiores filosofias de todos os tempos, portadora da soluo para todos os males humanos (sic) e da inspirao que o Brasil precisa para sair do atoleiro moral. Levado por aquele entusiasmo belicoso que sempre anima os porta-vozes de uma doutrina salvadora, Pessanha no recuou diante das maiores temeridades na apologia do seu guru. Se de um lado no poupou o sarcasmo ao ridicularizar as a-crobacias dialticas com que Sto. Agostinho, notrio adversrio do epicurismo, pro-curava conciliar a bondade de Deus com a existncia do mal no mundo, de outro no hesitou em defender uma opinio que, para manter-se de p, requer uma lgica no menos circense: a opinio de que a fuga dos intelectuais para o jardim de Epicu-ro no alienao nem covardia, mas uma forma superior de luta poltica. Epicuro ensinava que o filsofo deve abandonar todo empenho de reformar a sociedade, retirando-se para a vida contemplativa na solido do campo. Propor isto como um remdio eficaz para a corrupo reinante o mesmo que recomendar a fuga para longe dos credores como um mtodo eficaz de saldar as dvidas20.

    20 Veremos, no fim, que essa opinio no totalmente destituda de sentido, mas que o seu sentido o de um engodo proposital.

    Mas opinies esquisitas no so mesmo de estranhar em quem se declare segui-dor de Epicuro; pois os traos do mestre devem se reencontrar no discpulo e Epicuro produziu algumas dzias de opinies que, no campo da absurdidade, se tor-naram modelos insuperveis, fazendo de seu autor um clssico do besteirol. A