o instituto brasileiro de ciÊncias criminais · constatou-se a necessidade de unificar as medidas...

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1 O INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS - IBCCRIM, entidade não governamental, sem fins lucrativos, com sede na cidade de São Paulo (SP), Rua Onze de Agosto, 52 – Centro, vem, por meio de seus representantes, apresentar nota técnica sobre o Projeto de Lei nº 2902/2011, de autoria do Poder Executivo. 1. Objeto do PL nº 2902/2011 e sua tramitação legislativa Tramita atualmente, perante a Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania da Câmara de Deputados, o Projeto de Lei nº 2902/2011, o qual, em seu texto original, visava inserir novo regime de medidas cautelares patrimoniais no bojo do Código de Processo Penal, unificando-as sob a rubrica de “medida cautelar de indisponibilidade de bens, direitos e valores”. Além disso, pretendia alterar, também, o Código Penal e as Leis n.º 9.613/98 e n.º 11.343/2006, por meio de algumas disposições sobre temas correlatos. O Anteprojeto original foi inspirado em uma pesquisa realizada pela Escola de Direito do Rio de Janeiro da Fundação Getúlio Vargas (FGV Direito Rio) sob a coordenação do professor Thiago Bottino. Após o estudo do sistema atual, constatou-se a necessidade de unificar as medidas assecuratórias para dotá-las de maior racionalidade sem perder de vista seu caráter cautelar; optou-se, por consequência, por unificar a nomenclatura, diferenciando a medida dos institutos de arresto, hipoteca e sequestro que possuem dinâmica própria na legislação processual civil; e entendeu-se ser mais adequado aplicar a medida de indisponibilidade apenas a produtos ou proveitos do crime, isto é, a bens de origem ilícita. 1 Assim, o anteprojeto apresentado foi fundado nesses pilares, os quais deveriam ter sido mantidos para conservar a coerência do futuro diploma legal. 1 O relatório final da pesquisa está disponível em http://www.justica.gov.br/seus-direitos/elaboracao- legislativa/pensando-o-direito/publicacoes/anexos/25pensando_direito_relatorio.pdf. Acesso em 12.09.2015.

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1

O INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS - IBCCRIM, entidade não

governamental, sem fins lucrativos, com sede na cidade de São Paulo (SP), Rua

Onze de Agosto, 52 – Centro, vem, por meio de seus representantes, apresentar

nota técnica sobre o Projeto de Lei nº 2902/2011, de autoria do Poder Executivo.

1. Objeto do PL nº 2902/2011 e sua tramitação legislativa

Tramita atualmente, perante a Comissão de Constituição, Justiça e

Cidadania da Câmara de Deputados, o Projeto de Lei nº 2902/2011, o qual, em seu

texto original, visava inserir novo regime de medidas cautelares patrimoniais no

bojo do Código de Processo Penal, unificando-as sob a rubrica de “medida cautelar

de indisponibilidade de bens, direitos e valores”. Além disso, pretendia alterar,

também, o Código Penal e as Leis n.º 9.613/98 e n.º 11.343/2006, por meio de

algumas disposições sobre temas correlatos.

O Anteprojeto original foi inspirado em uma pesquisa realizada pela Escola

de Direito do Rio de Janeiro da Fundação Getúlio Vargas (FGV Direito Rio) sob a

coordenação do professor Thiago Bottino. Após o estudo do sistema atual,

constatou-se a necessidade de unificar as medidas assecuratórias para dotá-las de

maior racionalidade sem perder de vista seu caráter cautelar; optou-se, por

consequência, por unificar a nomenclatura, diferenciando a medida dos institutos

de arresto, hipoteca e sequestro que possuem dinâmica própria na legislação

processual civil; e entendeu-se ser mais adequado aplicar a medida de

indisponibilidade apenas a produtos ou proveitos do crime, isto é, a bens de

origem ilícita.1 Assim, o anteprojeto apresentado foi fundado nesses pilares, os

quais deveriam ter sido mantidos para conservar a coerência do futuro diploma

legal.

1 O relatório final da pesquisa está disponível em http://www.justica.gov.br/seus-direitos/elaboracao-

legislativa/pensando-o-direito/publicacoes/anexos/25pensando_direito_relatorio.pdf. Acesso em

12.09.2015.

2

Antes da apresentação oficial do Projeto pelo Poder Executivo ao Poder

Legislativo foram levadas a cabo alterações substanciais, contrariando as

conclusões do estudo apontado. Não obstante, após a deflagração do processo

legislativo, algumas emendas foram acrescidas ao texto, desfigurando

significativamente a ideia original.

Atualmente, a Câmara dos Deputados está trabalhando com um texto

substitutivo em sua quarta versão que visa alterar apenas o Código de Processo

Penal, o Código Penal e a Lei de Drogas. Esse texto servirá de base para o exame

crítico que se pretende fazer.

Essas alterações perpetradas no decorrer do processo legislativo não

atentaram para a existência dos pilares apontados acima, os quais são essenciais à

coesão do todo. Para exemplificar desde logo, basta mencionar que no atual

Substitutivo (SBT 4 CCJ, apresentado em 06.08.2014) foi inserido artigo (art. 126

do Código de Processo Penal) prevendo expressamente a possibilidade de decretar

a indisponibilidade para garantir a reparação de danos ou pagamento de custas e

multas, distanciando-se da ideia original de permitir a aplicação da medida apenas

para bens de origem ilícita.

O grande problema é que não foram feitas todas as adaptações necessárias

à mencionada inclusão, ocasionando a falta de coerência do Projeto de Lei.

Além disso, outros aspectos necessários à preservação da legalidade do

processo de utilização de uma medida de indisponibilidade de bens foram

deixados de lado nesse percurso, como a previsão de prazo máximo de duração da

medida, a exclusão de toda a regulamentação da conversão da indisponibilidade

em perdimento e os artigos que sistematizavam a cooperação jurídica

internacional.

Feita essa breve apresentação do problema, será feita uma introdução

teórica sobre medidas cautelares patrimoniais no processo penal para, depois,

passar a uma análise dos pontos em que o atual Substitutivo do Projeto de Lei nº

2.902/2011 peca, seja por incoerência, seja por omissão. Após, serão sugeridas

alterações em seu conteúdo de maneira a torná-lo consentâneo com os princípios

constitucionais e legais que norteiam as medidas cautelares no processo penal.

3

2. Das medidas cautelares patrimoniais no processo penal

Atualmente, o inciso II do artigo 91 do Código Penal prevê como efeito da

sentença condenatória a perda, em favor da União, dos instrumentos, produto e

proveito do crime. Levando em consideração os efeitos deletérios do tempo sobre

a eficácia do processo, é natural que se busquem mecanismos para assegurar a

utilidade do futuro provimento jurisdicional que, neste ponto específico, dizem

com a pena de perdimento.

Em termos gerais, com o escopo de diminuir os riscos, o processo admite as

chamadas medidas cautelares. De acordo com Scarance:

“São providências urgentes, com as quais se busca evitar que a decisão

da causa, ao ser obtida, não mais satisfaça o direito da parte e não

realize, assim, a finalidade instrumental do processo, consistente em

uma prestação jurisdicional justa.” 2

As medidas cautelares possuem natureza instrumental, isto é, consistem em

um meio para garantir a tutela jurisdicional do processo de conhecimento ou de

execução, razão pela qual a tutela por elas proporcionada é provisória. Ainda, pelo

aspecto temporal envolvido em sua gênese, as medidas cautelares são dotadas do

fator urgência, que implica a sumariedade da cognição nelas empreendida. Nesse

sentido, em geral, sua concessão depende da presença de dois pressupostos: o

periculum in mora e o fumus boni iuris.

Essa é uma construção da Teoria Geral do Processo que deve sofrer algumas

adaptações antes de ser transposta ao processo penal. Isso porque, neste caso, não

se admite a antecipação do provimento final condenatório, de maneira que não se

tutela o direito material do acusador, mas tão somente o processo. Além disso, o

2 FERNANDES, Antonio Scarance, Processo Penal Constitucional, 6ª Ed. rev,. atual e ampl., São Paulo,

Editora Revista dos Tribunais, 2010, p. 279.

4

fumus boni iuris exigido deve se restringir a um juízo a respeito da materialidade

delitiva e autoria, ainda que indiciário, sem prévia consideração da culpabilidade. 3

Indiscutível é, todavia, a necessidade de se verificar a presença do

periculum in mora, entendido como o perigo causado pela demora inerente ao

processo garantista, bem como o perigo da ocorrência de algum evento que

dificulte ou impossibilite a efetividade da decisão. Assim, devem ser colhidos

elementos que tenham o condão de concretizar o dano temido, tais como indícios

de que a situação patrimonial do investigado ou acusado sofrerá alterações no caso

da decretação de medidas patrimoniais.

Diante das peculiaridades apontadas, e considerando que as medidas

cautelares penais sobre bens patrimoniais afetam direitos individuais, não será

possível prescindir da existência de justa causa para sua decretação no âmbito do

processo penal.

No atual texto do Código de Processo Penal existem três medidas

cautelares patrimoniais: seqüestro, hipoteca e arresto. Até 2006, quando foi

editada a Lei n. 11.435, a terminologia não era adequada, chamando-se de

seqüestro o que era arresto. Agora, a devida diferenciação foi feita. Assim,

seqüestro é a retenção da coisa litigiosa quando houver dúvida acerca de sua

propriedade. Arresto é a retenção de qualquer bem para assegurar que uma dívida

será saldada. Por derradeiro, a hipoteca legal recai apenas sobre bens imóveis do

acusado independentemente de sua origem, também com o objetivo de garantir a

solvabilidade do devedor.4

Diante do regramento confuso dessas medidas, bem como da ineficácia

resultante de sua utilização, o Ministério da Justiça patrocinou o mencionado

estudo que ensejou a elaboração do Projeto de Lei em comento para alterar a

configuração legal das medidas assecuratórias no processo penal. Não se pode

3 GIMENES, Marta Cristina Cury Saad, As medidas assecuratórias do Código de Processo Penal como

forma de tutela cautelar destinada à reparação do dano causado pelo delito. Tese de Doutorado. São

Paulo: USP, 2007, p. 37-38. 4 OLIVEIRA, Eugenio Pacelli de, Curso de Processo Penal, 11ª Ed., Rio de Janeiro, Ed. Lúmen Júris,

2009, p. 279 e 282; BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Medidas Cautelares Patrimoniais no

Processo Penal. In Vilardi, Celso Sanchez ela t (coord.), Direito Penal Econômico: crimes econômicos e

processo penal. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 177-178.

5

perder de vista, entretanto, o conteúdo deste item teórico preliminar, o qual será

utilizado para avaliar o conteúdo do Substitutivo ao Projeto de Lei nº 2.902/2011

atualmente em discussão.

3. Sobre o âmbito de aplicação da medida de indisponibilidade

Orientando-se pelo princípio da univocidade da norma, de maneira a se

distanciar do regramento da lei processual civil, os estudos prévios à elaboração

do projeto de lei em exame optaram por unificar a nomenclatura das medidas

assecuratórias no processo penal, agregando clareza ao instituto. Assim, foi

cunhado o termo “indisponibilidade”.

Conforme apontado anteriormente, algumas das medidas atualmente

previstas no Código de Processo Penal têm como escopo tornar indisponíveis

valores obtidos licitamente com o fim de assegurar a futura reparação do dano ou

mesmo o pagamento de multa ou custas.

Ocorre que a pesquisa efetuada pela Fundação Getúlio Vargas apontou

argumentos para restringir o uso da medida de indisponibilidade aos bens de

origem ilícita: i) a legislação processual penal não deve ser utilizada para tutelar

interesses particulares; ii) na maioria dos casos não se fixa um valor mínimo para a

reparação, mesmo após a reforma de 2008 (artigo 387, IV do CPP)5; iii) a definição

do valor da indenização é de competência exclusiva da jurisdição civil; iv) nos

casos em que a Fazenda Pública é credora da indenização civil pelo dano, pode se

valer de meios mais eficientes para satisfazer seus créditos, como as execuções

fiscais.

5 Consta da pesquisa realizada pela Fundação Getúlio Vargas: “Mesmo decorrendo de uma imposição

legal – e, portanto, esperado em 100% dos casos, salvo exceções justificadas – o que se verificou é que

apenas 16% dos juízes aplicaram o 387, IV em mais da metade dos casos. E nunca por ignorância da lei.

Quando perguntados dos motivos que levaram à não aplicação do instituto, os juízes indicaram diversos

fundamentos para sua impropriedade no sistema processual penal. Especialmente nos crimes afetos à

Justiça Federal, e que são de maior repercussão econômica, os juízes afirmam não ser necessária a

aplicação do referido dispositivo legal.” Disponível em http://www.justica.gov.br/seus-

direitos/elaboracao-legislativa/pensando-o-direito/publicacoes/anexos/25pensando_direito_relatorio.pdf.,

p. 56. Acesso em 12.09.2015.

6

Sendo assim, embora o anteprojeto inicial tenha tido o objetivo de unificar

as medidas, excluiu do seu âmbito de aplicação dos bens, direitos e valores

licitamente obtidos, de forma que a medida cautelar de indisponibilidade abarcaria

apenas produto ou proveito de crime. Assim, o artigo 131, caput do Projeto

originário apresentado pelo Executivo, em Seção denominada “Do Alcance da

Medida de Indisponibilidade” previa que:

“Art. 131. Estão sujeitos à medida de indisponibilidade os bens, direitos ou

valores sobre os quais pese suspeita de ser produto de crime, ou constituir,

direta ou indiretamente, proveito de crime.”

Esse artigo foi mantido no atual substitutivo, tendo sido apenas alterada

sua numeração. 6 Porém, embora o artigo 132 restrinja o alcance da medida tenha

aos bens, direitos e valores de origem ilícita, na atual versão do Projeto de Lei foi

incluído artigo preliminar conferindo nova função ao instituto, consignada no

artigo 126, in verbis:

“Art. 126. A indisponibilidade poderá ser decretada para garantir o

perdimento dos bens, direitos e valores, a reparação dos danos decorrentes da

infração penal ou para o pagamento de prestação pecuniária, multa e custas.”

(NR)

Observa-se a primeira incoerência: se o artigo 91, II do Código Penal

estabelece o perdimento do produto e do proveito do crime como efeito da

condenação, como a indisponibilidade dos bens, direitos e valores de origem ilícita

poderá viabilizar a reparação do dano ou o pagamento de custas ou multas? Ou,

por um lado, se mantém o regime anterior em que é possível acautelar bens,

direitos e valores de origem lícita no processo penal de modo a resguardar os

efeitos civis da sentença condenatória, ou, por outro, se opta pelo novo sistema

6 Vale apontar que a redação do atual Substitutivo foi alterada e não se refere mais à “suspeita” de ser

produto de crime, mas sim a “prova ou elementos de informação”, com maior tecnicidade. Preceitua o

atual artigo 132: “Estão sujeitos à medida de indisponibilidade os bens, direitos ou valores sobre os quais

haja prova ou elementos de informação suficientes de ser produto de infração penal, ou constituir, direta

ou indiretamente, proveito de crime.”

7

proposto, em que apenas produto e proveito do crime são afetados, limitando-se a

funcionalidade da medida de indisponibilidade a garantir a eficácia da sentença

penal condenatória.

Existe apenas uma possibilidade de integrar artigos e direcionar bens

para garantir a reparação do dano e pagamento de multas com base no Parágrafo

Único do artigo 144-D do Substitutivo atual, que trata do Levantamento de

indisponibilidade e prescreve que, em algumas das hipóteses em que o

levantamento seria autorizado, “se for o caso, o juiz manterá a constrição em bens

suficientes para garantir a reparação de danos decorrentes da conduta objeto do

processo penal.”7

Essas hipóteses dizem respeito a situações em que não há sentença

condenatória (por ter havido absolvição ou extinção da punibilidade) ou por ter

sido provada a licitude dos bens, direitos e valores (pela procedência dos

embargos). Em última instância, portanto, seriam bens lícitos indevidamente

indisponibilizados.

Analisando detalhadamente o texto desse artigo 144-D, depreende-se

outra incoerência do dispositivo legal em virtude do acréscimo inauspicioso do

artigo 126. A redação prevista é a seguinte:

“Art. 144–D. A medida de indisponibilidade será levantada sempre que

ocorrer alguma das seguintes situações:

I – for prestada caução em valor equivalente pelo investigado, indiciado,

acusado ou terceiro;

II – for o processo suspenso na forma do artigo 89 da Lei 9.099, de 26 de

setembro de 1995, depois de reparado o dano;

III – sobrevier sentença ou acórdão absolutório;

IV – for extinta a punibilidade do investigado, indiciado ou acusado;

V – os embargos forem julgados procedentes.”

7 Esta previsão já existia no Projeto de Lei inicialmente encaminhado pelo Poder Executivo, embora

naquele texto não houvesse a indicação da finalidade da medida de indisponibilidade de assegurar efeitos

civis.

8

Esse texto foi originalmente elaborado com vistas a regulamentar a

medida de indisponibilidade unicamente direcionada ao proveito e produto do

crime, de maneira que sempre que houvesse uma sentença absolutória, não

haveria a necessidade de acautelar o efeito penal da sentença condenatória e,

portanto, o levantamento poderia ser efetuado.

No entanto, em um panorama no qual é prevista a possibilidade da

medida de indisponibilidade ser utilizada para efeitos civis, também, não se

poderia autorizar o levantamento em qualquer situação de absolvição. Ainda que o

Parágrafo Único preveja a possibilidade de manutenção da indisponibilidade para

o caso, confere uma ampla margem de atuação ao juiz, o que não se coaduna com o

disposto nos artigos 66, 67 e 386 do Código de Processo Penal. Seria necessário um

regramento mais preciso da hipótese autorizadora da manutenção da

indisponibilidade, vinculando-a com o objeto de alguma ação cível com vistas à

reparação do dano.

Com efeito, referidos preceitos indicam a possibilidade de ajuizamento

de ação cível de reparação de danos nos casos em que não houver sido reconhecida

a inexistência material do fato ou em que não tiver sido comprovado que o réu não

concorreu para a prática da infração. Nas demais hipóteses absolutórias, como

falta de prova para condenação ou o fato não configurar infração penal, é possível

requerer a reparação do dano, de forma que não faria sentido permitir o

levantamento da indisponibilidade caso a garantia do efeito civil seja uma das

funções da medida.

Pode-se imaginar, ainda, uma situação limite na qual o acusado é

condenado e não possui qualquer patrimônio de origem lícita, de forma que a

aplicação do perdimento impossibilitaria a concretização dos efeitos civis da

sentença condenatória, ainda que intentada em juízo próprio.8 Todavia, esta é uma

lacuna que não foi resolvida em nenhum estágio do atual Projeto de Lei, apesar da

previsão do artigo 126.

8 Nesse sentido, acreditamos ser interessante rever o alcance do perdimento do artigo 91 do Código Penal

nos casos em que não houver bens aptos a reparar o dano da vítima. Em tempos de Justiça Penal

Restaurativa, na qual é dada maior ênfase à posição jurídica da vítima e a necessidade de restabelecer seu

9

Note-se, portanto, que o conteúdo do atual Substitutivo do Projeto de Lei

n.º 2902/2011 está permeado de incongruências que devem ser sanadas antes de

sua aprovação. A escolha pela restrição da função da indisponibilidade para

acautelar os efeitos penais da sentença condenatória parece mais consentânea com

a natureza do processo penal e com o ideal de celeridade.

4. Da natureza cautelar da medida de indisponibilidade

Apesar de o Código de Processo Penal não trazer previsão expressa sobre o

tema, como já pontuado no item 2 supra, a doutrina considera o periculum in mora

requisito indispensável para o deferimento de qualquer medida cautelar e não

poderia ser diferente com a medida de indisponibilidade em comento. Trata-se de

corolário da presunção de inocência que emana do texto constitucional.

Assim, tanto no Anteprojeto de Lei elaborado pelos pesquisadores da

Fundação Getúlio Vargas, quanto no Projeto original apresentado pelo Poder

Executivo, havia a expressa previsão do periculum in mora como requisito para a

decretação da medida de indisponibilidade. Prescrevia o texto do Projeto original:

Art. 126. São requisitos para a aplicação da medida de indisponibilidade

de bens, direitos e valores:

I - indícios da proveniência ilícita dos bens, direitos e valores, ressalvada

a hipótese de reparação do dano;

II - prova da materialidade do crime e indícios suficientes de autoria; e

III - indícios de comportamento do detentor ou proprietário dos bens,

direitos ou valores tendente a se desfazer destes ou utilizá-los para a

prática de infração penal.

Todavia, o inciso III foi suprimido do texto atual do Substitutivo sob a

seguinte justificativa do relator:

estado anterior ao crime, é importante prever a possibilidade de direcionar bens, direitos e valores de

origem ilícita para a reparação do dano.

10

Outrossim, apresento novo Substitutivo, visando à supressão do inciso III

do artigo 127 do Substitutivo anterior. É que os incisos I e II já são

suficientes para dotar de proporcionalidade e razoabilidade a aplicação

da medida de indisponibilidade. Exigir no caso concreto “indícios de

comportamento do detentor ou proprietários dos bens, direitos ou

valores, tendentes a se desfazer destes ou utilizá-los para a prática de

infração penal” tornaria excessivamente difícil a caracterização.

Compreenderia prova extremamente difícil de ser produzida,

configurando o que a doutrina chama de “prova diabólica” e

inviabilizando a aplicação da medida.

É dizer que, na prática, será quase impossível provar comportamentos

do proprietário do bem que demonstrem a vontade deste de se desfazer

dos bens. A bem da verdade, quando o requerente puder “provar” tais

comportamentos, muito provavelmente os bens já tenham sido

alienados, tornando impossível a aplicação da medida e causando graves

prejuízos a efetividade da prestação jurisdicional.

(...)

Ora, se o que se pretende é tornar mais efetiva e menos complexa a

análise judicial que concede a medida acautelatória em questão,

desarrazoada é a manutenção no bojo do Substitutivo do previsto em seu

art. 127, inciso III”.

A exclusão foi inauspiciosa. Como medida cautelar que visa garantir o

resultado final do processo, a determinação da indisponibilidade de bens, direitos

e valores só tem razão de ser no caso de haver fundadas suspeitas de que, ao final,

os supostos produtos e proveitos do crime terão desaparecido. Assim, antes de

definir a natureza ilícita desses bens por meio da declaração da sentença

condenatória, o afastamento da plenitude do exercício do direito de propriedade

em conjunto com a presunção de inocência só poderá ser levado a cabo se

estiverem sendo praticados atos que revelem o risco à satisfação do direito.

Portanto, é indispensável que o inciso III seja realocado no Projeto de Lei.

11

5. Outros aspectos relacionados às alterações propostas ao Código de

Processo Penal

Como já pontuado, o projeto de lei em comento visa introduzir alterações

não apenas ao Código de Processo Penal, mas também uma breve modificação no

Código Penal e algumas inserções na Lei n.º 11.343/2006.

Fato é que o estudo que inspirou o anteprojeto inicial foi concentrado na

necessidade de mudanças no sistema de medidas assecuratórias do Código de

Processo Penal, de modo que é salutar segregar sua análise da parcela direcionada

ao outro diploma legal.

Até porque, como se afirmará adiante, é mais razoável ter um sistema

único de medidas cautelares patrimoniais, sendo contraproducente haver

disposições especiais para cada tipo de delito.

Nos itens anteriores destacamos dois aspectos centrais da crítica ao texto

do atual Substitutivo. Todavia, existem diversos artigos que foram excluídos, tanto

do estudo original, quanto do primeiro Projeto apresentado pelo Poder Executivo

(que já era mais sintético). O que se afirma pode ser comprovado pela verificação

da extensão do texto corrente, muito mais enxuto em comparação ao inicial.

Fato é que a elaboração do texto do anteprojeto foi embasada em um

estudo doutrinário e empírico que avaliou as reais necessidades de

regulamentação e estabeleceu os procedimentos necessários para um instituto

constitucional, legal e eficaz. A eliminação de parcelas de seu texto não acarretou

apenas uma falta de coerência dos trechos restantes, mas também eliminou itens

de suma importância para a constitucionalidade e legalidade do futuro diploma

legal.

Contudo, diante da grande extensão do texto inicial do projeto, optamos

por destacar itens fundamentais à configuração de um instituto consoante nosso

ordenamento jurídico e com vistas a produzir um processo mais eficiente, sem os

quais não se pode admitir a aprovação do Projeto de Lei examinado.

12

(i) O primeiro ponto a ser ressaltado é a exclusão de parágrafo sobre a

duração da medida de indisponibilidade, que existia no artigo que estabeleceu os

requisitos para sua decretação.

A definição de um prazo para a duração da medida é de fulcral importância

para alinhá-la com os princípios da presunção de inocência e duração razoável do

processo. O postulado da temporalidade das medidas cautelares em geral já é

conhecido e não pode ser afastado com relação à indisponibilidade de bens,

direitos e valores. Os prazos sugeridos eram bastante razoáveis (180 dias no curso

do inquérito e 360 no curso do processo – §3º do artigo 128 do Anteprojeto

originário) com o objetivo de vincular os juízes que costumam ser

condescendentes com prazos legais exíguos e descolados da realidade. Por fim,

cabe lembrar que a ideia de que as medidas cautelares não podem durar

indefinidamente já se consolidou como posicionamento do Supremo Tribunal

Federal, como apontado pela pesquisa da Fundação Getúlio Vargas, de maneira que

é indispensável sua consolidação no Projeto de Lei.

Outro ponto bastante importante é a supressão de todos os artigos que

regulamentavam as questões atinentes à Cooperação Jurídica Internacional.

Como corolário dessa exclusão, a autoridade central e o Estado requerente

foram retirados do rol de legitimados para requerer a medida. Restou apenas o

dispositivo genérico do artigo 144-F que prevê a possibilidade da medida de

indisponibilidade ser objeto de cooperação jurídica internacional em matéria

penal, sem qualquer regulamentação, o que dificulta sua realização em

consonância com a Constituição, em virtude da previsão de um procedimento ser

um corolário do princípio da legalidade.

A importância de regulamentar a Cooperação Jurídica Internacional para a

efetividade das medidas de indisponibilidade é revelada no seguinte excerto do

relatório produzido pela Fundação Getúlio Vargas:

O processo de globalização jurídica e política do mundo atual demandam

um alto grau de solidariedade internacional, principalmente no que diz

respeito à repressão a crimes de efeitos transnacionais. A expansão da

criminalidade, que ganhou caráter transnacional, foi progressivamente

13

tornando os tradicionais mecanismos de cooperação (carta rogatória,

homologação de sentença estrangeira e extradição) ineficientes. No

âmbito do Direito Penal, em que estão envolvidas questões de ordem

pública e de direitos indisponíveis, um Estado, mesmo sem qualquer tipo

de acordo com outro, deve cumprir pedidos de cooperação jurídica,

garantindo que seu futuro pedido também será cumprido por esse outro

Estado.9

No âmbito da Cooperação Jurídica Internacional viabiliza-se a contratação

de escritórios de advocacia estrangeiros especializados em investigação

patrimonial, o que aumenta significativamente a possibilidade de obtenção de

resultados positivos nos casos de blindagem patrimonial em paraísos fiscais, de

modo que a medida não pode ser ignorada em um Projeto de Lei que tenha como

objetivo fazer valer a lei e determinar a perda de todos os bens, direitos e valores

ilicitamente obtidos no país e enviados a outros países.

(ii) Vale destacar, ainda, que a diminuição da regulamentação do

administrador judicial fez com que fosse excluído o prazo máximo para sua

nomeação, podendo ensejar a criação de “cargos” vitalícios de administradores, o

que não é desejável.

(iii) A normatização da alienação antecipada também foi toda suprimida,

sendo que uma das regras essenciais deixadas de lado foi a possibilidade de o

interessado pedir que a alienação não seja efetivada, mantendo a garantia de outra

forma. Isso porque há vezes em que o levantamento do valor correspondente não

será suficiente para restituir o proprietário do bem ao status quo ante, como

quando o bem tiver grande valor afetivo. Diante da falta de regulamentação do

instituto, o melhor seria suprimir totalmente a possibilidade de alienação

antecipada.

(iv) Com todas as supressões levadas a cabo no decorrer da alteração do

projeto legislativo, acabou sendo excluída a imperiosidade da determinação de

intimação do atingido pela medida de indisponibilidade para se manifestar

9 Disponível em http://www.justica.gov.br/seus-direitos/elaboracao-legislativa/pensando-o-

direito/publicacoes/anexos/25pensando_direito_relatorio.pdf., p. 79. Acesso em 12.09.2015.

14

previamente sobre os aspectos essenciais de sua determinação, ou seja, excluiu-se

o exercício do contraditório prévio à decretação da medida. Do jeito que está posto

no atual Substitutivo, o interessado só poderá se manifestar em sede de embargos,

prejudicando o exercício de seu direito constitucional.

(v) Cabe mencionar a falta de razoabilidade das multas previstas nos

parágrafos 4º e 5º do artigo 133 do atual Substitutivo. A multa poderá ser de até

metade do valor dos bens indisponibilizados se houver modificação do estado de

bens que impeça o cumprimento da medida, sem qualquer fixação de parâmetro.

Não obstante, há uma previsão de aumento da multa em até mil vezes no caso de

descumprimento reiterado da advertência relativa à impossibilidade de

modificação do estado dos bens.

Também seria de suma importância que todos os dispositivos que

tratavam sobre como o perdimento deveria ser efetivado fossem reavivados no

Projeto de Lei, também em respeito ao princípio da legalidade.

A título final, e como alertado no início no item, foram eleitos alguns

pontos fundamentais para análise nesta breve nota, o que não exclui a existência

de outros temas que mereçam maior debate.

Exemplo é a exigência que o inciso II do artigo 125 faz de que a medida de

indisponibilidade deve ser adequada à “gravidade do crime”. A expressão é

demasiadamente ampla e o Projeto não oferece qualquer subsídio que indique

como deve ser interpretada.

Outros pontos que também merecem reflexão mais aprofundada são a

possibilidade do assistente de acusação ter legitimidade para o requerimento da

medida (artigo 130) e a previsão de contrarrazões nos embargos (artigo 141, §3º).

Tudo isso demonstra que o Projeto de lei em apreço não está maduro para

aprovação.

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6. Aspectos relacionados às propostas de alteração da Lei de Drogas (Lei

n. 11.343/06)

Em primeiro lugar, em nome da coerência e unicidade do ordenamento

jurídico, entendemos desnecessárias disposições sobre indisponibilidade na lei em

comento que tratem dos mesmos aspectos abordados no Código de Processo Penal,

devendo ser aplicado o regramento geral e, apenas quando houver necessidade,

devem haver previsões específicas atinentes aos entorpecentes.

Nesse sentido, a nova proposta de redação do artigo 60 da Lei n.

11.343/06 destoa da nova redação do artigo 132 do Substitutivo.

Nesse, a palavra “suspeita” outrora presente no artigo 131, foi substituída

por “prova ou elementos de informação suficientes de ser produto de infração

penal, ou constituir, direta ou indiretamente, proveito de crime”, conferindo-se

maior segurança quanto ao stardard probatório exigido para o deferimento da

medida de indisponibilidade. Assim, no caso de vingar a regulamentação

específica, a redação do artigo 60 da Lei n. 11.343/06 deve ser harmonizada com o

artigo 132 do Código de Processo Penal, precisando a carga probatória exigida

para a indisponibilidade em comento.

Além disso, causa estranheza a possibilidade de alienação no prazo máximo

de trinta dias dos meios de transporte e utensílios apreendidos que tenham

supostamente sido usados para a prática do crime de tráfico ilícito de

entorpecentes. Como corolário do princípio da presunção de inocência, seria

indispensável a existência de uma sentença condenatória acerca da existência do

crime para que os instrumentos utilizados na sua prática pudessem ser alienados

como forma de perdimento. Outro não é o mandamento do artigo 91, II do Código

Penal. Se a ideia era permitir a alienação antecipada, o texto legal deveria ter sido

mais explícito, mas não parece ser o caso, já que esse instituto vem previsto no

artigo 61-A.

16

Por fim, cumpre criticar a inserção dos artigos 63-A, que condiciona os

pedidos de restituição ao comparecimento pessoal do acusado, exigência

demasiadamente rígida inspirada no artigo 366 do CPP.10

Considerações Finais

As breves considerações aqui tecidas tiveram o escopo de demonstrar as

incoerências resultantes das reiteradas alterações promovidas no texto do

Anteprojeto originalmente apresentado com inspiração em um estudo acadêmico

sério patrocinado pelo próprio Ministério da Justiça.

O regramento unificado da medida de indisponibilidade pode contribuir

para a coerência do sistema processual penal em seu aspecto patrimonial, desde

que observados os pilares da cautelaridade, bem como que haja uma coerência

sistêmica concernente ao seu âmbito de aplicação, inicialmente restrito aos bens,

direitos e valores ilicitamente obtidos. O IBCCRIM, em suma, e diante de tudo o que

se expôs, entende que o Substitutivo apresentado não está em consonância com os

princípios destacados como essenciais no âmbito de aplicação da medida de

indisponibilidade de bens e deve sofrer profunda revisão antes de passar a

integrar o ordenamento jurídico brasileiro.

São Paulo, 18 de novembro de 2015.

Andre Pires de Andrade Kehdi

(Presidente do IBCCrim)

10 Sobre o artigo 63-B, entendemos ser necessário maior debate, pois pode ensejar uma indevida inversão

do ônus da prova.

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Renato Stanziola Vieira

(Diretor do Departamento de Projetos Legislativos do IBCCrim)

Fernanda Regina Vilares

(Departamento de Projetos Legislativos do IBCCrim)

Daniel Zaclis

(Departamento de Projetos Legislativos do IBCCrim)