o fraseado no choro: considerações ritmicas e melódicas
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O fraseado do Choro: algumas consideraes rtmicas e meldicas
Mrio Sve
UNIRIO/PPGM
SIMPOM: Prticas Interpretativas
Resumo: O presente artigo tem como objetivo investigar as mudanas ocorridas no fraseado
do choro - considerando este ter-se originado da fuso de melodias de origem europia com
padres rtmicos de origem africana. O recorte histrico situa-se entre a segunda metade do
sculo XIX e a primeira metade do sculo XX na cidade do Rio de Janeiro desde o surgimento do jeito chorado de interpretar a polca at a fuso desta e do choro com danas e gneros populares da cultura nacional, como o maxixe e o samba. O universo instrumental
relaciona-se sonoridade dos conjuntos de choro base de cavaquinho, violo e percusso.
So analisados os paradigmas rtmicos responsveis pela criao da polca-lundu, do tango
brasileiro, do choro-amaxixado e do choro-sambado. No quadro terico esto os conceitos de
imparidade rtmica, cometricidade e contrametricidade - dos autores Simha Arom e Mieczyslaw Kolinski, respectivamente - adaptados ao samba, no livro Feitio Decente: transformaes nos samba no Rio de Janeiro (1917-1933) (2001), de Carlos Sandroni, e contextualizaes de carter histrico pesquisadas nos trabalhos O Ba do Animal: Alexandre Gonalves Pinto e o choro (2013), de Pedro Arago, e Pequena Histria da Msica Brasileira: da modinha lambada (1991), de Jos Ramos Tinhoro, entre outros. O artigo ilustrado por partituras originais editadas de Henrique Alves de Mesquita, de Ernesto Nazareth, Pixinguinha, Benedito Lacerda e Jacob do Bandolim - e por uma
transcrio, tambm editada, da gravao do dueto Benedito Lacerda e Pixinguinha.
Palavras-chave: Choro; Fraseado; Contrametricidade; Imparidade Rtmica; Msica
Brasileira.
Abstract: The aim of this article is to investigate changes in choro phrasing - considering that
choro was born from the fusion of melodies of European origin with rhythmic patterns of
African origin. The historical period is from the second half of the nineteenth century and the
first half of the twentieth century in the city of Rio de Janeiro - from the emergence of a polka
"chorado" way of interpretation until the merger of polka and choro with dancing and popular
genres of national culture, as maxixe and samba. The instrumental universe is related to the
choros groups with cavaquinho, acoustic guitar and percussion. Different rhythmic paradigms are analyzed, through polca-lundu, tango brasileiro, choro-amaxixado and choro-
sambado. In the theoretical framework are the concepts of "rhythmic impairment",
"cometricidade" and "contrametricidade" by Simha Arom and Mieczyslaw Kolinski, respectively - adapted to Brazilian music, especially the samba, in the book Feitio Decente: transformaes nos samba no Rio de Janeiro (1917-1933) (2001), by Carlos Sandroni, and contextualization of the historical character researched in O Ba do Animal: Alexandre Gonalves Pinto e o choro (2013), by "Pedro Arago, and Pequena Histria da Msica Brasileira: da modinha lambada (1991), by Jos Ramos Tinhoro, among others. The article is illustrated by edited original scores - Henrique Alves de Mesquita, Ernesto Nazareth,
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Pixinguinha, Benedito Lacerda and Jacob do Bandolim - and by a transcription, also edited, of
the recording of the Benedito Lacerda and Pixinguinha duet.
Keywords: Choro; Phrasing; Contrametricidade; Rhythmic Impairment; Brazilian Music.
1. O fraseado e o choro
Articulao o nome dado ao processo tcnico do falar, a maneira de proferir as
diversas vogais e consoantes. De acordo com o Lexicon de Meyer (1903), articular
dividir, expor algo ponto por ponto; fazer com que as partes separadas de um todo
apaream claramente, sobretudo os sons e as slabas das palavras. Na msica,
compreende-se por articulao o ligar e o destacar das notas, o legato e o staccato,
bem como a sua mistura, para a qual muitos empregam abusivamente o termo
fraseado. (HARNONCOURT, 1988, p. 49).
Segundo o regente e musiclogo Nikolas Harnoncourt, a msica barroca, descrita
como a linguagem dos sons, era orientada pelo falar. A articulao, a qual muitos empregam
abusivamente o termo fraseado, parecia algo bvio para o msico, bastando apenas que se
orientasse pela pronncia musical e regras gerais de acentuao e de ligao. Registros desse
perodo apresentam uma notao limpa de indicaes de legato, staccato, acentuaes,
dinmicas ou at mesmo de andamento. Curiosamente, o mesmo costuma acontecer na maioria
das partituras de msicas populares. Tanto na msica barroca, onde dominava a transmisso oral,
quanto na popular - e a incluo o Choro conhecer regras e saber ler aquilo que no foi escrito
sempre foram importantes fundamentos.
O choro surgiu no Rio de Janeiro, na segunda metade do sculo XIX, a partir de um
jeito sentimental com que grupos populares formados por flautas, violes e cavaquinho -
abrasileiraram estilos musicais que aqui chegaram da Europa em fins da primeira metade do
mesmo sculo. A valsa, o schottisch, a mazurka e, em especial, a polca misturaram-se ao nosso
lundu e modinha e acabaram por receber uma forma peculiar de interpretao e composio. O
msico Henrique Cazes acredita que a palavra Choro seja uma decorrncia da maneira chorosa
de frasear, que teria gerado o termo choro, que designava o msico que amolecia as polcas
(CAZES, 2010, p. 17). E o historiador Jos Ramos Tinhoro, mencionando uma semelhana de
ritmo, procura explicar a fuso da polca com o lundu1:
Quando, pois, a partir da segunda metade do sculo XIX, a polca vence as barreiras
da censura familiar e se transforma numa loucura coletiva no mbito da classe mdia
urbana brasileira (chegou a ser criado o verbo polcar), a semelhana de ritmo com o
1 O lundu era o nome de uma dana derivada das rodas de batuques de negros africanos. (TINHORO, 1991, p. 47).
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lundu permite a fuso que poderia s vezes ser apenas nominal, mas que garante ao
gnero de dana sado do batuque a possibilidade de ser, afinal admitido livremente
nos sales sob o nome mgico de polca-lundu. (TINHORO, 1991, p. 56).
De um estilo de tocar polcas, no princpio, a um gnero musical, posteriormente, o
choro teve sua execuo sempre associada a desafios tcnicos e mudanas interpretativas na
melodia e no acompanhamento. Estimulou compositores e intrpretes de Joaquim Callado,
Chiquinha Gonzaga, Viriato Figueira, Anacleto de Medeiros, Ernesto Nazareth a Pixinguinha,
Jacob do Bandolim, Garoto e Waldyr Azevedo na busca de uma linguagem sofisticada e
perpetuou-se como base estrutural para a msica brasileira. Foi inspirao fundamental na
obra do compositor erudito Heitor Villa-Lobos, que lhe dedicou a srie de nome Choros, e
influncia em temas musicais de Tom Jobim, Radams Gnattali, Severino Arajo, Guinga,
Hermeto Pascoal e outros contemporneos. Por ltimo, tem formado uma infinidade de
instrumentistas virtuoses - de Patpio Silva, Luperce Miranda, Abel Ferreira, Dino 7 Cordas,
Altamiro Carrilho a Rafael Rabello e Hamilton de Holanda, entre tantos.
2. Ritmo e melodia
Exemplo 1: Fragmento de Os beijos de frade (1856), de Henrique Alves de Mesquita,
extrado do livro Trs vultos histricos da msica brasileira (SIQUEIRA, 1969, p. 39).
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A pulsao binria e a frequncia de frases compostas pela repetio sistemtica
dum s valor bem pequeno (semicolcheia) (ANDRADE, 1962, p. 31) parecem traduzir a
semelhana de ritmo que Tinhoro descreve, que vemos em Os beijos de frade (exemplo 1),
de Henrique Alves de Mesquita considerada uma polca-lundu, segundo Siqueira (1969, p.
45). Da mgica fuso da polca com o lundu onde aspectos meldicos e rtmicos
dialogaram entre conflitos e semelhanas nasceu, provavelmente, o fraseado do Choro. Uma
melodia de origem europeia (do clssico e do barroco) teve de inventar uma forma de
articulao musical para se adaptar a padres rtmicos de origem africana (da cultura de
negros escravos bantus2) que aqui existiam manifestados pelo batuque e pela dana.
Boa parte dessa inveno representada pelo que Mrio de Andrade chamou de
sncopa caracterstica ou, de uma forma mais ampla, de fantasia rtmica. O pesquisador,
que dizia que a sncopa... no primeiro tempo do compasso de dois a caracterstica mais
positiva da rtmica brasileira (apud SANDRONI, 2001, p. 21), afirmava tambm que
muitos movimentos chamados de sincopados no so sncopa. So polirritmia ou so ritmos
livres de quem aceita as determinaes fisiolgicas de arsis e tesis porm ignora (ou infringe
propositalmente) a doutrina dinmica falsa do compasso (ANDRADE, 1962, p. 33-4). De
fato, a sncopa, ou sncope3 no um conceito universal da msica assim como o compasso,
que s teve seu emprego sistematizado a partir do perodo barroco. Ela no existe, como a
conhecemos, na rtmica africana, embora costumeiramente represente o que h de africano na
msica ocidental no caso brasileiro, do lundu ao samba, o irregular da sncope muitas
vezes significa a regra, o mais comum, o caracterstico. Em seus estudos sobre a msica da
frica, A. M. Jones realizou a seguinte comparao:
... a rtmica ocidental divisa, pois se baseia na diviso de uma dada durao em
valores iguais. Assim, como ensinam todos os manuais de teoria musical, uma
semibreve se divide em duas mnimas, cada uma destas em duas semnimas e assim
por diante. J a rtmica africana aditiva, pois atinge uma dada durao atravs da
soma de unidades menores, que se agrupam formando novas unidades, que podem
no possuir um divisor comum ( o caso de 2 e 3). (SANDRONI, 2001, p. 26).
2 Kazadi Wa Mukuna desenvolve muito bem o assunto em seu livro Contribuio Bantu na Msica Brasileira:
perspectivas etnomusicolgicas (2010). 3 O The Grove Dictionary of Music diz que a sincopao (ato de usar sncopes, de sincopar) geralmente
acontece em linhas musicais em que os tempos fortes no recebem articulao. Isso significa que ou eles so
silenciosos (...) ou que cada nota articulada em um tempo fraco (ou entre dois tempos) e ligada at o prximo
tempo e que qualquer linha musical sincopada pode ser percebida como contrria ao pulso estabelecido pela organizao da msica nos compassos.
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Outros estudiosos tambm citados pelo musiclogo Carlos Sandroni, como Simha
Arom e Gehrard Kubik, ao investigar a rtmica da msica africana - onde h liberdade das
articulaes e acentuaes sem existir a recorrncia peridica de tempos fortes - foram
levados a abandonar como instrumentos de suas anlises no apenas os compassos, mas
tambm o prprio conceito de sncope. (SANDRONI, 2001, p. 24) Arom percebeu, ainda, o
que chamou de imparidade rtmica em um padro rtmico da msica africana, a mistura
de agrupamentos binrios e ternrios d origem a um perodo par (de pulsaes) que, dividido
por dois, resulta em duas partes mpares e desiguais. Por exemplo, o padro de oito pulsaes
3+3+2 ( ), chamado pelos cubanos de tresillo, quando dividido por dois, resulta em 3+5
( ). Esse padro e suas variaes , algumas
tambm encontradas no tango argentino, no ragtime e na habanera, podem ajudar-nos a
entender as articulaes e as frmulas de acompanhamento que constituram o paradigma
rtmico usado no choro e em vrios dos estilos musicais que surgiram no final do sculo XIX
e incio do sculo XX. Em seu livro Feitio Decente: transformaes nos samba no Rio de
Janeiro (1917-1933), Sandroni (2001) usa ainda os conceitos de cometricidade e
contrametricidade4 formulados pelo etnomusiclogo Mieczyslaw Kolinski para explicar a
adaptao desses padres msica brasileira, em especial ao samba considerando:
totalmente comtricas articulaes como e ; e totalmente
contramtricas articulaes como e
Por volta de 1870, a partir de uma maneira livre em se danar a msica em voga
na poca, nasceu aqui o maxixe. Msicos de Choro integrados ao bairro da Cidade Nova, na
Zona Centro do Rio, tiveram de adaptar ritmos e fraseados aos volteios e requebros de corpo
com que mestios, negros e brancos teimavam em complicar os passos das danas de salo
(TINHORO, 1991, p. 58). Passando a designar, tambm, um gnero musical no padro de
oito pulsaes , o maxixe firmou-se como um novo estilo para a cano e para a msica
instrumental de carter danante.
4 O carter variado do ritmo pode confirmar ou contradizer o fundo mtrico, que constante. Kolinski cunhou os
termos cometricidade e contrametricidade para exprimir estas duas possibilidades. A metricidade de um ritmo seria pois a medida em que ele se aproxima ou se afasta da mtrica subjacente (SANDRONI, 2001, p. 25).
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O primeiro compositor a estilizar o ritmo do maxixe, sintetizado pelos conjuntos de
Choro a partir da polca e do lundu, foi o pianista Ernesto Nazareth (TINHORO, 1991, p. 71)
em uma verso semi-erudita, para msica de salo, que chamou de tango brasileiro. As
obras de Nazareth5 procuravam retratar as funes de cada instrumento do Choro fossem eles
solistas ou acompanhadores, como o cavaquinho e o violo. Alm de usar a clula de
acompanhamento : da comtrica polca, suas partituras eram repletas das variaes do
padro contramtrico de oito pulsaes, como : (figura notvel nos maxixes e nas
gravaes dos Oito Batutas, grupo liderado por Pixinguinha). Em suas composies (como as
dos exemplos 2 e 3), cometricidade e contrametricidade muitas vezes conviviam em planos
sobrepostos (melodia sobre acompanhamento ou vice-versa). Tais escritos, ao sistematizar o
Choro, tornaram-se preciosos documentos para o estudo da msica desse perodo.
Exemplo 2: Fragmento de Ameno Resed, extrado de Todo Nazareth Obras Completas polcas (CURY; MACHADO, 2007, p. 100).
Exemplo 3: Fragmento de Tenebroso, extrado de Todo Nazareth Obras Completas tangos vol. 3 P-Z (CURY; MACHADO, 2007, p. 106).
5 O livro O Enigma do Homem Clebre: ambio e vocao de Ernesto Nazareth, de Cac Machado (2007),
traz uma anlise detalhada da trajetria e de algumas obras emblemticas do compositor.
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Em fins do sculo XIX, com o crescimento da populao negra e mestia, apareceram,
tambm na Zona Centro do Rio, lugares onde se praticava o samba - em seu estado primitivo.
Notabilizaram-se as festas nas casas das tias baianas, que promoviam um autntico caldeiro de
ingredientes musicais distintos e confluentes vindos do Choro e do batuque , com baile na sala
de visita, samba de partido-alto nos fundos da casa e batucada no terreiro (MOURA, 1983, apud
SANDRONI, 2001, p. 104), como diria o lendrio pandeirista Joo da Baiana. De uma produo
coletiva na mtica Casa da Tia Ciata nasceu o primeiro samba gravado Pelo Telefone, registrado
por Donga em 1917. As gravaes dos sambas desse perodo, incluindo os de Sinh o
sistematizador intuitivo desse gnero musical (SEVERIANO, 2008, p. 75) , eram ainda
marcadas pelo ritmo sincopado do maxixe (ou seja, no padro de 8 pulsaes)6.
S nos anos 1930, junto ao surgimento do rdio e da gravao eltrica, que
apareceu atravs da msica de Ismael Silva e de outros compositores da escola de samba Deixa
Falar, do bairro do Estcio no Rio o modelo rtmico de se tocar o samba como o conhecemos
atualmente. Este modelo, livre da influncia do maxixe, apresentava padro contramtrico de 16
pulsaes, com diferentes agrupamentos binrios e ternrios [2+2+2+3]+[2+2+3]7
, em
imparidade rtmica 9+7. Na funo de time-lines 8 , as figuras rtmicas
: (variao do padro 9+7)9 ou : (variao da forma invertida do
padro anterior, ou seja, em 7+9)10
esta nominada pelo musiclogo Samuel Arajo de ciclo do
tamborim ou padro do tamborim (SANDRONI, 2001, p. 36) , constituam a base das novas
frmulas para acompanhamentos (de percusses, cavaquinhos e violes) e fraseados meldicos
(de cantores e orquestras). Os msicos de Choro, que atuavam nas gravaes de samba,
acabaram por estar entre os mais importantes mediadores na assimilao do novo paradigma
rtmico. Assumiram especial importncia as atuaes do regional liderado pelo flautista Benedito
Lacerda nmero um em apoiar os mais famosos intrpretes de seu tempo, como Francisco
6 Considerando o fato dos negros percussionistas estarem fora da indstria cultural do perodo citado, Braga (2004)
atribui a um equvoco musicolgico reducionista a questo que divide o samba carioca nos estilos maxixado e do Estcio (a ser mencionado a seguir). Tal pertinente crtica, entretanto, no interfere nas anlises do presente artigo, que se concentram em investigar como diferentes paradigmas rtmicos (sem dvidas, encontrados nas gravaes dos dois estilos de samba) interferiram no fraseado rtmico-meldico do Choro.
7 Tal padro (ou paradigma) rtmico poderia ser representado, por nossa notao, como :
8 As time-lines, ou linhas guias, representadas por palmas, ou instrumentos de percusso de timbre agudo e
penetrante (como [o tamborim ou] idiofones do tipo do nosso agog), funcionam como uma espcie de metrnomo,
um orientador sonoro que possibilita a coordenao geral em meio a polirritmias (SANDRONI, 2001, p. 27). 9 Variao do padro de 16 pulsaes com agrupamentos divididos em [2+2+2+(1+2)] e[2+2+(1+2)].
10 Variao do padro de 16 pulsaes com agrupamentos divididos em [2+2+(1+2)] e [2+2+2+(1+2)].
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Alves e Carmen Miranda , e as orquestraes de Pixinguinha um dos principais arranjadores
do perodo, cuja escrita contribuiu para sistematizar um novo fraseado rtmico-meldico. Houve,
assim, como observa Arago:
a) o papel decisivo dos instrumentistas ligados ao choro nas transformaes de
contrametricidade surgidas no Estcio atravs de figuras mediadoras, como
Benedito Lacerda (pouco lembrado na bibliografia tradicional sobre o samba, mas
que teve, ao meu ver, papel decisivo na configurao deste novo padro) e
Pixinguinha; e b) o fato de que o choro tambm foi influenciado, de forma paralela e
complementar, por essa contrametricidade. (ARAGO, 2013, p. 33).
Muitos choros (editados originalmente no estilo de choros-amaxixados, como
observa-se nos trs compassos iniciais de Proezas de Slon, do exemplo 4) influenciados pelo
modelo rtmico do Estcio , passaram a ser reinterpretados (como observa-se nos quatro
compassos iniciais transcritos da gravao de Proezas de Slon por Pixinguinha e Benedito
Lacerda, no exemplo 5)11
ou compostos (como observa-se nos cinco compassos iniciais do choro
Noites Cariocas, de Jacob do Bandolim, no exemplo 6) como choros-sambados. Ou seja,
passaram a obedecer o novo padro contramtrico de 16 pulsaes (repetidos, ento, de dois em
dois compassos) e serem tocados de acordo com o conceito de imparidade rtmica ora em
7+9, na time-line : (como no exemplo 5, onde a melodia e o contraponto
aparecem adiantados em uma semicolcheia do primeiro para o segundo compasso e do terceiro
para o quarto compasso depois de ), ora em 9+7, na time-line : (como no exemplo 6, onde a melodia aparece adiantada em uma semicolcheia antes do primeiro
compasso de e tambm do segundo para o terceiro compasso depois de ). Somaram-se ainda, a Benedito Lacerda e Pixinguinha, outros msicos na mediao do
paradigma do choro-sambado, tais como o clarinetista e saxofonista Luiz Americano e,
especialmente, o bandolinista e pesquisador Jacob do Bandolim, que tornou-se o principal
compositor e intrprete do novo estilo e pea fundamental na organizao de um conjunto de
Choro deixando como legado seu famoso Conjunto poca de Ouro, ainda atuante.
11
Transcrio realizada para o volume 1 do livro Choro Duetos Pixinguinha e Benedito Lacerda, de Mrio Sve e David Ganc.
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PARADIGMA RTMICO:
Exemplo 4: Fragmento de Proezas de Solon, extrado do lbum de partituras Pixinguinha e Benedito Lacerda, com padro contramtrico 3+3+2, de oito pulsaes (choro-amaxixado).
PARADIGMA RTMICO:
Exemplo 5: Fragmento de Proezas de Solon, extrado de Choro Duetos Pixinguinha e Benedito Lacerda v.1 (SVE; GANC, 2010), com padro contramtrico de 16 pulsaes, em 7+9 (choro-sambado).
PARADIGMA RTMICO:
Exemplo 6: Fragmento de Noites cariocas, extrado do Songbook do Choro v.2 (SVE; SILVA; SILVA, 2011, p. 150), com padro contramtrico de 16 pulsaes, em 9+7 (choro-sambado).
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O entendimento dos paradigmas rtmicos relacionados a polca, ao lundu, ao
maxixe, ao samba so at hoje a base para a execuo do Choro e seus subgneros seja no
fraseado meldico ou no acompanhamento. O violonista e compositor Mauricio Carrilho
revela suas escolhas para o que chama concepo de acompanhamento desse pessoal da
velha guarda e do pessoal da gerao ps-Pixinguinha: ...a gente usa elementos rtmicos de
acordo com a figurao da melodia ou com a inteno que a gente tem de levar [os
acompanhamentos] mais para um lado ou para o outro (ARAGO, 2013, p. 232).
Concluses
O fraseado europeu que deu origem ao choro foi se modificando medida que a
msica se expunha dana, sempre se adaptando aos novos gingados do brasileiro.
E assim a polca foi se transformando em maxixe, o maxixe em samba, etc. Na
msica popular, principalmente quando associada dana, permite-se grande
liberdade de interpretao. Com relao s suas partituras, pode-se dizer que o que
se escreve nem sempre o que se toca. (SVE, 1999, p. 11).
Quando escrevi essas linhas, faz alguns anos, intua algo a partir apenas de minha
prtica musical. Imaginei, assim, que deveria agora investigar mais a fundo as questes
ligadas ao fraseado do choro mesmo admitindo ser um assunto vasto demais para a pequena
dimenso deste artigo. As pesquisas relacionadas no livro de Carlos Sandroni, somadas aos
escritos de Pedro Arago, Mrio de Andrade e Jos Ramos Tinhoro, entre outros, me
revelaram conceitos e contextualizaes histricas que puderam explicar, de uma forma
convincente e satisfatria, a influncia dos padres rtmicos africanos (contramtricos) nas
articulaes de melodias europias (comtricas) que aqui se fundiram na msica do Choro.
Essa mgica fuso, todavia no suficientemente estudada, julgo ser um dos mais fascinantes
enigmas desse gnero.
Pudemos perceber, atravs de anlises aqui apresentadas, determinadas mudanas
rtmicas e meldicas associadas a diferentes modelos de sincopao considerando-se o
ponto de vista da notao musical ocidental e sua organizao por tempos e barras de
compasso. Foi possvel observar, por exemplo, a partir dos padres de oito e 16 pulsaes,
como nossa sncope consegue se deslocar dentro de um mesmo tempo, entre tempos de
um compasso ou transbordando de um compasso a outro e, ao alterar o sentido do fraseado,
remeter-nos a gneros to variados quanto a polca-lundu, o maxixe e o samba.
Enfim, ficamos neste artigo com algumas ideias e esclarecimentos, mas achando
necessrio um mergulho ainda mais profundo no tema, seja, por exemplo, em pesquisas
relacionadas interseco do canto, da palavra com a msica instrumental (como sugere
Harnoncourt) ou em um possvel paralelo com estudos de performances histricas na
investigao de regras interpretativas para o Choro comparadas a regras das msicas do
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barroco e do classicismo estilos que aqui aportaram em perodos diversos, antes mesmo do
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