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O Humano Monumento o Urbanismo Unitário deriva pelo centro de Florianópolis Maria Cecília de Miranda N. Coelho Graduada em Matemática e Filosofia (UnB), mestre em Filosofia e doutora em Letras Clássicas (USP). Prof. de Filosofia (Epistemologia) do curso de Geografia no Centro de Ciências da Educação da Universidade do Estado de Santa Catarina – CCE/UDESC [email protected] Aline Fernanda Czarnobai Graduanda em Geografia na Universidade do Estado de Santa Catarina – UDESC [email protected] Renata Rogowski Pozzo Graduanda em Geografia na Universidade do Estado de Santa Catarina – UDESC [email protected] RESUMO Em saída de campo em Florianópolis (SC), a fim de fazer uma observação de estátuas presentes na cidade, foi utilizado um “método” proposto pela psicogeografia, que busca estudar os efeitos do meio geográfico e sua ação direta sobre o comportamento afetivo dos indivíduos, bem como reinterpretar o tempo e o lugar ocupado pelos monumentos, percebidos como um obstáculo na paisagem, não como um “lugar de memória” ou uma obra artística, mas sim, uma forma muda, que toma sentido no jogo que se procede a cada momento da interação homem e meio – procedimento este denominado deriva. A partir de nossa pesquisa, vimos que as estátuas (ícones de um passado de personagens políticos locais, escritores e artistas e outros nomes da história catarinense) representam uma tentativa de dominatio memoriae, ou seja, de destruir ou construir determinada memória na vida cotidiana – com intenção de referenciar um ideal político. Assim, propomos analisar este quadro, à luz do “Urbanismo Unitário” – sua crítica ao próprio urbanismo funcionalista –, visando a construção integral de um ambiente em ligação dinâmica com as experiências de comportamento, ideal este propagado pela Internacional Situacionista (criada em 1957 e que, dentre outras coisas tentou integrar questões de arte, política e urbanismo). Investigaremos as bases epistemológicas dessa proposta, mais conhecidas por meio das concepções de Guy Debord, Gilles Ivain, a saber, da crítica à construção de uma sociedade do espetáculo, bem como sugestão de novas formas de monumento e de outra utilização do espaço e das “obras” edificadas. Departamento de Geociências Laboratório de Pesquisas Urbanas e Regionais Simpósio Nacional sobre Geografia, Percepção e Cognição do Meio Ambiente HOMENAGEANDO LÍVIA DE OLIVEIRA |Londrina 2005|

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O Humano Monumento o Urbanismo Unitário

deriva pelo centro de Florianópolis

Maria Cecília de Miranda N. CoelhoGraduada em Matemática e Filosofia (UnB), mestre em Filosofia e doutora em Letras Clássicas (USP). Prof.de Filosofia (Epistemologia) do curso de Geografia no Centro de Ciências da Educação da Universidade do

Estado de Santa Catarina – CCE/[email protected]

Aline Fernanda CzarnobaiGraduanda em Geografia na Universidade do Estado de Santa Catarina – UDESC

[email protected]

Renata Rogowski PozzoGraduanda em Geografia na Universidade do Estado de Santa Catarina – UDESC

[email protected]

RESUMO

Em saída de campo em Florianópolis (SC), a fim de fazer uma observação de estátuas presentes na cidade,foi utilizado um “método” proposto pela psicogeografia, que busca estudar os efeitos do meio geográfico esua ação direta sobre o comportamento afetivo dos indivíduos, bem como reinterpretar o tempo e o lugarocupado pelos monumentos, percebidos como um obstáculo na paisagem, não como um “lugar dememória” ou uma obra artística, mas sim, uma forma muda, que toma sentido no jogo que se procede acada momento da interação homem e meio – procedimento este denominado deriva. A partir de nossapesquisa, vimos que as estátuas (ícones de um passado de personagens políticos locais, escritores e artistase outros nomes da história catarinense) representam uma tentativa de dominatio memoriae, ou seja, dedestruir ou construir determinada memória na vida cotidiana – com intenção de referenciar um idealpolítico. Assim, propomos analisar este quadro, à luz do “Urbanismo Unitário” – sua crítica ao própriourbanismo funcionalista –, visando a construção integral de um ambiente em ligação dinâmica com asexperiências de comportamento, ideal este propagado pela Internacional Situacionista (criada em 1957 eque, dentre outras coisas tentou integrar questões de arte, política e urbanismo). Investigaremos as basesepistemológicas dessa proposta, mais conhecidas por meio das concepções de Guy Debord, Gilles Ivain, asaber, da crítica à construção de uma sociedade do espetáculo, bem como sugestão de novas formas demonumento e de outra utilização do espaço e das “obras” edificadas.

Departamento de GeociênciasLaboratório de Pesquisas Urbanas e Regionais

Simpósio Nacional sobre Geografia, Percepção e Cognição do Meio AmbienteHOMENAGEANDO LÍVIA DE OLIVEIRA |Londrina 2005|

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INTRODUÇÃO

Imagine. Tente lembrar das estátuas de sua cidade. Onde estão, quem e o querepresentam? Um vazio provavelmente surgirá neste momento em sua memória.Percebemos uma ausência de lembranças e significados acerca destes monumentosurbanos que, apesar de erguidos para serem admirados, encontram-se cheios deinvisibilidade. Com um valor estético não muito superior ao de um poste de iluminaçãopública, estas imagens envelhecidas se apresentam para os cidadãos como um obstáculona paisagem sem possibilidade de reconhecimento ou identificação.

A partir desta percepção buscamos um reconhecimento psicogeográfico para asestátuas presentes no centro da cidade de Florianópolis (SC), ou seja, traçar umaGeografia Afetiva, como forma de conhecimento e ação sobre as cidades, a fim de obternovas interpretações do espaço público ocupado por esses humanos monumentos. Apartir da Geografia Cultural, que estuda as representações culturais no espaço,aproximamos ciência e arte para enriquecer as pesquisas na área de Geografia Urbana,fundamental para compreender a problemática urbana nas nossas cidades. Acerca dequestões sobre a representatividade dos monumentos, buscamos inspiração teórica nasteorias situacionistas, pois estas nos parecem suficientemente flexíveis para acompanharos dinamismos da sociedade.

A psicogeografia propõe cartografar as ambiências psíquicas que emergemdurante a perambulação citadina. Não se limita apenas ao estudo das formas existentes,pensando também na criação de novas situações. Também a Geografia da Percepção,tão pouco estudada no meio acadêmico, pode contribuir como um novo modo deencarar as questões urbanas. O meio urbano é percebido de forma diferente pelosindivíduos que nele vivem e as impressões que estes têm do espaço vivido sãoimportantes para compreender a cidade como um lugar de representações simbólicas.Nesse contexto, as idéias e práticas situacionistas podem ser retomadas nos estudosgeográficos do meio urbano.

A cidade, através de seus monumentos, não conta sua história, mas torna-se ummuseu de alegorias moldadas pelo poder político e ausentes do imaginário coletivo ondeo público e o privado convivem no mesmo espaço. Os monumentos impõem ideaisestéticos e políticos que tentam penetrar no cotidiano e transformam o espaço público emum espaço de propriedade privada do Estado. Percebe-se que as estátuas, como íconesde um passado de personagens políticos locais não presentes na memória coletiva, nãoocupam um “lugar de memória”. Assim, não responde ao seu propósito inicial – construirdeterminada memória na vida cotidiana com intenção de referenciar um determinadoideal político. Os transeuntes não percebem, estão desatentos à existência dessesmonumentos e não mantêm relações afetivas com eles. O espaço ocupado pelas estátuaspode ser identificado como um lugar vazio, sem histórias e com significados queperderam o sentido com o passar do tempo e a renovação da população. Cabe, então,questionar o “lugar” ocupado por essas formas mudas e propor novas formas deutilização desses locais de não – memória.

O interesse sobre os monumentos nasceu da preocupação em relação à utilizaçãodos espaços públicos em Florianópolis. O centro da cidade é um local que vem perdendo

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progressivamente seu valor de uso qualitativo e tornando-se meramente um palco para oespetáculo do consumo, a exemplo do centro histórico que serve atualmente comoespaço de comércio ou ponto turístico. As relações cotidianas de confraternização que aspessoas mantinham nas praças e outros lugares públicos centrais vão se deslocando paraespaços privados, de comércio, sendo sempre intermediadas pelo consumo.

As estátuas são um desses espaços funcionalmente e, mais freqüente, afetivamenteinativos da região central, com possibilidades de novas funções e comunicações.Pensando o tema preservação/destruição sob novas perspectivas, encontramos nas idéiassituacionistas métodos e práticas para melhor compreender e interagir com essesmonumentos, a fim de criar novas situações para o cotidiano tumultuado dos centrosurbanos onde os indivíduos tentam acompanhar a rapidez dos automóveis.

UMA DERIVA PELA INTERNACIONAL SITUACIONISTA

Surge na Europa em 1957 a Internacional Situacionista (IS), um movimento deteoria e prática revolucionárias, a partir da dissolução de grupos que contestavam o novomeio cultural e político capitalista modernista pós-guerra: o primeiro InternacionalLetrista, seguido pelo Movimento Internacional por uma Bauhaus Imaginista (MIBI),movimento Cobra (uma referência as capitais Copenhague, Bruxelas e Amsterdã) e aAssociação Psicogeográfica de Londres (APL).

A Internacional Letrista (IL), fundada em uma mesa de bar em Aubervilliers-Françapor Guy Debord - posteriormente principal membro da IS, publicou as revistasInternacionalle Lettriste e Potlach de 1952 até 1957. O nome do grupo vem porinfluência do Dadaísmo – movimento antiartístico e iconoclasta surgido em 1916, o qualo qual expressou em vários manifestos o descontentamento com uma sociedadeadormecida durante o pós-guerra. Marcel Duchamp lança o Ready Made, quetransforma um mictório ou um roda de bicicleta em esculturas.

O projeto dos letristas de superação da arte buscava unir pintura e música àpoesia, propunha a redução da palavra ao seu elemento final, a letra – processo dedestruição da linguagem iniciado pelo dadaísmo, que poderia ser usada em colagens oucomo elemento sonoro para declamações. Buscava-se viver no cotidiano as conquistasda poesia moderna. Em 1946, com a publicação “A Vida Cotidiana no MundoModerno” por Henry Lefebvre, filósofo marxista e sociólogo, surgem novas idéias queseriam fundamentais para as teses situacionistas, estendendo sua crítica a todo meiosócio-econômico e cultural.

Paris, 1948. Asger Jorn, Christian Dotremont e Nievwenhuis Constant sãoresponsáveis pela criação do COBRA, uma referência aos nomes das capitais dos paísesde origem de cada membro, respectivamente Copenhague, Bruxelas e Amsterdã. Apesarde muito influenciados pelo surrealismo, criavam uma espécie de arte expressionista.

Com base no trabalho coletivo dos artistas, promoviam o intercâmbio entre arte eciência através da Arte Nuclear, a qual se opunha à abstração geométrica acadêmica ebuscavam recriar a pintura a partir de um diálogo com a física atômica.

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Jorn, em 1953, anuncia a formação de outro grupo: o Movimento Internacionalpor uma Bauhaus Imaginista (MIBI). Composto principalmente por pintores e arquitetos,publicaram a revista Eristica em 1956, uma crítica à arquitetura funcionalista meramentecomercial e esteticamente nula, a qual teve apenas uma edição. A arquitetura seria ummodo de transformar a vida cotidiana e a cidade era vista como um cenárioacompanhando o fluxo dos desejos e paixões dos citadinos. Foi um dos grupos maisativos da época, promoveram várias exposições de arte experimental, onde o universoartístico estava em ligação com o científico. Em 1956, o MIBI funde-se à InternacionalLetrista devido aos interesses em comum de ambos e de compartilharem idéiassemelhantes no âmbito da arquitetura e do urbanismo.

A Associação Psicogeográfica de Londres (APL), fundada por Ralph Rumney,parece ter sido criada a principio para enaltecer a conferência de fundação da IS, já queesta ainda não contaria com membros ingleses. Recentemente, no ano de 1992, elaretorna com pesquisas sobre simbolismo arquitetônico e críticas políticas a GeografiaUrbana.

A partir de um encontro na Itália destes grupos europeus que possuiam idéiassemelhantes sobre arte, política e urbanismo promovido pelo MIBI, é fundada em 1957por Debord a Internacional Situacionista, que passou a ter adeptos de vários países. Logoapós sua fundação publica a revista Internattionale Situacioniste, que tratava inicialmentesobre arte, passando a se concentrar posteriormente em questões políticas e nourbanismo, sempre subvertendo estes conceitos. A IS, surge em uma época detransformações sociais profundas, de revoluções no cotidiano provocadas, por exemplo,pelo surgimento do aparelho de televisão dos primeiros conjuntos habitacionais.

Dois importantes escritos situacionistas sobre a cidade são “Introdução a umacrítica da Geografia Urbana” (1955) de Guy Debord e “Formulário para um novoUrbanismo” (1958) de Gilles Ivain, que tratam as cidades como locais para novas visõesde tempo e espaço. Como principais heranças teóricas, os situacionistas deixam “A artede viver para as novas gerações” de Raoul Vaneigem, uma análise dos instrumentos decontrole da civilização e as maneiras de manifestação contra estes; e a “Sociedade doEspetáculo” de Guy Debord, onde encontramos uma crítica da sociedade de consumo eda pobreza da vida cotidiana, do metrô-trabalho-descanso, que se apresenta apenascomo imagens para ser assistida passivamente por nós, indivíduos espectadores. Ambosserviram de inspiração para a prática revolucionária que eclodiu na França em maio de1968.

Após o fortalecimento da IS em 1968 com os movimentos estudantis, esta passa adecair como organização até de dissolver completamente em 1972.

A CIDADE - PSICOGEOGRAFIA E OUTRAS SITUAÇÕES

Os situacionistas apontavam o Urbanismo, o Amor e a Economia Política como osprincipais meios para solucionar os problemas da sociedade. Neste projeto surge um dosprimeiros conceitos situacionistas: o Urbanismo Unitário (UU), sendo este a própria críticaao urbanismo, definido como “teoria do emprego conjunto de artes e técnicas que

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concorrem para a construção integral de um ambiente em ligação dinâmica comexperiências de comportamento” (IS nº 1,1958 in JACQUES, 2003). Dessa maneira, avida integral, com espaço para outras preocupações não somente materiais seriamrealizáveis no âmbito de um urbanismo que acompanhe a realidade rompendo com asteorias funcionalistas e com as hierarquias arquitetônicas urbanas.

Segundo Vaneigem citado por Jacques (2003), “o desenvolvimento do meiourbano é a educação capitalista do espaço”, pois o espaço é, em última análise,desenhado conforme as exigências da produção. O espaço, mesmo tendo umaautonomia relativa a sua forma, não a tem quanto as suas funções, que são atribuídaspelo modo de produção capitalista e acabam por exigir sempre novas formas imediatas.Assim sendo, além de uma crítica ao urbanismo, o UU é também uma crítica ao sistemasócio-econômico-cultural da época, um ataque ao consumo e a miséria da vidacotidiana e contesta as maneiras de utilização das formas arquitetônicas pelos indivíduospropondo novas utilizações que proporcionem melhores vivências. Busca a superação dasformas atuais da arquitetura urbana para criação de um ambiente apaixonante, móvel eque possibilitasse novas situações que rompam com o tédio do cotidiano. É Unitário,porque liga ciências e artes em suas práticas, levando a uma construção integral doambiente e a uma comunicação entre o comportamento humano em relação com oespaço. Constant trabalhou no primeiro projeto de arquitetura móvel de U.U., queconsistia em um modelo para uma nova civilização baseado em propriedade comum,mobilidade e na variação de ambientes unitários.

Como principal atividade proposta para construção de espaços lúdicos do projetode Urbanismo Unitário que renova as formas antigas e as reinventa, os situacionistaspraticavam o jogo de situações através de intervenções coletivas no espaço público. Asituação é espaciotemporal, pois busca sempre o encontro entre um momento e um lugarpara produzir espaços participativos, obedecendo aos desejos e paixões que surgem e setransformam.

Com objetivo de traçar mapas cognitivos da cidade, a IS pensou um método dereconhecimentos do espaço, o qual chamou de Psicogeografia, uma espécie deGeografia Afetiva, definida como “estudo dos efeitos exatos do meio geográfico,conscientemente planejado ou não, que agem diretamente sobre o comportamentoafetivo dos indivíduos”. Como prática experimental visando o conhecimento do ambiente,utiliza-se de uma ação, que consiste em andar sem rumo pela cidade a fim de criarsituações em diversos lugares. Essa ação é denominada deriva e também pode serenriquecida por recursos teóricos como fotografias, gráficos, mapas etc. A psicogeografiatorna-se, assim, uma forma de conhecimento e ação sobre as cidades. Interpreta,sobretudo os espaços públicos, buscando formas de desvio arquitetônico que ativem estesespaços. O Urbanismo Unitário não aceita a fixação das cidades no tempo, logo, estedesvio - detournement - consiste em subverter o sentido original da construção, deformá-la, oferecendo a esta um significado novo que acompanha os momentos da vida. Odetournement situacionista pode ser comparado à subversão dadaísta de famosas obrasde arte, como a “Monalisa de Bigodes” de Marcel Duchamp.

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O HUMANO MONUMENTO

“O tédio, fruto da morna incuriosidade,assume as proporções da própria eternidade.- Agora não és mais, pobre matéria viva, que um granito de que vago susto deriva,Dormindo num Saara o seu sono profundo!Esfinge milenar ignorada do mundo, esquecida no mapa, e cujo estranho humor,sabe apenas cantar aos raios do sol-pôr.Charles Baudelaire

Como a análise do espaço está inserida no contexto sócio-histórico e político, oUrbanismo pode traçar a história da cidade através do espaço. Através dos monumentosde uma cidade – casas, pontes, estátuas ou até a própria cidade – podemos perceber ojogo de funções sócio-econômicas impresso numa paisagem. O monumento poderepresentar a cidade ou o país para o mundo, como um cartão-postal. Impossível nãopensar em Paris quando vemos a torre Eiffel, no Egito, quando vemos as pirâmides ou noRio de Janeiro quando vemos o Cristo Redentor. As estátuas oficiais, monumento queenfocamos neste estudo, expressam principalmente questões políticas.

Estátua. Algo aparentemente simples, escultura de bronze ou de uma rochaqualquer, este humano monumento está dotado de sutilezas ideológicas. A palavramonumento vem do latim monere (advertir, lembrar), portanto, é uma edificação que visatocar a memória viva de um povo – apesar da maioria representar um passado que nãovivemos. Invenção do mundo ocidental, há tempos os monumentos são erguidos parafundamentar a identidade e conservar as idéias de determinada comunidade. Imprimemvalores em imagens em imagens que tentam ser convincentes ao olhar dos indivíduos.Estes valores, que podem ser educativos (de caráter nacional, cognitivo, de reverênciaetc), econômicos, históricos ou artísticos, correspondem aos interesses de um grupo quedetém o poder.

Na Roma Antiga os monumentos eram erguidos em períodos de transição entreimperadores, para minimizar a idéia de mudança e expressar a inexistência de riscosentre o passado e o futuro. Aqui encontramos os primórdios de nossa “organização daaparência”, onde a arquitetura, como sugere Richard Sennett (2003) em sua análisequanto às relações entre carne e pedra na Roma de Adriano, educa-nos no sentido do“olhar-crença-obediência”. Nesta, os monumentos eram educadores do olhar, suaaparência convencia o observador dos valores do império e levavam este a obedecer àsleis da ordem e da moral definidas pelo imperador. Crer no que se vê, é crer nasaparências, e quem tem o poder de organizar a paisagem, neste caso o imperador, usaesta como base material, sólida e segura para seus domínios.

No Brasil, a exemplo de Roma, na oportunidade da passagem do Império paraRepública foram erguidos muitos monumentos com a intenção de passar a idéia desegurança quanto ao novo sistema político para a população. Essa alteração políticatambém provocou a retirada de muitos monumentos que já não eram significativos paraos novos valores. A simbologia do herói republicano participou da implantação doregime e foi manipulada na tentativa de criar um imaginário popular republicano. Sobre

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um pedestal, sempre mais alto do que quem os observa, com postura e olhar altivos,esses “grandes homens” tentam perpetuar uma imagem de si e de seus valores para associedades futuras.

Símbolos de uma falsa imortalidade, as estátuas são construídas para cultuar atospolíticos, mas pouco se conhece sobre os feitos destes fantasmas com quem esbarramospelas ruas. Por não serem uma criação coletiva, não estão presentes no imagináriosocial. Apresentam significados imperceptíveis para os cidadãos e que por isso não sãoapropriados pela sociedade. Os lugares ocupados pelos monumentos são privilegiadospara o poder, não para a memória, o que torna questionável o caráter público destesespaços. O público é ocupado pelo poder que se dissolve no espaço. Ao contrário desua concepção inicial como lugar de memória, acabam constituindo um não-lugar, umlugar vazio, já que não evocam reações e não mantém relações afetivas com osindivíduos.

A identidade dos monumentos geralmente não representa a coletividade, poissegue as normas da classe dominante e não as manifestações da culturapopular.Vagando pela Florianópolis não encontramos estátuas de pescadores ou depersonagens míticos, como as feiticeiras e bruxas, tão presentes no imaginário dapopulação desta cidade. Estas somente estão presentes nas entradas de grandes edifícios,em decorrência de uma lei municipal que privilegia com alguns metros a mais de áreaconstruída quem colocar uma obra artístico-paisagística na fachada da construção.

Como se apresentam atualmente, as estátuas funcionam como uma alegoriapublicitária para um modelo de conduta social, representam uma coisa para dizer outrastantas. Fixam a cidade num tempo passado, imprimindo nesta as definições de homemde uma geração que já não servem para a geração seguinte, pois o presente se modificaa cada instante.

Para Pierre Nora in Souza, “monumento é um momento arrancado do movimentoda história”. Personagens locais da classe dominante são extraídos da história edepositados em praças em forma de monumentos, sem contextualização, reflexão ousocialização sobre o período histórico do qual são simulacro. A partir desse deslocamentodo tempo histórico para um espaço geográfico limitado, desta petrificação que aprisionaa história num tempo diferente de seu original, o momento acaba perdendo seu“verdadeiro” sentido, como se, tornando-se histórico perdesse sua historicidade. Nada éimune à dialética da história da recordação e da amnésia. O monumento não cumpresua função histórica porque sua concepção de história é ultrapassada. Já superamos aidéia de que a história é feita por nomes e datas. Choay (2001) aponta que omonumento, na tentativa de impor a história, como memória artificial e construçãoconceitual do tempo, torna-se um obstáculo a nossa memória orgânica.

A partir da Revolução Industrial, outros valores dos monumentos foramprivilegiados, como os estéticos. Contudo, as revoluções artísticas também não foramacompanhadas pela estética monumental, afinal, as estátuas oficiais não sãoconsideradas obras de arte, pois não são construídas com fins artísticos, o que torna suafreqüente denominação como arte-pública questionável. Seu valor estético perante oespaço urbano é inexistente pelo fato das mesmas não se inserirem no modelo

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arquitetônico contemporâneo, apesar deste também ser contestável. Segundo CamilloSitte in Choay, “o mundo é modelado pelo progresso técnico com funções entre as quaiso prazer estético parece não ter mais lugar”.

É questionável também a atribuição de um valor exclusivamente histórico, artístico,político ou antropológico a algo que tem valores tão homogeneizados e relativos. Pode-se falar apenas de uma intenção de valor dominante. Entretanto, com toda a decadênciada noção de monumento como um velho símbolo de herói, na sociedade contemporâneaoutras representações o substituíram com êxito. Podemos considerar os outdoorspublicitários como os monumentos da modernidade, a calçada da fama de Hollywoodcomo a homenagem aos novos heróis: os heróis da mídia.

Permeando as discussões sobre a questão da lembrança/esquecimento, estão asdiscussões quanto à preservação/destruição das estátuas. Já que as mesmas não têmrepresentatividade memorial, não ameaçam a liberdade de nossas lembranças. Por isso,a destruição não representaria nenhum rompimento com o passado. Pelo contrário, aoremover uma estátua, corre-se o risco da percepção da presença desta pela suaausência. Para Freire (1997) o que faz surgir uma impressão indefinível, uma ausênciamaterial, mas presença sensível que pode até lhe conferir reverência. Percebemos queexiste, de um lado, um conservadorismo reacionário que acredita que a edificação aindamantém representatividade e, de outro, um vandalismo ideológico que, em épocas deagitação social, para destruir o que a estátua e o que supostamente representa, precisatambém admitir que esta representatividade realmente existe.

Atualmente, tanto os monumentos quanto os centros históricos em geral, sãousados de maneira espetacular, como atrativo turístico. Em Florianópolis temos oexemplo de como os monumentos não foram capazes de contrariar a lógica docapitalismo, quando a estátua de Dias Velho, fundador da vila de Desterro, foi deslocadapara pavimentação das vias expressas da Beira Mar Norte. Em contraponto, em direçãoao sul da ilha, um aterro gigantesco foi necessário para que as mesmas auto-estradasnão passassem por cima do centro histórico, tão importante para o turismo da capital. Oprocesso de patrimonialização dos edifícios vai formando espaços inativos, cidades-museu. O único motivo para conservação de uma edificação de valor é a presença depossibilidade de novos significados. Neste ponto, incluímos a proposta da InternacionalSituacionista de detournement, no âmbito do Urbanismo Unitário. Subverter o sentidooriginal da estátua é dar-lhe sentidos novos, que acompanhe a dinâmica e amanifestação dos desejos da população, articulando tempo e espaço na arquiteturaurbana. Uma forma de utilização situacionista das estátuas seria integrá-las à arte noambiente urbano, atingindo dentro de um espaço unitário, uma arte integral. Uma arteque revele o cotidiano urbano e transforme o espaço construído numa usina para oimaginário coletivo, num espaço onde o habitante e cidade, numa soma indissociável,tornem-se a própria cidade. Por que não, no carnaval, vestirmos todas as estátuasbrasileiras de Carmem Miranda? Ou desviar as inscrições de suas placas, ou formarmosum jardim de estátuas verdes na beira do mar? Este movimento no espaço cria umambiente participativo, apaixonante e aberto às vontades coletivas. Assim, existeinfluência do espaço no comportamento humana ao mesmo tempo em que se projetamas relações humanas neste local.

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Diminuindo o número de espaços nulos na cidade, ampliariam-se suaspossibilidades provocativas e diminuindo também os momentos nulos em nossas vidas. Anão fixação das cidades no tempo implica não fixação das pessoas em lugaresdeterminados, e isso pressupõe a ativação de certos espaços públicos. Um espaço não seresume a sua forma. Uma construção de estilo clássico pode se transformar em umespaço futurista se as situações que ali ocorrem assim se apresentarem. Assim, nãopodemos confundir a dinâmica de nossas paixões com a dinâmica do sistema econômicocapitalista. O capitalismo exige edifícios cada vez mais modernos, polidos, frios, sematrito com as pessoas que ali convivem. Enquanto o capital exige novas construções,nossos cotidianos exigem novas situações. Não se trata apenas das formas em si, masdas formas de utilização destas.

Uma situação, como entendida pelos situs, também pode ser um monumento, naforma de intervenção urbana. Um monumento que dura o tempo que lhe for possívelsignificar algo. A situação-monumento celebra e reverencia apenas a liberdade daexpressão do desejo humano.

O JOGO PSICOGEOGRÁFICO

Deambulando pelo centro de Florianópolis em busca de estátuas, nossos olharesesbarraram em desinformações. Estátuas fúnebres com garrafas de aguardente em suasmãos, estátuas maquiladas – borradas com batom, outras com bolores, colônias defungos, teias de aranha ou com pombos numa relação de inquilinismo. Antes da deriva,fizemos um estudo a partir de observações pela cidade a fim de memorizar as imagens,traçamos um mapa (em anexo) com algumas localizações de monumentos e tambémbuscamos conhecer sobre sua história. Mesmo com todas estas informações preliminares,a localização dos monumentos foi uma tarefa difícil. O dia ensolarado da derivaofuscava até mesmo nosso objeto de investigação, envolto por uma neblina, realmenteparecia invisível ao nosso olhar e das pessoas que mantinham atividades próximas. Aoquestionar estas pessoas sobre o monumento, obtínhamos respostas como “leia aplaqueta”, “trabalho aqui e nunca tive curiosidade pela estátua”, “esse boneco? Osmoleques sempre colocam garrafas embaixo do braço”. As estátuas estão localizadas emregiões privilegiadas do centro onde há um grande fluxo de pessoas que sequer desviamseu olhar para os pobres monumentos.

Para Lê Goff (1990), desde a antiguidade o monumentum tende a especializar-seem dois sentidos. Pode ser uma obra comemorativa de arquitetura ou escultura, como,por exemplo, a Ponte Hercílio Luz ou um cenotáfio, monumento funerário destinado aperpetuação da memória de uma pessoa, como o Monumento da Campanha doParaguai , localizado na Praça XV, de janeiro de 1876, em homenagem a militarescatarinenses mortos na Guerra do Paraguai.

As estátuas são encontradas na forma de herma ou bustos. Bustum, do latim, é olocal onde é queimado e sepultado um defunto, monumento fúnebre. Herma tem suaorigem na representação de Hermes, mensageiro de deus. Busto é parte do corpo dacintura para cima; torso, enquanto a herma é constituída pela cabeça, pescoço e partedo tronco.

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Encontramos na Praça Getúlio Vargas o Gen. Antonio Vicente Bulcão Vianna,médico, Deputado Estadual e Presidente do Congresso de Santa Catarina na década de30, hoje com uma garrafa nas mãos, provavelmente “arte” de um transeunte e a frase“Perene gratidão do povo de Santa Catarina” numa placa próxima a seus pés. Escondidoentre as árvores encontra-se o comerciante Carl Hoepcke, com uma parte do seu tóraxem estado de decomposição. Uma surpresa nos esperava, Anita Garibaldi dentro de umparquinho infantil olhando em direção a Rua Visconde de Ouro Preto, rua paralela àpraça Getúlio Vargas. O parquinho chama-se “Dona Tilina”, nome da primeira dama doGen.Vieira Rosa, e foi inaugurado em 1999. A heroína dos dois mundos esta entre osbalanços e quase transparente para as crianças que correm e brincam no parque. Nooutro lado da rua observamos uma estátua – Comendador Feliciano Nunes Pires,fundador da polícia militar em Florianópolis – que ilustra a entrada do Corpo deBombeiros Central de Florianópolis. A única referencia ao nome praça é encontradanuma placa de ferro e bronze com textos da carta-testamento do ex-presidente GetúlioVargas, na parede de um dos primeiros quiosques da ilha de Santa Catarina.

Caminhando em direção ao mar, chegamos a Praça Lauro Müller, localatualmente freqüentado por casais e possivelmente um espaço topofílico, termo esteproposto por Yi-fu Tuan (1974) que designa uma relação harmoniosa entre as pessoas eo ambiente. A Praça onde sobrevive o monumento Lauro Severiano Müller foirecentemente “adotada” por um grande hotel – a apropriação de espaços públicos porentidades privadas e a conseqüente desapropriação para a população em Florianópolis éuma tendência perceptível no centro assim como em áreas de praias diminuindo aindamais os espaços de lazer.A modificação de suas características arquitetônicas epaisagísticas, assim como a presença de seguranças permitiu o afastamento demendigos, bêbados e outros freqüentadores do lugar. Estátua e a inscrição: “Honrou asua terra e a pacificou Dignificou / a sua gente e a serviu” ilustram o espaço de lazer paraos hospedes do Hotel.

Nossa próxima parada foi a visitar ao ex-governador Celso Ramos, nessa praça,homônima ao monumento, também se encontra uma Estação Elevatória de Esgoto,construída no inicio do século XX, que forma o primeiro sistema de esgoto deFlorianópolis, restaurada em 2001.

Chegamos a Praça XV de Novembro, cartão postal, primeira e principal praça deFlorianópolis, com os olhos atentos em buscas das estátuas. Uma ciranda delas compostapelo poeta Cruz e Souza simbolizado numa herma com data de 1919; Jerônimo Coelhoe a lápide “O Fundados da Imprensa Catharinense – os seus conterrâneos”; herma deJosé Artur Boiteux e um busto do pintor Victor Meirelles estão entre os jardins na praça.No centro, grande cenotáfio em homenagem aos militares catarinenses mortos na Guerrado Paraguai de janeiro de 1976, complementa paisagem. A Praça XV é, sem dúvida, umdos espaços mais populares da Ilha de Santa Catarina que, desde sua fundação, tomou-a como eixo principal para expansão. Já teve muitos nomes, exerceu função de mercado,ponto, comércio e lazer e nem sempre a famosa figueira que hoje está em seu centrohabitou-a, mas é o marco inicial do povoado da Vila de Desterro.

Em frente a Praça XV, está a praça Fernando Machado. Uma praça diferente, semjardins ou bancos, habitada por artesãos e diversos ambulantes. Todos estes se

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organizam em torno da estátua, que talvez seja a mais opulenta do município: a estátuado próprio General Fernando Machado, com possivelmente mais de 4 metros de altura.

Próxima a Assembléia Legislativa, encontra-se a praça Tancredo Neves, já emlocal aterrado e planejado pelo arquiteto Burle Marx e na praça Tancredo Neves,encontramos somente a estátua de Nereu Ramos, em homenagem ao centenário de seunascimento realizada academia catarinense de letras, pois Nereu foi o acadêmicofundador de sua cadeira n.22.

Olhando para mais um monumento cartão-postal da cidade, a Ponte Hercílio Luzlembramos da existência de uma estátua próximo a este, e fomos até lá. O monumento,homônimo a ponte, abriga em seu interior os restos mortais do governador. Da ponte,conseguimos visualizar um corpo petrificado que, por pesquisas bibliográficasdescobrimos ser de Dias Velho, o fundador da cidade esconde-se por entre elevados,pontes e vias expressas e da as costas para os veículos que entram na cidade.

Já em áreas mais baixas da cidade, na praça Olívio Amorin está a herma emhomenagem a Olavo Bilac: “Ama, com fé e orgulho, A terra em que nasceste!”

Mais caminhos cruzados e mais estátuas em praças. Na verdade, um quatrilho:busto do ex-jornalista Rubens de Arruda Ramos; herma de bronze de D. Pedro I; bustohomenageando o político e comerciante Esteves Junior e uma herma envolta em postesde concreto do vice-governador Antônio Pereira Oliveira. Todos estão localizados naspraças que também levam seus nomes. Encerramos a deriva com estas homenagenssobrepostas.

OBSERVAÇÕES FINAIS

“As representações culturais, desde osrelatos populares até os museus, nuncaapresentam os fatos, nem cotidianos, nemtranscendências; são sempre re-apresentações,teatro, simulacro. Só a fé caga fetichiza osobjetos e as imagens acreditando queneles este depositada a verdade”.(Conclini N.)

A experiência de perambular pelas praças e ruas de Florianópolis, em busca demonumentos, revelou que não existe comunicação entre as estátuas e os habitantesurbanos neste “mundo das formas que também o mundo do silêncio”, segundo Lefrebvre.Estátuas e transeuntes estão próximos e não se reconhecem, um passa a ser obstáculopara o outro na velocidade das passagens.

A percepção é uma forma de compreender a comunicação entre a cidade e oshomens, e a partir desta identificação entender o próprio ambiente. As estátuas, nãosendo percebidas, não comunicam as intenções pelas quais foram edificadas. Através deações como a deriva psicogeográfica e impulsionadas por nossas inquietações, buscamos

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um reconhecimento dos espaços públicos onde se encontram os monumentos: as praças.O Urbanismo Unitário, proposto pela Internacional Situacionista, e suas ações – deriva,detournement, psicogeografia – foram importantes nessa experiência de apreensão doambiente urbano das praças públicas de Florianópolis. A partir destes, verificamos ainvisibilidade destes edifícios humanos e a ausência de sua imagem nos mapas mentaisdas pessoas que transitam por estes espaços. Os monumentos continuam a marcar aspraças como testemunhos de dominação do espaço e do tempo pelo poder. Sãoinvisíveis porque sua proposta inicial de conferir memória a uma personalidade não érealizada, contudo algumas dessas edificações servem como atrativo para o consumoturístico.

As peças, hermas e bustos de Florianópolis atuam como um mecanismopublicitário de um valor moral, religioso e principalmente político ligados ao poder deuma época passada e não são presentes na memória orgânica da cidade. Arepresentação simbólica da memória ou do poder e mesmo a forma física dosmonumentos são quase inexistentes no imaginário urbano, não existe uma relação afetivaentre estas formas da paisagem e as pessoas.

As praças contêm humanos monumentos que sobrevivem à sombra da poluiçãodos centros urbanos e nos provocam vontades de desvio arquitetônico, manifestaçõesartísticas, situações que acentuem os atuais olhares tão rápidos lançados sobre eles. Estasformas ocupam espaços e tempos na história do cotidiano e constituem grandes lapsosde significação, identidade e percepção nos espaços públicos urbanos.

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