o gavião e a onça: imagens kalapalo da chefia em dois discursos rituais

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  • 7/30/2019 O gavio e a ona: imagens kalapalo da chefia em dois discursos rituais

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    Jos PimentaMaria Ins Smiljanic

    ORGANIZADORES

    Braslia 2012

    GRFICA E EDITORA POSITIVA LTDA

    ETNOLOGIA INDGENAE

    INDIGENISMO

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    ETNOLOGIA INDGENAE

    INDIGENISMO

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    Etnologia Indgena e Indigenismo / Organizadores, Jos Pimenta,Maria Ins Smiljanic. Braslia : Positiva, 2012.274 p. : il.; 23cm

    ISBN 978-85-99082-15-7

    Vrios autores.

    1. Antropologia Social. 2. Indigenismo. 3. EtnologiaIndgena. 4. Povos Indgenas. I. Pimenta, Jos. II.Smiljanic, Maria Ins. III. Ttulo.

    CDD 305.898081CDU 39(81)

    E83

    Conselho EditorialAlcida Rita RamosJulio Cezar MelattiRoque de Barros Laraia

    Programa de Ps-Graduao em Antropologia Social/UnBDepartamento de Antropologia/ICSCampus Universitrio Darcy Ribeiro Asa NorteICC Centro Sobreloja B1-34770.910-900 Braslia DFe-mail: [email protected]

    Programa de Ps-Graduao em Antropologia Social/UFPRRua General Carneiro 460 6o. andar

    80.060-150 Curitiba PRe-mail: [email protected]

    Editora: Positiva Grfica e EditoraDiagramao: Maria Ins SmiljanicTiragem: 700 exemplares

    Esta publicao foi financiada com recursos do PROCAD/CAPES

    Etnologia indgena e indigenismo: novos desafios tericos e empricos

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    SUMRIO

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    Apresentao

    Jos Pimenta e Maria Ins Smiljanic

    1. A maldio do ouro na Amaznia: dos conquistadores aosYanomami

    Alcida Rita Ramos

    2. Identidades e protagonismo poltico indgena no Brasil aps aConstituio Federal de 1988

    Stephen Grant Baines

    3. A construo da fronteira Brasil/Guiana Francesa e os Palikur

    Hugues Vallot

    4. Povos indgenas, desenvolvimento e integrao fronteiria: o casodo Acre e da fronteira Brasil-Peru

    Jos Pimenta

    5. Territrios etnoeducacionais: um novo paradigma na polticaeducacional brasileira

    Gersem Baniwa

    6. Relaes evidentes, relaes esquecidas: reflexes sobre oreconhecimento da diferena indgena na Colmbia

    Jos Arenas Gomz

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    7. Da observao participao: reflexes sobre o ofcio doantroplogo no contexto do Distrito Sanitrio Yanomami

    Maria Ins Smiljanic

    8. Ns somos todos misturados: histrias e parentesco Wajuru(Rondnia)

    Nicole Soares Pinto

    9. Lembrar dos vivos, esquecer dos mortos: Parentesco e memria

    entre os Karaj de Buridina (Aruan GO)Eduardo Soares Nunes

    10. O gavio e a ona: imagens kalapalo da chefia em doisdiscursos rituais

    Antonio Guerreiro Jr.

    11. Os cantos do Jurupari primordial: esboo das noes de

    tempo entre os Makuna

    Luis Cayn.

    12. Alimentar os corpos alimentar a sociedade: a roa e

    as relaes entre os diversos seres nos Mky

    Flvia Oliveira Serpa Gonalves

    Sobre os autores

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    235

    257

    269

    Outras publicaes 271

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    Antonio Guerreiro Jr.

    Mestres da fala

    O Alto Xingu um complexo sociocultural formado por dez povos falantes

    de lnguas pertencentes a diferentes troncos e famlias lingusticas, localizado

    na poro sul do Parque Indgena do Xingu (doravante, PIX), no nordeste do

    Mato Grosso. Em termos ecolgicos, a regio uma rea de transio entre

    o cerrado tipicamente centro-brasileiro, que se estende ao sul, e a floresta

    tropical, que se adensa ao norte, e sua complexa rede hidrogrfica compe a

    bacia dos formadores do rio Xingu. Nesta regio, encontram-se falantes de

    aruak (Mehinku, Wauja e Yawalapti), karib2 (Kalapalo, Nahuku, Kuikuro e

    Matipu) e tupi (Kamayur e Aweti3), alm dos Trumi4, que falam uma lngua

    considerada isolada. Os Kalapalo so uma populao de cerca de 632 pessoas5

    distribudas majoritariamente em dez aldeias6, quase todas situadas ao longo

    do curso do rio Culuene, um dos principais afluentes do rio Xingu7. Eles falam,

    junto com os Nahuku, uma variante da Lngua Karib do Alto Xingu (LKAX8),

    perfeitamente inteligvel para seus vizinhos Kuikuro e Matipu, que falam

    outra variante, marcada por diferenas lexicais, morfofonolgicas e prosdicas

    (Franchetto 2001; Santos 2007; Silva e Franchetto s.d.).

    Desde os primeiros registros sobre a regio, nota-se que estes grupos

    compartilham uma srie de traos culturais, como a planta das aldeias, o modelo

    das casas, a fabricao e o uso de certos objetos, a esttica corporal, conjuntos

    inteiros de mitos e rituais, a estrutura das terminologias de parentesco,

    a valorizao de um ethos pacfico e a existncia de um tipo de nobrezahereditria9. Em conjunto com estas semelhanas, estes povos so intensamente

    articulados por meio de casamentos, comrcio10 e pela participao em um sistema

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    regional de rituais patrocinados pelos nobres (Basso 1973; Viveiros de Castro1977; Menget 1993; Menezes Bastos 1995; Franchetto 2001; Heckenberger eFranchetto 2001; Heckenberger 2001; Fausto 2007).

    Mapa 1: Localizao do Parque Indgena do Xingu no territrio brasileiro.O Alto Xingu corresponde poro sul do Parque.Fonte: Instituto Socioambiental 2009

    Os Kalapalo se referem a alguns homens e mulheres comoanet eitankgo,chefe e chefa, respectivamente, e ttulos equivalentes existem entre todos osgrupos da regio: os Yawalapti chamam essas pessoas deamulaw, os Wauja e osMehinku deamunaw, os Kamayur demorerekwat, os Aweti demorekwat. Trata-se de uma condio ao mesmo tempo hereditria e desenvolvida no decorrer davida, pois no basta ser filho ou neto deaneta (plural deanet) para tambm s-lo, mas indispensvel desenvolver um corpo belo e forte, um comportamentosereno e generoso, e uma srie de habilidades lingusticas indispensveis para o

    exerccio de suas funes rituais (Franchetto 1986; 1993; 2000).

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    Antnio Guerreiro Jr.

    Uma das principais atividades que caracteriza a condio efetiva de anet a execuo de falas formais em ocasies variadas, algo que j foi amplamentenotado na literatura (Basso 1973: 135; Viveiros de Castro 1977: 218; Franchetto1986; 1993; 2000). Elas fazem parte de um estilo de fala cantada conhecidocomoanet itaginhu, fala de chefe ou conversa de chefe, um gnero formalcaracterizado pela entoao sucessiva de linhas monotonais11 organizadassegundo um estilo paralelstico (Franchetto 1986; 1993; 2000). De acordo comFranchetto (2000: 483), a fala dos chefes compreende sous-genres se distinguantentre eux non par le style, mais selon des critres qui vont de la fonction et du contextedxecution aux diffrences de contenu thmatique et de type de comptence qui est exigde la part de lexcutant. Assim, h diferentes conjuntos de discursos apropriadospara cada situao, com contedos diversificados e que empregam vocabulrio e

    recursos lingusticos especficos.Uma das marcas desse gnero de fala o uso de um vocabulrio complexo,

    uma linguagem figurativa metafrica e erudita, tpica de um registro muitoespecial e restrito a poucos especialistas (Franchetto 1986: 365). Os Kalapalodizem que muitas das palavras e expresses usadas noanet itaginhu so lnguados antigos (ngiholo akis) ou lngua de chefes (anet akis), e o uso destasformas de fala formal confirma a ligao entre seus praticantes os chefes vivos e os chefes do passado, de quem so considerados substitutos (itpohongo).

    Franchetto (1986: 366) observa que o interesse de um chefe em aprender oanetitaginhu consequncia de um projeto consciente para alcanar e garantir oreconhecimento da fora e coeso de seu grupo domstico e de aliados. O aprendizexplicita a determinao de perpetuar uma tradio que o liga linhagem dechefia.

    Outro fato amplamente notado pelos autores a multivocalidade e adialogicidade interna aos discursos (Franchetto 2000; Ball 2007: 37; Basso2009: 255). Por multivocalidade entende-se que, em cada momento de suas

    falas, os aneta constroem e apresentam diferentes sujeitos: seu povo, oschefes do passado, os brancos, e, claro, eles prprios. O carter dialgico dosdiscursos inseparvel da multivocalidade, e faz com que aquilo que parece ummonlogo seja na verdade um movimento constante de relacionar os diferentessujeitos construdos pelo chefe em sua fala (Franchetto 2000; Ball 2007: 31-37). Segundo Ball (2007: 38), estas relaes so feitas, sobretudo, a partir douso de pronomes e advrbios organizados em pares de opostos que assumemcaractersticas de diticos12, como aqui/l; agora/antes; ns/eles, permitindo aos

    chefes relacionarem os diferentes sujeitos do discurso no tempo e no espaopor meio do uso de uma linguagem potica. Ainda de acordo com Ball, a falado chefe ao mesmo tempo uma representao e encenao (enactment) da

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    comunidade (:32), que constri a web of numerous speaking subject and addresseepositions (:37), um processo que, ao construir uma identidade coletiva por meiodo discurso,

    () necessarily invokes this identity in relation to the identitiesof specific others construted in the same moments. These may beancestors, spirit-monsters, other Upper Xinguan groups, otherindigenous groups beyond the social exchange network of the UpperXingu proper, Brazilians, etc. (Ball 2007: 32-33)

    possvel dividir os discursos em pelo menos dois grandes grupos: aquelesrealizados para estrangeiros e aqueles realizados para coaldees (mas os Kalapalono fazem essa distino; tudo anet itaginhu). No primeiro grupo, esto osconjuntos de discursos para cada ritual regional, designados pelo nome doritual seguido da palavra nominalitagimbakitoho13 (feito para cumprimentar),como egits14 itagimbakitoho (feito para cumprimentar no egits), uluki15itagimbakitoho (feito para cumprimentar no uluki) e hagaka16itagimbakitoho(feito para cumprimentar no hagaka). H tambm discursos que devem serexecutados na ocasio da recepo de mensageiros de outras aldeias, chamadosetinh17itagimbakitoho (feito para cumprimentar mensageiros), que apresentamvariaes dependendo do ritual para o qual a aldeia est sendo convidada18.

    No segundo grupo (discursos para coaldees), est o que Franchetto (1986:378) chama de oratria poltica (que os Kalapalo chamam de akitsene19), a falapblica no cerimonial, ligada ao jogo poltico da aldeia, que pode ser feita porchefes e homens mais velhos:

    Saber falar e se expor aos ouvidos e comentrios da aldeia sodisposies que caracterizam certos indivduos e constituem finaestratgia pela qual se consolida fora poltica, procura-se influenciar,

    mudar os rumos de uma determinada conjuntura, defender-se deacusaes. (Franchetto 1986: 378)

    Esse tipo de oratria lida com acontecimentos na vida da aldeia, e por isso ofalante constri seu discurso se valendo de uma relativa criatividade a serviode seus propsitos e de um contexto particular (Franchetto 1986: 378). Comoconsequncia, a lngua dessa oratria se diferencia muito menos do registrocotidiano do que a lngua cerimonial (Franchetto 1986: 382), e a menorritualizao da oratria ficaria evidenciada pelo alongamento dos versos e pela

    reduo dos paralelismos e da repetio.

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    Ainda no grupo de falas para coaldees, ao menos entre os Kalapalo, h doisdiscursos que se enquadram no subgnero da oratria poltica, mas so maisformalizados do que os analisados por Franchetto (1986) e sua execuo restritaa grandes chefes. Seu espao de execuo e sua audincia so os mesmos ochefe fala para seu povo a partir do centro da aldeia , mas seu contedo fixoe sua forma constante, aproximando-os mais dositagimbakitoho que da oratriapessoal. desses dois discursos que este artigo trata. O objetivo no fazer umaanlise exaustiva desse tipo de oratria, mas contribuir com a etnografia doanet itaginhu e investigar como sua forma e seu contedo podem nos dar acessoa algumas ideias dos Kalapalo a respeito da chefia e seu exerccio.

    Em Aiha, a aldeia kalapalo onde fao pesquisa, o nico anet que conheceesses discursos Ageu. Ele os aprendeu com seu pai (um grandeanet falecido

    em 1984), mas nunca chegou a execut-los em pblico. De fato, os Kalapalodizem que, h dcadas, esses discursos tm sido executados por cada vez menoschefes, e parecem estar desaparecendo em todas as aldeias. Em Aiha, eles noso feitos desde os anos 1980, quando o chefe principal da aldeia j estava muitovelho. Entre os Matipu, como me contou o chefe da aldeia Kngahnga20, elesno so ouvidos desde meados dos anos 1970.

    Este fenmeno mereceria uma investigao comparativa, que levantassequem so os atuais conhecedores dos discursos, com quem os aprenderam, quais

    foram os ltimos chefes a execut-los e porque, de seus pontos de vista, sua prticatem cado em desuso. Segundo o chefe matipu, hoje em dia, no se discursa,porque as pessoas no se interessam mais pelo que os chefes tm a dizer. Suasfalas so sobre prticas e valores tradicionais e as pessoas se interessam cada vezmais pelos costumes dos brancos. Entre os Kalapalo, o fim dos discursos pareceligado s disputas polticas e ao deslocamento forado para Aiha (antiga aldeiakamayur) aps a criao do Parque21.

    Ageu conta que ele cresceu ouvindo chefes discursarem em Nhag Hatoho,

    aldeia onde os Kalapalo viviam na poca da criao do PIX. Um destes chefesera seu prprio pai, que nunca mais discursou desde a mudana para Aiha. Eledizia que estes discursos devem ser feitos onde esto enterrados os ancestrais deum chefe, onde seus antepassados tambm discursaram, e como Aiha era umterritrio kamayur no haveria sentido discursar ali. Seguindo os passos de seupai, Ageu optou por nunca discursar em Aiha, mas ele faz questo de enfatizarque se eles ainda vivessem na regio de sua antiga aldeia, ou eventualmentevoltassem para l, ele discursaria.

    Esses discursos so associados a dois animais definidos como seus donos(oto), uma espcie de pequeno gavio (ugonhi ou kakahug) e a ona22 (ekege).Ugonhi , junto com outros tipos de gavies (dos quais o mais importante a

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    Harpia), chefe dos pssaros, enquanto a ona o chefe mximo dos animaisterrestres. Os dois ocupam estas posies por suas qualidades como caadores,pois todo chefe , perante outros povos, representado como um animal predadore um inimigo em potencial (Guerreiro Jnior 2011). Eles formam um conjuntoordenado (tinapisinh), no qual o discurso do gavio ocupa a posio de primeiro(ihotugu; lit. ponta, proa, frente, bico) e o discurso da ona de segundo ou seuoutro igual (isotohongo, indicando uma relao simtrica entre os dois).

    As verses aqui transcritas foram registradas por mim junto ao mestre dediscursos Ageu, que os repassava a seu sobrinho uterino. Eventualmente faoalgumas comparaes com os Matipu, pois tive a oportunidade de registrarconjuntos de discursos com o chefe daquele povo23. As transcries e traduesforam feitas em conjunto com diversos colaboradores kalapalo.

    Ugonhi akitsu: o Discurso do Gavio

    O Discurso do Gavio deve ser feito ainda de madrugada, antes do solcomear a se levantar. o horrio em que o pssarougonhi acorda e comea acantar quer dizer, discursar, pois aquilo que os humanos percebem como ocanto de um pssaro , do ponto de vista das aves, a fala que o gavio faz paradespertar e orientar seu povo.

    1 Kohotsi tarde

    2 Ek, Ugonhi akitsu kohotsi... ng,amitote!

    Bem, o discurso do gaviougonhi tarde... quer dizer, de manh!

    3 Ugonhi Ugonhi

    4 Ugonhi beja, h - h, Kakahue g Ugonhi mesmo, h-h,kakahue g

    5 Kakahue g Kakahue g

    6 ngele akitsu o discurso dele

    7 Sakitsunal, anet helei, anet Ele sempre discursa, [pois] ele chefe, chefe

    O chefe deve discursar no centro da aldeia, de p e com o corpo viradopara leste (de frente para o nascente). Ele no precisa usar qualquer enfeite,mas pode portar, se quiser, seu akitsoho (feito para discursar), um conjuntode arco e flecha portado por chefes quando aparecem em pblico nos rituais e

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    quando discursam. O arco deve ser ummajahi, o maior e mais resistente arcoalto-xinguano; a flecha deve ser uma flecha alada (hge tahekinh), com umapena de asa de gavio e outra de asa de arara vermelha. Seus instrumentos parafalar so importantes ndices de chefia, pois esto associados a chefes mticos:o majahi o arco de caa da ona, e aparece no mito de origem como a armadeEnitsue g; a pena de gavio remete ao chefe dos pssaros; e a pena de araravermelha est ligada aAulukum (Lua), um dos gmeos, de cujo sangue aquelepssaro foi criado.

    Diferentemente dos discursos que os chefes fazem uns para os outros nosencontros rituais, em voz baixa, este deve ser feito em voz alta, para ser ouvidopor todos e acordar toda a aldeia. Antes de comear o discurso, Ageu deu umabreve explicao:

    8 Tsakeha Oua

    9 Andeha ankgil kupehe, kukakitsuankgil knga oto kaenga

    Ns passamos, passamos nossodiscurso para os pais dos rapazes

    10 Knga oto beja, nagohungu, ngelehun-gu inha ankgil kupehe

    Para os pais dos rapazes mesmo,como aqueles, como aquele, paraeles ns passamos

    11 Ankgilha, ukakitsu ankgil Passamos, passamos nosso discurso

    12 Egehungu tsale akngingohng baleegei

    assim, no muito

    13 Kakitsi opisale opisale, la kukita, ip Nosso discurso se repete, se repete,assim ns dizemos, filho24

    14 Kukita tsha Ns dizemos mesmo

    15 Kandag apeta hegei kupehe Ns estamos orientando nossopovo

    interessante o uso de ankgil (passar) entre as linhas 9 e 11, pois esteverbo tambm usado para se referir transferncia de um objeto para um novodono, ao ato de mudar algo de lugar ou passar algo de um recipiente a outro. Nalinha 15, o chefe chama sua audincia dekandag25, nosso pessoal ou nossopovo.Andag a forma possuda de anda, palavra de difcil traduo e que noparece ser aplicada fora do contexto da chefia. Ela no tem plural, e se refere,por definio, a um conjunto de pessoas. Ela tambm s aparece sob sua forma

    relacional e possuda, precedida pelo nome de algum e seguida do sufixo-g (Xandag, sendo X algum considerado chefe). A expresso indica, portanto, umarelao assimtrica entre uma pessoa nomeada (individualizada) e um coletivo

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    indiferenciado entre algum que possui palavras para orientar e um povo queprecisa ser ensinado. Traduziapeta (linha 15) como orientando porque a raizape significa literalmente dar direo (a algo ou algum).

    Nas transcries que se seguem, cada linha numerada corresponde a umaunidade meldica. No h, em quase nenhuma delas, qualquer sentena completa,pois os enunciados so quebrados nas unidades meldicas paralelas (Franchetto1986: 365), fazendo do entendimento e da traduo dos textos algo muitotrabalhoso. H algumas excees, nas quais vrias linhas em potencial foramaglutinadas pelo falante em uma mesma unidade meldica (isto , enunciadasno mesmo tom e sem pausas para respirao), mas cuja estrutura (precedidaspor um expletivo ah e seguida de um conjunto de partculas) revela se tratarde linhas que poderiam ter sido executadas como unidades meldicas discretas.

    Outra dificuldade de compreenso e traduo se deve existncia de poucoselementos lexicais em cada unidade meldica. Estes elementos so seguidos porvrias partculas de sentido complexo, com uso regular e formalizado, muitocomum a todo o anet itaginhu entre os falantes de karib. H inclusive linhasformadas apenas por um expletivo e por partculas, sem nenhum elementolexical. A partcula inferiorizadora muke, que faz parte das formas de falaautoderrogatrias (uma das principais caractersticas do gnero de fala doschefes), uma das mais recorrentes. Ela reduz a importncia do que o falante

    diz, produzindo o que Basso (2009: 246) chama de efeito humilhante (humblingeffect). Outra das mais utilizadas o ditico ige, uma partcula evidencial queindica proximidade/presena/existncia, fixado cpulai (Franchetto 2000:492). Tambm se encontra com frequncia a partcula gitse, que significaria,segundo Basso (2009), pobremente, incompleto, e que Franchetto (2000)define como uma partcula de desvalorizao. Ela sempre utilizada peloschefes quando falam do presente ou quando usam o imperativo. Por fim,abundam o advrbio gele (ainda) e o sufixo enftico ha (Franchetto 2000:

    492-503).O discurso comea:

    1 Kama, Kama, Kama, Kama,Kama, Kama

    Meu irmo, meu irmo, meu irmo,meu irmo, meu irmo, meu irmo

    2 Ah, luale muke ataitsange Ah, por favor, que seja assim

    3 Ah, etijipgha gitse itakeingakehagitse

    Ah, tirem seus filhos de suas redes

    4 Ah, kutapa muke geleha gitse, ah,uitunguki muke geleha gitse

    Ah, do sono de nossos avs

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    5 Etijipgha gitse itakeingakeha gitse Tirem seus filhos de suas redes

    6 Inke ande ehisunda itsa Vejam, aqui esto seus irmos

    7 Ah, itsasha engihisatanmingo Ah, eles mexero em seus trabalhos8 Ah, kingakeha gitse etijipg hekeha

    gitseAh, diga sempre a seus filhos

    9 Ah, muke geleha gitse26

    10 Ah, igehunguki muke geleha gitse Ah, deste jeito

    11 Ah, kutengatanini muke geleha gitse Ah, ns todos vamos indo

    12 Ah, isekalu tohoila muke geleha gitse Ah, sem fazer barulho13 Ah, itseke tologu heke muke geleha

    gitseAh, o pssaro dos espritos

    14 Ah, kutekaginetatanini muke gelehagitse

    Ah, est assustando a todos ns

    15 Ah, muke geleha gitse

    16 Ah, itseke tologu heke muke gelehagitse

    Ah, o pssaro dos espritos

    17 Ah, kutekaginetatanini muke gelehagitse

    Ah, est assustando a todos ns

    O chefe se refere sua audincia comokama (linha 1). Quando transcrevie traduzi esse discurso nenhum de meus interlocutores conhecia essa palavra, eat achavam que pudesse ser aruak ou tupi. De acordo com o dono dos discursos,ela significa meu irmo e lngua dos antigos,ngiholo akis. Segundo o chefematipu, que tambm abre sua verso com uma linha idntica, ela um sinnimoparaanet. O orador se dirige a seus semelhantes, outros chefes, a quem pede queacordem seus filhos. De acordo com a interpretao do chefe matipu, os filhos deque o discurso fala so filhos de chefes, jovens em preparao para se tornaremmestres da luta (kindoto ou ojotse) e futuros chefes. Antigamente os campeeseram acordados muito cedo e deveriam passar horas sentados em suas redes emsilncio pensando na luta, em seu comportamento e ouvindo orientaes de seupai. Ainda de acordo com o chefe matipu, cuja fala transcrevo abaixo, isso erapara que estes campees pudessem se tornar mensageiros (ngengoku27) de outros

    chefes quando houvesse rituais:

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    O gavio e a ona

    Ojotse helei inhukugu, kindotobeha Seus filhos sos campees, grandesmestres da luta

    le atehe itsaenga eteta Por isso ele discursa sobre eles

    Itaginhunda, egea ta tohoi iheke Quando ele [o chefe] est falando, isso que ele est dizendo

    Kindoto helei egea ta tohoi iheke Eles so mestres da luta, por isso eleest falando assim

    Anet ngengoku helei Eles so mensageiros dos chefes

    Eteta hegei egitsote kjou! atsakutaleha

    Se houver um egits eles vo [interjeio] , eles correm

    Nas passagens das linhas 11 e 12, o chefe aborda um tema recorrente emoutros discursos, que a falta de barulho em sua aldeia. Todos ns vamosindo/Sem fazer barulho significa que no se faz festas, rituais, e que por issoas pessoas vivem tristes pois um dos objetivos dos rituais que os Kalapaloexplicitam com bastante nfase sua capacidade de produzir beleza e alegria28.O pssaro dos espritos de que se fala entre as linhas 13 e 17 a galinha, e osespritos so, de acordo com o narrador, os brancos. Esta passagem tambm me

    parece ligada ausncia de barulho, falta de rituais. Em poca de festa, desdemuito antes do sol nascer comum os homens darem longos gritos agudos logoao acordar, que so respondidos por outros em suas prprias casas. O objetivodisso alegrar-se, alegrar os outros e fazer toda a aldeia despertar com alegria.A imagem que o chefe passa de que, infelizmente, seu povo no despertamais com gritos de alegria, mas acorda assustado com o canto do pssaro dosespritos.

    A passagem a seguir a traz um termo fundamental para a descrio da chefia

    kalapalo akihekugene, ou prtica das palavras verdadeiras/boas:

    18 Ah, kutapako muke ata hale igeiuke

    Ah, mas nossos avs

    19 Akihekugeneki higei uke, etijipgkomuke ata hale igei uke, ihij hekemuke ata hale igei uke

    Com a prtica das palavrasverdadeiras, em seus filhos, elesmexeram

    20 Ah, ngelepe entang muke gele higeiuke

    Ah, aqueles que j morreramvinham

    21 Akihekugeneki higei uke Com a prtica das palavras verda-deiras

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    22 Ah, tihisathg muke gele higei uke Ah, para fazer aquilo que lhes foiensinado29

    23 Ah, tilinha muke gele higei uke

    24 Ah, tdag muke gele higei uke Ah, para seu povo

    25 Ah, upetegijinha muke gele higeiuke

    Ah, orientar

    26 Akihekugeneki higei uke Com a prtica das palavrasverdadeiras

    27 Ah, tihisathg tilinha muke gelehigei uke

    Ah, para fazer o que lhes foiensinado

    28 Ah, kutapako muke ata hale igei

    uke

    Ah, nossos avs

    29 Akihekugeneki higei uke Com a prtica das palavrasverdadeiras

    30 Tetijipgko hij heke muke ata haleigei uke

    Mexeram em seus filhos

    As linhas deste trecho terminam comuke, uma partcula da categoriados mediativos ou epistmicos (Franchetto 2000: 492). Ela usada em

    afirmaes sobre o passado e indicam que o falante tem autoridade sobre o quefala, seja por ter conhecimento direto ou, como o caso aqui, ter recebido ainformao de pessoas com autoridade para transmiti-la isto , os chefes antesdele. Desta forma, o orador acopla em sua fala toda a cadeia de chefes pela qualo conhecimento daakitsene foi transmitido at ele. O trecho justamente sobrea prtica dos discursos pelos chefes do passado, chamados de nossos avs(linhas 18 e 28) ou pelo pronome anafrico ngelepe30 (linha 20), que traduzocomo os que j morreram. Os anafricosngele (aquele) enago (aqueles) so

    formas indiretas de dizer chefe(s) em todo oanet itaginhu

    .Akihekugene o que traduzo como prtica das palavras verdadeiras, umtermo formado a partir deaki, palavra,hekugu, verdadeiro/bom, e do sufixonominalizadorne (Santos 2007). Em seu sentido geral, a expressoaki hekugu,palavra verdadeira, descreve qualquer fala boa, bonita, calma, apaziguadoraou incentivadora, e algum que seja reconhecido por falar a verdade e seruma boa pessoa chamado de akiheku ou takihekuginh (cujas palavras soverdadeiras). J em seu sentido mais especfico ela se refere fala dos chefes,que por definio precisam ter sido preparados para se tornar pessoas decomportamento e capacidade oratria excelentes, capazes de orientar seu povocom uma fala tranquila e humilde, sem nunca dar ordens ou deixar transparecer

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    O gavio e a ona

    raiva (fazer aquilo que lhes foi ensinado, como nas linhas 22, 23 e 27). Naspalavras de Franchetto (1986: 381), esse tipo de discurso uma fala boa,verdadeira, uma espcie de anti-fofoca que tenta suturar as fissuras do tecidosocial da aldeia.

    Sobre os chefes do passado, diz-se que fizeram o que lhes foi ensinado,mexeram em seus filhos com a fala verdadeira. Mexer um eufemismo paratrabalhar ou fazer (muito comum nas conversas entre afins), e a relao entrepais e filhos , de fato, concebida como uma relao de fabricao na qual o filho o resultado de esforo intencional e contnuo do pai (Viveiros de Castro 1977).Mas esta no apenas uma descrio do passado, e sim um recurso complexopelo qual o passado serve de exemplo ao mesmo tempo em que contrasta com opresente como o uso do contrastivo hale nas linhas 18, 19, 28 e 30 deixa claro.O chefe constri uma oposio entre o passado e o presente na qual este no mais do que uma forma empobrecida de um antigo tempo idealizado comograndioso: havia chefes que, com sua fala boa, mexeram em seus filhos, mashoje no mais. Ora, justamente isto que o chefe est fazendo ao discursar, masele deliberadamente tenta se anular e inferiorizar sua fala. Um chefe nuncase afirma como tal em seus discursos, mas sempre se inferioriza e coloca emdvida sua posio. O ponto que, agindo desta forma polida e envergonhada,ele se exibe exatamente como um chefe deve se exibir: como a mais humilde

    das pessoas. Negando sua posio de chefe, se diminuindo perante os chefesdo passado, ele exibe o comportamento que se espera de um chefe verdadeiro.Como Franchetto (2000: 493) comenta, hiprbole e contraste so caractersticascentrais do anet itaginhu e do pensamento alto-xinguano de maneira geral.O presente nunca mais do que uma atualizao imperfeita de um passadoimaginado como perfeito e mesmo excessivo (na medida em que esta grandezapode significar perigo, como no caso dos seres mticos).

    31 Ah, luale muke ataitsha Ah, por favor, que seja assim

    32 Ah, etijipgko tehugu igakangmuke ataitse kangamuke hekenimuke

    Ah, guardem comida para a barrigade seus filhos, crianas

    33 Ah, luale muke ataitsha Ah, por favor, assim que deve ser

    34 Ah, etijipggko tehugu igakangmuka tsits ehekeni

    Ah, guardem comida para a barrigade seus filhos

    35 Ah, ukugepeki manga ige uke Ah, com aquele que j foi gente

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    36 Angaupako muke gele igei uke Seus avs

    37 Etuatang muke gele igei uke Se exauriam

    38 Ah, ukugepeki higei uke Ah, com aquele que j foi gente39 Angaupako muke gele higei uke Seus avs

    40 Etuatang muke gele higei uke Se exauriam

    41 Ah, kohinhanduhngki, ah, kumi-nhangokiha uketuanal

    Ah, com aquele que no mato, ah,com nosso alimento nos exaurimos

    Esta passagem sobre a importncia do cultivo do milho, metaforicamente

    chamado de aquele que j foi gente (referncia origem desta planta, resultadoda transformao de uma pessoa em milho no tempo mtico). O cultivo do milhocostumava ser muito importante na estao das chuvas, perodo em que no secolhe mandioca, mas no qual o milho produz rapidamente. Antigamente nemsempre os xinguanos conseguiam estocar grandes quantidades de polvilho paraas chuvas, e por isso as roas de milho tinham uma importncia muito grande.Hoje a situao bastante diferente, pois com a introduo de sacaria se tornoupossvel armazenar polvilho suficiente e poucas pessoas tm plantado milho.

    A parte final do Discurso do Gavio sobre o cultivo de outra planta centralda dieta xinguana a mandioca e os perigos da feitiaria:

    42 Aht muke ataitsha Vocs no devem

    43 Ah, engihitsgko ukukijila ehekeni Ah, esfregar aquilo em que mexe-ram

    44 Ah, ingike mukeniha gitse Ah, veja

    45 Ah, tekundipnghng ekutangmuke geleha gitse kupeheni muke ge-leha gitse

    Ah, no um alimento ruim o quens comemos

    46 Ah, muke geleha gitse

    47 Ah, igehunguki muke geleha gitse ku-tengatanini muke geleha gitse

    Ah, assim todos ns vamos indo

    48 Ah, isekalu tohoila muke geleha gitse Ah, sem fazer barulho

    49 Ah, kutengatanini muke geleha gitse Ah, todos ns vamos indo

    50 Aht ataits Vocs no devem

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    51 Ah, engihitsgko ukukijla ehekeni,kangamuke

    Ah, esfregar aquilo em que mexe-ram, crianas

    52 Ingike mukeniha gitse Veja

    53 Ah, ande tekundipnghng eku-tang kupeheni muke geleha gitse

    Ah, no um alimento ruim o quens comemos

    Nas linhas 44 e 52 ukukijila, forma negativa de ukukij, esfregar, umametfora para enfeitiar.Engihitsgko significa literalmente que foi mexidopor vocs, mas tem o sentido de trabalhado, e se refere especificamente sfolhas de mandioca derrubadas dos ps. Um feitio sobre estas folhas podeestragar a plantao de mandioca de algum, e sobre este perigo que a passagem

    fala. No um alimento ruim o que estamos comendo (linhas 46 e 54), diz odiscurso, mas fica claro que este um risco caso se pratique feitiaria umrisco que a fala do chefe pretende evitar. H de fato, em Aiha, uma ideia de quese h muita feitiaria em uma aldeia , em parte, porque os chefes no estoorientando bem seu pessoal. Idealmente, em uma aldeia onde os chefes sorespeitados, as pessoas no procuram fazer mal umas s outras, nem fazer feitiosque estraguem uma aldeia toda. J onde a chefia est enfraquecida o perigo dafeitiaria aumenta, pois, sem orientao, as pessoas tendem a ficar mais egostas,

    enlouquecer e se esquecer de seus parentes (o primeiro passo para a produode um feiticeiro; para uma discusso sobre feitiaria e antiparentesco entre osAweti, ver Figueiredo 2010).

    A tnica do discurso congruente com o comeo de um dia, recomendandoque os pais dos jovens acordem seus filhos cedo, que eles trabalhem duro em suasroas e que no faam feitiaria. Mas nada em sua fala pode caracteriz-la comoum discurso autoritrio, muito pelo contrrio; o chefe pede humildemente e noentoa uma nica linha sem incluir partculas que o inferiorizem e sua fala.

    Ekege akitsu: o Discurso da Ona

    O Discurso da Ona tambm deve ser feito no centro e em alto e bom som,mas aps o pr do sol (o mesmo perodo das oratrias polticas pessoais). Ochefe tambm deve estar virado para o leste, mas, desta vez, precisa discursaragachado e olhando para o cho, como se estivesse perante um chefe estrangeiro,em posio de respeito e vergonha. A diferena das posies remete s posturas

    corporais dos animais donos dos discursos: pela manh deve-se dispor o corpocomo o do gavio em repouso em p sobre um galho de rvore , e noitecomo o da ona, um quadrpede. Os horrios dos discursos tambm remetem

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    aos perodos de atividade destes animais, sendo o gavio um caador diurno e aona um animal de hbitos noturnos.

    Esta fala tem uma tnica bastante pessimista. Findo o dia, o chefe fala sobreas dificuldades do presente, a falta de chefes para orientar seu povo e sobre asmortes provocadas pelos espritos e pelos brancos. como se, ao confrontar-secom uma situao difcil, o chefe se perguntasse: como possvel seguir em fren-te? A resposta dada no prprio discurso uma s: com alegria.

    1 Ah, kangamuke, kangamuke, kanga-muke

    Ah, crianas, crianas, crianas

    2 Ah, luale muke ataitsha gitse Ah, por favor, que seja assim

    3 Ataipanenateha gitse Festejem4 Ah, t akis kaemanga gitse kuten-

    galko egea gitse?Ah, com a fala de quem nssempre seguimos, assim?

    5 Ah, ukugetih akis kae muke ata halegitse

    Ah, com a fala de um chefe

    6 Ah, kutehotannkgo muke ata hale git-se

    Ah, ns seguiramos

    7 Ah, muke geleha igia kutengatanini

    muke geleha gitse

    Ah, mas ns seguimos assim

    mesmo8 Tetihoi muke geleha gitse Sem um esteio

    9 Ah, kutengatanini muke gele higei (git-se)

    Ah, ns seguimos

    10 Ah, itseke heke muke gele higei, ah, t-notohokoki muke gele ah ukinahaneta-tanini muke

    Ah, os espritos, ah com seusobjetos mortais, ah, esto nosmatando

    Enquanto o Discurso do Gavio aberto com uma exortao aos irmosdo chefe (i.e., outros chefes), aqui ele aberto com a palavra crianas. Se, noprimeiro, o chefe trata seus interlocutores de forma simtrica, aqui ele se dirigea todos de forma assimtrica. Crianas , na verdade, a forma mais comumpela qual um chefe se refere a seu povo, para quem ele como um pai adotivo,que protege, educa e alimenta. Esse aspecto da relao entre um chefe e seupessoal evoca um conjunto de relaes amplamente recorrentes na Amrica doSul indgena, centradas nas figuras dos donos ou mestres (Fausto 2008).

    Esta uma noo presente em praticamente todas as cosmologias amerndiase que, segundo uma sntese de Fausto (2008: 330), (...) designa uma posioque envolve controle e/ou proteo, engendramento e/ou posse, e que se aplica

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    a relaes entre pessoas (humanas e no humanas) e entre pessoas e coisas(tangveis ou intangveis), geralmente formuladas segundo a linguagem dafiliao adotiva (Fausto 2008: 333).

    A posio do chefe como pai adotivo est diretamente ligada produo doparentesco em uma aldeia, algo evidenciado pelo uso, na linha 5, de um termointeressante para chefe que at hoje s ouvi em discursos rituais,ukugetih. OsKalapalo, quando tentam segmentar esta palavra, a dividem emkuge, gente,e (t)ih, corpo, o que permitiria glosar ukugetih como corpo das pessoas.De fato, a palavra para corpo ih, e a incluso deste (t) pode ser em funode processos morfofonolgicos subjacentes reunio destas duas palavras paraa formao de uma s. A traduo sugerida se fortalece quando notamos quetambm se utiliza a expressokatoteih, corpo de todos, com o mesmo sentido.Ih tambm significa tronco ou caule, e pelo rendimento que as rvores tmna concepo xinguana da vida social eu costumo preferir tronco a corpo(Guerreiro Jnior 2011). Alm do mais, outra forma de dizer chefe iho, quesignifica arrimo ou esteio, algo feito obviamente a partir de um tronco. Emseu sentido mais literal,iho se refere ao poste de madeira no qual uma pessoaamarra sua rede, mas seu campo semntico bem maior. O dono de uma casatambm iho das pessoas que moram nela, pois espera-se que ele cuide de seuscorresidentes (que os oriente, organize as atividades coletivas da casa, os apoie em

    seus problemas); um marido tambm iho de sua esposa e seus filhos, pois deveprov-los com comida; e algum que seja o nico homem da casa tambm ihodas mulheres, devendo aliment-las e proteg-las. Um chefe tambm chamadodeiho das pessoas (kuge iho, esteio de gente), pois entende-se que o trabalhode um chefe (os Kalapalo de fato usam uma raiz para trabalho,ka, quando falamsobre os afazeres dos chefes) cuidar de seu pessoal, orientando as pessoas comsua fala, oferecendo comida com frequncia e dando objetos a qualquer pessoaque precise. Os chefes geralmente so chamados deiho em uma forma do plural,

    ihoko, que inclui aqueles de quem o chefe esteio (isto , os moradores de suaaldeia). Pode-se dizer queiho, ento, refere-se a qualquer pessoa que se encontrena posio de protetor e provedor de outros.

    Aldeias tambm podem ser iho de outras. Sempre que algum conversasobre aldeias antigas, algumas so referidas como aquelas que se dividirame outras que so seusiho, sugerindo a reproduo de uma forma de assimetrianas relaes regionais entre grupos que resultaram de processos de fisso. Estarelao descrita da mesma forma que aquelas entre um caminho principal e

    suas bifurcaes, ou um grande rio e seus afluentes. Mas o que uma aldeia-iho,o que significa dizer que uma aldeia chefe ou esteio de outras? A principalcaracterstica de uma aldeia-iho sua centralidade ritual: l que se enterram

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    os mortos, onde se fazem festas para espritos, onde se realizam os rituais emmemria de nobres falecidos, e (uma das coisas mais importantes) para ondeoutros povos enviam os convites para seus rituais. Ela funciona como a praa(hugogo) de uma aldeia, e referida como tal quando se toma um aglomeradoregional31, que, considerado como uma aldeia em uma escala maior, tem suascasas ou pessoas (isto , outras aldeias). Assim como, os chefes esto nocentro da vida ritual de uma aldeia, uma aldeia-esteio est no centro da vidaritual de um aglomerado regional.

    Mas h uma questo mais importante em jogo, pois a condio de ihonestas duas escalas (local e regional) est ligada produo do parentesco e deum ponto de vista coletivo no sistema xinguano. Como alhures na Amazniaindgena, ningum nasce completamente humano (Vilaa 2002). Para que um

    beb se torne humano preciso oferecer alimentos prprios, cuidados, proteoe afeto, em processos que fabricam o corpo do beb semelhana do corpo deseus pais e seus parentes mais prximos. Tornar-se gente tornar-se parente dealgum e vice-versa (Gow 1997; Coelho de Souza 2002; Vilaa 2002). Se os paisno se esforarem para aparentar (e humanizar) seus filhos, eles podem se tornarparentes de outras pessoas: espritos, que levaro suas almas e os adotaro comoseus prprios filhos, provocando doenas e, eventualmente, morte. Por um lado,o aparentamento de uma criana se d primeiramente em casa, na relao com

    os pais; mas por outro, ele s se completa nos rituais, pois para se tornar umapessoa xinguana adulta, gente de verdade, preciso sair da recluso em algumritual regional. E as aldeias capazes de patrocinar rituais so justamente asmaiores, que os Kalapalo s consideram viveis, porque contam com pelo menosum grande chefe capaz de aglutinar pessoas. Mais ainda, para que algum possase tornar parente de outras pessoas preciso conviver e partilhar comida, o que,mais uma vez, s ocorre de forma satisfatria em uma aldeia grande. Em suma,para que uma pessoa tenha parentes preciso viver em um coletivo, e isso s

    possvel com os chefes.Em uma aldeia, que s pode existir se houver umiho/chefe, a convivncia,

    a partilha de refeies e o exerccio da reciprocidade so os responsveis pelaproduo de um tipo generalizado de aparentamento, transformando um coletivoheterogneo de coaldees em um ns diferenciado no complexo xinguano.Em contrapartida, parentes que vivem em aldeias diferentes tendem a se tornarmenos parentes, ou parentes de longe. Entre diferentes aldeias se passa algosemelhante, pois h um senso de que vrios grupos locais se identificam com

    sua aldeia-iho. Uma aldeia-iho tem a capacidade de exercer uma fora centrpetasobre as aldeias que se originaram dela, que no permite que todo processo defisso seja um processo automtico de criao de novas identidades coletivas,

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    assim como os chefes permitem a continuidade de uma aldeia e tornam possvela convivncia prolongada das pessoas e a produo de parentes. A diferenciao um processo longo, e osiho, sejam homens de carne e osso ou aldeias inteiras,oferecem alguma continuidade aos processos de identificao32.

    Esteio, tronco e corpo se aproximam de forma interessante: todos so formaspelas quais os Kalapalo descrevem relaes assimtricas baseadas no cuidado,na proteo e na alimentao (entre um marido e sua mulher, entre um chefe esua aldeia, entre uma aldeia ritualmente mais importante e outras menos), cujoresultado o aparentamento e a produo da condio humana. Para que hajacoletivos, nas escalas mais variadas (de um ncleo conjugal a nexos regionais), preciso que exista uma relao de assimetria entre um corpo/tronco/esteio qued suporte e as pessoas que vivem ao seu redor, e os chefes so a forma humanadeste corpo-tronco. Mas a passagem que acabamos de ver diz justamente queno h nenhum esteio/tronco com cuja fala o grupo possa seguir. Os Kalapaloque me ajudaram sempre faziam questo de explicar que o chefe est mentindoum pouco: ele diz que no h ningum para orientar o seu povo enquanto naverdade ele , certamente, algum que faz isso. J vimos no Discurso do Gavioa negao da condio de chefe do falante, e este um recurso que reaparece emmuitas situaes. Nos discursos que os coordenadores doegits fazem para oschefes dos convidados, por exemplo, eles dizem que, na falta dos verdadeiroschefes do passado, mentiram para assumir aquela posio. O mesmo se passacom o chefe dos convidados quando aceita um convite, ele mente (isto ,finge ser chefe) para poder conduzir suas crianas outra aldeia. O contextoe a forma doanet itaginhu deixam clara a condio de chefe do falante, mas osdiscursos em si deliberadamente a negam.

    H, por fim, a questo dos brancos, mais uma vez tratados como espritos(linha 10). Os objetos mortais de que o chefe fala so as mercadorias, vistasdurante muito tempo como feitios. Com as epidemias entre o final do sculo

    XIX e meados do sculo XX, os alto-xinguanos rapidamente associaram osobjetos dos brancos s doenas e feitiaria. O tema do perigo dos brancostambm est presente em uma oratria analisada por Franchetto ( 1986: 140-148, Anexos), na qual o chefe fala dos brancos como nossos avs (outra formade dizer espritos), cujas doenas ho de chegar. E assim como o chefe kalapalo,ele pede que seu povo festeje (Franchetto 1986: 140-148).

    11 Ah, luale muke ataits egekaluko,kangamuke

    Ah, por favor, que seja assim, faambarulho, crianas

    12 Ataipanenate ataits hetsange Que vocs festejem

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    13 Indegela muke gele akangabaha igeigitse

    No aqui

    14 Ah, kutelko hata muke geleha gitse Ah, que seguimos

    15 Ah, kutapako muke geleha gitse,ah, engikapgtela leha gitse Ah, no em um lugar aberto pornossos avs

    16 Ah, kutelko hata muke lehagitse

    Ah, que seguimos

    Mais uma vez o chefe exorta seu povo a fazer barulho e festejar, pois acondio em que vivem no favorece a alegria j no vivem mais em umaaldeia aberta por seus avs, mas na aldeia de outros. difcil interpretar essapassagem. Como j mencionei, desde que se mudaram para Aiha, os Kalapalovivem em territrio kamayur, ao norte de onde viviam, e at hoje os Kamayuros provocam dizendo que eles no vivem em uma aldeia onde esto enterradosseus avs (os mais velhos dizem que a hostilidade era muito grande no comeo).Se fssemos interpretar a passagem acima de forma literal, poderamos serlevados a pensar que ela se refere a essa situao especfica, e que teria sidoincorporada ao discurso em algum momento nos ltimos 50 anos. Mas a situaose complica se lembrarmos que o homem que ensinou esse discurso a seu filhonunca o executou em Aiha, mas apenas na antiga aldeia Kalapalo. Toda aquela

    regio foi densamente ocupada pelos Kalapalo desde pelo menos a primeirametade do sculo XVIII e considerada sua terra verdadeira (ngongo hekugu).Em uma viagem que uma equipe fez regio durante a execuo de um projetode documentao33, Ageu disse que l onde seus avs discursavam, onde elesorientavam seu povo. A meu ver a ideia de que no se vive em um lugar abertopelos ancestrais equivalente afirmao de que no h mais chefes: caso ofalante afirmasse viver em um territrio ancestral, isso seria o mesmo que dizerque ele est no lugar dos antigos chefes, o que pela lgica da fala ritual deve ser

    sistematicamente negado.

    17 Ah, luale muke ataits ataipanenkgo,kangamuke

    Ah, por favor, que seja assim,festejem, crianas

    18 Isekalu tohoila mukehakutengataniniha gitse

    Sem fazer barulho ns vamosseguindo

    19 T akis kaemana gitsekutengalkoha gitse

    Com as palavras de quem nsseguimos?

    20 Ah, ukugetih akis haindipg kaemuke ata hale gitse Ah, com a fala de um chefe, dealgum envelhecido

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    21 Ah, kutehotannkgo muke ata halegitse

    Ah, ns estaramos indo

    22 Ah, isekalu tohoila muke geleha gitsekutengatanini muke geleha gitse

    Ah, sem fazer barulho ns vamosseguindo

    23 Ah, luale muke ataitsha gitse Ah, por favor, que seja assim

    24 Ataipanenate Festejem

    O discurso se encerra retomando o problema da falta de barulho (festas/alegria) e da falta de um chefe (por isso, o uso do modo hipottico na linha 21:ns estaramos indo,kutehotannkgo). Faz todo o sentido que este discurso sejafeito no crepsculo: no apenas o fim de mais um dia, mas o crepsculo de umpovo que vive triste, sem um chefe com cujas palavras poderiam seguir, fora daterra de seus antepassados e ameaados pelos objetos mortais dos espritos (asmercadorias dos brancos). Diante dessas dificuldades o chefe conclui com umsingelo pedido (linhas 23 e 24): Ah, por favor, que seja assim/Festejem.

    Eplogo

    O objetivo deste artigo foi contribuir para a etnografia do gnero verbal

    conhecido como conversa de chefe e para a aproximao da etnologia do AltoXingu de formas indgenas de descrio da chefia. H diversos textos discutindoquestes relativas ao poder coercitivo, hierarquia, descendncia, produode excedentes, mas relativamente poucos trabalhos lidando diretamente comos conceitos indgenas sobre o tema. Minha inteno foi explorar uma dasmanifestaes mais clssicas da chefia a prtica de discursos rituais comouma ferramenta descritiva, algo que permitisse anlise se aproximar mais dasformas pelas quais os ndios reconhecem seus chefes e estes desempenham seus

    papis.Como espero ter conseguido mostrar, o que um chefe faz ao discursar para

    seu povo est longe de ser apenas um ato de dar palavras ao vento, como pareceser a viso de Clastres (2003) sobre o tema (construda, em parte, alis, a partirda descrio de Buell Quain sobre os discursos de um chefe Trumi). Antes demais nada, trata-se de uma arte verbal complexa, refinada e muito valorizada.A fala do chefe, ao mesmo tempo, exalta as tradies, questiona o presente edeixa claro que o futuro incerto. Sua oratria ritual uma forma de criar

    alguma unidade, por meio de discursos performativos (Austin 1975), em umuniverso heterogneo composto por pessoas de origens diversas, cujas relaes

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    Antnio Guerreiro Jr.

    esto sempre ameaadas pelas foras da feitiaria, do egosmo e do mundo noindgena.

    Mas Clastres estava certo ao chamar a ateno para os mecanismos pelosquais os amerndios combatem a emergncia do poder coercitivo. No caso kala-palo, para que o chefe discurse para seu povo ele precisa estar invisvel: ou elefala antes do sol nascer, enquanto as pessoas ainda esto em suas casas, ou depoisdo sol se pr, quando todos j se recolheram. Ele tambm precisa ser indizvel: oorador desaparece do discurso se contrapondo aos chefes do passado e afirman-do diretamente a inexistncia de um chefe no presente. Durante os discursosele tambm deve se comportar como uma pessoa diferente, o que se evidenciaem seu corpo: em p como um gavio ou agachado como uma ona. Para fazero que um chefe faz preciso estar em uma posio de alteridade, que parece seruma condio para a produo de assimetria, mas que, ao mesmo tempo, precisaser anulada pelos discursos. Isso contrasta com os discursos feitos para chefesestrangeiros, nos quais osaneta so publicamente identificados como inimigosrituais e exibem insgnias de animais predadores como a ona, o gavio e a sucu-ri. Os discursos dirios permitem perceber que a associao entre chefes e pre-dadores indispensvel, mas que ela orientada para os estrangeiros (GuerreiroJnior 2011). Quando a posio de chefe se manifesta no grupo local, o corpodo chefe-gavio e do chefe-ona precisa ser mantido invisvel. Os Kalapalo re-

    conhecem o perigo que esse tipo de pessoa representa, e no querem que suacapacidade predatria se volte para dentro. Este um risco presente nas relaescom os chefes, pessoas que precisam ser deliberadamente amansadas, para secomportar bem com seu pessoal (Figueiredo 2010). No toa que dizem que,enquanto o gavio discursa, seu primo cruzado (um pssaro que lembra o bem--te-vi) o questiona em frente sua casa: Voc diz que cuida de seu pessoal, masvoc nos come.

    Quais as consequncias do fim destes discursos? Obviamente no h

    consequncias objetivas, mensurveis, mas as pessoas tm suas teorias. Algunsdizem que hoje h mais feitiaria do que antigamente; outros dizem que aspessoas esto se tornando egostas, no dividem mais sua comida com qualquerum; outros esto trocando os enfeites rituais e as festas pelas roupas e as msicasdos brancos. No justamente de comida, cuidados com os parentes e festas quefalam os discursos? No fundo estas falas so como poemas sobre o desafio deseguir adiante frente s foras de desagregao e transformao representadaspela feitiaria e pelos perigosos espritos que so os brancos. Clastres estava

    certo, a fala do chefe no ordena nem produz leis mas ela reflete e faz refletir.

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    Notas

    1. A discusso que se segue parte de minha pesquisa de doutorado, intituladaEgits: ritual epoltica entre os Kalapalo, que desenvolvo junto ao Programa de Ps-Graduao em AntropologiaSocial da Universidade de Braslia.

    2. Todas as palavras karib utilizadas neste artigo so escritas de acordo com a grafiadesenvolvida por Bruna Franchetto em parceira com os professores indgenas.

    3. O Kamayur uma lngua pertencente famlia tupi-guarani, enquanto o Aweti, declassificao mais complexa, situado no tronco tupi sem ser definitivamente associada a nenhumafamlia especfica. H indcios de que esta seja uma lngua aparentada ao mesmo tempo famliatupi-guarani e lngua Sater-Mawe, que pertenceriam a um agrupamento maior que vem sendochamado de Mawet-Guarani (Drude 2009).

    4. Os Trumi foram os ltimos a entrar no Alto Xingu e tm uma participao marginal nestesistema (no so convidados para os rituais regionais, perderam sua especialidade produtiva osmachados de pedra e no tm mais aldeias na regio). Segundo os Kalapalo, eles sequer sogente alto-xinguana (kuge). Entretanto, optei por passar por cima do ponto de vista kalapaloe inclu-los na lista porque sem dvida fundamental notar que os Trumi so parte importanteda histria do Alto Xingu, tendo sido os responsveis pela introduo do jogo de dardos (hagaka,em kalapalo, mais conhecido como jawari) e, possivelmente, do ndhe (ou tawarawan, que osKalapalo, todavia, dizem ter sido sua prpria contribuio opinio compartilhada pelosYawalapti, segundo comunicao pessoal de Joo Carlos Almeida). Alm disso, eles so um casointeressante para se pensar possveis pontes entre o Alto Xingu e o Brasil Central, principalmenteem direo aos Karaj e Java (Villas Boas e Villas Boas 1970: 28; Monod-Becquelin e Guirardello2001; Rodrigues 2008).

    5. Segundo dados da Rede Nacional de Estudos e Pesquisas em Sade dos Povos Indgenas(Renisi 2011).

    6. Aiha, Tankgugu, Ajuaga Hotag (Coordenao Tcnica Local Culuene), Tehu Hungu,Tagi Hotepg, Apangakigi, As Inkgugethg/Kaluani, Tahoki, CTL Tangurinho e Wais.

    7. As excees so duas pequenas aldeias mais prximas do alto rio Tanguro, afluente doCuluene.

    8. Franchetto 2011.9. Chefe e chefa so as formas localmente comuns, apesar de imprecisas, para se traduzir

    os ttulosanet eitankgo que algumas pessoas podem utilizar. s vezes, utilizo os termos nobre

    ou nobreza (Barcelos Neto 2003; 2008) para me referir aos chefes e seus parentes em geral, poismesmo aqueles que no usam os ttulos de anet ou itankgo tambm so considerados pessoasdiferenciadas.

    10. H um tipo de sistema de especializao produtiva, no qual alguns grupos so responsveispela confeco de objetos exclusivos, como os cintos e colares de conchas dos kalapalo e matipu, acermica wauja e os arcos kamayur.

    11. Para uma anlise do anet itaginhu kuikuro, ver Franchetto (1993; 2000), e para umaanlise do discurso de recepo de mensageiros dos Wauja, ver Ball (2007).

    12. Isto , palavras cujo significado referencial s pode ser definido em funo da situaoe/ou do receptor de um ato de fala. No caso da fala dos chefes, esses diticos se referem a ideiassubentendidas pelos ouvintes, mas que so deliberadamente eclipsadas nos discursos.

    13. Franchetto (2000) traduz esse termo como feito para recepcionar, mas optei pelo uso defeito para cumprimentar, porque, alm dos discursos de recepo, ele tambm pode ser aplicadoa qualquer discurso realizado durante um determinado ritual.

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    14. Festa de homenagem a chefes mortos, conhecido como Quarup.15. Festa de trocas entre aldeias.16. Ritual de arremesso de dardos entre primos cruzados distantes, tambm em homenagem

    a um chefe ou grande cantor falecido.

    17. Mensageiro, convidador. Literalmente, buscador.18. Franchetto (1986; 1993; 2000), Ball (2007) e Basso (2009) so os nicos pesquisadoresque at o momento registraram, apresentaram e analisaram peas deste gnero de fala. O trabalhode Franchetto de longe o mais completo, seguido pela tese de Ball e um artigo de Basso (que selimita a apresentar pequenos trechos de discursos). Todos eles trabalharam com o discurso para arecepo de mensageiros o mais longo e elaborado de todos (e tambm considerado pelos Kalapaloo mais importante). No caso de Franchetto (1986), a autora tambm trabalhou com seus discursoscorrelatos noegits e com peas da oratria poltica.

    19. De fato todos os tipos de discursos soakitsene, mas quando os Kalapalo usam esse termo,geralmente, se referem queles feitos para a aldeia.

    20. Principal aldeia matipu, prxima de Aiha. A conversa com este chefe comprovou o carterformalizado destes discursos, pois a execuo que registrei com ele revela uma recorrncia deforma, temtica e vocabulrio em relao s verses kalapalo.

    21. Eles foram persuadidos a se mudar para um lugar mais prximo do Posto Leonardo VillasBoas (polo do contato no Alto Xingu), a fim de facilitar o atendimento sade e evitar desastrescomo a epidemia de sarampo de 1954.

    22. Segundo a mulher chefe mais importante de Aiha, este discurso no de qualquer ona,mas deEnitsug, o pai dos gmeos criadores da humanidade (o que, contudo, no foi confirmadopor Ageu).

    23. Durante uma oficina de documentao lingustica realizada na aldeia matipu Kngahnga,em outubro de 2009, coordenada por Bruna Franchetto e Mara Santos.

    24. Enquanto eu gravava, o narrador ensinava seu sobrinho uterino, por isso o vocativo ip,meu parente mais jovem, que os Kalapalo traduzem como filho.

    25.K-anda-g (12-pessoal/seguidores-REL).26. Esta uma tpica frase formulaica que aparece no anet itaginhu, sem contedo lexical e

    formada apenas por conjuntos de partculas caractersticas do gnero.27. No contexto dos rituais regionais, ngengoku traduzido como mensageiro, mas os

    Kalapalo geralmente a traduzem como empregado, pois qualquer pessoa que age a pedido dealgum seungengoku.

    28. No por acaso, qualquer ritual chamado de ailene, palavra formada a partir da raizaili(alegria) e traduzida pelos ndios como festa.

    29. Se as linhas 22 e 23 fossem traduzidas na ordem, elas no fariam sentido em portugus.Como formam um nico enunciado, optei por junt-las na coluna da traduo.

    30. ngele-pe (ele/aquele-ex).31. Utilizo aglomerado para substituir o termocluster em ingls, aplicado por Heckenberger

    (2005). Ele designa conjuntos de aldeias ligadas entre si no sistema regional, nos quais uma aldeia tomada como referncia para a identidade coletiva e atividades rituais das demais.

    32. Que, de certo modo, nada mais do que o resultado de diferenciaes mais antigas. Todasas narrativas histricas de diferenciao dos karib xinguanos relatam chefes deixando as aldeiasonde viviam para procurar novos lugares e, assim, se tornandoiho de novos grupos.

    33. A viagem foi uma atividade do Projeto Kalapalo, integrante do Programa de Documentao

    do Museu do ndio/Funai, e um de seus objetivos era registrar os conhecimentos etnohistricossobre uma srie de stios importantes.

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