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UNIVERSIDADE CATÓLICA DE BRASÍLIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA O FRACASSO ESCOLAR DE JOVENS E ADULTOS E O IMAGINÁRIO SOCIAL Fabiola Gomide Baquero Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia, da Universidade Católica de Brasília, como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre em Psicologia. Orientadora: Profa. Dra. Mariza Vieira da Silva Brasília Novembro de 2001

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Page 1: O FRACASSO ESCOLAR DE JOVENS E ADULTOS E O … · O meu interesse em estudar o fracasso escolar de jovens e adultos no Brasil, e mais especificamente em Brasília/Distrito Federal,

UNIVERSIDADE CATÓLICA DE BRASÍLIA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA

O FRACASSO ESCOLAR DE JOVENS E ADULTOS E O

IMAGINÁRIO SOCIAL

Fabiola Gomide Baquero

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia, da Universidade Católica de Brasília, como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre em Psicologia.

Orientadora: Profa. Dra. Mariza Vieira da Silva

Brasília Novembro de 2001

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Com muito amor e carinho, dedico este trabalho ao meu pai e a

minha mãe que sempre acreditaram e incentivaram as minhas escolhas.

AGRADECIMENTOS

Agradeço, em especial, a Mariza pela sua atenção e carinho em todos os momentos

em que me sentia perdida e sem rumo. Pelos seus ensinamentos e aconselhamentos que fizeram

com que eu ‘enxergasse’ o mundo de uma outra maneira.

Agradeço também ao meu noivo Rodrigo que esteve "segurando todas as barras",

quando me sentia insegura e/ou nervosa, achando que não iria dar conta...

À minha família, pai, mãe, Bela e Guigo que sempre estiveram do meu lado, me

apoiando e acreditando no meu trabalho.

À minha equipe de handebol que teve que suar e jogar o dobro quando não pude

estar presente nos jogos e nos treinos.

O meu muito obrigado.

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SUMÁRIO

0. Apresentação.................................................................................................................. 08

1. Um Método de Análise.................................................................................................. 15

2. Raízes Histórico-sociais do Fracasso Escolar................................................................ 27

2.1. A Educação de Jovens e Adultos no Brasil.............................................................. 40

2.1.1 Do Brasil Colonial ao Século XIX: de um sujeito religioso para um

sujeito de direito............................................................................................ 40

2.1.2 A Educação de Jovens e Adultos do Século XX: suas campanhas e

movimentos................................................................................................... 45

3. Os Discursos Jurídico e Político..................................................................................... 54

3.1 O discurso jurídico.................................................................................................... 60

3.2 O discurso político educacional................................................................................ 68

4. O Discurso Científico: Abrindo Caminhos.................................................................... 88

5. O Discurso de Alunos de Educação de Jovens e Adultos............................................... 99

6. Conclusão........................................................................................................................118

7. Referências Bibliográficas...............................................................................................122

8. Anexo...............................................................................................................................127

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RESUMO

Esta dissertação teve por objetivo desconstruir-reconstruir a noção de fracasso escolar

de jovens e adultos no processo de aquisição da leitura e da escrita no Brasil, como forma de

compreender a constituição de uma subjetividade específica e a construção de um imaginário

social acerca do "fracassado", em que se constituem sujeito e sentido.

A Análise de Discurso foi utilizada como referencial teórico e metodológico,

sustentado, principalmente, nos trabalhos de Michel Pêcheux, Eni Puccinelli Orlandi e Mariza

Vieira da Silva. Analisando o funcionamento de diferentes discursividades, a partir de discursos

que consideramos fundadores deste fracasso, aqueles que estão na base da formação da sociedade

capitalista em que a escolarização básica tem lugar fundamental.

Analisamos o funcionamento do discurso jurídico, em que o sujeito de direito se

constitui, enquanto contraparte necessária do sistema capitalista; o discurso político, pensando

nas políticas públicas educacionais; o discurso científico, através de Vygotsky, enquanto uma

possibilidade de romper com esse imaginário; e o discurso dos alunos de EJA, em que busquei

compreender os seus gestos de interpretação, no que eles pudessem trazer de sentidos novos ou/e

antigos do que significa ler e escrever, podendo assim apreender e compreender como as práticas

pedagógicas se articulam as práticas sociais e políticas, de forma a encontrar novos caminhos

para uma transformação, e podendo também pensar em outros caminhos para ao trabalho com os

fenômenos psicopedagógicos.

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ABSTRACT

This dissertation aims at deconstructing-reconstructing the conception of school

failure of youths and adults in the literacy acquirement process in Brazil, as a way of

understanding the genesis of a specific subjectivity and the construction of a social imaginary

about the “loser”, in which subject and meaning.

The Discourse Analysis was used as theoretical and methodological reference, based,

mainly, in the works of Michel Pêcheux, Eni Puccinelli Orlandi and Mariza Vieira da Silva. By

analyzing the operation of different discourses, from the discourses we consider founders of such

failure, those which are at the base of the development of the capitalist society, in which basic

schooling plays a major role.

We analyzed the operation of the judicial discourse, in which the rightful subject is

constituted, as a necessary counterpart of the capitalist system; the political discourse,

considering the educational public policies; the scientific discourse, through Vygotsky, as a

possibility to break apart from this imaginary, and the EJA student’s discourse, from which I

attempted to understand the gestures of interpretation, about what they could present of new

and/or old meanings to what reading and writing mean, allowing, therefore, to understand and

comprehend how pedagogical practices articulate with social and political practices, so as to

find new ways to a transformation, and also being able to think of new manners to work with

psycho-pedagogical phenomena.

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APRESENTAÇÃO

O meu interesse em estudar o fracasso escolar de jovens e adultos no Brasil, e mais

especificamente em Brasília/Distrito Federal, como tema de minha dissertação de mestrado em

Psicologia, resultou de minha prática profissional. Há três anos, venho trabalhando com a

educação voltada especialmente para jovens e adultos (EJA). Este trabalho não se dava,

inicialmente, de forma direta em classes de alfabetização, pois atuava na coordenação de

"atividades e projetos", em conjunto com os professores, em uma escola da rede oficial do

Distrito Federal, que oferece o Ensino Fundamental noturno a jovens e adultos que não puderam

completar seus estudos no tempo e idade previstos.

Com o meu engajamento nas atividades da escola, muitas dúvidas e perguntas foram

surgindo em relação ao processo de aprendizagem desenvolvido na EJA, marcadas,

principalmente, pelas dificuldades sentidas pelos alunos em aprender a ler e a escrever e pelos

repetidos fracassos que fazem parte da história de vida desses jovens e adultos. Essas dúvidas e

perguntas, contudo, acabavam por centrar-se na questão dos métodos utilizados para ensiná-los a

ler e a escrever. Pensava que as metodologias - tomadas isoladamente - eram o ponto principal, o

mais importante para que houvesse sucesso no aprender. "Sucesso no aprender": eis outro ponto

que também era tomado como uma evidência, ou seja, algo que se apresentava como tendo o

mesmo referente para todos, tornando possível uma generalização e indeterminação no uso desta

expressão. Lembremo-nos, contudo, que os enunciados estão sempre sujeitos a fracassar, a

"infelicidades". (Austin, 1990)

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Na tentativa de trabalhar algumas dessas questões, procurei o curso de Mestrado em

Psicologia da Universidade Católica de Brasília para que, através de uma apreensão crítica do

conhecimento produzido sobre o tema, pudesse responder a algumas dessas inquietudes,

contextualizando-as, formulando outras questões, quem sabe, e, de alguma forma, contribuir com

os meus estudos e projetos para uma compreensão maior do processo de estruturação e

funcionamento da educação de jovens e adultos.

O trabalho acadêmico-científico desenvolvido no mestrado ampliou meus

conhecimentos sobre o tema muito além do esperado e produziu desdobramentos não previstos.

Em contato com diversas teorias psicológicas, com as diferentes formas de se fazer pesquisa, em

constantes discussões na sala de aula e com o apoio de minha orientadora em um trabalho

conjunto, fui delimitando o meu tema em uma outra direção, diferente da que eu tinha iniciado,

ou seja, pensando as metodologias no interior de um processo mais amplo de ensino e de

aprendizagem marcado por questões pedagógicas, mas também sociais e políticas. A partir daí, o

meu interesse pelas metodologias enquanto técnicas neutras e auto-suficientes da prática de

alfabetização foi diminuindo.

Mas, não conseguia, ainda, ver com clareza esse processo mais amplo do qual as

metodologias faziam parte. Deixei, pois, de lado, provisoriamente, essa questão e me voltei para

uma outra que andava me incomodando também em relação à educação de jovens e adultos: o

que eu chamava de "motivação", pois agora estava trabalhando diretamente em sala de aula. Foi

surgindo, assim, um interesse em questionar o motivo que levava o adulto a voltar a estudar.

Queria falar sobre a motivação, pois, achava muito intrigante, o interesse e o comprometimento

desses adultos com o estudo, apesar dos problemas e dificuldades, bem como dos fracassos

reiterados.

Eu tinha formada em minha memória, uma imagem, uma "idéia negativa” sobre esses

jovens e adultos. Pensava, como a grande maioria das pessoas, talvez, que eles eram marginais,

desqualificados, de pouco valor. Com a minha prática de sala de aula, pude perceber que me

enganara, aquela era apenas uma idéia, uma fantasia, um imaginário acerca desses jovens e

adultos. O que motivava um senhor ou uma senhora a estudar, depois de um dia inteiro de

trabalho? O que poderia significar voltar a estudar?

A escola onde lecionava, então, fica em uma área rural, próxima de Brasília. Os

alunos que freqüentavam essa escola são trabalhadores rurais, donas de casa, aposentados e

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vários jovens, com idade superior a 15 anos, a grande maioria vinda do interior do país, em

busca de melhores condições de vida na cidade grande. Gente simples, humilde, respeitosa e

muito acolhedora. Lecionar para eles era muito gratificante.

Com o tempo de trabalho, fui me aproximando mais dos alunos e conhecendo melhor

a realidade de vida deles, e ,de certa forma, a dinâmica de como levavam a vida e se percebiam

no mundo. Ia me dando conta de que a questão da motivação era também mais ampla e precisava

de ser melhor compreendida, superando o conhecimento fragmentado e precário que tinha sobre

o tema. Via, por um lado, que esses trabalhadores tinha um motivação muito grande para estar ali

depois de um dia estafante de trabalho mal remunerado e, por outro, que as orientações

pedagógicas me diziam que precisava motivá-los para que aprendessem. Parecia haver aí uma

contradição que naquele momento não sabia explicitar e compreender. Interessava-me também

em entender os processos e os mecanismos de aprendizagem da leitura e da escrita, que se

mostravam tão “sofridos” e “terrivelmente difíceis” para eles. Queria ajudá-los, queria "facilitar"

o processo de aprendizagem, mas não bastava essa motivação entendida como técnica, mais uma

vez, neutra e instrumental.

Neste período de reflexão, cheguei a fazer uma análise de verbetes de dicionários de

Psicologia sobre a motivação. Escolhi dois dicionários traduzidos para o português de Peter

Strtton e Nicky Hayes (1994) e Michel e Françoise Gauquelim (1984), e um dicionário em inglês

de Stuart Sutherland (1989). Observando o funcionamento discursivo desta palavra, fui

constatando que a palavra "motivação" produz efeitos de sentidos diferentes, e muitas vezes,

opostos na sua própria conceituação.

O uso deste termo, em Psicologia, vem sendo utilizado por uma das correntes do

pensamento psicológico bastante forte: o behaviorismo. Se procurarmos tal definição em um

dicionário de outra corrente de pensamento psicológico, como por exemplo, o da Psicanálise, não

encontraremos esse verbete e, consequentemente, nenhum referente ou significação para essa

palavra. Essa “ausência” da palavra e de sentido já traz consigo a sua significação e mostra que

os fenômenos são estudados de determinada maneira, ou chegam mesmo a ter existência,

dependendo da corrente teórica.

Outro ponto interessante que observei nesta análise, foi quanto à estrutura e à

organização das definições, ora muito curta, ora muito longa, demandando sentidos curiosos.

Então pensei: se a própria definição da palavra já trazia vários questionamentos e contradições,

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imagine a prática pedagógica envolvendo a motivação? Então, na realidade, estamos motivando

quem ou o quê? Para quê? Para quem? O fracasso escolar desses jovens e adultos poderia ser

compreendido adotando a motivação como referência?

Interessante era que havia mudado de ângulo - de metodologias para motivação - para

enfocar a Educação de Jovens e Adultos, mas sentia como se estivesse lidando com questões e

problemas que se relacionavam muito estreitamente. O trabalho com a Análise do Discurso que

havia escolhido como referencial teórico e metodológico para minha dissertação, ia ampliando as

minhas possibilidades de compreensão, mas sentia que faltava mais alguns passos para chegar à

formulação do meu problema, ao meu objeto de estudo.

Estava, ainda, nesse processo, quando participei de um estudo exploratório sobre o

processo de aquisição da leitura e da escrita, na disciplina "Desenvolvimento e Fracasso Escolar",

elaborado pela professora da disciplina em conjunto com suas cinco alunas, com o objetivo de

fazer uma investigação coletiva que trabalhasse todos os textos lidos e discutidos em sala de

aula. Uma teórica que nos influenciou bastante foi Scribner (in Tobach & col, 1997), através da

leitura cuidadosa de seus estudos e do relato da pesquisa sobre os usos da leitura e da escrita em

uma sociedade da Libéria, a dos VAI.

Com este trabalho objetivávamos saber, mais especificamente, como se deu o

processo de aquisição da leitura e da escrita de alunos de diferentes séries e níveis de

escolaridade. Foram escolhidos, então, diferentes escolas e diferentes alunos para a aplicação de

um questionário, que continha 15 questões (Anexo 1).

Eu investiguei um grupo de jovens e adultos que tinha acabado de terminar o seu

processo de alfabetização. Apliquei os questionários de forma individual, tendo mesmo que

anotar as respostas, porque a maioria dos alunos não conseguia escrevê-las: não dominavam a

escrita.

Os resultados deste estudo exploratório foram discutidos e analisados em grupo, e

foram organizados em forma de painel para serem apresentados no XXX Reunião Anual de

Psicologia, que aconteceu em Brasília, em outubro de 2000.

Este trabalho trouxe valiosas contribuições para as reflexões que vinha fazendo, bem

como me possibilitou uma primeira delimitação do tema da dissertação, que se materializou sob a

forma de um trabalho denominado O Fracasso Escolar e o Imaginário Social, que foi

apresentado no V Congresso Brasileiro de Psicopedagogia, que aconteceu em julho/2000 em São

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Paulo. Foi a primeira oportunidade de articular de forma sistemática, servindo-me do referencial

da Análise do Discurso da linha francesa, as diferentes (ou mesmas) questões que vinham me

incomodando em minha prática pedagógica. Tomei-o como um estudo exploratório sobre o meu

campo de interesse.

Dentre os vários questionários aplicados, dois me chamaram especial atenção pela

força de seus enunciados, em que o próprio aluno reproduz uma imagem sobre si mesmo, sendo

tomado por um já-dito sobre quem não sabe ler e escrever, revelando uma subjetividade

determinada historicamente em nosso País. Os enunciados foram respostas dadas a última

questão do questionário: Imagine se você não soubesse ler e escrever, como seria?

Partindo da idéia de que as respostas dadas, são efeitos de sentidos e que são

produzidas em condições determinadas e que estão de alguma forma presentes no modo como se

diz – a memória, a história, o contexto, o imaginário, a ideologia - analisei os seguintes

enunciados dados como respostas: “Seria como um bicho bruto qual que" e "Ia ser um zero à

esquerda, não valia nem uma balinha". No primeiro caso, tratava-se de um enunciado

proferido por um jovem baiano de 20 anos e, no segundo, por um jovem piauiense de 19 anos.

Este trabalho, além de analisar o discurso dos alunos, discutiu, também, uma

dicotomia que vem sendo, nas últimas duas décadas, objeto de discussão e da produção científica:

alfabetização X letramento, que trata da questão do aprendizado da leitura e da escrita enquanto

um processo marcada pela mecanicidade ou pela produtividade e criatividade.

A partir da discussão destes dados, pudemos concluir que as relações específicas

entre o aprender a ler e a escrever e as condições sociais e políticas em que tal prática se dá,

produzem efeitos de sentidos determinados. O que os dados apontaram é que a escola que atua

com jovens e adultos produz uma relação com a escrita marcada mais pelo mecânico-repetitivo

do que pelo criativo-produtivo (Silva, 1998) em seus alunos, delimitando assim os alcances e

limites do sujeito em suas atividades sociais e políticas – em seu exercício da cidadania –,

reproduzindo e reforçando um imaginário de exclusão social para os analfabetos.

Assim, foi através desses dois trabalhos - com os dicionários e com os questionários -

que delimitei melhor o meu tema de pesquisa. Os meus questionamentos se voltaram mais para

entender a construção do imaginário social acerca da educação de jovens e adultos. O fracasso

escolar desse aluno não está, somente, em passar de ano ou não, em um fato pretensamente

objetivo e mensurável pelas estatísticas, está em outro lugar. E compreender esse outro lugar,

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pareceu-nos fundamental para que possamos realmente proceder a uma mudança em direção à

justiça social e à superação das desigualdades. Fracassar para esses jovens e adultos, no Brasil, é

mais, muito mais, que ser bem sucedido, é não conseguir tornar-se gente-homem, é continuar na

condição animal-coisa. Desta forma, aprender a ler e escrever é uma condição, um meio do

falante se humanizar em uma sociedade letrada, ou não, mesmo que imaginariamente. O meu

problema era, pois, compreender o processo de constituição deste sujeito como fracassado.

É importante lembrar que o programa de pós-graduação da Católica tem como eixo

temático “A complexidade da constituição do sujeito”, o que também me fez retomar

constantemente minhas questões em função das diferentes formas de individuação que a leitura e

a escrita possibilitam no interior de uma instituição específica: a escola. Assim, cheguei ao meu

problema de forma mais precisa, formulando algumas questões. Como as diferentes formas de

individuação do sujeito se dão nas condições de produção do fracasso escolar? A aprendizagem

da leitura e escrita possibilitam uma mudança de lugar de fala para os jovens e adultos de nosso

País? Possibilitam uma mudança nas relações de interlocução, nas relações de poder? De que

forma o discurso científico - da Psicologia, da Pedagogia, da Lingüística -, os discursos jurídico e

político educacional dão sustentação à prática pedagógica da Educação de Jovens e Adultos?

A resposta inicial a tais questionamentos, sob o crivo teórico da Análise do Discurso,

permitiram a construção do objeto discursivo a ser analisado: o fracasso escolar de jovens e

adultos no aprendizado da leitura e da escrita no Brasil e o imaginário social . Como psicóloga,

a minha questão é, pois, compreender como na relação entre as teorias e instituições de uma

sociedade dada – no caso, a brasileira – se dá o processo de constituição de uma subjetividade

desde sempre marcada pelo “fracasso”, dividida entre um “dito” ( com possibilidades de

mudança) e um “já dito” ( interdiscurso – memória do dizer), atravessada por um “não dito” ( que

faz parte de todo dizer), reiterados de fracassos. O que passo, agora, a discutir e analisar nesta

dissertação.

Na primeira parte deste trabalho, apresentamos o referencial teórico-metodológico da

Análise do Discurso francesa (AD). Situamos a AD num contexto epistemológico específico e

discutimos as noções que constituem o seu dispositivo teórico, base necessária para a construção

do nosso objeto discursivo e do corpus estabelecido para descrição e análise.

Na parte que se segue, trazemos uma revisão da literatura, visando fazer um

levantamento e análise das raízes históricas do fracasso escolar que produziram, ao longo dos

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séculos, um imaginário social. Neste capítulo, buscamos desvelar o que chamamos de fracasso

escolar, ou seja, do que estamos falando quando falamos de fracasso escolar. Como esse referente

tido como unívoco pode ser colocado em discussão. O que é fracassar? Como um imaginário

sobre o fracasso se construiu no Brasil, fazendo com que cada um de nós signifiquemos o outro e

nos signifiquemos, como fracassado ou não? Como foi produzido esse referente “fracasso

escolar” (uma posição enunciativa) e como vem sendo reproduzido, construindo espaços de

significação e de interlocução, em que se constróem também formas de individuação para esse

sujeito atuar em uma sociedade dada.

No terceiro capítulo, fazemos a análise dos discursos jurídico e político sobre o tema.

Tratamos especificamente da legislação maior do ensino de jovens e adultos no Brasil, analisando

como ela inclui a EJA e garante o ensino de jovens e adultos a todos aqueles que não tiveram

educação no tempo previsto. Observamos, ainda, o funcionamento do discurso das políticas

públicas educacionais que tratam das diretrizes curriculares da educação de jovens e adultos em

três documentos distintos: a Proposta Curricular do Primeiro Segmento, o Parecer CNE/CEB n°

11/2000 do Conselho Nacional de Educação e a Resolução/2000, deste mesmo Conselho, que

define as diretrizes curriculares da educação de jovens e adultos.

No quarto capítulo, trabalhamos algumas noções da teoria elaborada por Vygotsky

como suporte teórico da Psicologia para um processo de desconstrução-reconstrução que se

instalara, o que me permitiu compreender o papel, a função social de uma política de leitura e de

escrita em uma sociedade dada, e também como se dá o processo de constituição de uma

subjetividade marcada pelo processo de aquisição de um instrumento histórico e social: a escrita.

No capítulo que se segue, analisamos a produção de textos de alunos da Educação de

Jovens e Adultos. Os textos foram escritos a partir de um tema proposto: “ Minha vida sem saber

ler e escrever”. Nessa análise, tentamos compreender a relação do que foi dito nos vários

discursos trabalhados anteriormente, com o que é dito pelo aluno, observando o funcionamento

de uma intertextualidade em seus efeitos de sentido. Observando, ainda, o que é dito de um modo

ou de outro, procurando "escutar" a presença do não-dito no que é dito pelo próprio aluno, passo

a "ouvir" naquilo que o sujeito diz, aquilo que ele não diz mas que constitui igualmente os

sentidos de suas "palavras".

E por fim passo para a conclusão deste trabalho, onde retomo as questões postas

inicialmente, delineio novas questões e possibilidades futuras de novos trabalhos.

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1. UM MÉTODO DE ANÁLISE

Escolher e trabalhar um referencial teórico e metodológico para uma dissertação de

mestrado não é uma tarefa fácil para uma iniciante no vasto e complexo mundo da ciência.

Assim, poderia dizer que essa escolha e o domínio do mesmo consistiram em um processo de

trabalho que se deu entre temas de meu interesse, leituras e discussões sobre os mesmos e sobre

teorias, elaboração de questões que me chamavam a atenção, produção de trabalhos acadêmicos,

mais leituras, levantamento de hipóteses de trabalho, construção de um objeto de estudo. Isso

quer dizer que foi um movimento contínuo entre minhas experiências e minhas reflexões, entre

aulas e leituras, sustentado por uma orientação que tinha na Análise do Discurso – AD, uma

referência teórica e metodológica.

O contato com os textos de Michel Pêcheux, Eni Puccinelli Orlandi e Mariza Vieira

da Silva, principalmente, ajudaram-me a responder a tantas perguntas - bem com em colocar

outras tantas - em relação ao tema proposto, enquanto ‘base’ para o trabalho de dissertação.

Passo, agora, a apresentação e discussão do dispositivo teórico da AD a partir das formulações de

Pêcheux sobre esse outro instrumento de análise de texto no campo das Ciência Humanas e

Sociais que fundamenta toda a minha dissertação.

Michel Pêcheux foi um filósofo de formação, não um filósofo qualquer, mas um

filósofo convencido de que a prática tradicional da filosofia, no que diz respeito às ciências,

estava (está) desprovida de sentido ou é, no mínimo um fracasso, como afirma Henry (1990),

comentado os trabalhos iniciais do fundador da Análise do Discurso. Ainda seguindo Henry,

ficamos sabendo que Pêcheux sempre teve a ambição de abrir uma fresta teórica e científica no

campo das Ciências Sociais, em particular, na Psicologia Social, como afirmava no momento da

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publicação de "A análise automática do discurso" (1969). O que é feito a partir do

questionamento do que vem a ser um instrumento científico, ponto de especial interesse para o

meu trabalho no campo da Psicologia, ou melhor, da Psicopedagogia.

E o que é para Pêcheux um instrumento científico? Podemos dizer que ele trabalha

essa noção tomando as idéias de Bachelard e Canguillem como referência inicial para, em

seguida, acrescentar outros elementos oriundos de uma análise da perspectiva do materialismo

histórico sobre as conseqüências da divisão do trabalho, e sobre as conseqüências do caráter

contraditório das combinações de forças produtivas e das relações sociais de produção em uma

sociedade dividida em classes (Henry:1990).

Pêcheux elabora duas proposições fundamentais sobre um instrumento científico e é

sobre essa base de análise que concebe o seu sistema de Análise Automática do Discurso. A

primeira proposição se refere à condição na qual a ciência estabelece seu objeto. Diz ele:

“Toda ciência é produzida por uma mutação conceitual num campo ideológico em relação ao qual esta ciência produz uma ruptura através de um movimento que tanto lhe permite o conhecimento dos trâmites anteriores quanto lhe dá garantia de sua própria cientificidade”. (p.16)

Ele acrescenta que, num certo sentido, toda ciência é antes de tudo, a ciência da

ideologia com a qual rompe. Logo o objeto de uma ciência não é um objeto empírico, mas uma

construção. A construção deste objeto se dará no deslocamento da compreensão, que determinada

ciência tenha do que seja história, sujeito, linguagem e ideologia.

Por isso Pêcheux diz que o seu instrumento científico não poderia ser concebido

independentemente de uma teoria que o incluísse. O que pudesse ser tomado de empréstimo para

construir esse instrumento, precisava ser reinventado, reconstruído pela teoria que tivesse em

vista (Henry,1990).

A segunda proposição proposta por Pêcheux refere-se ao processo de “reprodução

metódica” deste objeto de estudo construído historicamente. Para ele:

“Em cada ciência, dois momentos devem ser distinguidos. Primeiramente, o momento da transformação produtora do seu objeto, que é dominado por um trabalho de elaboração teórico-conceitual que subverte o discurso ideológico com que esta ciência rompe. Em segundo momento, o momento da “reprodução metódica” deste objeto, o qual é de natureza conceitual e experimental”. (p.16)

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Em cada uma destas fases ou momentos da ciência, os instrumentos e ferramentas

representam um papel diferente. Evidentemente as ciências firmemente estabelecidas

desenvolvem instrumentos no interior de si próprias, de modo que a “invenção” de tais

instrumentos produz-se no seu interior sob a forma de “teoria realizada” (Henry:1990). Tomamos

como exemplo, os teste padronizado de inteligência, que durante muitas décadas, na Psicologia,

forneceram uma homogeneidade de dados que permitiram o desenvolvimento de diversas teorias

psicológicas e pedagógicas e que ajudaram a dar "cientificidade" ao fracasso do indivíduo no

interior de uma instituição escolar.

Pêcheux conclui, conforme Henry (1990), dizendo que as ciências colocam suas

questões, através da interpretação de instrumentos, de tal maneira que o ajustamento de um

discurso científico a si mesmo consiste, em última instância, na apropriação dos instrumentos

pela teoria. É isto que faz da atividade científica uma prática. E no caso da Psicologia, uma

‘ciência do comportamento’, observamos a utilização de instrumentos para a medição das

capacidades e características individuais: teste de inteligência, de percepção, de personalidade, de

lesões cerebrais, de habilidades sociais... e muitos outros, para construir, por exemplo, um

diagnóstico. Muitos desses instrumentos e de suas interpretações acabam por serem transferidos

para outras ciências, como a Pedagogia e a Psicopedagogia, que, por sua vez, acabam por criar

uma nova maneira de precisar cientificamente as dificuldades de aprendizagem, os distúrbios de

comportamento, o fracasso escolar, levando muitas vezes, a excluir e "rotular" indivíduos como

"incapazes para aprender", “normais” e/ou “anormais” por não terem obtido um percentual

mínimo nos testes.

Não podemos pensar que o problema do fracasso e ou do analfabetismo existam por

si só, independentemente das relações econômicas e sociais, do outro que aponta para aquele que

não sabe ler e escrever chamando-o de "analfabeto". O discurso científico, sustentado por teorias

psicológicas e/ou pedagógicas, aponta para este ou aquele lugar de fracassado, ou seja, ajuda a

construir uma posição-sujeito, a do fracassado. Neste sentido, muitas vezes, os conceitos e

instrumentos propostos por teorias e práticas reforçam que o fracasso é do indivíduo, colocam o

aluno como a causa de seu fracasso. Por isso, que neste trabalho nos preocupamos em tomar

diferentes discursos para análise – científico, jurídico, político, e dos alunos -, para, assim,

compreendermos um pouco mais sobre as alianças e confrontos existentes entre eles e sobre a

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construção de um imaginário social, com seus referentes, podendo, assim, pensar de um outro

lugar o processo de constituição do sujeito fracassado.

Para Pêcheux, teoria e instrumento de pesquisa têm necessariamente de andar juntos e

a adoção de um instrumento de uma teoria por outra implicaria em uma apropriação específica

que provocaria mudanças no instrumento e no campo que fez a apropriação. Neste sentido é que

podemos pensar no uso da Análise do Discurso no campo da Psicologia. Não como mera

aplicação de uma técnica, mas como a apropriação de uma metodologia de leitura e de

interpretação de textos, sustentada por um referencial teórico, que deverá produzir rupturas nos

dois campos disciplinares. Daí a proposta de um mestrado interdisciplinar.

A preocupação principal de Pêcheux (1988) referia-se à ligação entre o discurso e a

prática política, ligação que, para ele, passa pela ideologia. Ele se colocou entre o que podemos

chamar de “sujeito da linguagem” e “sujeito da ideologia”, tentando discernir as relações entre

esses sujeitos, ou seja, a relação entre a “evidência subjetiva” e a “evidência do sentido”,

evidências que permitem que eu me veja sempre como um "eu" específico e determinado e um

sentido como natural e universal.

Neste trabalho, iremos perceber, nos diferentes discursos que tratam da educação de

jovens e adultos, que não há relação termo-a-termo entre as coisas, a linguagem e que os

referentes não são unívocos. Ser analfabeto não significa apenas não saber ler e escrever;

significa muito mais, significa, entre outras coisas, ser uma vergonha nacional, ser um bicho

bruto qualquer, não ser ninguém. É por isso que até podemos, hoje, utilizar a palavra ‘analfabeto’

como uma ofensa.

E se pensamos que a relação do sujeito com o mundo é constituída pela ideologia, e

que esta se materializa em um imaginário que medeia a relação do sujeito com suas condições de

existência, buscaremos, nesta dissertação, apreender como na nossa sociedade brasileira se deu a

construção discursiva de um sujeito adulto fracassado, analisando os diversos discursos que

permeiam o nosso cotidiano que são produto deste imaginário e condição para a sua construção.

Os instrumentos científicos não são feitos para dar respostas, mas para colocar

questões, enquanto um meio de uma experimentação efetiva, diz Pêcheux. Neste sentido, a minha

prática em trabalhar com esse dispositivo teórico me possibilitou uma nova compreensão dos

fenômenos psicológicos, obrigando-me mesmo a rever teorias psicológicas até então adotadas.

Não se tratou, portanto, de mera aplicação de uma técnica, de um instrumento. O contato com a

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materialidade lingüística dos textos "sobre" a alfabetização para os jovens e adultos, dos textos

"dos" alfabetizando e a análise dos mesmos, sustentada pela autonomia relativa da língua, foram

tendo o efeito de uma verdadeira desconstrução e, ao mesmo tempo, de construção de uma

compreensão de uma posição-sujeito, historicamente determinada: a do sujeito-fracassado. O

leitor deste trabalho poderá ir acompanhando o desenrolar desse processo nos capítulos que se

seguem.

Durante todo o processo de elaboração deste trabalho, vivi momentos de constante

desconstrução: de idéias, de teorias psicológicas, de crenças e valores. Desconstruir para

reconstruir. No momento de reconstrução, busquei, então, encontrar um dispositivo teórico da

área da Psicologia que me ajudasse a compreender melhor a questão do sujeito e a encontrar

repostas para as várias perguntas que se sucediam sobre o tema. As concepções de Vygotsky

(1996,1999) sobre desenvolvimento e sobre o aprendizado da escrita, foram as mais indicadas

para sustentarem as minhas formulações, no sentido de pensar na construção social dos espaços

de linguagem: espaços da leitura e da escrita, enquanto espaços de exclusão e de fracasso e um

movimento contraditório com os espaços de inclusão e de sucesso.

Trabalhar com a Análise do Discurso implica em um movimento que vai do tema -

objeto de estudo - e teoria dominada à descrição e análise dos textos em sua organização

lingüística, enfrentando a opacidade da linguagem, para retornar ao tema e teoria para revisões e

reformulações. Para a AD, a linguagem não é transparente e o sentido não é conteúdo. O que

temos é uma dispersão do sujeito e do texto que se apresentam como unívocos e acabados, como

evidências para o leitor.

O dispositivo teórico da AD foi construído na França, na década de 60, como

resultado de um trabalho de filósofos, lingüistas, historiadores e psicólogos (especialmente em

Psicologia Social), e desenvolvido sobre bases que buscavam uma aproximação entre processos

discursivos e processos ideológicos. Ela constitui-se, assim, no espaço de questões criadas pela

relação entre três eixos epistemológicos: o da Lingüística, o do Materialismo Histórico e o da

Psicanálise.

Assim para a Análise do Discurso, segundo Orlandi (1999):

♦ A língua tem sua ordem própria mas só é relativamente autônoma ♦ A história tem seu real afetado pelo simbólico ( os fatos reclamam

sentidos).

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♦ sujeito de linguagem é descentrado pois é afetado pelo real da língua e também pelo real da história, não tendo o controle sobre o modo como elas o afetam. Isso redunda em dizer que o sujeito discursivo funciona pelo inconsciente e pela ideologia. (p.19)

A AD, trabalhando na confluência desses campos de conhecimento, produz um novo

recorte de disciplina e constitui um novo objeto de estudo que é o "discurso", distinto da fala

saussureana. E como próprio nome indica, prossegue Orlandi (1999), a Análise do Discurso

"...não trata da língua, não trata da gramática, embora todas essas coisas lhe interessem. Ela trata do discurso. E a palavra discurso, etimologicamente, tem em si a idéia de curso, de percurso, de correr por, de movimento. O discurso é assim palavra em movimento, prática da linguagem: com o estudo do discurso observa-se o homem falando. (p.15)

Na AD, o discurso não é vista de forma neutra, como transmissão de mensagem por

um sujeito consciente e intencional, capaz de dominar e controlar plenamente a linguagem

enquanto um instrumento pronto. No funcionamento da linguagem, que põe em relação sujeitos e

sentidos afetados pela língua e pela história, temos um complexo processo de constituição desses

sujeitos e produção de sentidos. São processos de identificação do sujeito, de argumentação, de

subjetivação, de construção de realidade. Esse processo é claramente percebido nos textos dos

alunos de EJA, em que eles repetem sentidos antigos tidos como unívocos, mas também

deslocam esses sentidos, me permitindo ver as construções das relações entre o já-dito e o não-

dito materializado no efetivamente enunciado. O que faz, ainda, com que os alunos repitam em

seus textos conceitos e relações construídos historicamente como os de cegueira X inaptidão,

coisa X gente, animal X homem...As relações de linguagem são relações entre sujeitos e os

sentidos e seus efeitos são múltiplos e variados. Daí a definição de discurso: efeito de sentido

entre locutores.

Desde 1969, Pêcheux, tomando o esquema da teoria da informação, mostrou como o

que estava em jogo no processo de interlocução não era o indivíduo ou a situação empírica, mas

as formações imaginárias. E que se tratava de uma posição de sujeito, isto é, de um lugar social

de onde um indivíduo enuncia, assim como de um referente imaginário que mediava a chamada

comunicação. Em nosso trabalho, quando falamos de sujeito-fracassado estamos nos referindo a

uma posição de sujeito que se constituiu ao longo da história e faz com signifiquemos o mundo e

nos signifiquemos de determinada maneira, quando ocupamos determinados lugares de fala e de

escuta na sociedade, como o de professor e o de aluno ou o de psicólogo e paciente. Quanto ao

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referente, no nosso caso, estamos nos referindo à leitura e à escrita, que se constitui também

enquanto objeto imaginário.

Neste sentido, posso pensar as formações imaginárias - referidas às formações

ideológicas, às relações sociais - que funcionam no discurso dos alunos de Educação de Jovens e

Adultos, como evidenciando, em seus textos, a imagem que eles fazem de serem alfabetizados,

de se tornarem alguém, de obterem sucesso profissional a partir da aquisição da escrita, um

objeto histórico e simbólico. Ou seja, da possibilidade de dominar um objeto imaginário e da

garantia que este objeto lhes trará: de transformar a sua vida, de mudar uma posição enunciativa,

uma posição de poder na sociedade.

Uma outra noção importante na AD é a de ideologia enquanto direção de sentidos,

direção da interpretação. Não estamos, pois, tratando a ideologia como ocultação ou como

conteúdo previamente elaborado fora da linguagem. Estamos falando em filiação de sentidos que

constrói determinadas representações do mundo e das coisas. Para a AD, a ideologia não é "x",

mas o mecanismo de produzir "x" ( Orlandi, 1996). Interessa-nos, portanto, como se foi

construindo um mundo de significação para o sujeito-fracassado habitar pelas diferentes

textualidades através das quais o discurso se manifesta. Quando o jovem de hoje diz que "seria

como um bicho bruto qual que" se não aprendesse a ler e a escrever, ele está retomando

sentidos já ditos de formações discursivas - referidas à s formações ideológicas - em que se

constitui como sujeito.

No confronto das instâncias ideológicas, segundo Orlandi (1994), percebemos que há

uma divisão dentro de um todo complexo, algo como diversas formações ideológicas se

entrecruzando nos limites de um todo complexo ideológico. Ainda é necessário se pensar a

natureza dessas instâncias ideológicas, pois não são idênticas, e se relacionam de maneira

diferenciada. No caso de uma ideologia determinando uma prática, como a pedagógica, há um

remissão necessária á história concreta, que torna tal prática possível. Quanto a ideologia em

geral, seria uma noção a-histórica, que se traduziria no funcionamento de um todo complexo.

Quando o sujeito se coloca, na origem no sentido, perde-se, para ele, a dimensão

material e histórica do sentido e instaura-se no lugar da materialidade histórica a transparência

da linguagem. Isso se daria por um processo de interpelação-identificação do sujeito em relação

a determinada formação ideológica, que é pagado para este mesmo sujeito. Pêcheux (1988)

denomina de:

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”Formação discursiva(FD) aquilo que, numa formação ideológica dada, isto é, a partir de um posição dada numa conjuntura dada, determinada pelo estado da luta de classes, determina o que pode e deve ser dito(...) Isso eqüivale a afirmar que as palavras, expressões, proposições etc., recebem seu sentido da FD na qual são produzidas:(...) diremos que os indivíduos são “interpelados” em sujeitos-falantes ( em sujeitos de seu discurso) pelas FDs que representam “na linguagem” as formações ideológicas que lhes são correspondentes. (p.160)

Para esclarecer a questão do que é materialidade histórica no interior de um todo

complexo de formações ideológicas, Pêcheux(1988) propõe o conceito de interdiscurso. O

interdiscurso abarcaria, então, não só o encadeamento do pré-construído (um já-dito, uma

memória discursiva), mas também a articulação desses elementos. Essa articulação segundo o

autor, estaria em relação direta com o que ele chama de discurso-transverso – relação da parte

com o todo, da causa com o efeito, do sintoma com o que ele designa . Daí resultaria o fio do

discurso, ou o intradiscurso para Pêcheux. O intradiscurso é, portanto, o enunciado em sua forma

material referido a uma situação empírica, e o interdiscurso - memória do dizer - está referido a

um contexto mais amplo.

Podemos trabalhar esses conceitos e perceber seu funcionamento nos textos dos

alunos de EJA, porque estes textos são marcados por palavras, enquanto vestígios, que "acionam"

a memória do dizer, ou seja, aquilo que se fala antes, em outro lugar, independentemente. O ser

“um bicho bruto qualquer”, faz funcionar o imaginário construído, no nosso processo de

colonização, onde funciona a relação de sentidos entre o homem X animal, homem branco X

índio... O que quer dizer é que há uma relação entre o já-dito (historicidade) e o que se está

dizendo agora pelos jovens e adultos nestes textos, mesmo que de forma deslocada e não

cronológica. O aluno não inventou isso, isto é um dito secular. Assim, ao falarmos ou

escrevermos nos filiamos a redes de sentidos. Não aprendemos como fazer isso, isto fica por

conta da ideologia e do inconsciente.

Assim, a noção de subjetividade, encontra aqui um determinação de cunho

ideológico. Para tanto, retomo Pêcheux (1988):

"Como todas as evidências, inclusive aquelas que fazem com que uma palavra “designe uma coisa” ou “possua um significado”(portanto, inclusas as evidências da “transferência” da linguagem) a evidência de que vocês e eu somos sujeitos – e que isto não se constitua um problema – é um efeito ideológico, o efeito ideológico elementar.” (p.153)

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Essa formulação aponta para o fato de que o indivíduo ao ser interpelado pela

ideologia se constitui em sujeito ("eu") e que um indivíduo é sempre-já-sujeito por causa da

ideologia. O sujeito do discurso é uma forma-sujeito:

"Todo indivíduo humano, isto é, social, só pode ser agente de uma prática se se revestir da forma de sujeito. A forma-sujeito de fato, é a forma de existência histórica de qualquer indivíduo, agente das práticas sociais.(Pêcheux, 1988, p.183)

Seguindo Orlandi(1999), podemos complementar: “a forma-sujeito histórica que

corresponde à da sociedade atual, capitalista, representa bem a contradição: é um sujeito ao

mesmo tempo livre e submisso. Ele é capaz de uma liberdade sem limites e uma submissão sem

falhas: pode tudo dizer contanto que se submeta à língua para dizer.” (p.50) Isso é o que

chamamos de assujeitamento. O filho do homem ao nascer entra em uma rede textual em que as

coisas já significam, e é essa entrada nessa rede que o torna falante, sendo tomado pelo simbólico

que irá mediar sua relação com o mundo e as coisas.

O sujeito se submete e ao mesmo tempo se sente livre e responsável, o assujeitamento

se faz de modo que o discurso apareça como instrumento (límpido) do pensamento e um reflexo (

justo) da realidade. Na transparência da linguagem, é a ideologia - direção dada à interpretação -

que fornece as evidências que apagam o caráter material do sentido e do sujeito. É aí que se

sustenta a noção de literalidade: o sentido literal é aquele que uma palavra tem

independentemente de seu uso em qualquer contexto. No entanto se levamos em conta, como a

AD, a ideologia, somos capazes de apreender, de forma crítica, a ilusão que está na base da

literalidade: o fato de que ela é produto histórico, efeito de discurso que sofre determinações dos

modos de assujeitamento das diferentes formas-sujeito na sua historicidade e em relação às

diferentes formas de poder (Orlandi, 1999).

É a ideologia, enquanto mecanismo do processo sócio-histórico, constituinte e

constitutivo do sujeito e do sentido, que fornece evidências pelas quais todo mundo sabe o que é,

por exemplo, ser analfabeto ou fracassado no Brasil, ao mesmo tempo que mascara o caráter

material do sentido das palavras, ou seja, o fato dos sentidos serem determinados pelas "posições

sustentadas por aqueles que utilizam determinada palavra". Por outro lado, isso significa que as

palavras adquirem um sentido “x” ou “y”, tendo como referência as formações ideológicas nas

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quais essas posições se inscrevem, que correspondem na ordem do discurso às formações

discursivas (FDs): “aquilo que numa formação ideológica dada determina o que pode e deve ser

dito” .(Pêcheux, 1988, p.160)

De que estamos falando quando falamos do "analfabeto adulto"? Será que existe

apenas um sentido circulando? Dizemos que não, mas que tem-se a "impressão" que sim. É a esse

movimento, a esse mecanismo de produzir essa impressão do sentido único que denominamos

ideologia.

O falante não opera com a literalidade, o chamado sentido verdadeiro, como algo

fixo e irredutível, uma vez que não há um sentido único e prévio, mas um sentido instituído

historicamente na relação do sujeito com a língua e que faz parte das condições de produção do

discurso que se apresenta para ele como literal, verdadeiro, fixo, imutável.

Para a AD, todo discurso é o discurso de um sujeito, todo ponto de vista é o ponto de

vista de um sujeito determinado pela exterioridade - discursiva -, ou seja, que ocupa determinada

posição de sujeito.

Não se parte da exterioridade para o texto como faz a Análise de Conteúdo, por

pressupor uma linguagem transparente, passível de ser atravessada para se atingir as idéias em si,

as intenções do autor. A AD pretende conhecer a exterioridade que determina os "conteúdos"

pela maneira como as palavras se organizam no texto em relação com a memória do dizer – uma

exterioridade discursiva -, conforme fomos fazendo em nosso trabalho.

Assim, os dados que tomamos para análise - os enunciados dos textos - não são

material bruto, objetivos e neutros, mas resultam das relações de força da sociedade sobre a

memória, o que ficou. Preferimos, assim, falar de "fatos" lingüísticos e "acontecimentos"

discursivos, uma vez que os dados são construídos teórica e historicamente.

Em termos de técnicas de análise, não trabalhamos com segmentos, mas com recortes

de linguagem, que obedecem em sua delimitação não apenas a escolhas em termos de conteúdo,

mas incluem a relação do lingüístico com essa exterioridade discursiva: histórica e inconsciente.

A delimitação do corpus não seguiu, portanto, critérios empíricos mas teóricos, e a extensão

desse corpus deve ser considerada em relação aos objetivos e à temática e não em relação ao

material lingüístico empírico (Silva:1998).

Desta forma, o corpus do meu trabalho irá incidir sobre diferentes discursos: o

político, o jurídico, o psicológico, o lingüístico e o discurso dos próprios alunos de EJA,

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analisando-os e confrontando-os. Para tanto, é importante reconstruir sentidos e acontecimentos,

re-contando a história da educação de jovens e adultos no Brasil, que ajudou a produzir um

imaginário acerca do jovem e adulto analfabeto como um fracassado, “um bicho bruto

qualquer”, “um zero à esquerda, que não vale nem uma balinha” .

A história, na Análise do Discurso, não é tomada como sucessão de fatos com

sentidos já estabelecidos, dispostos em seqüência cronológica e em perspectiva evolutiva, mas

como fatos que reclamam sentido (Henry,1990), cuja materialidade é apreendida no discurso,

enquanto um objeto da ordem da língua e da ordem da história. A relação entre a história e o

texto – uma materialidade discursiva – existe, mas não é direta nem se dá termo a termo. Há

sempre mediações contidas na historicidade do texto, ou seja, na relação do texto com a

exterioridade tal como ela se inscreve no próprio texto.

Quando me refiro a raízes históricas do fracasso escolar, no capítulo que se segue,

refiro-me à um discurso fundador, que constitui uma memória discursiva, que produz sentidos

que irão se reproduzir e transformar e estar, sempre, constituindo o sentido do analfabeto jovem e

adulto brasileiro, nos diferentes momentos históricos do nosso país. São nessas "raízes históricas"

que se constituem o fracasso e o fracassado, enquanto uma nova forma de exclusão e uma forma

de individualização do sujeito, que a escola instala nas sociedades capitalistas, ao mesmo tempo,

que são elementos constitutivos dessa mesma escola e de seu funcionamento. Para reconstruir

esse discurso fundador me apoiei, principalmente, nos trabalhos de Cury (1984, 1988), Haddad e

Col (1992), Mello G. (1982,1997), Patto (1996), Paiva (1973,1994), Silva

(1996,1998,1999,2000) e Soares (1998,1995), que contribuíram, muito, para elaboração do

segundo capítulo.

O percurso de elaboração deste trabalho de dissertação me permitiu fazer movimentos

contínuos entre minhas experiências e minhas reflexões, entre aulas, leituras, teorias e questões,

sustentado, sempre, pela orientação da Análise do Discurso como referência teórica e

metodológica, como disse anteriormente. De certa forma, foi a AD que me estimulou a buscar

nos diferentes discursos (jurídico, político, psicológico, lingüístico, pedagógico), através de

textos, de leis, de teorias, respostas, que pudessem fazer-me compreender o processo de

constituição de uma subjetividade específica que acontece na relação do sujeito com a escrita no

interior da instituição escolar da nossa sociedade brasileira, que o leva "sempre" a fracassar e a

fazer parte de um contigente de brasileiros denominados analfabetos.

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Já que a AD nasceu para se opor à Análise de Conteúdo, técnica comumente utilizada

pelas Ciências Sociais em suas pesquisas, isso significa que ela é uma técnica, um “dispositivo de

análise” de textos, mas que o faz diferentemente, tanto pela noção de instrumentos – conforme já

explorado - aí desenvolvida, como pela articulação a um “dispositivo teórico” preciso. O contato

com o “dispositivo teórico” da AD – quer dizer noções e conceitos já estabelecidos – foi

colocando questões para mim sobre o tema inicial: o fracasso escolar e o imaginário social,

obrigando-me a refletir sobre ele, a delimitar nos diferentes discursos a sua adequação ou

inadequação como objeto central do que queria analisar e compreender, fazendo, pois, com que

fosse construindo o verdadeiro objeto a ser estudado: o fracasso escolar de jovens e adultos no

aprendizado da leitura e da escrita no Brasil e o imaginário social acerca da constituição desses

sujeitos e sentidos.

Esse trabalho de ida e vinda da teoria aos problemas e aos dados é o que a AD

denomina construção de um “dispositivo analítico” de leitura e interpretação de textos. Por isso

falei anteriormente que ela trabalha com a noção de técnica de análise diferentemente; isso

significa que não há uma forma pronta, de antemão, para todo e qualquer tipo de problema, não

há procedimentos definidos antes da pesquisa iniciar, o que há previamente é o dispositivo

teórico.

Sendo assim, o meu dispositivo analítico ficou assim delineado, enquanto fatos a

interpretar considerando o meu objeto de estudo:

♦ Discursos jurídico e político que trabalham as políticas públicas de Educação de Jovens e

Adultos. Foram analisados os textos das Leis de Diretrizes e Bases da Educação Nacional -

LDBs - de 1961,1971,1996, a Proposta Curricular de primeiro segmento para EJA, o Parecer

CNE/CEB n°11/2000 do Conselho Nacional de Educação – CNE - e por fim a

Resolução/2000 desse mesmo CNE, que define as de Diretrizes Curriculares Nacionais para

EJA.

♦ Discurso científico sobre a aquisição da escrita. Foram analisados os artigos de Vygotsky

(1996,1999), Luria (1987), Silva (1998), Soares L.(1999) e Orlandi (1998,1999).

♦ Discurso dos jovens e adultos que estudam na Escola Classe Agrovila São Sebastião, da rede

pública do Distrito Federal, através de análise da produções de textos.

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Nesses recortes, buscamos trabalhar as categorias de condições de produção, de

interdiscurso e de sujeito da AD, de forma a compreender o processo de constituição do sujeito-

fracassado da Educação de Jovens e Adulto no Brasil.

2. RAÍZES HISTÓRICO-SOCIAIS DO FRACASSO ESCOLAR

A evasão e o fracasso escolar são problemas que sempre estiveram presentes na

história da educação escolar brasileira, tornando-se crônicos e assumindo proporções inaceitáveis

em pleno século XXI. A sua gravidade aumenta quando percebemos a antigüidade e persistência

de tais problemas na nossa história de escolarização, marcando a formação de nossas instituições

no interior de um processo discursivo mais amplo.

Nos campos da Pedagogia, da Sociologia, da Lingüística e, principalmente, da

Psicologia, encontramos inúmeros trabalhos sobre o tema do fracasso escolar. Observamos,

contudo, que, muitas vezes, tais investigações (re)caem na busca e indicação de culpados,

evidenciando articulações entre o discurso científico e o discurso da moral. Esses trabalhos

utilizam diferentes categorias de análise e apresentam diferentes classificações para caracterizar

o fracasso escolar, a partir das quais pude, então estabelecer uma própria que se adequasse aos

meus objetivos de pesquisa e ampliasse a minha compreensão do tema. Assim, há aqueles que

centram a questão do fracasso escolar no aluno e no seu meio familiar e sócio econômico

(Poppovic, Esposito & Campo (1975), Lemos (1985), Almeida (1988), Mello (1988 e 1992),

Saraya (1992), para outros, o fracasso se deve a um determinado sistema social, econômico e

político ( Freitag (1979), Gatti e col. (1991), Leite (1988), Zposati (2000), ou a um sistema

social, educacional e cultural também determinado ( Rosemberg (1984), Patto (1987 e 1990),

Carreher e col. (1999), Soares (1999). Temos, ainda, outras explicações, ou seja, o fracasso como

sendo provocado por privações nutricionais, pela incompetência dos professores, pela formação

dada pela universidade, pela des-motivação dos alunos adultos que têm baixa auto-estima.

Não negando a importância e relevância de muitos destes trabalhos, observamos que,

muitas vezes, o que alguns deles fizeram foi colocar o fracasso no lugar de causa, e não de

conseqüência, ou melhor, de produto de um processo histórico amplo e instituinte do

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funcionamento da nossa sociedade brasileira. Tais pesquisas contribuíram muito para minha

compreensão do problema e para elaboração deste trabalho, tanto pelas respostas que me davam

quanto pelas dúvidas que suscitavam, abrindo novos campos de questões como o de identificar,

nos espaços discursivos que fundam e fundamentam tal fracasso escolar, e conseqüentemente,

determinam uma exclusão social de jovens e adultos, sítios de significação e de construção de um

imaginário acerca do adulto analfabeto fracassado e excluído no Brasil.

Para tanto, foi necessário explicitar e compreender o tipo de sociedade em que a

escola universal, laica e gratuita – e o aprender a ler e a escrever – aparece e torna-se uma

instituição central para a reprodução/transformação das condições de produção, ou seja, das

condições materiais de existência. Estamos falando da sociedade capitalista.

O capitalismo caracteriza-se por um conjunto de relações econômicas e sociais que,

ao transformar o servo do regime feudal em trabalhador livre, a partir de um contrato de trabalho

(sujeito de direito), coletivizou o trabalho, desenvolveu a indústria, requerendo uma normalização

da força de trabalho, organizando-se e expandindo-se pela e com a escrita.

Essas relações, contudo, são desiguais e contraditórias. E são as contradições desta

sociedade que permitem que as relações de poder se estabeleçam e que a sociedade se divida em

classes como uma forma de organização. E se compararmos essa organização com uma

"balança", teremos, de um lado, sempre uma classe mais forte ( os que detêm o dinheiro, o

estudo, o poder...) e do outro, uma classe mais fraca (os mais pobres, os sem escolarização, os

sem poder...); e, dependendo da forma como uma nação constrói essa balança, criando condições

para que ela se equilibre ou penda mais para um lado do que para o outro, nós teremos o

resultado das relações de poder que se estabeleceram para que essa sociedade funcionasse e

funcione. Em uma sociedade capitalista sempre haverá diferenças entre o dominador e o

dominado, o rico e o pobre, o escolarizado e o não escolarizado. Interessa-nos, pois, não em

superar as contradições, mas em trabalhá-las para compreender a sua natureza e a sua

especificidade, a sua estrutura e o seu funcionamento nas diferentes sociedades capitalistas.

Sendo a escola uma instituição que surgiu para ser igualitária e oferecer educação

para todos, e que, de certa forma apareceu para equilibrar e regular essa ‘balança’, ela, também,

será responsável tanto pela reprodução quanto pela transformação das condições de produção,

alimentando essas contradições, já que o aluno terá, sempre, a possibilidade de ter sucesso ou não

no processo de escolarização. O sucesso e o fracasso não constituem mera oposição, mas uma

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contradição constitutiva desse processo: há sempre a possibilidade de fracassar, os contrários se

engendram e produzem o sentido na diferença entre os termos (Silva:1998).

Não podemos ser ingênuos em relação a tudo isso e pensar que, em algum momento,

ou que em algum lugar, não haverá excluídos do sistema, ou que a escola é uma instituição

injusta e falha que acaba sempre por produzir o fracasso. A escola, os professores, os alunos são,

pois, parte integrante de toda uma estrutura de sociedade, que se estabeleceu historicamente

pelas/nas desigualdades, que sempre gerou e gera uma produção de excedentes e excluídos. Por

isso neste trabalho nos propusemos a conhecer e analisar o funcionamento de um imaginário e o

discurso que se criou sobre o fracasso escolar no Brasil, bem como a sua história.

Quando penso em reconstruir essa história, não penso em escrevê-la como uma

historiadora ou especialista no assunto, mas, sim, como psicóloga, via Análise de Discurso,

buscando compreender as sucessões de fatos com sentidos já estabelecidos que constituíram uma

memória discursiva sobre o fracasso escolar no Brasil, bem como produzir interpretações para

aqueles outros que reclamam sentidos, trabalhando a relação entre a memória institucional e a do

esquecimento. Para tanto, percebo que é necessário entender o modo dominante do pensamento

que se instituiu em países da Europa, a partir no século XVIII, tendo em vista que somos um país

que resultou de um processo de colonização.

Tomo como referência, como acontecimentos fundadores desta história, as revoluções

Francesa e Industrial que marcaram o surgimento de uma nova relação de produção na história

européia. A "visão de mundo" - posição-sujeito - que se consolidava nestes momentos históricos,

ajudou a produzir certas diferenças sociais e a alimentar a divisão do trabalho em todo o mundo

contemporâneo, que tiveram, na escolaridade, um ponto de sustentação para o estabelecimento

das diferenças e desigualdades, norteando, de certa forma, a história do fracasso escolar. O

aprender a ler e a escrever torna-se, por exemplo, uma bandeira dos revolucionários franceses.

Trata-se, contudo, de uma bandeira perigosa, pois se todos devem ter acesso à escrita, isto deve

acontecer, entretanto, de forma distinta, dependendo da classe a que pertença cada um.

Assim, a distribuição de um bem cultural como a escrita, entre os diferentes

segmentos de uma sociedade dada, deve ser compreendida tanto do ponto de vista social e

político, quanto do ponto de vista científico.

Pensando desta forma, irei como psicóloga e analista do discurso, interessada na

constituição de uma subjetividade específica, pensar e analisar, pelo menos em seus aspectos

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fundamentais, a formação social na qual se engendrou uma determinada visão de mundo - que

para a AD é o funcionamento de uma formação discursiva pela forma-sujeito e pelos sentidos que

aí se constituem - sobre as diferenças do trabalho escolar existentes entre pessoas de diferentes

origens sociais. Considerando também que este é um lugar de produção de saber histórico e que

não pode ser esquecido.

Propomo-nos a fazer uma viagem, nos limites de uma dissertação, por algumas

referências históricas e sociais para encaminharmos uma reflexão sobre a construção de um

imaginário – coisa da ideologia - sobre o fracasso escolar numa sociedade de classes.

A passagem do modo de produção feudal para o modo de produção capitalista

marcou o processo de constituição dos Estados Nacionais modernos e engendrou uma nova classe

dominante – a burguesia – e uma nova classe dominada – o proletariado –, explorada

economicamente segundo as regras do jogo vigente no modo de produção que se instalava e

triunfava. Neste processo, o acesso e o domínio da língua nacional – a alfabetização de toda a

população - tornou-se um instrumento poderoso para a ascensão, ou não, do indivíduo na

sociedade capitalista.

As relações de produção que se estabeleceram, então, fizeram (e fazem) parte da

própria natureza do modo de organização da sociedade que começava a vigorar, sendo o discurso

parte desse funcionamento. E à medida que os anos passavam, a divisão social se expressava

basicamente pelo antagonismo entre capitalistas e proletários, ou seja, entre alfabetizados-

letrados e analfabetos-iletrados. Para Chauí (1981a) “uma classe é hegemônica não só porque

detém a propriedade dos meios de produção e o poder do Estado ( isto é, o controle jurídico,

político e policial da sociedade) mas é hegemônica sobretudo porque suas idéias e valores são

dominantes, mesmo quando se luta contra ela.” (p.110)

Essas contradições existentes nas relações de classe se fazem presentes, também na

Educação. Na sociedade capitalista, a educação se impôs (se impõe) como manifestação-

produção mediante as relações de classe, ou seja, a "escola da(s) classe(s) dominada(s)" não é a

mesma da "escola da(s) classe(s) dominante(s)"; embora todos devam ter acesso à escrita e a

leitura, isto deve acontecer de forma distinta, dependendo da classe a que pertença cada um. Para

uns, poucas palavras e textos bastariam, para outros o mundo da polissemia e dos grandes

clássicos. Para Althusser (1974), o sistema de ensino seria um instrumento a serviço da

manutenção do privilégios, educacionais e profissionais, de quem detém o poder econômico e o

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capital cultural, já que a escola seria um local em que a visão de exploração seria "embaçada",

por veicular conteúdos ideologicamente neutros - científicos mesmo - e por privilegiar estilos de

pensamento e de linguagem característicos dos integrantes das classes dominantes.

Pensando assim, podemos afirmar que a educação é parte fundamental, elemento

constitutivo da história e das relações sociais de uma sociedade dada. Ela coopera no processo de

incorporação de novos grupos e de indivíduos, como a dos analfabetos e dos iletrados, mediante a

interiorização de uma visão de mundo já existente e preexistente aos indivíduos, ou seja, o

estabelecimento de uma forma de individualização do sujeito em relação ao Estado

(Orlandi:1999) e a produção de sentidos em uma determinada direção. Trata-se, diríamos em AD,

do funcionamento dos pré-construídos pela memória do dizer. Essa chamada visão de mundo já

interpretada, ou seja, essa posição sujeito, que produz e movimenta as práticas sociais, reproduz-

se no interior dessas mesmas práticas sociais, sob a forma de discursividades específicas - a

jurídica, a religiosa, a científica - e sob a forma de subjetividades marcadas por comportamentos,

e atitudes determinados.... Entendendo que o homem não é um mero produto social, mas também

um agente histórico nesse processo de construção de um novo modo de produção, podemos dizer

que ele, enquanto sujeito, está ligado a redes de filiações de sentidos que irão reproduzir essa

visão de mundo dominante como se fosse a única e a maneira verdadeira de se estabelecerem

essas relações, mesmo que imaginariamente.

Foucault (1996), em seu livro “A ordem do discurso”, trabalha a hipótese de que “em

toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e

redistribuída por certo número de procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e

perigos, dominar seus acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível

materialidade.”(pp.8-9) Com o surgimento da sociedade capitalista, a escola assume um lugar

estratégico no controle, seleção e organização dos discursos dominantes e, porque não dizer, o de

promover a exclusão social e as diferenças entre as classes sociais, embora, fique claro, não seja

só ela a reproduzir-transformar essas relações desiguais e contraditórias. Um funcionamento

escolar determinado, que decorre das diferenças sociais, que controla o que pode e deve ser dito

em determinada situação, ajudou, também, a construir um imaginário acerca do adulto analfabeto

que produziu sentidos para que os jovens e adultos se signifiquem enquanto cidadãos

alfabetizados “humanamente” ou “brutalmente”. Essa rede de construção de sentidos é o que

estaremos trabalhando ao longo de toda essa dissertação.

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A educação contribuiu/contribui para a reprodução–transformação das relações de

produção - mas não só ela –, para a formação e normalização da força de trabalho disseminando

um modo de pensar conveniente com os interesses dominantes. O poder de construir uma

interpretação de mundo dominante, determinado historicamente e produzindo evidências,

permite dizer quem poderá e deverá ser alfabetizado e como. Isso se dá pela mediação de práticas

sociais que concorrem para a divisão social do trabalho, dentre as quais as práticas escolares e as

práticas de leitura.

Seguindo Fromm (1970), observamos que Marx, em seu Primeiro Manuscrito

Econômico e Filosófico, propõe-se a desvendar a verdadeira natureza do trabalho, (que ele chama

de alienado), considerando que:

♦ “o trabalhador se sente contrafeito e na medida em que o trabalho não é voluntário mas lhe é imposto, é trabalho forçado;

♦ trabalho não é satisfação de uma necessidade mas apenas um meio para satisfazer outras necessidades;

♦ o trabalho não é para si, mas para outrem; e ♦ o trabalhador não se pertence, mas sim a outra pessoa.”

Vemos, aí, alguns aspectos que estão na base da formação de uma sociedade - a

capitalista -, afetando o modo de constituição do sujeito, e que podem ser tomadas como

referências para repensar a questão da "motivação" não como algo vindo do interior do próprio

indivíduo, mas como algo que se relaciona com uma exterioridade - econômica e social -, como

algo que está intimamente relacionado às condições reais de existência dos indivíduos. Não se

trata de uma questão subjetiva, individual, a ser tomada isoladamente.

Patto (1996), em seu livro A produção do fracasso escolar - sua tese de doutorado -,

toma a noção de trabalho de forma bastante interessante e que nos permite avançar na reflexão.

Para ela:

“...trabalhar, nestas novas condições da indústria capitalista, significa mais do que sacrificar-se, significa modificar-se. De vida produtiva, o trabalho reduz-se a meio para satisfação da necessidade de manter a existência. Esta identificação com a atividade vital é característica do animal, que não distingue a atividade de si mesmo, ele é sua atividade. A atividade vital consciente do homem é que o distingue da atividade vital dos animais; mas quando submetido a um trabalho alienado, o trabalhador só se sente livre quando desempenha suas funções

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“animais”: comer, beber, procriar etc., enquanto atos à parte de outras atividades humanas e convertidos em fins definitivos e exclusivos. Uma tal condição de vida produz um inversão desumanizadora: em suas funções especificamente humanas, o trabalhador animaliza-se; no exercício de suas funções animais, humaniza-se.” (p.15-16, grifo meu)

Na Análise do Discurso, a forma pela qual o sujeito do discurso se identifica

com a formação discursiva - aquilo que numa formação ideológica dada determina o que

pode e deve ser dito - que o constituiu, chamamos de forma-sujeito, entendida como:

"Todo indivíduo humano, isto é, social, só pode ser agente de uma prática social se se revestir da forma de sujeito. A forma-sujeito, de fato, é a forma de existência histórica de qualquer indivíduo, agente das práticas sociais. (Pêcheux,1988)

A forma-sujeito que se constituiu na sociedade capitalista, representa bem a

contradição de um sujeito ao mesmo tempo livre e submisso, ou seja, livre para se submeter aos

contratos que então se estabeleciam. Temos, aí, o nascimento do sujeito de direito. Vemos, assim,

como vai se dando a construção de uma posição sujeito, de um lugar social de fala. Esse processo

de constituição do sujeito capitalista, no interior das relações de trabalho que se estabelecem, faz-

me pensar nas dicotomias homem X animal, condição humana X condição desumana, trabalho

humano X trabalho animal, racionalidade X irracionalidade. Lembro-me, ainda, da resposta dada

pelo jovem baiano de minha pesquisa: "Seria como um bicho bruto qual que". Há um já-dito

ressoando no dito.

Diante dessas contradições, que se reproduzem historicamente, o sistema capitalista,

construiu, encontrou, maneiras de tentar se defender, segundo Cury (1994), conferindo à

reprodução de suas relações uma capacidade e elasticidade de organização mais sofisticada e

eficaz, e porque não dizer cada vez mais excludente e desigual. Além de tentar integrar a si a

classe operária ( esta repartida também em frações diferenciadas, sem constituir um bloco

homogêneo), tenta produzir novos setores, subordinar a si setores anteriores. Neste capítulo, ao

discutirmos as raízes históricas do fracasso escolar no Brasil e no capítulo seguinte, ao

analisarmos os discursos da política educacional e das leis, poderemos observar esse processo em

funcionamento.

Reforçando, mais uma vez, a contradição da forma-sujeito capitalista: livre e

submisso... Onde cada sujeito ocupa um lugar social diferente, dependendo da sua classe social,

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revelando que as relações de interlocução estão diretamente ligadas as relações de poder. Quem

pode falar o quê? O que pode ser dito? Como pode ser dito? E por quem? Para quê? Na

sociedade capitalista, a interdição é um dos procedimento de exclusão em que o indivíduo não

tem o direito de dizer o que quer, como e em qualquer circunstância (Foucault,1996).

Durante o século XVIII, a burguesia foi porta-voz do sonho humano de um mundo

igualitário, fraterno e livre; mais do que isso, disseminou a crença de que este sonho se

concretizaria na sociedade industrial capitalista liberal. Em meados do século XIX, o sonho havia

acabado para alguns setores mais conscientes das classes trabalhadoras. No nível político e

cultural, mantinha-se, contudo, viva a crença na possibilidade de uma sociedade igualitária, justa

em um mundo onde, na verdade, a polarização social era cada vez mais radical. Em todo esse

processo, a alfabetização foi um lugar fundante desta organização da desigualdade que se

instalava com esse tipo de sociedade: uma sociedade letrada.

A visão do mundo da burguesia - uma posição-sujeito - também ficou caracterizada

pelo crença no progresso do conhecimento humano, pela racionalidade, pela riqueza e pelo

controle da natureza. Confirmava um visão de mundo na qual o sucesso dependia

fundamentalmente do indivíduo, como afirma Hobsbawm (1979):

“... o mundo da classe média estava livremente aberto a todos. Portanto os que não conseguiam cruzar seus umbrais demonstravam uma falta de inteligência pessoal, de força moral ou de energia que automaticamente os condenava ou melhor das hipóteses, uma herança racial ou histórica que deveria invalidá-los eternamente, com se já tivesse feito uso, para sempre de suas oportunidades”. (pp.119 -120)

Neste momento, a noção do sujeito capitalista, livre em suas escolhas mas submisso

ao Estado, às Leis, à cientificidade, fica bem caracterizada. Aparelhos ideológicos como escola, a

ciência, a igreja, o direito asseguram a submissão à ideologia dominante. Todos os agentes de

produção devem estar imbuídos de determinada(s) ideologia(s) para desempenhar

conscienciosamente suas tarefas. Faz-se pensar que é preservada a liberdade individual, a

autonomia de idéias, a não-determinação do sujeito. Uma forma de assujeitamento.

Assim, podemos compreender o que diz Henry (1990), comentado o trabalho de

Pêcheux no ponto em que este fala da ligação existente entre a prática política e o discurso nas

sociedades capitalistas:

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"O que precisa ser compreendido é como os agentes deste sistema reconhecem eles próprios seu lugar sem terem recebido formalmente uma ordem, ou mesmo sem 'saber' que têm um lugar definido no sistema de produção. Quando alguém se vê obrigado a ocupar um lugar dentro de um sistema de trabalho, este processo já se deu anteriormente; tal pessoa sabe, por exemplo, que é um trabalhador e sabe o que tudo isso implica. O mesmo acontece quando alguém é, por exemplo, nomeado juiz. O processo pelo qual os agentes são colocados em seu lugar é apagado; não vemos senão as aparências externas e as conseqüências. Para compreender como este processo se situa em um mesmo movimento, ao mesmo tempo realizado e mascarado, e o papel que nele desempenha a linguagem, devemos renunciar à concepção de linguagem com instrumento de comunicação. Isto não quer dizer que a linguagem não serve para comunicar, mas sim que este aspecto é somente a parte emersa do iceberg." (p.26)

E é este processo que podemos apreender e observar funcionando, quando a classe

dirigente apresenta o Estado como organismo do e para o povo, em sua totalidade, tomando a seu

cargo alguns dos interesses dos grupos dominados, através, por exemplo, do estabelecimento de

políticas públicas de educação. Isso possibilita também que certas leis que atendem a alguns

interesses das classes subalternas se convertam em instrumentos de consentimento como, por

exemplo, quando a Constituição Brasileira garante “a educação como direito de todos”; porém, a

nossa prática social diz que nem todos tem a garantia deste direito, da mesma forma e do mesmo

jeito. A força desse embate, em que se constituem sujeito e sentidos, produz os seus efeitos

ideológicos já que a representação das leis deve ser interiorizada por indivíduos, a fim de que

estas se convertam em hábito e costume.

Pensando nos textos produzidos pelos jovens e adultos de Brasília - objeto de análise

daquele trabalho inicial -, posso ver como essas representações de mundo criadas e construídas

em diferentes discursividades, serão futuramente repetidas por esses jovens e adultos,

estabelecendo relações entre o saber ler e escrever e ser algo, animal, coisa, não-cidadão.

Desta forma, idealmente, a igualdade dos homens frente à Lei e às oportunidades de

sucesso profissional, educacional é a mesma, e vê-se que, o fato de ser dada a todos os

competidores, ilusoriamente, a possibilidade de começar no mesmo ponto de largada, os

corredores nunca terminarão juntos.

No início do século XIX, começaram a surgir algumas vertentes dessas políticas

educacionais, por exemplo, que revelavam uma visão do mundo dominante, de uma nova ordem

social que então se instalava na Europa de modo geral. De um lado, a crença no poder da razão e

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da ciência, legado do iluminismo; de outro, o projeto liberal de um mundo igualitário e de

oportunidades para todos, substituindo a desigualdade baseada na herança familiar. Este era o

momento de luta pela consolidação dos Estados Nacionais, meta do nacionalismo europeu.

Para garantir a soberania nacional e popular, que se pensava possível em uma

sociedade de classes, a educação escolar recebe uma função fundamental. Ainda seguindo Patto

(1996), destaco a afirmação feita por Zanotti (1972):

"...a ilustração do povo, a instrução pública universal, obrigatória, a alfabetização como instrumento-mãe que atingirá o resultado procurado. A escola universal, obrigatória, comum e, para muitos, leiga – será também o meio de obter a grande unidade nacional, será o cadinho onde se fundirão as diferenças de credo e de raça, de classes e de origem”. (p.21 - grifo meu)

Daí para a concepção da escola como uma instituição “redentora da humanidade”

foi um passo, bem como para a de um sujeito uno e consciente, capaz de escolher livremente e de

controlar plenamente uma intencionalidade na produção da linguagem, mais especificamente, na

produção da leitura e da escrita.

A escola, então, com a missão de unificação nacionalista, passa a ser desejada pelas

classes trabalhadoras quando percebem as desigualdades da nova ordem social, e tentam escapar,

pelos caminhos socialmente aceitos do saber e da cultura, da miséria de sua condição. O acesso à

escola é um dos meios adotados por esses grupos excluídos, seja enquanto luta individual ou

coletiva.

Percebemos que, neste tipo de sociedade, cabe ao oprimido assumir-se enquanto

causa de sua incompetência e deficiência, cabe ao Estado e às suas instituições promover a

igualdade de oportunidades, através dos programas de educação compensatória - que marcaram a

ação pedagógica no século XX - que já nascem condenados ao insucesso, à promoção do fracasso

escolar, quando partem do pressuposto que seus destinatários são menos aptos para aprendizagem

escolar.

Justificar o abismo que se criava entre a classe proletária e a burguesia, será tarefa das

Ciências Humanas e Sociais que nascem e se oficializam neste período. Alguns pensadores,

filósofos e políticos com suas teorias voltadas para as diferenças raciais chegaram mesmo a

contribuir para a instalação de preconceitos e de práticas discriminatórias, lançando a idéia da

superioridade ariana. Na França, Augusto Comte, por exemplo, afirmava, em meados do século

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XIX, que a elite e a vanguarda da humanidade eram constituídas pela raça branca da Europa

ocidental. Este autor da filosofia positivista reconhecia somente três raças distintas: a branca , à

qual atribuía a inteligência, a amarela, portadora dos dons da atividade, e a negra, movida

principalmente pela afetividade (apud Patto, 1996, p.33).

Se é que existem muitas maneiras legítimas de tentar conhecer e compreender o

mundo, sendo a maneira científica apenas uma entre elas, a Psicologia enquanto ciência foi

marcada pelo aparecimento do laboratório de Wundt em 1879. Muitos historiadores, segundo

Marx & Hillix (1998), têm assinalado o progresso moroso do desenvolvimento da ciência

psicológica devido a sua cientificidade estar sempre aberta a intensos debates. Esses autores

apontam duas razões para que essa “prolongada negligência do comportamento humano” se

justifique. Uma foi em relação à santidade do ser humano, tal como era mantida por certas

instituições humanas como a igreja, já que na Idade Média o homem era visto como uma criatura

dotada de alma, possuidora de livre arbítrio o que o colocava fora do alcance das leis naturais

ordinárias e sujeito ao seu próprio voluntarismo; e outra foi a própria complexidade do ser

humano, tal como foi promulgada por aqueles que tentaram estudá-lo.

Para nós, o processo de produção de conhecimento está sempre determinado pelas

condições materiais de existência e o homem não pode ser tomado como princípio explicativo

para o desenvolvimento das ciências. Retomando as palavras de Chauí (1981), podemos dizer que

as teorias e metodologias não são “resultado de puro esforço intelectual, de uma elaboração

teórica objetiva e neutra, de puros conceitos nascidos da observação científica e da especulação

metafísica, sem qualquer laço de dependência com as condições sociais e históricas; e sim pelo

contrário, expressão destas condições reais” (p.10).

Para Pêcheux (1988), a produção histórica de um conhecimento científico não

poderia ser pensada como uma “inovação nas mentalidades”, na “criação da imaginação humana”

em “desarranjos dos hábitos do pensamento”, mas como o efeito (e a parte) de um processo

histórico determinado, em última instância, pela própria produção econômica. Isso significa para

a AD que “as idéias científicas”, as concepções gerais e particulares historicamente apontáveis

para cada época dada, não estão separadas da história (da luta de classes): elas constituem

“comportamentos” especializados das ideologias práticas sobre o terreno da produção dos

conhecimentos, com discrepâncias e autonominações variáveis.

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Por isso podemos pensar que a morosidade de uma ciência psicológica em justificar a

complexidade humana se deu porque até então, não era permitido se desfazer do hábito de fazer

da natureza humana um princípio explicativo. Tal hábito foi herdado da teologia cristã (a qual

colocava Deus atrás da natureza ou espírito humano – assim como atrás de cada coisa, mas em

uma posição privilegiada, de eleição - como princípio explicativo último de tudo o que é

concernente ao homem) e da filosofia clássica, que elaborou sobre esta base sua concepção do

sujeito humano (Henry,1990).

A transição da Psicologia, como parte da filosofia para uma ciência empírica e

natural, se caracterizou pela mudança do princípio de associacionismo das idéias pela associação

de estímulos-respostas, o que possibilitava a aplicação laboratorial dos princípios do

associacionismo. Esse caráter experimental marcou a história da psicologia científica. Segundo

Marx e Hillix (1973), o associacionismo como instrumento metodológico é, até hoje, incorporado

pela Psicologia, quando a associação de variáveis é geralmente reconhecida como tarefa principal

da ciência.

A Psicologia, enquanto ciência formal, passou a ser ponderada quando o

comportamento do homem passou a ser considerado sujeito à leis, normas e padrões.

Desenvolveu-se, então, métodos científicos que pudessem identificar as razões ou as causas de

um determinado comportamento. Portanto, é um caráter empirista/experimentalista que marca o

nascimento da Psicologia Científica. O processo de construção do conhecimento, limitando-se ao

domínio dos fatos observáveis (noção advinda do empirismo), àquilo que pode ser verificado,

enfim, aos limites da razão, defendido pela Psicologia experimental, era condizente com o

pensamento filosófico da época, o positivismo, fundado por Comte, que postulava a ciência como

a nova religião da humanidade.

O positivismo adota para as Ciências Sociais as mesmas leis que regem as ciência

naturais, leis que, conforme Comte, independem da ação humana, livres de julgamento de valor e

de ideologias, pressupondo um método científico único que irá garantir a objetividade e a

neutralidade dessas ciências.

No século XX, aparece o funcionalismo, uma vertente do positivismo, que exerceu

muita influência tanto na Medicina como na Psicologia, constituindo-se em uma segunda escola

psicológica e o primeiro sistema de psicologia verdadeiramente americano. Os psicólogos

funcionalistas se interessaram pela função do comportamento e da consciência do organismo, na

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sua adaptação ao meio, bem como pelas relações funcionais ou de dependência entre os

antecedentes e conseqüentes.

As teorias que antecederam o funcionalismo e o influenciaram diretamente, como a

teoria da evolução de Darwin e o estudo das capacidades humanas e das diferenças individuais de

Francis Galton, contribuíram para que o funcionalismo desenvolvesse uma argumentação que

produzisse o efeito de evidência, uma evidência científico-natural, onde as leis da seleção natural

criaram um modelo para as leis, também naturais da sociedade e os organismos vivos serviram de

modelo para os organismos sociais, segundo Werner (1997).

A constituição de um campo disciplinar, no sentido proposto por Foucault (1996)

como um dos procedimentos de controle do discurso em uma sociedade dada, apresentado aqui,

mesmo que de maneira sucinta, passou a ser uma outra referência para pensarmos o problema do

fracasso escolar. A Psicologia científica, gerada nos laboratórios de fisiologia experimental e

influenciada pelas teorias do naturalismo e do positivismo da época, torna-se apta para

desempenhar um dos seus primeiros papéis sociais: o de descobrir os mais e os menos aptos para

trilhar a carreira estudantil, buscando explicar e mensurar as diferenças individuais, antecedido

pelo de selecionar soldados para a guerra.

A utilização de instrumentos para mensurar essas diferenças individuais, como a

criação de testes psicológicos, por exemplo, não pode ser considerada desprovida de fundamento

e nem podemos dizer que ela não representa nenhum saber, porém devemos pensar e refletir que

a utilização desses instrumentos é diretamente utilizada para autorizar, ou ao contrário, contestar

posições ideológicas, segundo Henry (1990).

Francis Galton foi um pioneiro no desenvolvimento tanto da estatística como dos

estudos das diferenças individuais. Ele direcionou seus estudos para medir a capacidade

intelectual e comprovar a determinação hereditária dos seres humanos. O seu objetivo é claro,

quando escreveu seu livro em 1869: “Pretendo demonstrar que as aptidões naturais humanas

são herdadas exatamente da mesma forma como os aspectos constitucionais e físicos de todo o

mundo orgânico". Estava aberto o longo caminho de atribuição das dificuldades e dos fracassos

escolares aos próprios alunos, enquanto coisa herdada. Isto fica evidenciado, ainda mais, na

expressão, que se encontra nos dicionários brasileiros, no verbete “analfabeto”: analfabeto de pai

e mãe...

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Vemos, então, a articulação entre o discurso científico e o discurso pedagógico, ou

ainda, entre as práticas científicas e as práticas políticas, o que nos permite compreender as

afirmações feitas por Henry (1990), a propósito dos objetivos de Pêcheux ao criar a AD: criar

uma ruptura no campo das Ciências Sociais, pois tinha a convicção de que “as Ciências Sociais

não são ciências e não são nada mais que ideologias” . A preocupação principal de Pêcheux

referia-se a ligação entre o discurso e a prática política o que para ele passa pela ideologia. É por

isso que introduz o sujeito enquanto efeito ideológico elementar, pois é enquanto sujeito que

qualquer pessoa é interpelado a ocupar um lugar determinado no sistema de produção.

Estamos, pois, no centro do que interessa diretamente a Psicologia, em geral e, a este

trabalho em particular: o da constituição de uma subjetividade específica e das práticas e

instrumentos para (re)produzi-las.

Essa primeira incursão no processo de constituição da sociedade capitalista - uma

sociedade letrada - reafirmou a necessidade sentida inicialmente de se ter contato com os seus

fundamentos, bem como de explicitar a forma-sujeito que aí se produz - uma subjetividade

determinada historicamente -, para que pudéssemos compreender como se criaram as

representações do mundo, a(s) ideologia(s) e o imaginário, que fazem funcionar todo um universo

de signos em que o sujeito significa o mundo e se significa, criando práticas em que os homens se

relacionam e interagem para produzir e reproduzir a vida em sociedade.

2.1 A EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS NO BRASIL

2.1.1 Do Brasil Colonial ao Século XIX: de um sujeito religioso para um sujeito de direito

Como dissemos no início deste capítulo, torna-se fundamental a compreensão do

processo sócio-histórico de fundação da escola de ler e escrever na Europa, enquanto uma

instituição que desde o surgimento do sistema capitalista atuou decisivamente na

reprodução/transformação das relações de desigualdade e subordinação definidas por interesses

dominantes, para entendermos a construção do imaginário acerca do “fracassado” aqui no Brasil

em que se constituem sujeito e sentido, uma vez que fomos (somos?) um país colonizado

econômica e intelectualmente.

Tentar explicar ou entender a relação do caráter liberal das idéias dominantes dos

séculos XVIII e XIX na Europa e a realidade social do Brasil, de forma a entender como as

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contradições, presentes no próprio mundo das idéias oficialmente aceitas nesta época, e a maneira

como conviveram na constituição do pensamento educacional brasileiro, requer uma viagem

inevitável pela história de colonização do Brasil. Uma viagem de pequeno curso somente, nos

limites deste trabalho.

No século XVI, no Brasil, como diz Silva (1998):

"...não havia economia mercantil, não havia burguesia, não havia cidades, não havia trabalhador livre, não havia língua nacional, não havia imprensa, não havia livros, mas...havia escola de ler, escrever e contar, pois havia, sobretudo, um mundo a explorar, a pacificar, a controlar, a administrar para possibilitar a expansão e o fortalecimento da economia mercantil. Aqui, a passagem da oralidade para escrita foi de uma outra natureza e teve outras funções sociais, políticas e culturais". (p.199)

Com a chegada do colonizador, dá-se início a um processo de escolarização marcado

pelo tripé: ensino-língua-conversão e uma divisão entre os habitantes do Brasil: entre quem

deveria ou não ir para essas primeiras escolas, bem como entre quem deveria aprender o

português ou não, desencadeando um processo de exclusão sistemática de parcela significativa

daqueles que aqui viviam, criando o nosso primeiro contingente de "fracassados", diríamos.

(Silva,1998)

Um amplo trabalho com as línguas indígenas se inicia através da elaboração de

cartilhas-catecismos, de autos, de sermões, de traduções, bem como de um saber "sobre" essas

línguas com a produção de gramáticas e dicionários. Toda essa produção tinha por objetivo

estabelecer uma comunicação que possibilitasse a catequese, mas também construir novos

referentes, novo universo de significação em que sujeito e sentidos iriam se constituir nas

relações contraditórias de conflito e confronto entre memórias discursivas distintas: a da

oralidade e a da escrita, a do velho e a do novo mundo.

O Tratado da Província do Brasil escrito por volta de 1570 por Pêro de Magalhães

Gândavo, por exemplo, contém uma passagem ilustrativa da visão - posição-sujeito - que se

formava do índio e do lugar social que lhe era reservado, bem como do referente "língua": “Sua

língua não tem F, nem L, nem R, coisa digna de espanto, porque assim não tem fé, nem lei, nem

rei e desta maneira vivem sem justiça e desordenadamente”. Neste espaço de produção de

linguagem, dava-se a constituição de um sujeito dividido, desde sempre, entre a barbárie e a

civilização, conforme diz Silva (1998).

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Quando os primeiros jesuítas chegaram no Brasil, por volta de 1549, chefiados pelo

Pe. Manoel de Nóbrega, cumpriram o mandato do Rei de Portugal D. João III que formulava nos

“Regimentos”, aquilo que poderia ser considerado a nossa primeira política educacional dirigida

aos filhos dos portugueses e dos índios, isto é, dos índios aliados da Coroa e da Igreja.

A forma-sujeito que aqui se constituiu, foi caracterizada pela forma do sujeito

religioso. Quando os jesuítas chegaram no Brasil, o interesse primeiro na escolarização não era o

de ensinar a ler, escrever e contar livremente, mas sim o de catequizar, para que assim se

marcasse a relação entre colonizador X colonizado por intermédio do discurso religioso. Aqui o

sujeito excluído do ‘Regimento’ não era aquele que não aprendia o "Português", mas sim aquele

que se negava a largar a sua doutrina, a sua cultura indígena para se tornar um homem

"civilizado" e "moral". O excluído/fracassado era, pois, visto de outra perspectiva, um sujeito não

fiel à sua doutrina, ao seu povo e aliado dos colonizadores: uma posição sujeito marcada pela

ambigüidade desde seu nascimento.

A democratização do ensino para índios e escravos, segundo Silva (1998) significava

que “todos deveriam ser, senão instruídos, aculturados segundo a moral branca européia, cristã-

católica, institucionalmente, uma aculturação mediada pela letra e pela escrita.”(p.61)

Os jesuítas dominaram a educação brasileira por quase três séculos, até meados do

século XVIII, quando, em 1759, foram expulsos pelo marquês de Pombal, primeiro Ministro do

Rei de Portugal. Neste período, lançaram-se as bases do nosso processo de escolarização,

enquanto condição necessária para a instalação de um processo econômico-social fundado na

escravidão e na propriedade da terra capaz de contribuir decisivamente para:

"...pacificar o espaço social, controlar as pulsões, as emoções e os afetos, para se obter uma colonização eficaz em termos de riqueza para o reino de Portugal e de almas convertidas para o reino de Deus. Era preciso im-plantar e difundir na nova terra, as proibições, as censuras e os mecanismos de controle, em lugar e tempo próprios, a maneira de ser e de agir dos homens de um outro mundo: o europeu-branco-cristão/católico." (Silva:1998,p.199)

Após esses quase trezentos anos, brevemente apresentados, em que os incluídos no

processo de escolarização era muito reduzido, observamos em meados do século XVIII, que a

circulação das idéias iluministas vieram propiciar a influência dos ideais liberais europeus, nos

países da América, como o Brasil, alimentando não só o desejo, mas movimentos reais que

visavam à autonomia política desses países, como a nossa independência política, proclamada em

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1822, em que o Brasil se constituiu enquanto Estado Nacional. É importante lembrar que esse

processo foi, contudo, totalmente diferente do de outros países europeus, como a França, pois as

relações sociais e pessoais, em nosso País, davam-se em regime de trabalho escravo. Esse sujeito

de direito de um Estado nacional recém instalado, é uma forma de individualização para poucos e

atravessado fundamentalmente pela moral, pois os excluídos tem uma identidade socialmente

reconhecida e reconhecível como a de escravo, sem liberdade, sem identidade, comparado a

bicho, coisa, objeto...

Podemos observar também que o cientificismo do século XIX europeu teve como

uma de suas tarefas no Novo Mundo compatibilizar o liberalismo e o racismo. No período

imperial, uma antropologia filosófica evolucionista provava a inferioridade das raças não-

brancas, justificando sua sujeição nacional ao branco. Com a abolição do trabalho escravo e a

instalação do Estado republicano, este cientificismo continuou proclamando esta inferioridade,

agora para justificar o lugar subalterno que os negros, índios, mestiços passaram a ocupar na

estrutura social. Esta tese da inferioridade do não-branco era útil, tanto nos países colonizadores

como nos colonizados; nos primeiros, justificava a dominação de outro povos e em ambos, servia

de desculpa para a dominação de classe (Patto, 1996).

Falar da primeira República é evidenciar um período da história brasileira que não foi

muito diferente do que se verificou no período anterior, monarquista e escravocrata. Essa

sociedade se baseava no tripé latifúndio-monocultura-escravidão, logo, como diz Patto (1996): “

o ideário liberal não podia passar de mera retórica”. O que podemos ver explicitado também

em Cury (1988):

“A defesa do ‘ideal liberal’ foi o meio encontrado a fim de ‘funcionalizar’ o ‘desajuste’ entre as forças sociais emergentes e harmonizar os antagonismos com os ideais de paz social, harmonia entre as classes, luta contra o ‘atraso social e econômico e generalização do bem estar’.”(p. 10)

A República nasce sob o patrocínio intelectual do liberalismo europeu e é, nesta

época, portanto, que podemos pensar como um acontecimento, o discurso que explicava as

diferenças ente raças e grupos e, por extensão, as diferenças de rendimento escolar presente entre

as classes sociais, produzindo deslocamentos de sentidos sobre o fracasso escolar, deslocando a

desigualdade para outros patamares. Raízes histórico-sociais do fracasso escolar no Brasil...

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Defendia-se, indo por esta direção, que uma vez abolido o trabalho escravo e

inaugurada a categoria social do trabalho livre em nossa sociedade - capitalista como as

européias - estariam criadas as condições para que a distribuição social de indivíduos se desse

apenas por suas aptidões naturais: o sucesso ou insucesso passa, então, a depender única e

exclusivamente do indivíduo. Raízes histórico-sociais do fracasso escolar no Brasil...

O fato, contudo, de o processo ter tido, no Brasil, a sua especificidade e o ideário

liberal não ter passado de retórica, não quer dizer que ele não tenha funcionado, produzidos os

seus efeitos e obrigado as nossas elites a se "adequar" a certas exigências, mesmo que formais, de

uma República que se instalava. Assim é que a expansão econômica vivida neste período, o

aparato jurídico instalado, começa a exigir uma outra forma de individuação – um sujeito de

direito -, já que nesta nova organização existia um outro tipo de trabalhado: assalariado, com

direitos e deveres, submetido livremente a um contrato de trabalho, urbano; e a instrução escolar

precisava expandir um pouco mais os seus ‘horizontes’, pois o letrado – um certo tipo de letrado -

tornava-se útil para a formação de um Estado Nacional forte. Mas, não nos esqueçamos de que se

trata de uma relação de trabalho, relações sociais, que se dão em função de um engajamento

puramente pessoal, estabelecido na base em direitos e deveres produzidos por uma dependência

econômica. E os abolidos da escravatura, os imigrantes que chegavam? Como inclui-los? Como

educá-los? Para quê?

A constituição do Estado Nacional - e de uma língua nacional a ser ensinada e

dominada por todos, através de um processo de escolarização assumido pelo Estado através de

uma de suas instituições: a escola -, era reconhecido como um fator capaz de contribuir para o

progresso do País. Porém foram poucas as oportunidades oferecidas para se levar a todos

políticas de educação promovidas pelo Estado, promovendo os ideais de difusão da instrução

popular, já que a educação nesta época atendia exclusivamente as elites.

As vantagens inerentes ao grupo que detinha o poder ficam evidentes, neste período,

quando Paiva (1973) observa que houve um crescimento do ensino elementar na primeira metade

da República velha, mas concentrado apenas no centro-sul do País, por causa do deslocamento do

eixo econômico do nordeste para o centro sul do país, tendo em vista a cultura do café e o

desenvolvimento das indústrias, o que, conseqüentemente, provocava uma demanda por uma mão

de obra um pouco mais qualificada para atender o mercado.

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Quando Paiva fala, de forma genérica, no aumento, no crescimento do ensino

elementar – escola de ler, escrever e contar – podemos afirmar que não está falando de toda e

qualquer pessoa criança/jovem/adulto que inicia a aprendizagem da escrita e de outros

conhecimentos elementares no ensino elementar. Está falando de um ensino direcionado para os

interesses econômicos da época para alguns. Aqui encontramos muitos excluídos do ensino

elementar que, provavelmente, são os mesmos excluídos das relações de trabalho livre e das

relações sociais: os negros, os pobres, os mestiços... Onde colocar este excedente? O quê e como

ensiná-los?

Uma outra forma de percebermos esta exclusão, característica deste período, foi a

restrição ao voto do analfabeto. Segundo Paiva (1973), a “constituição republicana eliminou a

seleção pela renda, mas manteve a relação pela instrução”. A instrução era o único meio capaz

de excluir os escravos libertos, ou os elementos das classes trabalhadoras que lograssem

ultrapassar a barreira da renda. Começa a nascer uma valorização em cima da instrução como

instrumento de ascensão social, a escola enquanto uma instituição redentora da humanidade, e

junto com ela aumentava o preconceito contra o analfabeto, identificando-o como indivíduo

"incapaz", "não-cidadão" e, posteriormente, como "marginal", "doente", bicho bruto qualquer,

um zero à esquerda...

2.1.2 A Educação de Jovens e Adultos do Século XX: suas campanhas e movimentos

A educação básica de jovens e adultos delimitou o seu lugar na história da educação

brasileira a partir da década de 30, quando finalmente começou a se consolidar um sistema

público de educação elementar no País, ou seja, quando os excluídos – pela negação do acesso ou

pela permanência por longo anos na mesma série – do sistema regular começaram a ganhar

visibilidade e a exigir medidas por parte do Estado.

Os serviços oficiais do Estado começavam a se movimentar no sentido de ampliar as

oportunidades de educação para adultos e de multiplicar suas atividades em favor da difusão

cultural. E a mobilização em torno do problema de educação de adultos atingia diferentes setores

da sociedade, mesmo daqueles interessados em problemas educativos sem filiação política-

partidária. Segundo Paiva (1973), a valorização da arte e da cultura popular tornava-se mais

visível; fazia-se presente a influência européia no que concerne à preparação dos trabalhadores

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nos centros urbanos através de programas especiais, ou seja, programas através dos quais sempre

se acha uma forma, politicamente correta, de se colocar os indivíduos em diferentes posições de

fala e de poder. Afinal não podemos continuar dizendo certas coisas, embora elas continuem

também significando as antigas: o dito significa em relação ao não-dito e ao já dito, já sabemos...

Programas especiais para pessoas especiais, jovem e adulto que não tiveram acesso a educação no

tempo e datas previstos. Enfatizando a necessidade da educação de massas. Colocar todos num

mesmo “bolo de massa” para ver se dá algum jeito, se toma alguma forma...

Para Saviani (1997), a educação só começou a ser reconhecida como uma questão

nacional, a partir da Constituição Federal de 1946 – quase duzentos anos após a Revolução

Francesa - quando diz que a:

"... educação como direito de todos; e o ensino primário como obrigatório para todos e gratuito nas escolas públicas; e ao determinar à União a tarefa de fixar as diretrizes e bases da educação nacional, abria a possibilidade da organização e instalação de um sistema nacional de educação como instrumento de democratização da educação pela via da universalização da escola básica. A elaboração da Lei de Diretrizes e Bases da Educação, iniciada em 1947 era o caminho para realizar essa possibilidade”.

Mas em se tratando da Educação de Jovem e Adulto - EJA, as providências tomadas

pelo governo, que caracterizaram todo o período da década de 40, vindo até os dias de hoje,

tomaram a forma de grandes campanhas e movimentos populares que tinham como meta acabar,

erradicar o analfabetismo no País: uma educação para as "massas". Para podermos compreender

melhor a constituição do sujeito-analfabeto-e-fracassado destas décadas, participante de

programas especiais, de programas de educação de massa, tomo como referência dois programas

importantes que aconteceram neste período e que evidenciam claramente as formas de

individuação pretendidas, bem como o imaginário, que se produz e reproduz, acerca do

analfabeto, que ajudou na construção de uma representação do que venha a ser

analfabeto/fracassado nos dias atuais.

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Sendo assim, proponho-me a fazer uma análise da Campanha de Nacional de

Educação de Adolescentes e Adultos – CEAA, que ocorreu no período de 1947 à 1958, e do

Movimento de Educação e Base – MEB, que iniciou os seus trabalhos em 1961 e o segue até

hoje.

A escolha daquela campanha e desse movimento, para discussão e análise, se deu

pela importância de ambos os programas e, também, porque eles caracterizam duas vertentes da

atuação da educação de jovens e adultos que ficaram evidenciadas neste período e que, de certa

forma, direcionam os programas até os dias atuais. A primeira vertente diz respeito a valorização

de uma educação permanente, que aparece na fala do Presidente da República Juscelino

Kubitschek - mas, não só na dele -, defendendo a educação como um instrumento fundamental

para o desenvolvimento econômico. Em seu discurso no II Congresso Nacional de Educação de

Adultos em 1958, que tinha como meta fixar novas diretrizes e rever os objetivos da educação de

adultos em todo o país, diz:

“... preparo intensivo, imediato e prático aos que, ao se iniciarem na vida, se encontram desarmados dos instrumentos fundamentais que a sociedade moderna exige para a completa integração nos seus quadros: a capacidade de ler e escrever, a iniciação profissional técnica, bem como a compreensão dos valores espirituais, políticos e morais da cultura brasileira.(...) O elemento humano convenientemente preparado que necessita nossa expansão industrial, comercial e agrícola, tem sido e continua a ser um dos pontos fracos da mobilização de força e recursos para o desenvolvimento. Essa expansão vem sendo tão rápida, que não podemos esperar a sua formação regular de ensino; é preciso uma ação rápida, intensiva ampla e de resultados práticos e imediatos, a fim de atendermos às necessidades de nosso crescimento.” (grifos meu)

Outros movimentos que servem para evidenciar essa concepção de educação

permanente, além da CEAA, são o Mobral e as Cruzadas ABC, que tiveram início nos anos de

1966 e 67, foram marcadas por uma ação "intensa e rápida" e trataram metodologicamente o

ensino da leitura e da escrita de forma mecânica e repetitiva. Outro exemplo ainda mais atual é o

Programa Recomeço: Supletivo de Qualidade, que foi lançado no ano de 2000, pelo governo

federal.

A segunda vertente, apoia-se nas concepções de educação popular ou movimentos

de cultura popular. A educação popular, segundo Paiva (1973) se refere “a educação oferecida a

toda a população, aberta a todas as camadas da sociedade. Para tanto, ela deve ser gratuita e

universal. Outra concepção da educação popular seria aquela da educação destinada às

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chamadas ‘camadas populares’ da sociedade: a instrução elementar, quando possível, e o ensino

técnico profissional tradicionalmente considerado, entre nós, como ensino "para os desvalidos"

(p. 165 - grifo meu.)

O MEB é um exemplo desta educação para as camadas populares pois propunha,

como ideário alternativo ao das iniciativas oficiais, buscar novos caminhos para as práticas de

educação de adultos, reafirmando um caráter político transformador. Um importante educador,

que se tornou uma referência nacional e até mesmo mundial, no que diz respeito a educação

popular, com um novo paradigma pedagógico para educação de jovens e adultos foi Paulo Freire,

com a sua "Pedagogia Libertadora".

Embora suas idéias tenham contribuído para a formação de uma nova visão de

educação, uma nova posição-sujeito, e seus frutos tenham sido muitos em termos de seguidores e

de projetos nacionais e internacionais considerados bem sucedidos, decidimos deixar para outro

momento uma análise exaustiva e consistente dessa Pedagogia, dada a relevância que a mesma

assumiu e as controvérsias que gerou.

Voltando aos movimentos populares, parece-nos que a valorização cultural do povo

surgia para mostrar as classes dominantes que o povo também tinha "instrução", mesmo que esta

fosse diferente da exigida formalmente nas escolas. As diferenças e desigualdades econômicas,

sociais e culturais sempre existiram e existirão em uma sociedade de classes como já vimos, e

justamente por isso, deveriam ser levadas em consideração, quanto tratadas como oferta de uma

escola para todos. Observo, contudo, que essa noção de cultura parece, muitas vezes, apagar ou

denegar essas mesmas diferenças e desigualdades, pela sua vagueza e imprecisão, produzindo

uma noção de diversidade que pressupõe uma unidade homogeneizante e ideal. Assim, essas

idéias, embora tenham apontado um outro caminho para se trabalhar com educação de adulto,

também ajudou a criar um discurso em que o fracasso escolar estaria na inabilidade de um

método ou da escola em oferecer condições para o sucesso na relação ensino-aprendizagem.

Estou falando, agora, de um fracasso de um sistema social, educacional e cultural.

É interessante pensarmos também no significado da palavra permanente. Chamo a

atenção para o fato de que todas as campanhas que tinham como finalidade uma educação

permanente, como a CEAA, o Mobral, as Cruzadas ABC, caracterizaram-se por

atividades/programas fragmentados e estratificados, que duraram poucos anos e lograram pouco

sucesso. Já o MEB que atuava com uma concepção de educação popular completa, no ano 2001,

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40 anos de funcionamento e de atividades educativas evidenciando ser mais “permanente” do que

as anteriores.... Estaria essa diferença marcada pela especificidade e história das instituições que

dão sustentação a tais campanhas e movimentos: a Igreja e o Estado brasileiro?

Essas polaridades na concepção da educação de jovens e adultos também podem ser

percebidas no processo de produção de conhecimento sobre o tema, pelo discurso científico, no

campo da metodologia da alfabetização de adultos no período de 1971 a 1990, pela leitura do

estado da arte realizado por Sérgio Haddad & Col. e publicado em 1992. O trabalho desses

autores foi desenvolvido a partir de um extenso levantamento bibliográfico, iniciado em 1986,

abarcando livros, artigos de periódicos especializados, dissertações e teses, relatórios e outro

documentos oficiais produzidos no período. Eles fizeram uma seleção daqueles que eram mais

relevantes e consistentes e os analisaram totalizando um montante de 100 documentos, valendo

ressaltar que 3 são teses de doutorado e 24 dissertações de mestrado.

Duas vertentes de estudo ficaram bem caracterizadas para eles durante esta pesquisa:

uma que incide mais sobre a dimensão política e social da ação alfabetizadora (Freire, 1974 e

1978), e outra ligada à dimensão cognitiva dos sujeitos. O referencial das ciências lingüísticas

também se faz presente nos estudos sobre alfabetização, em geral, e de adultos em particular,

discutindo o problema da estigmatização das variantes lingüísticas populares e o papel da escola

como unificador da norma culta (Lima, 1979, Avelar, 1981). Se tomar como referência os

estudos em Psicologia, observo que eles encontraram números relativamente significativos de

pesquisas abordando as capacidades cognitivas dos adultos analfabetos ou de baixa escolaridade,

tomando como referencial teórico predominantemente a psicologia genética de Jean Piaget, (

Dauster, 1975, Baeta, 1978, Costa, 1987), ou relacionando as capacidades cognitivas com o nível

de letramento (Cunha 1974, Tfouni, 1988, Soares 1999). Outra temática ligada a Psicologia diz

respeito à "motivação", tomando com referencial teórico a psicologia comportamental (

Bonamigo & Viedemann, 1974, Amorim, 1978, Sarriera, 1981, Bandeira, 1986). A temática das

interações e das relações entre professor, monitor X aluno, analfabeto (Cruz & Toscano 1979,

Cardoso 1988, Garcia 1985) também integram esse levantamento.

Feita esta primeira apresentação e análise do cenário nacional, no que diz respeito às

raízes histórico-sociais da EJA, passamos, agora, a complementar essa análise, observando na

Campanha Nacional de Adolescentes e Adultos e o Movimento de Educação e Base, como se

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constrõem formas de individualização do sujeito enquanto sujeitos alfabetizados e sujeitos

fracassados.

• A Campanha Nacional de Educação de Adolescentes e Adultos- (1947 – 1958)

A educação de adultos define sua identidade tomando a forma de uma campanha

nacional de massa: a Campanha de Educação de Adolescentes e Adultos - CEAA lançada em

1947, conforme já dissemos. Essa campanha se fez em meio ao desejo de atender os apelos da

UNESCO em favor da educação popular; tratava-se, pois, de uma demanda externa. No plano

interno, essa campanha, acenava com a possibilidade de preparar mão de obra alfabetizada na

cidades, de penetrar no campo e de integrar os imigrantes e seus descendentes nos Estados do

Sul, além de se constituir em um instrumento para melhorar a situação do Brasil nas estatísticas

mundiais de analfabetismo. A CEAA deveria ser “uma autêntica campanha de salvação

Nacional; uma nova abolição”, segundo o discurso feito pelo Ministro da Educação em uma

entrevista coletiva à imprensa.

Vamos refletir um pouco sobre essa ‘autêntica’ função desta campanha: a de salvação

nacional; uma nova abolição. Fico a pensar que se temos que ser salvos e porque estamos numa

condição de perigo eminente, o ser alfabetizado nos livraria da “morte, da ruína e do perigo”,

conforme o Dicionário Brasileiro (1997). Aqui percebemos uma articulação do discurso religioso

com o discurso político: o caminho da nossa salvação é o caminho de aprender o que “nós” - o

outro, o alfabetizado - vamos lhe ensinar: o ABC. A partir do momento em que o indivíduo

dominar este conhecimento – o ler, o escrever e o contar – estará livre, liberto de sua escravatura,

de sua prisão, da ignorância, da obscuridade... ajudando a construir o mito da passagem de um

mundo sem as letras para um mundo com as letras, pela salvação humana.

O professor Lourenço Filho, diretor desta campanha, acreditava que somente um

conjunto de ações, de esforços no campo pedagógico poderiam ajudar a EJA. Desde sempre, as

ações e os esforços educacionais recaem no caráter pedagógico ou cultural, como se as exigências

econômicas, políticas e sociais, que sempre estiveram presentes nas definições e limitações dos

programas educativos, enquanto objetivos, não fossem importantes, se não essenciais, na

definição de tais ações.

Como sabemos, a questão demandava propostas para a área específica, como também

reformulação do próprio sistema regular de ensino que continuava a produzir analfabetos. No

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entanto, essa campanha se realiza como as campanhas de vacinação de erradicação da paralisia

infantil ou do sarampo. Como se o analfabetismo pudesse ser comparado com uma doença, e que

o antídoto ou a vacina viria em pequenas doses de remédio (ensino) intensivo e condensado.

Evidencia-se como um efeito da urbanização, a articulação de um discurso moral-religioso a um

discurso de saneamento e higienização para produzir o preconceito, considerando o adulto que

não teve acesso a educação, no tempo e idade previstos, como um "imoral", um "sujo", um

"marginal" e um "sem cultura". Esse discurso contribuiu para a construção de um imaginário

acerca da educação de jovens e adultos que não pára de ecoar nos discursos científicos, políticos,

e dos próprios alunos de EJA em pleno século XXI.

Tal imaginário aparece funcionando de forma mais clara, como uma evidencia, nas

palavras do próprio Lourenço Filho em um texto introdutório de uma publicação federal:

Fundamentos e Metodologia do Ensino Supletivo. SEA/MES/DNE de agosto de 1950, que diz:

“ Devemos educar os adultos, antes de tudo, para que esse marginalismo desapareça, e o país possa ser mais coeso e mais solidário; devemos educá-los para que cada homem ou mulher melhor possa ajustar-se à vida social e às preocupações de bem–estar e progresso social. E devemos educá-los porque essa é a obra de defesa nacional, porque concorrerá para que todos melhor saibam defender a saúde, trabalhar mais eficientemente, viver melhor em seu próprio lar e na sociedade em geral.” ( p. 8 - grifo meu)

Essa campanha, na verdade, em vez de promover o ensino de jovens e adultos,

ajudava a reforçar o imaginário acerca do jovem e adulto como sujeitos “doentes”, “deficientes”,

“ignorantes” e “marginalizados”. Reproduzindo sentidos em que se mostra o adulto analfabeto

como incapaz ou menos capaz do que o indivíduo alfabetizado, e deixando intocada as relações

econômico-sociais, geradoras desses males, o que nos indica o verbo "ajustar-se". Os adultos

analfabetos deveriam: saldar, liquidar as diferenças sócio-econômicas e se unirem, se adaptarem

ao grupo dominante dos alfabetizados, como se a condição de pobreza e desvalia fosse

responsabilidade única e exclusiva do indivíduo, e não do Estado que não ofereceu condições de

igualdade educacional para todos. Uma subjetividade se configura, tornando o sujeito

identificável e controlável, marcada desde sempre para o fracasso, sem legitimidade para o

exercício da cidadania.

• Movimento de Educação e Base – (1961)

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O outro movimento importante a ser observado, como já dissemos, para se

evidenciar as formas de individuação que a leitura e a escrita possibilitam no Brasil, é o MEB.

O MEB – Movimento de Educação e Base – é um programa educativo muito

significativo desde a década de 60. Ele é ligado à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil -

CNBB, financiado pelo governo da União, e está em funcionamento desde 1961. Ele, na década

de 60, pretendia oferecer à população rural oportunidade da alfabetização num contexto mais

amplo de educação de base, buscando contribuir para a promoção do homem rural e para a

preparação de reformas básicas como a reforma agrária.

Além do desenvolvimento espiritual do povo e de sua preparação para o

desenvolvimento pretendia-se, também, ajudar o homem a se defender das ideologias

incompatíveis com o espírito cristão da nacionalidade. A forma de individuação aqui pretendida,

não aparece de forma diferente das outras, aparece como um desdobramento das anteriores, um

sujeito cristão-cidadão. O que fica evidente é a presença do discurso religioso na constituição de

sujeito e sentidos de escolarização e na produção da cidadania brasileira. Uma educação para a

salvação, uma nova abolição.

Segundo Paiva (1973), o MEB trazia entre os seu objetivos oferecer respostas às

questões relativas ao comportamento social de um sujeito moral, burguês, cristão – tais como o

conhecimento do meio, o valor da ajuda mútua e da solidariedade, da moderação, da propriedade,

e da família – e ao trabalho: trabalho humano e sua história, trabalho e capital, organização e

nobreza de trabalho, consciência profissional e de classe e sindicalização. Para o MEB, uma

educação autêntica seria aquela que deixa de ser meramente integradora, para ser criadora,

situando o educando na plenitude de seu papel de sujeito da cultura. Uma educação, portanto que

visa a ação e que prepara para a interferência, mas da perspectiva cristã, o que por só não invalida

os resultados daí advindos em termos sociais e políticos.

É importante lembrar que esse caminho da salvação se dá através da apropriação da

escrita - um caminho almejado por todos, mas trilhado só por alguns - que não se dá da mesma

forma para todos. Segundo Silva (1999), a exclusão do sujeito ao acesso a escrita, pode se dar

tanto de forma absoluta – quando o indivíduo não tem acesso à escola, políticas públicas, ou o

próprio direito de estudar – quanto de forma graduada pelos diferentes tipos de sujeitos

alfabetizados que a escola/sistema produz. Isso acontece pela natureza do próprio objeto a ser

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apropriado e da prática lingüística e pedagógica que cria e estabelece os limites e as

possibilidades dessa apropriação.

O modo como se dá essa apropriação, é uma questão central nesse processo, pois daí

irão resultar formas de individuação do sujeito que irão reproduzir e produzir discursos – efeitos

de sentido entre locutores – fazendo funcionar uma sociedade dada em determinada direção, pela

construção de um imaginário em que cada um tem sua parte a ser livremente cumprida, conforme

as suas possibilidades de interpretar – conhecer e compreender a realidade que o cerca enquanto

cidadão consciente e crítico.

Durante todo o período desses programas de educação de massa, o analfabetismo era

concebido como causa e não efeito da situação econômica, social e cultural do país. Essa

concepção legitimava uma posição sujeito a ser ocupada pelo adulto analfabeto: a de incapaz e

marginal, identificado psicologicamente e socialmente com a criança.

O analfabetismo é visto, ainda, como um entrave ao progresso, como

enfraquecimento do poder nacional, pois uma Pátria grande não poderia ser “edificada sobre um

povo esmagado pelos fardos da ignorância e da miséria”, segundo as palavras do Ministro da

Educação Muniz de Aragão, em uma solenidade pela comemoração do Dia Nacional de

Alfabetização em 1966. Interessante como as coisas continuam a serem ditas de diferentes

formas, porém para significar a mesma coisa: o analfabeto sempre numa posição de causa, causa

de seu insucesso, causa da falta do progresso da nação, causa do enfraquecimento do poder

nacional.

Para este Ministro e para grande parte da Nação, o analfabetismo era “uma chaga,

mancha vergonhosa a desfigurar as faces da sociedade brasileira que se apresenta, no conceito

dos povos, com constituída em grande parte, por cidadãos incultos e ignorantes”. Olha o

imaginário do nosso adulto analfabeto, voltando a funcionar pelos já-ditos. Interessante a forma

de se colocar o adulto analfabeto em um lugar, em uma condição de desvalia, de menosprezo, de

marginal. Porque a alfabetização recupera o homem? Ele estava desfigurado, doente? Interessante

perceber que a palavra analfabetismo no dicionário também traz essa noção de incompletude

humana:

ANALFABETISMO.s.m. Estado ou condição de analfabeto; falta absoluta de instrução.

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O analfabetismo tem como referência um estado, uma condição, uma falta do

indivíduo. Não se vai à escola, aluno e professor apenas para, numa ação conjunta, aprender a

ensinar o uso de um instrumento de comunicação, mas também, para alterar um estado, uma

condição, colocar uma prótese em algo que falta ao indivíduo desde sempre. Na escola, essa falta

ganha visibilidade e possibilita marcar cada um perante os diferentes grupos sociais de uma

sociedade dada. A escola confirma e valida – ou não – essa condição (Silva, 1988).

Não podemos negar, contudo, que estes programas de expansão de uma escolaridade

obrigatória: a Campanha Nacional de Educação de Adolescentes e Adultos, o MEB, as Cruzadas,

o Mobral ampliaram o acesso à escola, e como diz Mello (1996) “com base no legítimo princípio

da democratização das oportunidades”. Porém, observo que ao longo dessas políticas de

expansão não foram empreendidos muitos esforços para melhorar a qualidade do ensino e para

produzir fissuras nesse imaginário que sustenta as práticas pedagógicas, deslocando sentidos e

criando condições para os novos sentidos. Parece-me que as preocupações acerca do

analfabetismo estavam direcionadas para um atendimento quantitativo, o que, não significava

necessariamente, um atendimento de qualidade.

E como conseqüências desse atendimento quantitativo irresponsável e perverso,

temos a incorporação do fracasso escolar “como ‘algo natural’ que faz parte das ordens das

coisas, quando se trata da educação de setores populares” Mello G. (1996). E de forma mais

natural ainda – um efeito ideológico -, em se tratando da educação de jovens e adultos...

Para Mello (1993): “ Não se trata mais de alfabetizar para um mundo no qual a

leitura era privilégio de poucos ilustrados, mas sim para contextos culturais nos quais a

decodificação da informação escrita é importante para o lazer, o consumo e o trabalho. Este é

um mundo letrado, no qual o domínio da língua é também pré-requisito para a aquisição da

capacidade de lidar com códigos e, portanto, ter acesso a outras linguagens simbólicas e não

verbais, como as da informática e as da arte”. (p.28)

Feita esta incursão pelas raízes históricas desse grande processo de escolarização do

mundo ocidental - e brasileiro - do qual o fracasso é um elemento constitutivo e constituinte,

passarei a analisar os discursos Jurídico e das Políticas Educacionais sob a perspectiva da Análise

do Discurso, tentando compreender melhor o papel e a função social e política da leitura e escrita

na nossa sociedade brasileira, como instrumento de construção dessa subjetividade que vimos

delineando.

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3. OS DISCURSOS JURÍDICO e POLÍTICO

Tomo para mim as palavras de Pêcheux (1988) para iniciar este capítulo, quando

diz que: o funcionamento da ideologia em geral como interpelação dos indivíduos em sujeitos se

realiza através do complexo das formações ideológicas e fornece a cada sujeito sua realidade,

enquanto sistema de evidências e das significações percebidas – aceitas – experimentadas, o que

significa que a interpelação do indivíduo em sujeito de seu discurso se efetua pela identificação

com a formação discursiva que o domina.(p.162-163)

A tarefa de analisar as diretrizes e bases da educação nacional, isto é, as metas e

parâmetros de organização da educação a serem seguidos pela totalidade de uma nação

determinada, significou compreender como a Educação de Jovem e Adulto se constituiu e se

desenvolveu, no Brasil, em termos de discurso jurídico enquanto parte do funcionamento geral da

sociedade. Partimos do pressuposto de que no estabelecimento dessas leis, o Estado e a sociedade

se articulam de forma a produzir todo um aparato legal para as práticas pedagógicas, capazes de

atendendo aos diferentes interesses dos grupos que integram esta mesma sociedade, em geral, e

os dos grupos dominantes em particular, dar uma configuração específica a essa educação.

Neste capítulo, tratarei também do discurso que denominei de “político” pensando

nas Políticas Públicas de Educação. Segundo Silva, em um texto apresentado na III Semana

Universitária da Universidade Católica de Brasília, em 3 de Outubro de 2001, Estado, Língua e

Ensino estão indissoluvelmente ligados em toda e qualquer sociedade letrada. Essa relação,

contudo, apresenta suas características próprias em cada tipo de sociedade e pode ser apreendida

e analisada a partir de diferentes acontecimentos discursivos. No caso desta dissertação, estou

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interessada em compreender como o discurso jurídico aparece articulado ao discurso político,

atuando na representação do que é ser analfabeto nos dias atuais, e delineando um modelo de

cidadão desejável para a nossa sociedade, reproduzindo um imaginário sobre a educação de

jovens e adultos, como garantia para se ter sucesso no aprender e um sucesso em se tornar

cidadão.

Esses discursos se produzem em formações discursivas - referidas às formações

ideológicas - que se aliam ou se confrontam no espaço textual das leis e das políticas, fornecendo

a cada sujeito sua realidade através de sentidos que se apresentam como evidentes e naturais,

como se já estivessem sempre lá. Como diz Pêcheux (1988), a interpelação do indivíduo em

sujeito de seu discurso se efetua pela identificação com a formação discursiva que o domina.

Se no capítulo anterior, procurei reconstruir um pouco da história do fracasso escolar

da perspectiva econômica e social, gostaria, agora, de trabalhar esses outros discursos, o jurídico

e o político, em que o sujeito de direito se constitui, enquanto contraparte necessária do sistema

capitalista, uma sociedade de classes, regida pela lei.

Nesta dissertação, estou buscando compreender uma subjetividade, uma forma de

individuação específica - um efeito sujeito -: a do sujeito-fracassado em termos de escolarização,

que se constitui pela negação, pela falta dessa escolarização, pela forma como se produzem, se

organizam, circulam diferentes - ou mesmas? – discursividades na sociedade brasileira ao longo

do tempo. Daí, falarmos em sujeito desde sempre fracassado. Com isso, não estamos dizendo que

o ‘indivíduo’, enquanto ser biológico e social, enquanto cidadão identificável, seja ou se sinta

fracassado, que seu comportamento e atitudes observáveis não nos revelem um indivíduo bem

sucedido, trabalhador, honesto, que não obstante as limitações impostas pelo não domínio da

escrita em sociedade totalmente organizada e gerida pela letra, seja um pai de família responsável

e um cidadão cumpridor de seus deveres.

Mas temos, por outro lado, de trabalhar as contradições dessa posição sujeito em seu

processo de constituição e de funcionamento. Pêcheux (1998) nos chama atenção para o fato de

que o atraso do Terceiro Mundo e o fracasso escolar das classes desfavorecidas, “não são de

nenhum modo imperfeições lastimáveis das sociedades industriais, mas trata-se sim de

desigualdades estruturais, inerentes à própria essência do modo de produção capitalista no

estado do imperialismo.” (p.13)

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O corpus a ser analisado será constituído pelas leis maiores da educação nacional: a

Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) de 1960, 1971, 1996 no que diz respeito à

educação de jovens e adultos, e três outros documentos referentes a Educação de Jovens e

Adultos elaborados pelo Ministério da Educação e do Desporto - MEC - e pelo Conselho

Nacional de Educação - CNE: a Proposta Curricular do 1° Segmento, o Parecer CNE/CEB

n°11/2000 e a Resolução/2000. Isso significa que dirijo minha reflexão e análise para a década de

90 principalmente.

A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional fixa as diretrizes da educação

nacional, estabelecendo os parâmetros, os princípios, os rumos para a implementação de uma

estrutura e um funcionamento determinados para o sistema escolar do País. E ao fazer isso, está

explicitando uma concepção de homem/cidadão, está criando espaços de linguagem para a

constituição de uma determinada subjetividade (forma-sujeito), o que nos interessa

particularmente neste trabalho.

Os três outros documentos tratam de mostrar, de indicar, de direcionar um caminho

para EJA em termos pedagógicos. Embora, entenda, que estas intenções e iniciativas sejam muito

positivas para a educação brasileira, esses documentos aparecem, e circulam, no contexto

educacional de forma muito dispersa e fragmentária, produzindo um efeito de confusão. Se para

mim, que estou estudando e pesquisando a EJA, foi difícil entender, compreender a ordem das

coisas, ou seja, a natureza, a especificidade, a hierarquização, a complementaridade dessas

medidas e diretrizes, imagino como é difícil para o professor entender o caminho que deverá

seguir para atender as orientações oficiais referentes a esta modalidade de ensino. Temos, aí, um

efeito ideológico.

De forma a facilitar a tarefa do leitor em acompanhar a nossa análise, passo a uma

explicação sucinta da função de cada documento no contexto mais amplo das políticas públicas.

A Proposta Curricular do 1°°°° Segmento/1999 foi um documento elaborado pelo

MEC, juntamente com a Ação Educativa – uma organização não-governamental – para “oferecer

uma proposta curricular como subsídio ao trabalho dos educadores e não de estabelecer ‘o

currículo’ que necessite ser simplesmente aplicado, seja na escola local, regional ou nacional”.

Esse documento pode ser equiparado aos Parâmetros Curriculares Nacionais – PCNs - elaborados

para a Educação Fundamental e a Educação Média.

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O segundo documento é o Parecer CNE/CEB n°°°°11/2000, elaborado por Jamil

Cury, relator conselheiro desta Casa. Tal Parecer/2000 destina-se a

“estabelecer fundamentos e funções, bases legais para as diretrizes curriculares nacionais de EJA ( bases hitórico-legais atuais), educação de jovens e adultos-hoje (cursos de EJA, exames supletivos, cursos a distância e no exterior, plano nacional de educação), bases histórico-sociais de EJA, iniciativas públicas e privadas, indicadores estatísticos da EJA e diretrizes curriculares nacionais e o direito à educação. Além de esclarecer, que este documento se dirige aos sistemas de ensino e seus respectivos estabelecimentos que venha a se ocupar da educação de jovens e adultos sob a forma presencial ou semi-presencial de cursos e tenha como objetivo o fornecimento de certificados de conclusão de etapas da educação básica”.(p.3)

É interessante ressaltar que este documento foi elaborado, anteriormente à Resolução

de julho de 2000 da Câmara de Educação Básica - CEB - para oferecer um suporte para que este

documento definisse e estabelecesse as Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação de Jovens

e Adultos.

Esses três documentos são, atualmente, os mais importantes textos que tratam da

Educação de Jovens e Adultos no Brasil, são eles que estão justificando e respaldando,

nacionalmente, todas as ações referentes a essa modalidade de ensino.

A EJA, gostaria de lembrar, é tratada como uma "modalidade" da educação

fundamental e média, isto quer dizer que as políticas públicas adotadas pelo governo são

direcionadas ao Ensino Básico como um todo e é a partir destas medidas gerais que programas e

ações são propostos para a EJA. Isso significa que o Estado continua a tratar a educação de

jovens e adultos como algo à parte, como algo "suplementar" em termos de prioridades de ações

e recursos, não obstante a faixa etária desses alunos evidenciar que se trata da força produtiva do

País. Alguns dados referentes a este assunto estão claramente especificados no trabalho de Souza

(1999): “O analfabetismo no Brasil sob enfoque demográfico.”

Para caracterizar o funcionamento dessas políticas faço referência ao Projeto

Alvorada uma proposta ampla, lançada pelo Presidente da Republica Fernando Henrique Cardoso

em 2000, que propõe diminuir/acabar com as desigualdades em todo território nacional, sejam

elas na área da saúde, do saneamento básico, da educação... Para tratar especificamente da

educação de jovens e adultos, este Projeto lançou um programa de ação denominado: Recomeço.

Supletivo de Qualidade. Embora não vá analisá-lo de forma detalhada neste trabalho, considerei

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importante mencioná-lo para evidenciar, por um lado, como as ações destinadas a EJA são

pulverizadas e fragmentadas e, por outro, pelos efeitos de sentidos que suas ações provocam, a

começar pelo próprio título.

A palavra "recomeço" refere-se ao ato de recomeçar. Começar novamente. Essa idéia

me traz a lembrança de que esse recomeço, de certa forma, esquece, nega o que ficou para traz,

como se o passado e a história da educação de adultos não fossem a própria razão para esse

recomeço. Sendo assim é como se devêssemos nos esquecer de todas as desigualdades, das faltas

de oportunidades, dos preconceitos, e começar tudo de novo, do ‘zero’, apagando uma história de

fracasso e desigualdades, mas também de muita luta e sacrifício de cada jovem e adulto deste

País que tanto lutou para entrar e permanecer na escola. Apagando a omissão do Estado e da

sociedade e o esforço individual dos cidadãos. Além disso, "começar novamente" produz o efeito

de sentido de que tudo o que vem pela frente é novo e vai dar certo, fazendo com que alguns

"velhos e antigos problemas" sejam deixados para trás sem solução. Sabemos, contudo, que eles

continuarão a existir, só que ditos de outra maneira, o que Pêcheux denomina de “deslocamento

da desigualdade”.

Uma outra palavra deste título que me chamou a atenção foi a de "supletivo", que no

decorrer deste trabalho, teremos oportunidade de trabalhar pelos sentidos que ela provoca e faz

retornar. Porém, vale ressaltar, desde já, que esta nomenclatura, supletivo, era tida como legítima

na LDB de 71, mas com a nova LDB de 96, ela foi substituída pela de Educação de Jovens e

Adultos – EJA. A escolha deste nome para o projeto Alvorada coube ao atual Ministro da

Educação que preferiu a utilização da palavra "supletivo" à de educação de jovens e adultos.

Embora a escolha de uma palavra pela outra não seja inocente, e gere confusões e

discussões, revelando a não transparência da linguagem e produzindo efeitos e sentidos em

diferente direções, proponho, no momento, voltarmos ao eixo deste capítulo: os discursos jurídico

e político, que produzem e sustentam o imaginário sobre o jovem e adulto analfabeto no Brasil

pela forma de oferecer, ou não, garantias legais de um direito fundamental: a educação, e pela

forma de determinar como essa garantia será efetivada, em especial para o jovem e o adulto,

através de políticas públicas.

Na Análise de Discurso, entendemos que estes documentos, parâmetros, diretrizes,

ações e princípios educacionais não aparecem de forma descontextualizada, pois eles são

produtos de condições determinadas, envolvendo a situação empírica de produção, os sujeitos

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nela envolvidos e o contexto histórico-social mais amplo. Podemos acrescentar, ainda, que os

estudos e pesquisas de várias áreas de conhecimento científico - Psicologia, Pedagogia,

Sociologia, dentre outros -, dão sustentação a esses discursos, revelando uma articulação -

alianças, conflitos e confrontos - entre formações discursivas, referidas às formações ideológicas,

em que o discurso científico sobre a educação brasileira se articula aos discurso jurídico e

político.

Retomo as idéias de Pêcheux (1988) para novamente sustentar minha reflexão:

“Não é o homem que produz os conhecimentos científicos, são os homens, em sociedade e na história, isto é a atividade humana social e histórica que os produz. [...] As ‘idéias científicas’, as concepções gerais e particulares (epistemologicamente regionais) historicamente apontáveis para cada época dada – em suma, as ideologias teóricas e as diferentes formas de “filosofia espontânea” que as acompanham – não estão separadas da história (da luta de classes): elas constituem ‘compartimentos’ especializados das ideologias práticas sobre o terreno da produção dos conhecimentos, com discrepância e autonominações variáveis.” (p.190)

O momento histórico do corte que inaugura uma ciência dada é acompanhado

necessariamente de um questionamento da forma-sujeito e da evidência do sentido que nela se

acha incluída. Vygotsky (1999) diz que: “Para explicar as formas mais complicadas da vida

consciente do homem é imprescindível sair dos limites do organismo, buscar as origens desta

vida consciente e do comportamento ‘categorial’, mas não nas profundidades do cérebro, ou da

alma, mais, sim, nas condições externas da vida e em primeiro lugar, da vida social, das formas

histórico-sociais da existência do homem”. (p.80)

As leis e as políticas públicas são condições externas da vida que organizam a vida

social e estão intimamente relacionadas com os momentos históricos de uma sociedade dada. Por

isso falar dessas "exterioridades" discursivas e analisá-las - a LDB e os três documentos que

direcionam um caminho para EJA -, é falar de espaços de linguagem que contribuem para a

constituição de uma determinada subjetividade (forma-sujeito).

3.1 O DISCURSO JURÍDICO

♦ LDB – Lei n° 4.024/1961

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A primeira Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional - LDB -, que foi a de

número 4.024, promulgada no dia 20 de dezembro de 1961, reconhece a educação como direito

de todos:

TÍTULO IV – Da Educação de Grau Primário CAPÍTULO II – Do Ensino Primário

Art. 27. O ensino primário é obrigatório a partir dos sete anos e só será ministrado na língua nacional. Para os que o iniciarem depois dessa idade poderão ser formadas classes especiais ou cursos supletivos correspondentes ao seu nível de desenvolvimento.

Esta lei foi promulgada no período do governo Kubitshek, denominado pelos

estudiosos, de realismo em educação. Este período foi caracterizado por uma relativa liberdade

de idéias e de uma euforia nacionalista, tendo o governo estimulado a participação dos

intelectuais na teorização do chamado "nacionalismo desenvolvimentista".

Foi um período em que os movimentos educacionais estavam voltados para a

promoção cultural do povo, valorizando as suas expressões artísticas e culturais, contribuindo

para a formulação e adoção do que se considerava uma nova percepção sobre o problema do

analfabetismo e para a consolidação de um novo paradigma para EJA. Era, lembremo-nos, o

momento de campanhas e movimentos, como o MEB, em que essas noções de cultura e povo

tinham as suas especificidades, conforme já assinalamos.

Observo, ainda, que esses efeitos de sentidos em termos de inovações, de valorização,

de "recomeço", apareceram no discurso pedagógico, porque no discurso jurídico, em se tratando

da lei maior de diretrizes e bases da educação nacional, essas propostas não se mostraram tão

inovadoras. Ou, então, o novo estava no dito, que produz seus efeitos de sentido em relação a um

não-dito e a um já-dito...

Tratar os que não iniciaram os seus estudos nas idades apropriadas, em classes

especiais ou em cursos supletivos, parece caracterizar um sistema excludente e marginal, que

ajuda na construção de um imaginário em que as representações sobre o sujeito continuam a ser

de marginal e excluído. E por que não iniciaram os estudos na idade apropriada? Quem são esses

alunos que não iniciaram aos sete anos os seus estudos? Pertencem a que classe(s) social (ais)?

Cury, ao comentar o Parecer CNE/CBE n°11 de 2000, diz que as classes especiais em

1961 eram equivalentes ao que denominamos hoje de classes de aceleração: velhas propostas

para problemas crônicos do sistema educacional, fazendo com que a nossa "balança" da justiça

continue pendendo para um mesmo lado. Tal comentário, que estabelece relações entre práticas

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pedagógicas e práticas políticas, fez com que eu parasse para refletir um pouco sobre as classes

de aceleração.

Essas classes de aceleração, atualmente, fazem parte do Programa de Aceleração de

Aprendizagem que “pretende atender, de maneira específica e continuada, crianças com

defasagem idade-série em dois ou mais anos de escolaridade, marcadas pelo estigma do

insucesso. Nesse Programa, o aluno vai aprender a trabalhar com objetividade e com alegria,

verificar seu progresso e perceber seu sucesso a cada passo. Por isso, os subprojetos são

pequenos, de curta duração para o aluno sentir o gosto do sucesso”. Da nossa perspectiva,

podemos tomar o termo "insucesso" como uma paráfrase de "fracasso".

Vemos aí, novamente, o aluno ser tomado como causa de seu insucesso: crianças

com defasagem idade-série. Estigma do insucesso. Como se produziu esse estigma? Onde

aparece qualquer menção às diferenças e desigualdades, às omissões do Estado em oferecer

educação de qualidade a todos? Quem não tem estudo é infeliz e fadado ao fracasso, e os cursos

de pouca duração são um "presente" e não um dever do Estado.

Fui buscar no Pequeno Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa, do ano de 1969,

o significado da palavra "aceleração" e encontrei um sentido um tanto curioso. Vejamos:

"ACELERAÇÃO, s.f- Ação de acelerar, aumento ou diminuição de velocidade por unidade de tempo; pressa; rapidez na execução."

Os adultos já "perderam muito tempo", que foi o de não estar na escola; se temos que

acelerá-los, temos que aumentar a velocidade no momento em que esses alunos estão dentro da

escola para compensar o tempo perdido. A curta duração, o aligeiramento dos conteúdos, a

simplificação, a banalização da educação mais uma vez se fazem presentes, justo para aqueles

que não têm acesso aos bens culturais e que enfrentam todo um dia de trabalho antes de se

dirigirem à escola. Não é um tanto confuso ou até mesmo paradoxal? Estar dentro da escola o

menor tempo possível para compensar o grande tempo perdido, fora da escola...E ainda, chamar

isso de "especial" – classes especiais – como se isso fosse muito bom para o desenvolvimento das

"ditas" habilidades de leitura e escrita.

Se essa lei reconhece a educação como direito de todos, a forma como foi oferecida

esta educação não foi igual para todos. Para alguns, classes especiais ou supletivas, para outros,

ensino regular. E certamente, a forma como a apropriação da leitura e da escrita se deu também

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não foi de forma igualitária: para alguns, apenas codificar e decodificar códigos e, para outros, ler

e interpretar textos e livros.

Estas formas de apropriação, como já dissemos, é que fazem com que a nossa

sociedade funcione em determinada direção, construindo um imaginário em que cada um tem a

sua parte a ser livremente cumprida – uma forma de assujeitamento -, conforme as suas

possibilidades de interpretar, conhecer e compreender a realidade que o cerca enquanto cidadão

crítico e participativo.

Os discursos são constituídos em condições de produção onde funcionam certos

elementos, sendo um deles o que a AD chama de "relação de sentidos". Segundo essa noção, não

há discurso que não se relacione com outros. Os sentidos resultam das relações. Um discurso

aponta para outros que o sustenta, assim como para os dizeres futuros. Um dizer tem relação com

outros dizeres realizados, imaginados ou possíveis.

♦ LDB – Lei n° 5.692/71

É interessante pensar nas condições de produção desta lei, que foi promulgada em

pleno regime militar - momento caracterizado pela paralisação e/ou fechamento das instituições e

paralisação das atividades ditas ‘inovadoras’ do período anterior –, pois foi ela que garantiu a

EJA, até então chamada de Ensino Supletivo, um capítulo em sua redação, regulamentando as

especificidades desta modalidade de ensino, não presente no documento legal anterior. A EJA

ganha, pois, visibilidade, deslocando as relações entre as fronteiras econômicas e sociais e as

fronteiras educacionais, até então invisíveis, em se tratando da educação de jovens e adultos. E

que efeitos de sentido e possibilidades de transformação essa visibilidade dá?

Poderíamos pensar que as propostas ditas inovadoras, que foram resultado de tantas

discussões no governo Kubitshek, só se fizeram ouvir (ou significar) dez anos depois da

promulgação da primeira LDB. Por outro lado, percebemos que podemos ver aí uma outra forma

de exclusão, não mais pela ausência da modalidade, mas sim pela visibilidade dada a um tipo de

individualização do sujeito, exigida pelo próprio momento histórico vivido por nosso País: uma

demanda econômica e social por trabalhadores-técnicos.

Não havia, na verdade, jeito de deixar a EJA fora desta nova LDB, pois o país vivia

um momento em que o desenvolvimento da nação exigia um maior número de brasileiros com

capacidade de expressão e de raciocínio – uma determinada capacidade - integrados no meio

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físico e social ,- sendo que esta capacidade deveria ser trabalhada o mais rápido possível. Daí a

necessidade de "acelerar", apropriando-se mecânica e repetitivamente da escrita, de "orientar"

para o trabalho em uma ação educativa vista como imperativo no processo de formação da

"personalidade humana", algo genérico e indeterminado.

E hoje por que precisamos novamente das "classes de aceleração"?

Prosseguindo na nossa análise da LDB/71, observamos que a EJA ganha espaço

textual e legal e irá aparecer como Ensino Supletivo nos capítulos IV e V, que transcrevemos a

seguir:

CAPÍTULO IV – Do Ensino Supletivo

Art. 24. O ensino supletivo terá por finalidade: a) suprir a escolarização regular para os adolescentes e adultos que não a tenham seguido ou concluído na idade própria; b) proporcionar, mediante repetida volta à escola, estudos de aperfeiçoamento ou atualização para ao que tenham seguido o ensino regular no todo ou em parte. Art. 25 O ensino supletivo abrangerá, conforme as necessidades a atender, desde a iniciação no ensino de ler, escrever e contar e a formação profissional definida em lei específica até o estudo intensivo de disciplinas do ensino regular e a atualização de conhecimentos.

CAPÍTULO V – Dos Professores e Especialistas

Art. 32. O pessoal docente de ensino supletivo terá preparo adequado às características especiais desse tipo de ensino, de acordo com as normas estabelecidas pelos Conselhos de Educação.

Quando esta lei define que o supletivo terá como finalidade suprir a escolarização

regular, faz ressoar uma oposição, a do supletivo como um ensino irregular, um não-dito

funcionando no dito e, por assim dizer, significando o aluno dessa modalidade como ocupando

um lugar de irregularidade. E o parágrafo continua dizendo: para os adolescentes e adultos que

não a tenham seguido e concluído... Por que não o fizeram? A culpa de não terem seguido e

concluído os estudos é apenas deles? Vemos aí o individualismo apagando os processos

histórico-sociais em que se produzem a exclusão. O Estado retira a sua responsabilidade de

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oferecer igualdade de oportunidades para todos, de oferecer educação para todos, já que prevê

que o aluno, jovem e adulto, entra e sai da escola repetidas vezes e que o ensino terá como

finalidade proporcionar estudos de aperfeiçoamento ou atualização a esses alunos. Como

oferecer um ensino igualitário, se nem mesmo os alunos freqüentam a escola de forma igual?

Aperfeiçoar o aluno em quê? Atualizar como? Como aperfeiçoar e atualizar esses alunos se eles

não tiveram nem mesmo a chance de conhecer, aprender, freqüentar a escola?

Se na lei anterior, a EJA era marcada pela presença de classes especiais, nesta ela

aparece com o caráter de suplência, suplemento. Uma ida ao dicionário (Globo, 1997) poderá nos

ajudar a compreender esse funcionamento. O verbo "suprir" aparece aí da seguinte forma:

SUPRIR - V.tr .dir Completar; inteirar; fazer as vezes de; substituir; remediar; prover; prevenir; preencher; tr .dir. e ind. Prover; abastecer; trocar; substituir; tr. ind. acudir; remediar; servir de auxílio; dar o necessário para a subsistência.

Alguns desses termos produzem efeitos de sentidos interessantes de serem analisados.

O primeiro que me chamou a atenção foi o de: completar, inteirar, preencher. Mas, completar o

quê ou quem? Tornar inteiro o quê? Preencher quem? Pensa-se que alguma coisa está faltando no

indivíduo, como se ele estivesse incompleto. Falta-lhe o conhecimento, o domínio da leitura e da

escrita. Mas, essa falta foi decorrente de quê? Quem se responsabiliza por essa incompletude?

Será aquela "doença" de outrora, significando de outra maneira? Essas faltas, buracos, falhas

parecem que são do indivíduo e sempre estiveram presentes na sua história de aprendizagem.

Embora esta falta não represente o vazio, pois essas pessoas estão cheias de ignorância, de

doença, de marginalidade... O ensino supletivo aparece, então, como um grande desafio: o de

completar, inteirar e preencher todos os jovens e adultos que, até então, estavam incompletos... A

contradição indivíduo/sociedade, constituinte do capitalismo, passa a ser tratada como um caso

de suplemento, de aperfeiçoamento, de atualização...

Não se vai a escola, aluno e professor, só para aprender o que não se sabe e para se

ensinar uma técnica cultura, uma ferramenta de comunicação, mas também, para suprir uma falta,

mudar um estado, uma condição, para manter o sentido e o sujeito em sua dispersão (Silva,

1998).

A outra expressão, encontrado no dicionário, traz para a cena enunciativa um outro

sentido ligado às condições materiais de existência, o de: dar o necessário para a subsistência.

Para se ter as condições humanas mínimas é necessário saber ler e escrever? Parece que sim em

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uma sociedade letrada em que a educação torna-se o meio para satisfação das necessidades

básicas. Essa relação foi explicitada anteriormente no trabalho de Patto (1996), quando ela

descreve a noção do trabalho alienado tal como proposto por Marx, como uma forma

desumanizadora do homem. Agora eu me pergunto, será que o não ensinar-aprender a ler e a

escrever também é uma forma de desumanizar o sujeito ou de impedir a sua humanização? Qual

o sentido da educação de jovens e adultos? Será que é o de torná-los humanos, deixando a

condição de “animais”? Vejo que, novamente, retorno a questão da leitura e da escrita como

possibilidade de ser homem, civilizado.

Essa primeira incursão aponta para diferentes lugares de significação que vão sendo

construídos para o sujeito se constituir, possibilitando uma compreensão de como se configura

uma posição sujeito em que o indivíduo ocupa quando fala/ouve, lê/escreve para significar o

mundo e se significar.

♦ LDB – Lei n° 9.394/96

A Lei de Diretrizes e Bases que rege o nosso sistema de ensino atualmente é a de

número 9.394 de 20 de dezembro de 1996. Esta lei revogou toda a LDB de 71. Aí já não mais

aparecem os termos "suprir", "suplência" ou "supletivo". E o que a lei de 71 denominava como

Ensino Supletivo, essa lei chama de Educação de Jovens e Adultos (EJA), garantindo em seu

artigo 4º : ensino fundamental, obrigatório e gratuito, inclusive para os que a ele não tiveram

acesso na idade própria. E no Título V trata especificamente de nosso tema:

TÍTULO V – Dos Níveis e das Modalidades de Educação e Ensino

CAPÍTULO II – Educação Básica

SEÇÃO V - Da Educação de Jovens e Adultos Art.37 . A educação de jovens e adultos será destinada àqueles que não tiveram acesso ou continuidade de estudos no Ensino Fundamental e Médio na idade própria. $ 1°°°° Os sistemas de ensino garantirão gratuitamente aos jovens e aos adultos, que não puderam efetuar os estudos na idade regular, oportunidades educacionais apropriadas, consideradas as características do alunado, seus interesses, condições de vida e de trabalho, mediante cursos e exames. $ 2°°°° O Poder Público viabilizará e estimulará o acesso e a permanência do trabalhador na escola, mediante ações integradas e complementares entre si.

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Art.38 Os sistemas de ensino manterão cursos e exames supletivos, que compreenderão a base nacional comum do currículo, habilitando ao prosseguimento de estudos em caráter regular. Art.80 O Poder Público incentivará o desenvolvimento e a veiculação de programas de ensino a distância, em todos os níveis e modalidades de ensino, e de educação continuada. (grifos meus)

Ensino Supletivo. Educação de Jovens e Adultos: uma forma de colocar essa falta

de instrução em outro lugar. Mas qual? Um novo deslocamento para organizar a diferença em

outro lugar?

A partir da década de 80, com o restabelecimento da democracia nacional e com o

tema da educação de adultos colocado nas pautas das discussões internacionais, a EJA aparece no

cenário nacional com uma dimensão dita "renovada". Questiona-se, então, a capacidade dos

indivíduos em serem "eficientes", em resolverem os problemas advindos do mundo

contemporâneo, em responderem às exigências do mercado de trabalho, das novas tecnologias. E

propõem-se soluções.

Começaria por pensar sobre uma das soluções propostas. Essa nova LDB incentiva o

ensino à distância como uma alternativa eficaz para o ensino de jovens e adultos. As aulas a partir

da 5° série não são mais presenciais. O aluno só vai a escola para tirar dúvidas, fazer trabalhos e

responder as provas. Mais uma vez, este aluno se vê fora da escola; um aluno que tem a escola,

quase sempre, como o único lugar de acesso aos bens culturais de uma sociedade letrada.

Talvez, seja aqui que iremos encontrar este deslocamento de sentidos relativo à falta

de instrução de que falava anteriormente: no ensino à distância. Da forma como está sendo

implantada, atualmente, esta modalidade de ensino transfere, de uma certa maneira, a

responsabilidade do Estado em oferecer educação de qualidade para o homem trabalhador que,

agora, será também responsável pela qualidade do que aprende. É uma forma de empurrar o

problema do compromisso social e político do Estado e de setores da sociedade para o próprio

analfabeto, produzido por um sistema econômico injusto e por um tipo de escolaridade

determinado por esse mesmo sistema. Uma questão social e política transforma-se em uma

questão individual com o apoio de teorias que falam, ainda, de respeito ao ritmo próprio do aluno.

Souza (1999), em seu artigo, “O analfabetismo no Brasil sob enfoque demográfico”,

mostra a importância em se adotar políticas públicas orientadas para a população não apenas em

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idade escolar, considerando a faixa etária daqueles que se enquadrariam na EJA. Simulando um

quadro otimista e outro pessimista, para os próximos anos, decorrente da adoção - ou não - de

uma política mais agressiva, ele conclui:

“ Independentemente do cenário adotado (...), bem mais de 8% da população com idades acima de quarenta anos será, no ano 2020, analfabeta. No cenário de redução desacelerada, até meados da década de 2010, a população entre dez e dezenove anos teria taxas acima da linha de 5 %. Trata-se de um nível ainda alto em termos comparativos internacionais e com impacto duradouro, já que se trata de população extremamente jovem. O analfabetismo entre os jovens, nessa situação, só poderia vir a ser eliminado em algum momento distante no tempo, após 2020.” ( p.178)

O problema, como ele sinaliza, não está apenas em oferecer educação, mas sim em

oferecer uma educação de qualidade. Observamos, entretanto, que as políticas públicas

encontraram uma forma até que interessante para atender a toda a população o mais rápido

possível, resolvendo o problema da equidade, com o ensino à distância, porém deixaram em

suspenso um outro problema, ainda, maior: o de garantir a qualidade de ensino. Como oferecer

uma educação à distância de qualidade ao jovem e ao adulto, se a escola é um dos poucos lugares

a lhe oferecer acesso aos bens culturais da nossa sociedade? E o que dizer da quase inexistência

de bibliotecas? E o preço de jornais, revistas e livros? A educação à distância não será mais uma

vez, uma forma de exclusão? Um aluno que aprende sozinho, sem muitos recursos terá os

mesmos resultados daqueles que estão no ensino regular? Ele conseguirá falar da mesma posição

de poder que o outro?

Souza (1999) conclui o seu artigo, dizendo que o analfabetismo hoje é resultado tanto

da insuficiência quanto da demora na melhoria da alfabetização ao longo da metade deste século.

E alerta para o fato de que a simples alfabetização (codificar e decodificar símbolos) já pode ser,

hoje, considerada insuficiente para atender às necessidades mínimas de educação de um

indivíduo, e é de se esperar que ser analfabeto daqui a uma ou duas décadas seja qualitativamente

inferior. “É possível afirmar que o peso do baixo nível será muito mais grave no futuro.”

Feita essa incursão pelas Leis de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, passo

agora a analisar os outros documentos referentes a educação de jovens e adultos, que se referem

às políticas públicas educacionais, a partir dos quais poderei compreender o funcionamento do

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que estou chamando de discurso político, um discurso construído a partir de hipóteses histórico-

sociais.

3.2 O DISCURSO POLÍTICO EDUCACIONAL

“A preparação para o exercício da cidadania moderna e o crescimento da

competitividade são os grandes marcos orientadores de novos rumos para a educação num país

em desenvolvimento”, segundo Mello G. (1993, p.64). Sendo assim, para ela, a educação

fundamental brasileira não irá conseguir responder aos desafios do terceiro milênio se continuar

de “costas para o futuro”. Para se efetivar uma mudança, deve-se ter clareza quanto aos objetivos

e prioridades a serem alcançados para, a partir daí, definir novas formas de intervenção. As

políticas públicas de educação deveriam, portanto, deixar bem claros e definidos tais objetivos e

prioridades, para que os programas e projetos elaborados seguindo essas diretrizes pudessem

promover uma verdadeira transformação. Além disso, acredito que seria fundamental que essa

mesma clareza servisse para clarificar o que Mello chama de "cidadania moderna" e

"competitividade", pois, observamos que nada disto está devidamente explicitado no material

analisado.

Como dissemos anteriormente, percorremos um longo e complexo caminho para

compreendermos como se articulam, em ordem de importância e de peso político nas tomadas de

decisões das instâncias estaduais e municipais, os documentos que serão aqui analisados.

Tivemos, pois, de "enfrentar" o efeito de evidência, de dispersão e de fragmentação que eles

produziam, atravessá-los para desconstruí-los e compreender os gestos de interpretação aí

contidos. Neste sentido, passo a explicitar o que encontrei neste caminho e a forma que adotei

para trilhá-lo.

Os objetivos e prioridades da educação nacional, em geral, e da educação de jovem e

adulto, em particular, podemos encontrar na nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação

Nacional - LDB 9.394/96, conforme vimos no item anterior deste capítulo. Segundo Vieira

(2001):

“A partir de 1996 a educação brasileira passa a conviver com dispositivos legais que delineiam um projeto político-educativo compatível com a reforma global do Estado Brasileiro. Tal situação tem por objetivo (re)estruturar o sistema educacional por meio da descentralização administrativa e financeira, através de

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uma redefinição do papel das instâncias municipais e escolares na oferta dos serviços na área de educação”.(p.11 - grifo meu)

A LDB/96, em seu artigo 1°, refere-se aos princípios norteadores da educação e

estimula a criação de propostas alternativas para promover a igualdade de condições para o

acesso e permanência do aluno no processo educativo, a utilização de concepções pedagógicas

que valorizem a experiência extra-escolar e a vinculação do educação com o trabalho e com as

práticas sociais.

No art.9°, inciso IV, a LDB/96 assinala ser incumbência da União: “estabelecer, em

colaboração com os Estados, Distrito Federal e os Municípios, competências e diretrizes para a

educação infantil, o ensino fundamental e o ensino médio, que nortearão os currículos e os seus

conteúdos mínimos, de modo a assegurar a formação básica comum”. O Ministério da Educação

e do Desporto (MEC) tem, pois, amparo legal para estabelecer sua proposta de política pública.

Seguindo o artigo 9° dessa mesma LDB, observamos que os currículos e seus

conteúdos mínimos, propostos pelo MEC, deverão ser estabelecidos através de diretrizes. Estas

terão como foro de deliberação a Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de

Educação. E serão definidas por políticas e planejamentos educacionais.

Ao deliberar sobre as Diretrizes Curriculares Nacionais, a Câmara de Educação

Básica do CNE inicia o processo de articulação com Estados e Municípios, através de suas

próprias propostas curriculares, definindo, ainda um paradigma curricular para o Ensino

Fundamental, que integra a Base Nacional Comum, complementada por uma parte diversificada,

a ser concretizada na proposta pedagógica de cada unidade escolar do País.

O MEC, então, propõe um norteamento educacional para as escolas brasileiras

através dos Parâmetros Curriculares Nacionais/97 - PCNs:

“... a fim de garantir que, respeitadas as diversidades culturais, regionais, étnicas, religiosas e políticas que atravessam uma sociedade múltipla, estratificada e complexa, a educação possa atuar, decisivamente, no processo de construção da cidadania, tendo como meta o ideal de uma crescente igualdade de direitos entre os cidadãos, baseado nos princípios democráticos. Essa igualdade implica necessariamente o acesso à totalidade dos bens públicos, entre os quais o conjunto dos conhecimentos socialmente relevantes”. (Parecer CNE/CEB n°04/98, elaborado pela relatora e conselheira desta Casa, Regina Alcântara Assis, afim de justificar a importância dos PCNs.)

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Estes PCNs são direcionados para toda Educação Básica como uma política

pública nacional. Como a Educação Básica é formada pelo Ensino Fundamental e Médio, e a

Educação de Jovens e Adultos é definida pela LDB, como uma modalidade destes ensinos, os

PCNs devem ser considerados, pois como o passo inicial para se compreender essa proposta

mais ampla, guardadas as especificidades de seu campo de ação e as exigências impostas pela

natureza da ação pedagógica.

Logo após a divulgação dos PCNs, o próprio MEC lança em 1999, um material

denominado Parâmetros em Ação, com o propósito de apoiar e incentivar o desenvolvimento

profissional de professores e especialistas em educação. A idéia central dessas novas orientações,

segundo o próprio documento, é a de propiciar a leitura compartilhada, o trabalho conjunto, a

reflexão solidária, a aprendizagem em parceria. O que encontramos ali, contudo, em forma de

módulos, são uma didatização dos PCNs em que retornam as velhas "receitas" e "dicas"

propostas por uma pedagogia já superada pelas pesquisas e trabalho acadêmico mais avançados,

colocando em dúvida, mais uma vez, a capacidade de leitura dos professores e educadores em

geral. Encontramos, então, uma forma de controle da interpretação, do discurso. Esses parâmetros

foram distribuídos nas escolas para que os professores conseguissem melhor direcionar os seus

trabalhos do dia-a-dia. A educação de jovens e adultos ganhou um manual só para ela, embora

não tivesse diretrizes curriculares, nem política pública específicas para essa modalidade de

ensino.

É importante ressaltar no delineamento dessa trajetória, que o texto constitucional de

1988 define que, enquanto país federado, devemos compartir responsabilidades e deveres, ou

seja, as competências e atribuições da União, dos Estados e dos Municípios devem ser divididas,

estando as mesmas explicitadas na LDB/96 e, mais recentemente, no Plano Nacional de

Educação, de forma a fornecer subsídios para a atuação solidária que deve existir entre as três

esferas públicas, supondo sempre que a família e a sociedade – organizadas sob diferentes formas

– também contribuem para que seja cumprida da melhor forma o mandato constitucional de que

a educação é um direito e um dever da cidadania organizada e que deve ter a participação de

todos (Vieira, 2001).

Sendo assim, o poder público já não se percebe como agente único de promoção de

bens e serviços, até mesmo nas áreas sociais. Novas parcerias surgem, cresce o papel das

organizações não-governamentais – o chamado terceiro setor – no âmbito da oferta de serviços,

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antes afetos ao Estado. Entidades organizadas da sociedade passam a atuar como executoras de

políticas sociais motivadas pela progressiva ausência do poder público na oferta de certos

serviços.

E é nesta perspectiva que no ano de 1999, o MEC juntamente com a Ação Educativa

– uma organização não governamental -, elaboraram uma Proposta Curricular do 1° Segmento

para a Educação de Jovens e Adultos.

Temos, então, num mesmo ano – o de 1999 -, três documentos elaborados para

orientar a EJA: os PCNs , os Parâmetros em Ação e a Proposta Curricular do 1° Segmento.

Apesar dessa multiplicidade de orientações, somada a promulgação da LDB, a educação de

jovens e adultos continua a suscitar dúvidas e ambigüidades no que diz respeito a suas diretrizes.

E por isso foi solicitado no ano de 2000, ao Conselho Nacional de Educação um Parecer sobre as

diretrizes que deveriam nortear a EJA. Jamil Cury, um dos conselheiros desta Casa elabora,

então, o Parecer CNE/CEB n°11/2000, que irá nortear a Resolução/julho 2000, que estabelece as

diretrizes curriculares nacionais para educação de jovens e adultos.

Não posso deixar de mencionar também, que todo esse processo de discussão e

elaboração de diretrizes em torno da educação de jovens e adultos foi fortemente influenciado

pelos debates que se deram por ocasião da "Conferência Regional Preparatória da América Latina

e Caribe” realizada em Brasília, em Janeiro/97, o que permitiu a elaboração e a adoção de novas

concepções e estratégias de ação que levassem em consideração as profundas mudanças pelas

quais a sociedade estava passando desde 1985. E na V Conferência Internacional de Educação de

Adultos (V CONFITEA), realizada em Hamburgo, em julho de 1997, reafirmou-se que apenas o

desenvolvimento centrado no ser humano e a existência de um sociedade participativa, baseada

no respeito integral aos direitos humanos, levariam a um desenvolvimento justo e sustentável.

Havia, pois, todo um clima de mudança, apontando para novos direcionamentos na EJA.

Temos aí postas as condições de produção dessa Proposta em termos de situação

imediata e dos sujeitos envolvidos em sua elaboração. Mas, importa lembrar que nessas

condições está também implicado o contexto sócio-histórico mais amplo que delineamos no

capítulo anterior e que está também significando no que é enunciado.

Mas será que essas políticas representam mesmo mudanças em direção a um

tratamento mais justo ao jovem e adulto que não tiveram escolas para freqüentar ou que nelas

ingressando de lá foram expulsos pela sua incompetência pedagógica e pela falta de compromisso

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político com os diferentes segmentos que compõem a sociedade brasileira? Será que elas tornarão

a "balança" mais equilibrada?

Passaremos, em seguida, a análise desses documentos com o objetivo de compreender

os gestos de interpretação aí contidos e encontrar possíveis respostas para as questões

anteriormente formuladas, através, principalmente, das formas de individualização do sujeito que

essa política delineia.

♦ Proposta Curricular do 1° Segmento

A iniciativa de elaborar a proposta curricular surgiu no âmbito da "Ação Educativa",

organização não governamental que atua na área de educação e juventude, como já dissemos,

combinando atividades de pesquisa, assessoria e informação. Uma versão preliminar da proposta

foi concluída em junho de 1995 e submetida à apreciação de um grupo de onze educadores

ligados a diferentes programas de educação de jovens e adultos empreendidos no âmbito da

sociedade civil.

Durante o segundo semestre de 95, com o apoio da Secretaria de Educação

Fundamental do MEC, foi possível ampliar as consultas aos educadores ligados a programas

governamentais de Educação e Jovens e Adultos. Em 1996, o MEC manifestou à Comissão

Nacional de Educação de Jovens e Adultos a intenção de co-editar e distribuir esta proposta

curricular.

Desta forma, podemos dizer que esta Proposta foi discutida e apreciada por vários

grupos ligados a programas de educação de jovens e adultos – governamentais e não-

governamentais -, de 1995 até a sua edição final em1999, o que lhe confere uma

representatividade e legitimidade.

O texto da proposta inicia-se com uma “Nota da equipe de elaboração” em que

justifica algumas limitações ali encontradas. A primeira limitação apontada como problemática,

desta proposta, diz respeito à sua "abrangência". Este documento faz referência às 4 primeiras

séries do ensino fundamental, tratando da alfabetização e pós-alfabetização de jovens e adultos.

Não há, contudo, diretrizes para as outras quatro séries do ensino fundamental - 5° a 8° séries. - e

nenhum dos outros documentos as apresentam ou as discutem. O que me fez pensar sobre a

noção de educação permanente. Como oferecer continuidade no processo educacional se as

políticas são parciais e fragmentárias? Sabemos também que em certas regiões do País,

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considerando o atual estágio de desenvolvimento tecnológico, há uma demanda por trabalhadores

cada vez mais qualificados. Como oferecer diretrizes apenas para as quatro séries iniciais?

Uma outra limitação desta proposta, segundo a equipe de elaboração, está relacionada

às "áreas de conhecimento", pois há uma ausência de orientações para a Educação Artística, a

Educação Física e para a própria Educação para o Trabalho, mesmo sabendo que quase todos os

alunos atingidos são alunos-trabalhadores. E a ausência da arte? Que efeitos de sentido podemos

ver aí produzidos por essa ausência?

O discurso científico e o próprio discurso político vêm chamando a atenção, desde

décadas passadas, para a importância da educação para o trabalho como uma forma de orientação

para uma educação permanente e continuada, e para o fato de que a educação de jovens e adultos

deveria estar atendendo aos desafios do mundo contemporâneo e às novas exigências de um

mercado informatizado. É interessante pensar, então, de que estamos falando quando falamos de

EJA? É ou não é uma educação que está centrada em uma educação continuada e permanente,

dando ao sujeito condições - garantias mesmo - de se inserir num mercado de trabalho altamente

competitivo melhor preparado? Como tratar das questões que estão aí afetas se não falamos de

uma educação para o trabalho? Como foi possível esta proposta não relacionar nas áreas de

conhecimento a educação para o trabalho?

Segundo Franco (1995), na década de 90, “aprofunda-se a discussão acerca da

contínua referência aos mecanismo do mercado como os grandes orientadores das políticas

educacionais. A essa referência acrescenta-se o debate sobre o recorrente apelo à

‘modernidade’ e à ‘modernização” que são aspirações comuns e consensuais de toda a América

Latina.”(p.125)

Parece que esta busca pela "modernidade" substitui o discurso da revolução social e o

ideário desenvolvimentista de décadas anteriores, e surge como uma possibilidade de

transformação política e econômica, ou seja, devemos repensar a proposta de formação de

recursos humanos diante da contradição que se estabelece entre um processo de industrialização

heterogêneo e desigual e a realidade de um contexto permeado pela existência de uma força de

trabalho barata, abundante e penalizado pelo subemprego e pelo desemprego (Franco, 1995).

Como falar de modernidade e modernização se o que se pretende é uma mão de obra abundante e

barata? Mesmo que o pretendido esteja evidenciado pela ausência, pelo não-dito?

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Agora, quando falamos de fracasso podemos "confundir" o sujeito-fracassado com o

sujeito-trabalhador da modernidade. Quem fracassa não é só o sujeito que não aprende a ler e a

escreve, mas também aquele que não corresponde às exigências da modernidade. Não é um tanto

paradoxal esta proposta, querer formar adultos para enfrentar as exigências do mercado, porém

sem instrumentaliza-los para tanto, ou seja, não tratando explicitamente da natureza e

especificidade deste mercado. A forma como se escolhe um conteúdo em relação ao outro é uma

das maneiras de significar, de identificar que cidadão ou trabalhador quero formar com esta ou

aquela proposta curricular.

Poderíamos, então, concluir que aquilo que a Proposta chama de "limitações",

constituem, na verdade, o cerne da proposta em termos sociais e políticos, constituem-se em

pontos estratégicos para uma verdadeira transformação das políticas públicas e da ação

pedagógica no que se refere a EJA.

Prosseguindo em nossa análise, “é essencial reafirmar que o espírito de nossa

iniciativa foi o de oferecer um proposta curricular como subsídio no trabalho dos educadores e

não de estabelecer um ‘ currículo’ que merecesse ser simplesmente aplicado”.(p. 9)

Em uma primeira leitura, podemos observar o lado positivo de tais orientações por

não trazerem algo pronto e acabado, mas tão somente subsídios para a prática pedagógica. No

entanto, podemos também encaminhar a reflexão e análise em outra direção.

A palavra subsídio se refere a uma ajuda, auxílio, socorro. Tais palavras trazem

efeitos de sentidos relacionados a favor, amparo, proteção. É como se a EJA sempre precisasse e

necessitasse deste suporte e não de "currículos". Assim ela continua a aparecer no cenário

educacional numa condição de ‘coitada’, ‘capenga’, ‘marginal’, ‘doente’ e os ditos continuam a

significar nos não ditos... Essa referência me fez lembrar dos programas que o Governo do

Distrito Federal, está oferecendo a seus professores, como auxílio, ajuda a sua prática

profissional, dos quais participei como formadora de professores de EJA em 2000, ministrando o

curso Formação de Formadores de Professores de EJA em um deles, com o objetivo de

aperfeiçoar os conhecimentos dos professores em relação a EJA.

Atualmente, este programa de formação está sendo desenvolvido pela Secretaria de

Educação do Distrito Federal em parceria com MEC, em forma de “Pólos de Aperfeiçoamento”

em todas as cidades satélites, afim de colaborar com o Programa Recomeço: Supletivo de

Qualidade/2000. A implementação destes pólos constitui a primeira parte do Programa e deve

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estar concluída até o final do ano de 2001. A segunda parte, a fase de acompanhamento, só irá

acontecer se o próximo governo eleito continuar com o Programa. Estes pólos de

aperfeiçoamento trabalham com os Parâmetros em Ação para EJA versão simplificada dos

PCNs como já dissemos, com a leitura dos livros que o MEC oferece para o trabalho no 1°

segmento – material do programa Alfabetização Solidária – e também, discutem um modelo de

EJA da Secretaria de Educação Municipal de Curitiba/PR., além de fazerem a leitura e a

discussão do Parecer/2000 e da Resolução/2000.

Este programa retoma, pois, de um outro lugar, objetivos e estratégias de ação

daquelas antigas campanhas de ‘erradicação do analfabetismo’, trabalhadas no capítulo anterior,

que visavam oferecer uma educação continuada e permanente aos alunos. Essas iniciativas

poderiam até gerar alguns frutos rumo à transformação se conseguissem, pelo menos, dar

continuidade a proposta inicial. O que, porém, observamos é que elas acabam se caracterizando

por serem fragmentárias, descontínuas e de certa forma estarem desacreditadas. Já foram tantas...

Por isso, podemos perceber no ‘dito’ dessas campanhas, um imaginário ecoando antigo dizeres: a

palavra “Recomeço” evoca sentidos, já trabalhados anteriormente, que nos permite pensar que

podemos esquecer de todo o passado e recomeçar tudo de novo. Mas, como podemos nos

esquecer de toda a discriminação, marginalidade, desigualdades sofridas pelos adultos

analfabetos?

Já que esta Proposta Curricular do 1º Segmento tem como objetivo oferecer um

subsídio - ajuda, auxílio, socorro - que oriente a elaboração de uma proposta em EJA, dentro de

um ideário de educação popular, ela destaca o “valor educativo do diálogo e da participação e

considera o educando como sujeito portador de saberes que devem ser reconhecidos.” E

continua “além de estimular a reformulação de práticas pedagógicas as novas exigência

culturais e novas contribuições das teorias educacionais”. (p.13)

Aqui estão postas as condições de produção de um sujeito escolarizado. É

preconizado a importância do diálogo e da participação, porém o que se evidencia nas relações

escolares entre professor e aluno é a valorização da disciplina, da subserviência, o cumprimento

das ordens e aceitação silenciosa das determinações superiores. Fala-se em respeito ao "sujeito

portador de saberes" porém o que percebemos no cotidiano é a “cultura do controle” dentro da

instituição escolar, do que pode e deve ser dito, por quem e a quem Esses "saberes" devem ser

re-conhecidos por alguém que já os conhece.

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Como podemos entender essas noções de "diálogo", "participação" em relação ao

que vimos analisando em termos de "suprir", "classes especiais", "aceleração", "limitações"?

Outro ponto interessante de se pensar é que este documento nos fala das novas

exigências culturais, esquecendo-se de mencionar as antigas e atuais exigência econômicas,

políticas e sociais que em todo o nosso processo educacional – histórico -, estiveram ausentes na

definição das ações dos programas da educação de massa. Exigências culturais... E o que é a

cultura senão a própria construção de nossos valores enquanto sociedade de classes, de país

colonizado, Brasil da escravatura, do regime militar e da democracia, das discriminações de

classe, cor, crença... mas também da antropofagia, da musicalidade, do carnaval, da alegria, da

arte? Nesse funcionamento, as exigências culturais ajudam a construir paradoxalmente um

imaginário em que o aluno está sempre muito distante de responder a essas exigências justo no

momento em que se fala em respeitar a bagagem cultural de cada um. É como se dissessem ao

aluno-trabalhador que ele está muito longe de seu sucesso e continuará ainda na sua condição de

fracassado...

Para melhor caracterizar esta análise, tomo para mim as palavras de Franco (1995)

que em um artigo sobre a “Qualidade Total na Formação Profissional do Texto ao Contexto”,

diz que temos que rever as prioridades para educação, nos marcos de novas dinâmicas de

desenvolvimento, e para tanto temos que pensar a prática educativa em relação com o mercado, a

competitividade, as formas de gestão e a democratização do saber.

“Neste programa, a educação e a aquisição de conhecimentos passam a ser vistas como elementos fundamentais, enquanto possibilidade de desenvolvimento econômico, político e social. Mais enfaticamente, a capacitação de recursos humanos e especificamente a formação de técnicos ganham importância redobrada.” (p.118 - grifo meu)

Não podemos pensar que a responsabilidade pelo sucesso ou pelo fracasso escolar

esteja só na cultura ou nas práticas pedagógicas, pensar dessa forma é simplificar a percepção e

compreensão do problema. Se as propostas, os programas, as políticas públicas educacionais se

preocupam mais com uma dimensão pedagógica como estando desvinculadas das práticas

políticas e tratadas como ajuda, socorro para os professores, ficará difícil movimentar sentidos e

possibilitar mudanças na forma-sujeito, já que esta mudança deverá ocorrer, não só dentro de um

contexto cultural reduzido a noções como as de diversidade na unidade, mas precisamente dentro

de um ambiente de trabalho, em um contexto social determinado historicamente.

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E para pensar sobre isso retomo Franco (1995) quando diz: “ Diminuir a importância

das dificuldades materiais e sociais da escola e do processo escolar, insistindo-se unicamente na

dimensão pedagógica, pode redundar em uma visão simplista e linear”. (p.122 - grifo meu)

Voltando à Proposta Curricular do 1º Segmento, podemos observar o funcionamento

de um outro enunciado, que complementa aquele referente aos subsídios, quando diz que: “As

orientações curriculares não constituem propriamente um currículo, muito menos uma

programa pronto para ser executado. Trata-se de um subsídio para a formulação de currículos e

planos de ensino”.(p.14)

A legislação brasileira permite uma flexibilidade nos componentes curriculares, já

que estabelece nas diretrizes curriculares nacionais uma base comum e outra parte diversificada a

ser concretizada na proposta pedagógica de cada unidade escolar do país. “Considerando positiva

essa flexibilidade, optou-se por uma proposta curricular que avança no detalhamento de

conteúdos, e objetivos educativos, mas permite uma variedade grande de variações, ênfases,

supressões, complementos e formas de concretização”.(pp.14-15)

O que podemos evidenciar é que há uma dispersão de sentidos aí contida, produzindo

um efeito ideológico de liberdade e flexibilidade nos conteúdos e nas escolhas dos caminhos a

seguir. Digo efeito, pois em outro lugar vamos encontrar uma outra proposta em que as coisas se

dão exatamente ao contrário, onde os objetivos e os conteúdos aparecem todos bem

“amarradinhos”, “certinhos”, “empacotadinhos” para o professor usar: nos Parâmetros em Ação.

Esta dispersão de sentidos aparece, também, evidenciada na fragmentação das propostas.

Este documento também traz um Breve Histórico da Educação de Jovens e Adultos,

os Fundamentos, Objetivos e Conteúdos das áreas de Língua Portuguesa, Matemática e Estudos

da Sociedade e da Natureza, bem como uma seção dedicada ao Planejamento e à Avaliação.

Feita esta análise da Nota da Equipe de Elaboração e da Introdução desta Proposta,

em que pudemos discutir as chamadas limitações e os subsídios por ela apresentados, passamos a

analisar a parte que trata dos Fundamentos e Objetivos Gerais, considerando que já dedicamos

um capítulo deste trabalho a um histórico, não tão breve, da EJA no Ocidente e no Brasil, e que

um tratamento cuidadoso de cada área do conhecimento demandaria uma outra investigação.

Na discussão desses fundamentos e objetivos da EJA, a Proposta seleciona os

seguintes temas: "O público dos programas de educação de jovens e adultos", "O contexto

social", "Diversidade cultural e cultura letrada", "Os jovens e adultos e a escola" e o "Educador

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de Jovens e Adultos", retomando certos termos e sentidos que já vimos analisando anteriormente,

mostrando assim as relações que se estabelecem entre os discursos. Gostaria de chamar a atenção,

particularmente, para com o termo escolhido para se referir aos alunos da EJA, uma noção

freqüente no discurso pedagógico: a de "público", uma forma impessoal, genérica e

indeterminada.

Na Introdução, os autores, referindo-se a esses fundamentos e objetivos, dizem que:

“Qualquer projeto de educação fundamental orienta-se, implícita ou explicitamente, por concepções sobre o tipo de pessoa e de sociedade que se considera desejável, por julgamento sobre quais elementos da cultura são mais valiosos e essenciais”.(p.15 - grifos meus)

Poderíamos, desde logo, perguntar. Desejável por quem? Desejável para quem? E

quanto à cultura, poderíamos também querer saber quais são esses elementos valiosos e

essenciais. Tal como está formulado parece que a exclusão estaria na própria cultura, e não como

sendo resultante das relações de produção de uma sociedade de classes em que a cultura também

sofre valorações e discriminações, ou seja, a(s) classe(s) dominante(s) economicamente e

intelectualmente, é/são aquelas que define(m) o que é culturalmente valioso e essencial.

Os autores dizem, ainda, que:

“... os fundamentos desta proposta estão delineados numa visão bastante geral da situação social que vivemos hoje, das necessidades educativas dos jovens e adultos pouco escolarizados, do papel da escola e do educador. A elaboração de currículos baseada nessas indicações, inegavelmente genéricas, exigirá dos educadores o esforço de complementá-las”.(p.15)

Mais uma vez aparece a generalização e a flexibilidade, que significaria uma não

imposição na aplicação da Proposta, produzindo sentidos em direção a uma falta de

responsabilidade e compromisso político para com a EJA, ainda mais se pensarmos na

fragmentação e dispersão dessa política educacional. Como subsidiar propostas localizadas para

um público tão definido, tão marginalizado, tão expressivo, com um "visão bastante geral da

situação"? Caberia apenas ao professor, ao educador, um esforço para complementá-las? Esse

procedimento redunda, parece, numa visão simplista e linear da questão, como nos disse Franco

(1995).

Neste sentido, enquanto psicóloga, interessada em compreender o processo de

constituição de uma subjetividade, observo um movimento entre essa indeterminação referente à

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história e à situação da EJA no Brasil e a determinação de um tipo de sociedade e de pessoa que

ela considera desejável, implícita ou explicitamente. Vemos, pois, manifestadas, no dito, as

íntimas relações do Estado, através de uma de suas instituições, com a normalização da força de

trabalho, com o processo de individualização do sujeito.

Para essa Proposta “há mais de 35 milhões de pessoas maiores de 14 anos que não

completaram os quatro anos de escolaridade”. Na verdade, não sabemos bem o que esses

números significam, pois temos jovens e adultos que não completaram as quatro primeiras séries

do ensino fundamental, e já passaram pelo menos quatro anos dentro e fora da escola, numa

constante ida e vinda, em processos de exclusão X inclusão, sucessos X fracassos Como salienta

Mello (1993) “O Brasil precisa de 20 anos para formar um aluno com escolaridade de 8° série”.

Dentre estes 35 milhões de pessoas, segundo o documento, 20 milhões são

identificados como analfabetos pelo censo de 1991. Estão incluídas, também, neste contigente de

35 milhões, pessoas que dominam tão precariamente a leitura e a escrita, que diz a proposta,

“ ficam impedidas de utilizar eficazmente essas habilidades para continuar aprendendo, para

acessar informações essenciais a uma inserção eficiente e autônoma em muitas das dimensões

que caracterizam as sociedades contemporâneas.” ( p.35, grifos meus)

As ambigüidades e generalidades continuam a produzir os seus efeitos de evidência,

como podemos observar analisando os termos grifados na citação anterior. Além disso, uma voz

passiva - ficam impedidas - leva-nos a perguntar pelo agente desta ação: quem impede essas

pessoas de utilizar eficazmente a escrita? Que informações essenciais são essas que impedem a

inserção do sujeito de forma eficiente e autônoma na dimensões sociais?

Quando se fala em "sociedades contemporâneas", observando outros enunciados do

texto, podemos pensar como Franco (1995) nos chama a atenção, quando ela diz que a educação

brasileira encontra-se numa encruzilhada entre “as modalidades de ensino-aprendizagem

tradicionais e arcaicas e o fascínio da ciência e das novas tecnologias que envolvem a

informatização.” Há, aí, um confronto entre os discursos científicos, políticos e sociais em

relação aos conhecimentos tecnológicos considerados "essenciais", os mais significativos para o

desenvolvimento do mundo em que vivemos, para “a saída do atoleiro econômico e a superação

dos males sociais”: pré-construídos que retornam para alimentar uma nova contradição entre

modernidade X tradicionalismo.

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Já que as exigências do mundo contemporâneo e os avanços da tecnologia alteram

profundamente as formas de trabalho, esta modalidade de ensino, a EJA, deve atender à essas

exigências de forma a construir uma identidade de um "novo" cidadão, mesmo que esta Proposta

não contemple a Educação para o trabalho, como uma área de conhecimento. Mas, é assim que

funciona a rede discursiva por ditos e não ditos, por ditos aqui de uma forma e ali de outra, por

uma presença e uma ausência.

Ao tratar do contexto social, essa Proposta vai delineando ainda mais essa "pessoa" e

essa "sociedade" desejáveis ao dividir as atribuições dessa pessoa e dessa sociedade em

“dimensões”: a econômica, a política e a cultural.

Na "dimensão econômica", as alterações das formas de trabalho são explicadas,

principalmente, pela revolução tecnológica, que exige formar trabalhadores mais versáteis,

capazes de compreender o processo de trabalho como um todo, dotado de autonomia e iniciativa

para resolver problemas de equipe. Que tenham capacidade de se comunicar e de se reciclar

continuamente, de buscar e relacionar informações diversas.” (p.37)

Neste momento, observamos que retornam também noções e sentidos já

evidenciados anteriormente, como os de "autonomia", "iniciativa", "capacidade de comunicar-

se", e, conseqüentemente, de "diálogo', de "participação", de "educação permanente". Porém, o

que se evidencia nas relações de trabalho e de sala de aula, entre patrão e empregado, entre

professor e aluno, é a valorização da disciplina, da subserviência, o cumprimento das ordens e a

aceitação silenciosa das determinações superiores, de modelos prontos, e de pouca liberdade de

expressão. Dentro dessa percepção, ainda é esperado que “ o aluno aprenda a cuidar dos bens

coletivos, discutir e participar democraticamente, desenvolver responsabilidade pessoal pelo

bem estar comum.” (p.37)

É interessante pensar que agora cabe a esse aluno cuidar dos bens coletivos e do bem

estar comum, enquanto lhe foi negado, no passado, um bem coletivo, cultural e histórico: o da

aprendizagem da leitura e da escrita; e de certa forma lhe foi negado usufruir desse "bem estar

comum" já que não era considerado como sendo um cidadão com direitos e deveres: direito a

uma escolarização com qualidade. Como se pensar em uma "dimensão econômica" e em todas

essas habilidades que o jovem e o adulto deverão adquirir sem se falar em relações de produção,

relações entre capital e trabalho, relações sociais e mesmo em Educação para o Trabalho? Que

cidadão trabalhador é esse então a ser formado?

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Passemos à "dimensão cultural", àquela a que vem sendo imposta como uma das

principais exigências educacionais do mundo contemporâneo, que será a grande mediadora para

que o aluno possa ter acesso aos bens culturais e que para obtê-la:

“precisa ter domínio dos instrumentos da cultura letrada: para se locomover nas grandes cidades ou de uma localidade para outra, para tirar documento, ou para cumprir um sem-número de procedimento burocráticos, para mover-se no mercado de consumo e, finalmente, para poder usufruir de muitas modalidades de lazer e cultura.”(p.40)

Observemos as finalidades explicitadas. Poderíamos mesmo nos perguntar se o aluno

deverá dominar os instrumentos da cultura letrada apenas para isto? E os elementos valiosos e

essenciais da cultura? Percebo aqui uma contradição entre uma valorização da leitura e da escrita

como possibilidade de mudança de vida em termos econômicos e sociais, atendendo as novas

exigências de um mundo contemporâneo, e a desvalorização desse mesmo instrumento, na

medida em que a sua utilização eficaz significa aprender a se locomover, a pegar um ônibus, a

tirar um documento... e ainda que “dentro de seu contexto familiar, corresponda às suas

exigências em relação a oferecer uma assistência escolar para seus filhos”(p.40).

Já para a "dimensão política" preconiza-se:“ Dentro de um ideal democrático,

oferecer uma educação escolar básica que ajude na consolidação de uma identidade de um

nação e criar a possibilidade de que todos participem como cidadãos na definição de seus

destinos.”( p.39 - grifos meus)

Aqui se fala de uma educação de base para que seja consolidada uma identidade de

uma nação. A identidade da nossa educação básica "sofre" com o imaginário do analfabetismo

como vergonha e chaga nacional, no sentido se ser sempre significada e funcionar tendo por

referência esse imaginário. Que identidade será essa, então, que queremos consolidar? Seria essa

que vimos desconstruindo em nosso trabalho? Ou a de uma modernidade não explicitada

devidamente em todos os seus aspectos? Também neste parágrafo é oferecido ao indivíduo a

possibilidade para que defina o seu destino, evidenciando a presença do discurso religioso em

aliança com um discurso filosófico do individualismo O destino como uma opção, um livre

arbítrio nessas condições históricas de constituição de uma posição sujeito: a de fracassado?

Ironia do destino?

E continua a idealização:

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“Pessoas que, dentro de um regime político democrático, assumam valores e atitudes democráticas: a consciência de direitos e deveres, a disposição para participação para o debate de idéias e o reconhecimento de posições diferentes das suas”( p.39 - grifos meus).

E agora fala-se de valores e atitudes democráticas. Quais seriam os referentes para

esses termos, ou melhor, como foram produzidos historicamente? É falar dos direitos que foram

negados a essa grande parcela da população brasileira e dizer que devem se conformar e

reconhecer posições diferentes das suas? Em que sentido? E aqui, explicitamente, está se

reconhecendo as diferentes posições de fala e de poder que cada uma assume enquanto detentor

ou não do saber.

♦ Parecer CNE/CEB n° 11/2000 aprovado em 10 de maio de 2000

O Conselho Nacional de Educação foi criado pela lei 9.131 de 24 de Dezembro de

1995, sendo composto por duas câmaras autônomas: a Câmara de Educação Superior e a Câmara

de Educação Básica.

O artigo 7° desta lei diz: “O Conselho Nacional de Educação terá atribuições normativas,

deliberativas e de assessoramento ao Ministro de Estado da Educação e do Desporto, de forma a

assegurar a participação da sociedade no aperfeiçoamento e da educação nacional.”E continua

dizendo que compete ao CNE, ainda, emitir parecer sobre assuntos da área educacional por

iniciativa de seus conselheiros ou do Ministro da Educação, além de emitir e analisar parecer de

questões relativas à aplicação da legislação educacional.

Foi atendendo a solicitação da Coordenadoria de Educação de Jovens e Adultos

(COEJA), a fim de que as demandas e as questões relacionadas à essa modalidade de ensino

pudessem obter uma resposta mais estrutural, que o CNE emitiu parecer sobre as Diretrizes

Curriculares da Educação de Jovens e Adultos. Este Parecer foi elaborado pelo Vice-presidente

do Conselho Nacional de Educação/ Câmara de Educação Básica, o conselheiro, Carlos Roberto

Jamil Cury.

O Parecer é dividido em dez partes, que passarei a descrever de forma bastante

sucinta. A primeira parte, introdutória, situa a questão face às demandas e propostas da

sociedade; a segunda, e que nos interessa em particular, descreve os fundamentos e funções da

EJA; a terceira, a quarta e a quinta parte referem-se às bases legais das Diretrizes Curriculares

Nacionais para a Educação de Jovens e Adultos, descrevendo o desenrolar da história dessa

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modalidade de ensino no Brasil, bem como identificando os artigos, as leis que fundamentaram

essa educação dentro de um contexto histórico. Na construção deste trabalho desenvolvemos

vários pontos por eles abordados. Os capítulos seis, sete e oito foram, respectivamente,

destinados a uma descrição das iniciativas públicas e privadas, alguns indicadores estatísticos da

situação de EJA e da formação de docente para EJA. O capítulo nove se refere às diretrizes

curriculares nacionais de educação de jovens e adultos, valorizando a educação profissional para

o trabalho, lembrando o art.1 da LDB parágrafo 2° : “A educação escolar deverá vincular-se ao

mundo do trabalho e à prática social”. E por fim o décimo capítulo que trata da educação como

direito de todos. Diz ele que: “No Brasil, país que ainda se ressente de uma formação

escravocrata e hierárquica , a EJA foi vista como uma compensação e não como um direito.”,

como também vimos afirmando durante todo a nossa investigação. E continua dizendo que “A

nova concepção de EJA significa, pois, algo mais do que uma norma pragmática ou um desejo

piedoso. A sua forma de inserção no corpo legal indica um caminho a seguir.”, procurando pois

romper com o discurso religioso.

Essa nova inserção da EJA no corpo legal das diretrizes educacionais traz avanços

significativos para essa modalidade de ensino, evidenciando a presença de formações discursivas,

referidas às formações ideológicas, em conflito, e confronto mesmo, com aquelas que vieram

predominando nos discursos até aqui analisados, trazendo para a cena enunciativa outras posições

e outros sentidos. Desse confronto, podemos perceber o surgimento de rupturas e esperamos

possam surgir sentidos outros para a EJA.

Embora este documento apresente grande material textual a ser a analisado, focalizo a

minha atenção no segundo capítulo deste parecer, o qual se refere aos fundamentos e funções da

EJA. Neste capítulo, Cury diz que a Educação de Jovens e Adultos:

“representa uma dívida social não reparada para com os que não tiveram acesso a e nem domínio da escrita e leitura como bens sociais, na escola ou fora dela, e tenham sido a força de trabalho empregada na constituição de riquezas e na elevação de obras públicas.”(p.5)

E que esta ausência da escolarização não pode e nem deve justificar uma visão

preconceituosa para com o analfabeto ou iletrado, considerando-o inculto ou vocacionado apenas

para tarefas e funções desqualificadas no mercado de trabalho.

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Estamos, pois, diante de um outro funcionamento discursivo trazendo a possibilidade

de ruptura no campo do discurso jurídico e político trabalhados anteriormente, pois ele considera

que a ausência ou a negação desse bem cultural, que é a escrita, tem atribuição na ordem

histórico-social:

"No Brasil, esta realidade resulta do caráter subalterno atribuído pelas elites dirigentes à educação escolar de negros escravizados, índios reduzidos, caboclos migrantes e trabalhadores braçais, entre outros. Impedidos da plena cidadania, os descendentes destes grupos ainda hoje sofrem as conseqüências desta realidade histórica. Disto nos dão prova as inúmeras estatísticas oficiais. A rigor, estes segmentos sociais, com especial razão negros e índios, não eram considerados como titulares do registro maior da modernidade: uma igualdade que não reconhece qualquer forma de discriminação e preconceito com base em origem, raça, sexo, cor, idade, religião e sangue entre outros. Fazer a reparação desta realidade, dívida inscrita em nossa história social e na vida de tantos indivíduos, é um imperativo e um dos fins da EJA porque reconhece o advento para todos deste princípio de igualdade." (p.6 )

A partir daí, o relator atribui a EJA uma função reparadora, seguida de outras duas: a

função equalizadora e uma função permanente ou qualificadora, que passamos a comentar

brevemente.

A função reparadora, considerado as raízes de ordem histórico-social da EJA,

“significa não só a entrada no circuito dos direitos civis pela restauração de um direito negado:

o direito a uma escola de qualidade, mas também o reconhecimento daquela igualdade

ontológica de todo e qualquer ser humano. Desta negação, evidente na história brasileira,

resulta uma perda: o acesso a um bem real, social e simbolicamente importante. Logo, não se

deve confundir a noção de reparação com a de suprimento” (p.06).

Nem poderíamos confundir estas duas noções – a de reparar e a de suprir. O sentido

do verbo suprir, já foi trabalhado anteriormente e traz a idéia de completar, inteirar e preencher.

Já o verbo reparar, produz efeitos de sentidos, em outra direção, indicando outras filiações

discursivas, quer dizer ideológicas: consertar, refazer, restaurar, melhorar, corrigir, remediar,

restabelecer. Interessante que, não obstante no dito encontremos explicitadas contradições que

movimentam a EJA no Brasil, encontramos também efeitos de sentidos que teimam em retornar

neste verbo "reparar".

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Consertar o quê? Refazer o que não estava pronto? Ou refazer o que se pensa não

estar bom o suficiente? Restaurar o que está velho? O conhecimento ou o homem? Melhorar o

que não estava bom? Corrigir os erro? Restabelecer a ordem? Remediar? Como pensar em uma

nova ordem sustentada por uma reparação?

A função equalizadora implica que: “A equidade é a forma pela qual se distribuem os

bens sociais de modo a garantir uma redistribuição e alocação em vista de mais igualdade,

consideradas as situações específicas.”(p.9)

Neste sentido, mais uma vez, a educação de jovens e adultos representa uma

promessa de efetivar um caminho de desenvolvimento de todas as pessoas, de todas as idades,

sustentado por uma redistribuição de bens sociais e, espera-se, de bens econômicos. Essa função

pode tanto se confrontar como colaborar para reproduzir o imaginário acerca da escola como

redentora da humanidade.

A função permanente ou qualificadora, “ mais do que uma função, ela é o próprio

sentido da EJA. Ela tem como base o caráter incompleto do ser humano cujo potencial de

desenvolvimento e de adequação pode se atualizar em quadros escolares ou não escolares. Mais

do que nunca, ela é um apelo para a educação permanente e criação de uma sociedade educada

para o universalismo, a solidariedade, a igualdade e a diversidade.”(p.10).

Essa última função da EJA, a qual o relator atribui como sendo o sentido da educação

de jovens e adultos, me faz pensar nas outras duas funções de uma forma diferenciada. Se uma

das funções da EJA é a de construir, reparar uma educação deficiente, dando oportunidade a

todos em termos de escolarização, essa função permanente ou qualificadora não seria a própria

confirmação de que sempre existirá um grande degrau entre os alunos do ensino supletivo e do

ensino regular? Não é mais uma forma de excluir os já excluídos? Vemos, com preocupação,

retornar, em um discurso que vinha produzindo uma diferença, a proposta de uma educação

permanente para quem não consegue obter nem uma educação mínima. Que educação

permanente é essa? É a de permitir que o adulto permaneça no seu espaço de cultura, de

aquisição da leitura e da escrita? Um lugar que lhe permita garantir o seu emprego e acompanhar,

mesmo que de longe, os avanços tecnológicos do País?

E para pensar nesta construção de modelo de homem, tomo para mim as reflexões de

Silva (1998), que dizem:

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“Os discursos estabeleceram uma história e produziram a estabilizações dos referentes e dos sentidos. Uma história que constrói, ao mesmo tempo, a visibilidade do ignorante-infiel ( analfabeto) e a invisibilidade do instruído-fiel (alfabetizado), fundadas nos domínios da religião e da língua. Os discursos produziram uma posição de sujeito – posição enunciativa – em que o indivíduo é nomeado e nomeia-se em relação à ordem econômico-social e à ordem da linguagem. Uma posição que permitiu, inicialmente, determinar, marcar, dividir dois mundos distintos: a do homem civilizado-europeu-cristão e a do índio-brasileiro-selvagem e, posteriormente, atravessar a sociedade, separando brasileiro de brasileiro.”(p.28)

Se estou tentando compreender como se dá a inscrição desse sujeito adulto em um

mundo letrado, em uma sociedade que se constitui com e pelas palavras escritas, percebo que

dependendo da natureza e do funcionamento deste ‘como’, ou seja, de um tipo específico de

política, de prática pedagógica daí advinda, como a educação permanente, teremos diferentes

tipos de cidadãos. Este tipo de prática marcará a inscrição do sujeito em nossa sociedade e trará

conseqüências na organização social e no processo político do nosso meio. Queremos uma

sociedade educada para o universalismo, mesmo que isso signifique apagar as diferenças? Uma

sociedade educada para a solidariedade? Como falar em solidariedade, em reciprocidade de

interesses e obrigações, em uma sociedade de classes extremamente excludente? Uma sociedade

educada para a igualdade? Mesmo quando percebemos que a sociedade brasileira é marcada pela

desigualdade social, econômica? Uma sociedade educada para a diversidade? Onde sempre

encontramos a relação com uma unidade ideal, com um modelo pronto e acabado?

A história do fracasso escolar no interior das políticas e planos educacionais, aqui

analisados através do Discurso Jurídico e Político, veio produzindo, ao longo dos tempos, formas

de individuação que parecem ter sempre presente, em sua constituição, trabalhando a dicotomia

homem X animal, selvagem X civilizado, de ter sempre presente uma falta como constitutiva do

sujeito-analfabeto, coisa de herança.

♦ Resolução CNE/CBE n°04/2000 aprovado em 5 de julho de 2000

Esta resolução do Conselho de Educação Básica estabelece as Diretrizes Curriculares

Nacionais para Educação de Jovens e Adultos, depois do Parecer n°11/2000 da mesma Casa,

discutido anteriormente.

Como o próprio nome indica, uma Resolução refere-se ao ato ou ação de deliberar,

por isso esse documento define, obriga, estabelece as diretrizes curriculares de EJA. De sua

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leitura, destacamos alguns artigos que indicam a natureza do documento e evidenciam as relações

de intertextualidade existente esses diferentes discursos:

Art.1° - Esta Resolução institui as Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação de Jovens e Adultos a serem obrigatoriamente observadas na oferta e na estrutura dos componentes curriculares de ensino fundamental e médio dos cursos que se desenvolvem, predominantemente, por meio de ensino, à luz do caráter próprio desta modalidade de educação. Art.5° - Os componentes curriculares conseqüentes ao modelo pedagógico próprio da educação de jovens e adultos e expressos nas propostas pedagógicas das unidades educacionais obedecerão aos princípios, aos objetivos e às diretrizes curriculares tais como formulados no parecer CEB n°11/00 que acompanha a presente resolução, nos pareceres CEB n°04/98, CEB n°15/98 e CEB n°16/99, suas respectivas resoluções e as orientações próprias dos sistemas de ensino. Art.18 – Respeitando o art.5° desta resolução, os cursos de Educação de Jovens e Adultos que se destinam ao ensino fundamental deverão obedecer em seus componentes curriculares aos art. 26,27,28,32 da LDB e às diretrizes curriculares nacionais para o ensino fundamental.

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4. O DISCURSO CIENTÍFICO: ABRINDO CAMINHOS

No caminho percorrido, fomos observando que uma nova compreensão do fracasso

escolar dos alunos da Educação de Jovens e Adultos, centrado em uma noção de subjetividade

que evidencia o acontecimento do significante no homem, que é o discurso, sinalizava para uma

retomada do discurso psicológico para uma compreensão, também nova, de certos fenômenos

como o da consciência articulado ao de imaginário. Precisava, então, encaminhar uma articulação

da Análise de Discurso com a Psicologia, de forma que pudéssemos experienciar o já dito por

Pêcheux em relação ao instrumento de análise de textos que ele propôs, a Análise de Discurso,

conforme afirma Henry (1990):

"... cada vez que um instrumento ou experimento é transferido de um ramo de ciência para outro, ou 'a fortiori' de uma ciência para outra, este instrumento ou este experimento é de algum modo reinventado, tornando-se um instrumento ou um experimento desta ciência em particular, ou deste ramo particular de ciência [....] as ciências colocam suas questões, através da interpretação de instrumentos, de tal maneira que o ajustamento de um discurso científico a si mesmo consiste, em última instância, na apropriação dos instrumentos pela teoria. É isto que faz da atividade científica uma prática."(p.17)

Assim é que me arrisco, pois, a partir dos efeitos de sentidos que o instrumento da

AD me possibilitou produzir em relação aos discursos econômico-sociais, jurídicos e políticos,

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fazer também uma leitura de um certo discurso do campo da Psicologia muito utilizado nas

propostas pedagógicas e denominado genericamente de teoria histórico-cultural, cujos maiores

representantes são Vygotsky e seu discípulo Luria. Estou certa de que tal leitura, sob o crivo

teórico da Análise do Discurso, irá permitir que avance na compreensão da construção de um

imaginário acerca do adulto analfabeto brasileiro, em que se produzem determinadas

representações que o farão significar o mundo e a si mesmo de determinada maneira.

O corpus para essa articulação restringiu-se ao livro de Vigotsky (1996) Pensamento

e linguagem e aos artigos de Luria (1987): "A palavra e sua estrutura semântica"(27–42), "O

desenvolvimento do significado das palavras na ontogênese"(43–56) de seu livro Pensamento e

Linguagem: as últimas conferências de Lúria, em que são trabalhadas teoricamente algumas

questões diretamente afetas a este trabalho, como a da natureza e especificidade da "palavra" e da

"escrita".

Começo, então, essa leitura discursiva dos textos, partindo da materialidade dos

enunciados, considerando que a organização da língua, enquanto uma forma material que tem

uma autonomia relativa em relação às intenções do sujeito falante é o que serve de base para se

atingir a ordem significante. Tratamos a língua como um sistema com autonomia relativa, pois

quando o homem nasce, o sistema de uma língua já está constituído, não cabendo a cada um

decidir, individualmente, sobre a sua estrutura e o seu funcionamento em um momento dado.

Essa autonomia é relativa para a AD – diferentemente da forma como é concebida pela

Lingüística – pois a língua é afetada pela história, o que significa que quando o homem nasce o

mundo e as coisas já significam de determinadas maneiras e, cada um de nós entra, histórica e

inconscientemente, nessa cadeia significante.

Luria inicia o seu artigo “ A palavra e sua estrutura semântica”, dizendo que o

objetivo central de seus estudos é o de analisar a estrutura da consciência, a capacidade do

homem sair dos limites do reflexo imediato sensorial da realidade, e a sua capacidade de refletir

sobre o mundo em suas relações complexas e abstratas mais profundamente do que permite a

percepção sensível. Essas capacidades segundo ele, só podem ser analisadas e compreendidas em

sua relação com a linguagem e seu funcionamento. Observamos nesses seus propósitos, um

interesse por temas e fenômenos que dizem respeito ao que em AD está relacionado ao modo de

constituição de formas de individuação de uma sociedade.

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“Se pensamos a relação do sujeito com a linguagem enquanto parte de sua relação com o mundo, em termos sociais e políticos, uma nova perspectiva nos permite então compreender um segundo momento teórico: nesse passo, o estabelecimento (e a transformação) do estatuto do sujeito corresponde ao estabelecimento (e à transformação) das formas de individualização do em sujeito em relação ao Estado. Em um novo movimento em relação aos processos identitários e de subjetivação, é agora o Estado, com suas instituições e as relações materializadas pela formação social que lhe corresponde, que individualiza a forma sujeito histórica, produzindo diferentes efeitos nos processos de identificação, leia-se de individualização do sujeito na produção de sentidos.” (Orlandi, 1999, p.24)

E essa individualização do sujeito se define historicamente, ou seja, a relação do

sujeito com a linguagem é diferente, por exemplo, na Idade Média, no século XVII e hoje,

segundo Orlandi (1988). A relação com a linguagem da forma-sujeito característica das nossas

formações sociais é constituída pela ilusão (ideológica) de que o sujeito é fonte do que diz

quando, na verdade, ele retoma sentidos preexistentes e inscritos em formações discursivas

determinadas.

Retomando Luria, observamos que ele elabora algumas questões cruciais para que

possamos perceber a importância da formulação de conceitos e da noção de palavra para a

construção da consciência humana:

“Como estaria estruturada a linguagem, visto que permite abstrair e generalizar as características do mundo externo, ou seja, formar conceitos? Que peculiaridades da linguagem são as que permitem fazer deduções, tirar conclusões e fornecer a base psicológica do pensamento discursivo? Finalmente, quais seriam as características da linguagem que lhe permite transmitir a experiência acumuladas pelas gerações, ou seja, que garantem o processo de desenvolvimento psíquico de que diferencia o homem dos animais?” (p.27)

Vygotsky e Luria entendiam que a linguagem é um complexo sistema de códigos,

formado no curso da história social. E que o elemento fundamental da linguagem é a palavra. A

palavra designa coisas, individualiza suas características. Designa ações, relações, reúne objetos

em determinados sistemas. Dito de outra forma, a palavra codifica nossa experiência.

A palavra como elemento da linguagem, apresenta, para eles, uma função direta, que

é a de designação de um ou outro objeto, ação ou qualidade, ou seja, os significados

"denotativos" e "conotativos" da palavra. E uma função "categorial" ou "conceitual" da palavra,

que cabe ao "significado propriamente dito", “um traço essencial”:

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“Por significado categorial da palavra, que sai dos marcos da referência objetal, entendemos a capacidade para não apenas substituir ou representar os objetos, não apenas provocar associações parecidas, mas também para analisar os objetos, para abstrair e generalizar suas características. A palavra não somente substitui uma coisa, também a analisa, a introduz em um sistema de complexos enlances e relações. Chamamos de significado categorial a essa função de abstrair, analisar e generalizar que a palavra possui.” (Luria, 1987, pp.36 - grifo meu)

Além da palavra designar um objeto, ela efetua um trabalho mais profundo: separa o

traço essencial desse objeto e analisa-o. A palavra não somente designa uma coisa e separa suas

características. Ela generaliza uma coisa e a inclui em uma determinada categoria, possui, pois,

uma complexa função intelectual de generalização. Não é apenas instrumento de pensamento, é

meio de comunicação, com tudo de opacidade que há em relação a essa noção, pois para a AD a

língua é feita tanto para comunicar como para não comunicar, e essa noção – a de comunicação -

serve para apagar o político que há nas relações sociais de uma sociedade de classe. Qualquer

comunicação que seja exige que a palavra não se restrinja a designar um objeto determinado, mas

que também generalize a informação sobre esse objeto, o que dá complexidade a comunicação

pensada como transmissão de informação. Não se trata, pois de uma relação termo-a-termo. Entre

a palavra e a coisa há mediações. Há discurso.

Para AD, as palavras são unidades construídas historicamente, que constituem lugares

de estruturação da significação em que o sujeito inscrito em uma formação discursiva significa e

re-significa o mundo e a si próprio. Elas não podem ser lidas apenas como unidades lingüísticas,

como elementos neutros de uma metalinguagem. A palavra ‘em si’ não faz nada, é a relação entre

sujeitos em um momento histórico dado que produz efeitos de sentidos. Quando Luria escreve

sobre “traço essencial da palavra”, e Vygotsky sobre o “significado propriamente dito”,

“significado categorial” eles indicam a presença de um sujeito que sabe/decide o que é ou não

essencial; indica a presença de um sistema de valores implícitos. Qual é o traço essencial da

palavra "analfabeto"? Qual o significado propriamente dito dessa palavra em sua historicidade?

Marginal? Parasita? Doente? Bicho? Coisa? Qual é o seu referente, ou seja, o que ela designa?

Entramos aqui no que Pêcheux (1988) denomina de "evidência do sentido", ou seja,

a de que uma palavra possua um significado, decorrente de uma linguagem concebida como

transparente. A questão da constituição do sentido junta-se à da constituição do sujeito.

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"Se é verdade que a ideologia 'recruta' sujeitos entre os indivíduos (no sentido em que os militares são recrutados entre os civis) e que ela recruta a todos, é preciso, então, compreender de que modo os 'voluntários' são designados nesse recrutamento, isto é, no que nos diz respeito, de que modo todo os indivíduos recebem como evidente o sentido do que ouvem e dizem, lêem e escrevem (do que eles querem e do que se quer lhes dizer), enquanto 'sujeitos-falantes'..." (p.157)

E quando Luria diz que “a palavra não somente substitui uma coisa, também a

analisa, a introduz num sistema complexo de enlances e relações”, ele aponta para a relação

existente entre a palavra e uma exterioridade. Este sistema de enlances e relações é o que a AD

chama de "interdiscurso", ou seja, aquilo que se fala antes, eu outro lugar, independentemente,

uma exterioridade de linguagem historicamente determinada: uma exterioridade discursiva, um

saber discursivo que torna possível todo dizer e que retorna sob a forma do pré-construído, o já-

dito que está na base do dizível, sustentando cada tomada da palavra (Orlandi, 1999). Por isso

quando o adulto chama o outro de ‘analfabeto’, este pode se ofender porque na história

educacional brasileira o ser analfabeto se constituiu, nesses enlances e relações, como algo

desprezível, vergonhoso, como ofensa. O saber ler e escrever passa a ter um outro "valor", uma

outra "medida" para determinar quem é o que pode dizer o quê em nosso País.

Para Vygotsky e Luria os componentes da palavra: o referencial objetal, que consiste

em designar (produzir, estabilizar um referente) o objeto, o traço, a ação ou a relação, e o

significado, como a função de separação de determinados traços no objeto, sua generalização e a

introdução do objeto em um determinado sistema de categorias, não permanecem imutáveis ao

longo do desenvolvimento humano, pois na ontogênese, o significado da palavra se desenvolve,

muda sua estrutura. O que revela o movimento contraditório das formações discursivas.

Essa descoberta de Vygotsky de que o significado das palavras se desenvolve tanto

no que se refere à estrutura como ao sistema de processos psíquicos que se encontram em sua

base, fornece um elemento importante para a compreensão do dispositivo teórico da AD e para as

nossas análises, pois isso revela a presença de uma heterogeneidade na formação discursiva e a

dispersão do sujeito e do sentido que aí se constituem – o sujeito fracassado -, não permitindo a

mera reprodução, a paráfrase constante mas, também, a quebra nos processos de significação.

Quando pensamos discursivamente a linguagem, consideramos que todo o

funcionamento da linguagem se assenta na tensão entre processos parafrásicos (são aqueles pelos

quais em todo o dizer há sempre algo que se mantém) e processos polissêmicos (são as rupturas

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de processos de significação). Essas são duas forças que trabalham continuamente o dizer de tal

modo que todo o discurso se faz nessa tensão: entre o mesmo e o diferente. Se toda vez que

falamos, produzimos uma mexida na rede de filiação dos sentidos, no entanto, falamos com

palavras já ditas. E é nesse jogo entre paráfrase e polissemia, entre o mesmo e o diferente, entre o

já dito e o a se dizer que os sujeitos e os sentidos se movimentam, fazem seus percursos, (se)

significam. Assim o que funciona no jogo entre o mesmo e o diferente é o imaginário na

constituição de sentidos, é a historicidade na formação da memória, diz Orlandi (1998). Por isso

ser um analfabeto brasileiro significa de diferentes formas: cidadão X não-cidadão, homem X

animal, homem X coisa, e a apropriação da escrita pode se dar também no trabalho da

contradição transformada em oposição: alfabetização X letramento, leitura mecânica X leitura

com compreensão, atividade motora X atividade mental complexo.

Com a descoberta de que o significado da palavra se desenvolve tanto no que se

refere à estrutura como ao sistema de processos psíquicos que se encontram em sua base,

Vygotsky elaborou propostas sobre o desenvolvimento semântico e sistêmico do significado da

palavra.

Por desenvolvimento semântico do significado da palavra, ele entendia que, no

processo de desenvolvimento da criança, tanto a referência da palavra ao objeto como a

separação de suas correspondentes características, a codificação dos traços dados e a inclusão do

objeto num determinado sistema de categorias, não permanecem imutáveis; mudam à medida que

o indivíduo se desenvolve. Todo um trabalho de filiações às formações discursivas.

Para pensar esta proposição, retomo o dispositivo teórico da AD que diz que quando

nascemos os discursos, já estão em processo e nós é que entramos nesse processo. Eles não se

originam em nós. Isso não significa, para AD, que não haja singularidade na maneira como a

língua e a história nos afetam, mas nós, não somos o início delas. O princípio dessa prática de

leitura, a AD, consistiria em levar em conta a relação do que é dito em um discurso e o que é dito

em outro, o que é dito de um modo e o que é dito de outro, procurando ‘escutar’ a presença do

não-dito no que é dito: presença produzida por uma ausência necessária, segundo Orlandi (1998).

E o que não está dito poder ser percebido segundo Pêcheux (1988), sob duas formas de

esquecimento na ordem no/do discurso.

O esquecimento da ordem da enunciação nos faz acreditar que há uma relação direta

entre o pensamento, a linguagem e o mundo, de tal modo que pensamos que o que dizemos só

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pode ser dito com aquelas palavras e não outras, que só pode ser assim. Já o outro esquecimento é

chamado de esquecimento ideológico: ele é a da instância do inconsciente e resulta do modo pela

qual somos afetados pela ideologia. Os sentidos são determinados pela maneira como nos

inscrevemos na língua e na história e é por isso que significam e não pela nossa vontade (Orlandi,

1999).

Os sentidos não existem ‘em si’, como falamos anteriormente, mas são determinados

pelas posições ideológicas colocadas em jogo no processo sócio-histórico em que as palavras são

produzidas. As palavras mudam de sentido segundo as posições daqueles que as empregam. As

palavras falam com outras palavras. Toda palavra é sempre parte de um discurso. E todo discurso

se delineia na relação com outros dizeres - a intertextualidade - e com dizeres que se alojam na

memória - o interdiscurso.

Continuando na leitura das proposições formuladas por Vygotsky, refletimos sobre o

que ele denomina desenvolvimento sistêmico da palavra. Ele entendia que, por trás do significado

da palavra nas diferentes etapas do desenvolvimento, encontram-se diferentes processos

psíquicos; sendo assim, com o desenvolvimento do significado da palavra, muda não só sua

estrutura semântica, mas também sua estrutura sistêmica psicológica.

Para AD, a condição da linguagem é a incompletude. Nem sujeitos nem sentidos

estão completos, já feitos, constituídos definitivamente. Ao dizer, o sujeito significa em

condições determinadas, impelido, de um lado, pela língua e, de outro, pelo mundo, pela sua

experiência, por fatos que reclamam sentidos, e também por uma memória discursiva, por um

saber/poder/dever dizer, em que os fatos fazem sentidos por se inscreverem em formações

discursivas que representam no discurso as injunções ideológicas.

“Pela natureza incompleta do sujeito, dos sentidos, da linguagem (do simbólico), ainda que todo sentido se filie a uma rede de constituição, ele pode ser deslocado nessa rede. Entretanto, há também injunções à estabilização, bloqueando o movimento significante. Nesse caso, o sentido não flui e o sujeito não se desloca. Ao invés de se fazer um lugar para fazer sentido, ele é pego pelos lugares (dizeres) já estabelecidos, num imaginário. Estaciona. Só repete.” (Orlandi:1999, p.54)

Vygotsky, no desenvolvimento dessas proposições, chega, então, a um ponto crucial:

o de ligação da questão do desenvolvimento da palavra com a do desenvolvimento da

consciência. Para ele, a palavra constitui-se em um aparelho que reflete - e refrata, diríamos - o

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mundo externo em seus “enlances e relações”. Portanto, se, à medida que a criança se

desenvolve, muda o significado da palavra, quer dizer que também muda a representação

daqueles enlances e relações que, através da palavra, determinam a estrutura da consciência. Para

Vygotsky (1996):

“A descoberta de que o significado das palavras evolui tira o estudo do pensamento e da fala de um beco sem saída (se referindo aos estudos em psicologia da Gestalt e do associacionismo sobre o pensamento e a linguagem). Os significados das palavras são formações dinâmicas, e não estáticas. Modificam-se à medida que a criança se desenvolve; e também de acordo com as várias formas pelas quais o pensamento funciona.”(p.156)

Se as palavras têm como característica fundamental desdobramentos contínuos em

sua relação com a dinâmica social e política, então, para Vygotsky, uma nova compreensão da

relação entre pensamento e linguagem se delineia, em que a realidade deve ser aprendida e

compreendida de uma forma diferente daquela da percepção, e, conseqüentemente, constitui-se

em uma chave para a compreensão da natureza da consciência humana. As palavras

desempenham um papel central não só no desenvolvimento do pensamento, mas também na

evolução histórica da consciência como um todo. “Uma palavra é um microcosmo da

consciência humana” (Vygotsky, 1996, p.190). Palavra é história.

Partindo do princípio que a palavra é um microcosmo da consciência humana, o

processo de inscrição do sujeito em um mundo de linguagem específico: o da escrita, poderá,

então, influenciar no desenvolvimento da consciência humana? Na forma-sujeito? No se

significar e significar o outro? Tenho insistido, seguindo com Orlandi (1998) que, não há

discurso sem sujeito, nem sujeito sem ideologia. Já que somos sujeitos porque falantes, tem sido

importante pensar sobre como a Escola tem contribuído com a função de criar condições para

que se produza o autor, o efeito-sujeito consciente e intencional. Estamos tentado, pois,

relacionar a posição autor, a autoria com a noção de consciência, entendendo segundo Orlandi

(1988), “que o autor é, pois, o sujeito que, tendo o domínio de certos mecanismos discursivos,

representa, pela linguagem, esse papel, na ordem social em que está inserido”.(p.79) O papel de

ser responsável pelo que diz. E Vygotsky (1996) diz:

“A escrita exige um trabalho consciente porque a sua relação com a fala interior é diferente da relação com a fala oral. Esta última precede a fala interior no decorrer do desenvolvimento, ao passo que a escrita segue a fala interior e

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pressupõe a sua existência ( o ato de escrever implica uma tradução a partir da fala interior)”. (p.124)

Que autor, então, estamos formando? Que consciência o adulto tem de ser autor,

responsável pelo que escreve? Esse trabalho consciente para o qual Vygotsky chama atenção, é

justamente o que a AD diz de ser responsável pelo que diz. A escrita exige do aluno um alto

nível de abstração, pois segundo Vygotsky “somos obrigados a criar a situação, ou a representa-

la para nós mesmos. Isso exige um distanciamento da situação real”.(p.124)

Sendo assim, a forma como o adulto será ensinado a dominar a leitura e a escrita,

poderá ser considerado como um ‘instrumento’ estruturante da sua consciência, e

consequentemente do modo como ele irá se significar e se constituir como autor, ou responsável

pelo que escreve.

Vygotsky(1996), ao falar da escrita me permite fazer outras articulações no que diz

respeito à noção de autoria, que me permite repensar a relação do sujeito com a escrita, enquanto

um objeto simbólico e histórico e não como mera representação da fala ou como código a ser

decifrado. No processo de aquisição – ou não - da língua escrita, o sujeito constrói a sua

identidade, sua subjetividade dentro de uma sociedade dada em um outro espaço de linguagem

com estrutura e funcionamento próprios. A instituição escolar, e em particular, a educação de

jovens e adultos, irá atuar neste processo de construção e constituição de uma subjetividade

específica, possibilitando que se produza uma autoria determinada, uma consciência de si

enquanto sujeito letrado, com tudo o que isso implica.

Encontro-me, assim, no cerne do problema da subjetividade. A relação do sujeito com

a escrita, dentro – ou fora - da instituição escolar, buscando compreender como o indivíduo se

insere na sociedade, na cultura, como forma sua consciência. Neste sentido, a escrita alfabética é

um lugar culturalmente instituinte de uma função discursiva desse sujeito: a de autor, isto é, a de

ser origem e fonte de seu dizer e consequentemente, de ser um sujeito consciente e responsável

por aquilo que diz.

“Para que o sujeito se coloque como autor, ele tem de estabelecer uma relação com a exterioridade, ao mesmo tempo em que ele se submete á sua própria interioridade: ele constrói assim sua identidade como autor.” (Orlandi, 1983, pp.78-79).

Segundo Vygotsky (1999):

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“A consciência não é simplesmente estrutural. A consciência em seu conjunto tem estrutura semântica. Julgamos a consciência em função da estrutura semântica da consciência, já que o sentido, a estrutura da consciência – é a atitude para com o mundo externo(...) A estrutura do significado é determinada pela estrutura da consciência como sistema. A consciência está estruturada como sistema. Os sistemas estáveis –caracterizam a consciência.”(p.53)

E em outro momento diz:

“Temos consciência de nós mesmos porque a temos dos demais e pelo mesmo procedimento através do qual conhecemos os demais, porque nós mesmos em relação a nós mesmos somos o mesmo que os demais em relação a nós. Tenho consciência de mim mesmo somente na medida em que para mim sou outro, ou seja, porque posso perceber oura vez os reflexos próprios como novos exitantes”(p.82).

É essa noção de estruturação da consciência no e pelo sentido, e pela percepção do

outro, que me faz retomar a noção da AD, segundo Orlandi (1994), em que o sujeito e o sentido

se constituem ao mesmo tempo, na articulação entre língua e história, em que entra o imaginário

e a ideologia.

A noção de sujeito (psicológico, calculável, visível) e de linguagem (transparente,

com seus conteúdos sociológicos, psicológicos, etc.) que marcaram a constituição das Ciências

Sociais e Humanas do século XIX são incompatíveis com a noção de sujeito e linguagem da AD,

cujas bases epistemológicas são o Materialismo Histórico, a Lingüística e a Psicanálise. Trata-se

de sujeito e linguagem pensados na relação com o inconsciente e com a ideologia, onde não há

transparência, controle nem cálculo que possa apagar o equívoco, a imprevisibilidade e a

opacidade constitutivos dessas noções.

A AD tem o seu ponto de apoio na reflexão que produz sobre o sujeito e o sentido –

um relativamente ao outro – já que considera que, ao significar, o sujeito se significa. Por isso

podemos trabalhar tão bem com os textos de Vygotsky numa perspectiva da AD. Pois se dizemos

que o sentido estrutura a consciência e que ao tomar consciência do outro, toma consciência de si,

posso dizer que ao se significar – tomar consciência de si - o sujeito se significa. Podemos dizer,

assim, que os discursos de uma sociedade dada, como a brasileira, produzem sentidos do que é

ser analfabeto, organizando-os, estabilizando-os, fazendo-os circular de determinada maneira,

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fazendo com que o jovem e adulto analfabeto tomem consciência desta posição de fala ou de

poder, e se signifiquem enquanto sujeito-fracassado.

É na linguagem e pela linguagem que o homem se constitui como sujeito. A

‘subjetividade’ de que tratamos aqui é a capacidade do locutor para se propor como sujeito, diz

Pêcheux (1958). E ele continua, que o sujeito define-se, não pelo sentimento que cada um

experimenta de ser ele mesmo, mas como unidade psíquica que transcende a totalidade das

experiências vividas que reúne e que assegura a permanência da consciência.

Mas, é Pêcheux (1988) também quem diz que não há ritual sem falha e que o homem

não é uma máquina lógica. Assim, se os sentidos se cristalizam, reproduzindo posições e

situações, no movimento das contradições, eles também pode se insurgir contra o estabelecido e

produzir a ruptura, o novo, a transformação.

Essa ainda breve incursão pela teoria proposta por Vygotsky e desenvolvida

particularmente por Luria abriram novas perspectivas para uma reflexão, análise e trabalhos

futuros com os fenômenos psicológicos e produzir deslocamentos nas práticas pedagógicas,

articulando de um outro lugar a relação entre língua, sujeito, história.

Seguindo por esses novos caminhos, munida do conhecimento produzido até aqui,

passamos, agora, a analisar o discurso dos alunos, através de sua produção textual, buscando

compreender no funcionamento discursivo dos enunciado, um ‘fala interior’, uma ‘consciência’

de ser ou não alfabetizado no Brasil, ou como diríamos em AD, na buscando compreender como

se dá o exercício da função autor de um sujeito desde sempre colocando em uma posição de

fracassado que deve se responsabilizar pelo que diz.

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5. O DISCURSO DE ALUNOS DE EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS

Busquei no funcionamento de diferentes discursividades compreender o processo de

constituição de uma subjetividade específica que acontece na relação do sujeito com a escrita e a

leitura no interior da instituição escolar de uma sociedade dada – a brasileira – que o leva sempre

a fracassar e a se identificar com um contingente de brasileiros denominados “analfabetos”. Na

materialidade lingüística dos enunciados encontrei uma forma-sujeito, individualizada, como

resultado de um processo histórico marcado pela desigualdade e pela injustiça, em que aquela

balança parece sempre pender para um único lado, e os sentidos possíveis que estão em jogo em

uma posição-sujeito dada, e desde sempre contraditória: a do sujeito escolarizado.

A análise destes discursos “sobre” a Educação de Jovens e Adultos puderam

dimensionar, um pouco, a natureza e o movimento das contradições que estruturam as práticas

político-pedagógicas, apontando sítios de significância a serem trabalhados se se pensa em

transformar - e não em reformar - a EJA. Ficamos sabendo, também, que apagar, negar e denegar

o político, que está presente em todo discurso, em toda prática, não significa eliminá-lo, mas tão

somente colaborar para a manutenção de uma ordem há muito estabelecida.

Sentia, contudo, que não podia terminar esse trabalho sem uma outra "escuta", sem

problematizar um outro lugar de fala: a do próprio alfabetizando, daquele que não obstante todas

as limitações impostas por uma formação social dada, “insistem" em alfabetizar-se, em entrar de

qualquer forma em uma sociedade que o expulsa constante e historicamente desse espaço de

produção de linguagem, daquele "persiste" em sua luta com a palavra do outro que lhe nega por

todos os meios o acesso à escola e a sua permanência nela. Era importante buscar compreender

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também os seus gestos de interpretação, no que eles trouxessem de sentidos cristalizados, mas

também no que pudessem trazer de sentidos novos.

Dessa forma, apresento, a seguir, uma análise de 6 (seis) textos produzidos por 4

alunos e 2 alunas de uma escola noturna para jovens e adultos do 4º semestre, da cidade de São

Sebastião, zona rural de Brasília, que explicitam o que significa saber ler e escrever para eles.

As condições de produção propostas para esses textos foram as de uma prática

pedagógica considerada tradicional. Pedi à professora que solicitasse a todos os seus 23 alunos

um texto em que falassem da importância da leitura e da escrita para a sua vida. A professora

transformou minha solicitação em um tema de "redação" e o escreveu no quadro-negro: “ Minha

vida sem saber ler e escrever.” Interessante observar a opção "natural" em colocar o tema no

negativo. Em seguida, a professora desencadeou uma reflexão, um ‘bate papo’, sobre o tema e

pediu que os alunos escrevessem um texto no período da aula. Ela recolheu os textos, selecionou

os que estavam mais ‘legíveis’ – em termos gráficos - e me entregou 15 textos selecionados dos

23 alunos.

A professora sentiu bastante desconforto em me entregar os textos sem corrigi-los,

pois naquela época, outubro de 2000, eu era a sua Coordenadora Pedagógica, e ela se sentia na

obrigação de me entregar os textos corrigidos, de forma a transferir os possíveis erros ao aluno e

não à sua competência em ensiná-los e em avaliá-los. Expliquei a ela, certa de que não a

convenceria, pois o que estava em jogo eram posições-sujeito em uma relação historicamente

assimétrica e autoritária, que o meu interesse não era o de verificar ou avaliar o trabalho dela em

sala de aula, e muito menos de corrigir os erros ortográficos, de concordância ou de pontuação

dos alunos. Os textos seriam material de análise para o meu trabalho de dissertação.

Dentre os 15 textos recebidos, selecionei 6 como recortes significativos, ou seja,

unidades complexas de análise, considerando o processo que vinha desenvolvendo e as

sistematicidades dos fatos lingüísticos, que me ajudaram a compreender o funcionamento do

imaginário social acerca do analfabeto, no Brasil, da perspectiva do sujeito-alfabetizando. A

análise, que se segue, permitiu que se explicitasse e compreendesse as relações contraditórias

entre a(s) ideologia(s) do dominador e do dominado, em sua complexidade, e as articulações

entre formações discursivas construídas ao longo da nossa história. Segundo Pfeiffer (1995), “o

nosso sujeito-autor está vinculado ao sujeito de direito que tem responsabilidade sobre o que diz,

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mas ao mesmo tempo, tem o dever de dizer o esperado. Nós homogeneizamos o sujeito escolar".

(p.44)

No capítulo anterior, trabalhei o discurso da Psicologia com os textos de Vygotsky e

Luria, no sentido de abrir caminhos para se pensar a relação do sujeito com a escrita, enquanto

um espaço de linguagem, de interação entre sujeitos mediados pelo texto escrito, espaço este em

que se dá o exercício da função autor deste mesmo sujeito. Lendo os textos produzidos pelos

alunos da EJA, achei importante retomar suas propostas para continuar avançando na

compreensão dessa relação materializada, agora, no próprio discurso desses alunos.

"O autor é o lugar em que se constrói a unidade do sujeito. É onde se realiza o seu projeto totalizante.[...] Podemos observar, dessa forma, os efeitos da ideologia: ela produz a aparência da unidade do sujeito e a da transparência do sentido. Estes efeitos, por sua vez, funcionam como 'evidências' que, na realidade, são produzidas pela ideologia. Tomá-los como uma realidade é ficar submerso na ideologia, na sua construção enquanto evidências. Para não fazê-lo, isto é, par exercer uma função crítica, é preciso levar em conta dois fatos: a) o processo de constituição do sujeito; e b) a materialidade do sentido. (Orlandi, 1988. p. 56)

Para Vygotsky (1996), na escrita, em que os suportes situacional e expressivo estão

ausentes, a comunicação só pode ser obtida por meio das palavras e suas combinações – uma

unidade complexa, como vimos -, exigindo que a atividade da fala assuma formas complexas –,

daí a necessidade dos rascunhos. Para ele, a evolução do rascunho para a cópia final reflete nosso

processo mental. O planejamento tem um papel importante na escrita, mesmo quando não

fazemos um verdadeiro rascunho. Em geral , dizemos a nós mesmos o que vamos escrever, o que

já se constitui um rascunho, embora apenas em pensamento. Esse rascunho mental é a própria

fala interior, ou seja para elaborar esse rascunho, essa fala interior é necessário tomar consciência

dos fatos que se quer escrever, falar, rascunhar. Ao fazer isso o aluno se filia as formações

discursivas, na teia de significações.

Considero importante para encaminhar essa análise, explicitar uma noção de texto e

tomo como referência o artigo de Guimarães (1995), Textualidade e Argumentação. Diz ele:

“... para nós a pertinência deste objeto finito texto não diz respeito à seqüência em si, mas à relação desta seqüência com os acontecimentos em que ela se dá. Uma seqüência de fala tem sua finitude configurada na relação com uma posição enunciativa no acontecimento de linguagem”. (p.77)

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E continua:

“...dada nossa posição, para tratar o sentido, e nesta medida a textualidade, como constituído historicamente, descartamos a noção de coerência que nos levaria a considerar que um texto se organiza por expressar as relações próprias da mente, do pensamento. A textualidade seria vista como algo cognitivo, diferentemente de como a consideramos de nossa perspectiva”. (p.77)

Como Guimarães, Foucault (1969) ressalta o fato de termos historicamente marcado a

escrita como um modo de reconhecimento do sujeito seja para si próprio, seja para outro. Luria

fala em um sistema de complexos enlaces e relações" em relação à palavra que gostaríamos de

estender ao texto.

Não podemos pensar que a escrita, o texto expresse um conteúdo já pronto da mente,

do pensamento. Orlandi (1999) diz que: “Ao longo do dizer há toda uma margem de não-ditos

que também significam”(p.82) e que “Consideramos que há sempre um não-dizer

necessário”(p.82). O rascunho mental, a fala interior está intimamente relacionada com as

condições externas da vida, às formas histórico-sociais da existência do homem, não podemos

considerar que os textos dos alunos representem conteúdos da mente, do pensamento, eles dizem

muito mais do que querem dizer. Trata-se, pois, de pensar as relações do texto com a função

autor do sujeito.

Em Vygotsky (1996) quando escreve sobre o sentido das palavras, em seu livro

Pensamento e Linguagem, encontramos sustentação, no próprio campo dos fenômenos

psicológicos, para a noção de texto aqui adotada, ao dizer que: “o sentido de uma palavra é a

soma de todos os eventos psicológicos que a palavra desperta em nossa consciência. É um todo

complexo, fluido e dinâmico, que tem várias zonas de estabilidade desigual. O significado é

apenas uma das zonas do sentido, a mais estável e precisa.”(p.181 - grifos meus)

Assim, posso pensar em algumas relações entre estes autores no que dizem, para

pensar e analisar a produção textual dos alunos: o texto é construído historicamente; palavra é

história; palavra é o microcosmo da consciência; o texto permite o (re)conhecimento de um

sujeito, uma tomada da consciência, o exercício de uma autoria.

E para a AD, o sentido não existe em si mas é determinado pelas posições ideológicas

colocadas em jogo no processo sócio-histórico em que as palavras são produzidas (Orlandi,

1999). As palavras mudam de sentido segundo as posições daqueles que as empregam. O

discurso se constitui em seu sentidos porque aquilo que o sujeito diz se inscreve em uma

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formação discursiva e não em outra, para ter um sentido e não outro. Por aí podemos perceber

que as palavras não tem um sentido nelas mesmas, elas derivam seus sentidos das formações

discursivas em que se inscrevem. Os sentidos são sempre determinados ideologicamente. Não

tem nada ‘por trás’, mas no dito, pensado em sua relação com o não-dito e o já-dito de uma

memória discursiva.

Por isso podemos trabalhar tão bem com Vygotsky na AD. Quando ele fala que o

significado é apenas uma zona mais estável e precisa, podemos refletir sobre o que a Lingüística

denomina sentido literal da palavra. A relação do homem com a linguagem é constituída por uma

injunção à interpretação: diante de qualquer objeto simbólico “x” somos instados a interpretar o

que “x” quer dizer. Nesse momento da interpretação, aparece-nos como conteúdo já-lá, como

evidência, o sentido desse “x”, segundo Orlandi (1994). A estabilidade do sentido da palavra, ou

seja, a sua literalidade estaria neste lugar já-lá, pronto e construído, como também será construído

pelo funcionamento das instituições, pela “ordem do discurso”(Foucault, 1986). A palavra

analfabeto não significa apenas não saber ler e escrever - aquilo que ficou, aquilo que se

literalizou -, tendo em vista toda a (des-)construção deste trabalho.

Essa distinção entre "sentido" e "significado" remete-nos, pois, a distinções entre

literal e figurado, entre denotação e conotação. Para a AD, a literalidade, a estabilidade são

construídas historicamente por diferentes teorias, instrumentos lingüísticos, práticas pedagógicas.

E Vygotsky pontua essa questão com grande pertinência, em relação aos fenômenos da

consciência, ao afirmar que o significado é apenas uma das zonas do sentido, a mais estável e

precisa. Podemos da perspectiva da AD, ver aí tratada a questão da dispersão do sujeito e do

texto, bem como a precariedade e tensão em que se produz esse efeito-autor, esse efeito-

consciência.

“... o discurso é uma dispersão de textos e o texto é uma dispersão do sujeito. Assim sendo, a constituição do texto pelo sujeito é heterogênea, isto é, ele ocupa (marca) várias posições no texto. [...] o texto é atravessado por várias posições do sujeito [...] que correspondem a diversas formações discursivas”. ... o discurso não tem como função constituir a 'representação fiel de uma realidade, mas assegurar a permanência de uma certa representação." (Orlandi, 1988, p.55)

E é pela referência à formação discursiva que podemos compreender, no

funcionamento discursivo, os diferentes sentidos. Palavras iguais podem significar

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diferentemente porque se inscrevem em formações discursivas diferentes. Por exemplo,

“trabalho” não significa a mesma coisa para o patrão e para o empregado, ou para o empregado e

o desempregado.

A evidência do sentido – de que “x” significa apenas “x”-, na realidade é um efeito

ideológico, não nos deixa perceber seu caráter material, a historicidade de sua construção. Do

mesmo modo podemos dizer que a evidência do sujeito, ou melhor, sua identidade ( o fato de que

eu sou eu), apaga o fato de que ela resulta de uma identificação – que se dá ideologicamente pela

sua inscrição em uma formação discursiva – que, em uma sociedade como a nossa, o produz sob

a forma de sujeito de direito (jurídico). Essa forma-sujeito corresponde, historicamente, ao sujeito

do capitalismo, ao mesmo tempo determinado por condições externas e autônomo (responsável

pelo que diz), um sujeito com seus direitos e deveres. Não tem nada de natural (Orlandi, 1999).

A formação discursiva é, enfim, o lugar da constituição do sentido e da identificação

do sujeito. É nela que todo sujeito se reconhece (em sua relação consigo mesmo e com os outros

sujeitos) e aí está a condição do famoso consenso intersubjetivo ( a evidência de que eu e tu

somos sujeitos) em que, ao se identificar, o sujeito adquire identidade (Pêcheux, 1988). É nela

também, que a AD diz que o sentido adquire sua unidade. Por isso o aluno adulto pode se

comparar com um bicho bruto qualquer, porque nas raízes históricas da educação brasileira, na

memória discursiva de todo brasileiro, existe um já-dito sobre a relação entre o não saber ler e

escrever e o não ser considerado homem, entre o não dominar a cultura predominante e

permanecer em sua ‘subcultura’, entre o dominador e o dominado, o brasileiro selvagem e o

brasileiro cristão. Um vestígio na organização da língua evidenciando um apagamento do sujeito.

Os textos individualizam – como unidade – um conjunto de relações significativas.

Eles são, no entanto, unidades complexas, constituem um todo que resulta de uma articulação de

natureza linguístico-histórica. Como dissemos, o discurso é um dispersão de textos e o texto é

uma dispersão do sujeito. O sujeito se subjetiva de maneiras diferentes ao longo de um texto. Há

pontos de subjetivação ao longo de toda a textualidade. Assim, podemos também pensar que os

discursos sobre educação de jovens e adultos se constituem de uma dispersão de vários textos: os

textos científicos, pedagógicos, jurídicos, os textos dos alunos, dos professores, das políticas

públicas.

Vejamos, agora, os textos dos alunos e os analisemos, lembrando-nos sempre de

que o dito funciona em relação ao não dito e ao já-dito e em condições de produção dadas. Isso

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significa que o que dizemos não são apenas mensagens a serem decodificadas. São efeitos de

sentidos que são produzidos em condições determinadas e que estão de alguma forma presentes

no modo como se diz a memória, a história, o contexto, o imaginário, a ideologia.

TEXTO 1

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TEXTO 2

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Esses textos mostram como as relações de poder existentes na sociedade atuaram sobre

a memória coletiva e individual. E se tomo textos de autores desconhecidos tidos como

exemplares, para análise, é por saber que a injunção à interpretação não exclui ninguém, nem

mesmo aqueles que não tiveram acesso à escolarização e que, mesmo assim, construíram um

conceito, um significado do que é não saber ler e escrever. Passo, pois, a fazer uma descrição-

análise desses textos a partir da forma material como eles se apresentam.

O discurso desses alunos acaba, quase sempre, por recair na dedicação, no apego a

Deus: “ eu peso a meu bom Deus que me ajua”(texto 2), “Agradeço a Deus o pouco que eu

sei”(texto 1), caracterizando um sujeito temente a Deus – ao mesmo tempo bom/misericordioso e

exigente/temeroso –, mas que pode ajudar o aluno a manter a sua força , a sua fé de que irá

conseguir aprender a ler e escrever e, como conseqüência, se tornará um homem de respeito.

Vemos aí a presença da formação discursiva religiosa.

A concepção de que a leitura e a escrita é um caminho para a conversão do homem

do futuro, está também muito presente no discurso dos alunos. Esse caminho a ser alcançado

pode ser entendido (ou confundido) com a missão que cada um tem de cumprir em sua vida: o de

se tornar homem alfabetizado, para poder ser respeitado pelos homens e também por Deus: “

estou realizado o meu sonho esto cumprido mia mição” (texto 4) O sentido sob o efeito do

sempre-já-lá (repetível) é posto em funcionamento pelo sujeito, já que este se enreda numa rede

de filiações que permite à língua e ao sujeito significarem.

A presença do discurso religioso é o legado do nosso processo de colonização: a

educação como salvação (raízes históricas). A influência da igreja no processo de construção de

um sistema educacional brasileiro, com a alfabetização dos índios, a elaboração de cartilhas e de

dicionários continua a gerar frutos. Toda essa produção tinha por objetivo estabelecer uma

comunicação que possibilitasse a catequese, mas também de construir novos referentes, novo

universo de significação em que sujeito e sentidos iriam se constituir em conflitos e confrontos

entre memória discursiva distinta a do velho e novo mundo, de construir a literalidade.

Aparece nos textos, também, uma relação entre o aprender a ler e escrever e se tornar

alguém. A aquisição desta da escrita pode significar que o indivíduo possui, agora, uma

identidade, mesmo que seja marcada pela negação. Nesta condição, o de alfabetizado, ele adquire

maior poder de fala, na escola, na casa, em família... ele se torna alguém. Surge a idéia de que

quem possui essas habilidades vale mais do que quem não as possui, mesmo que elas sejam

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reduzidas ao seu aspecto mecânico e repetitivo em que o sujeito significa o mundo e se significa

nesse outro espaço de linguagem, numa repetição mecânica, quando muito formal, não

permitindo a historicização. A escrita, portanto, não é uma mera habilidade, mas um lugar de

constituição de uma humanidade, a do mundo letrado: civilizado, branco, cristão.

A escrita como um artefato tecnológico criado pelo homem, tem uma ‘potência’ para

produzir realidades que podem ajudar a reproduzir as condições materiais de existência do

homem, e também de transformá-las. Neste sentido, me reporto ao trabalho de Silva(1999), que

toma a “alfabetização como um ritual de passagem, organizado institucionalmente por

determinados grupos sociais de uma sociedade dada”. Para que o sujeito ingresse em um mundo

de linguagem, onde são realizadas as relação de interlocução com outros sujeitos, é importante

que ele domine uma língua específica, produzindo sentidos que tornarão esse novo mundo

inteligível, compreensível e interpretável - ou não – para esse mesmo sujeito.

"Compreender, eu diria, é saber que o sentido poderia ser outro. O intérprete formula apenas o(s) sentido(s) constituído (o repetível), estando ele (leitor) afetado tanto pela ilusão que produz a eficácia do assujeitamento quanto pela que institui a estabilidade referencial, de que resulta a impressão de que há uma relação direta entre o texto e o que ele significa. Portanto, enquanto intérprete, o leitor apenas reproduz o que já está lá produzido. /de certa forma podemos que ele não lê, é 'lido', uma que apenas 'reflete' sua posição de leitor na leitura que produz." (Orlandi: 1988, p.116)

Como poderíamos pensar a função autor a partir dessas colocações? A partir do

domínio da língua escrita, de uma forma ou de outra, o sujeito que aí se constituí, adquire um

importante meio para sua reprodução-transformação: a de autor. A noção de sujeito não recobre

uma forma de subjetividade, mas um lugar, uma posição discursiva relativa a uma incidência da

memória. A noção de autor é já uma função da noção do sujeito, responsável pela organização

do sentido e da unidade do texto. Tal responsabilidade fica evidenciada nos textos dos alunos

quando os alunos utilizam a palavra FIM (texto 4) no final do texto para indicar que acabou,

finalizaram as idéias, não têm mais nada a dizer.

Outra evidência é a de um outro aluno que diz “eu em particular posso falar muito

bem a respeito dessi asunto”(texto3), como se dissesse de uma posição enunciativa que o

permite aconselhar, ser confiável, o de ser experiente, e, paradoxalmente, assumisse o discurso

do dominador, onde domina o que o outro - alfabetizando como ele - ainda não conseguiu

dominar, ou seja, esse aluno assume a responsabilidade de ser um exemplo, modelo dizendo que

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ele conseguiu – mesmo que imaginariamente – uma mudança de lugar nas relações de fala e de

poder. Ele fala de outro lugar, um lugar diferente, de maior valor do que o de analfabeto. Ele

‘passou’ de um lugar para outro.

Por isso posso dizer que existe a reprodução de um mito da alfabetização, isto é, de

um sentido, produzido seus efeitos ideológicos, implícito nessas falas. A aquisição da leitura e da

escrita é vista como um meio seguro de promoção social, de mudança na situação econômica e

cultural garantindo ao indivíduo uma vida melhor. A qualificação profissional para essas pessoas

parece ser "sinônimo" de ser alfabetizado, mesmo que seja “qualquer tanto”(texto 1): ler uma

receita, escrever um recado, procurar um endereço...Tal mito foi se constituindo ao longo dos

anos, a partir da construção do nosso sistema educacional brasileiro, que de uma forma particular

trabalhou o discurso do ideário francês: igualdade, fraternidade e liberdade, em um regime

escravocrata.

Encontramos a cada passo do cotidiano escolar, eventos que buscam reforçar esse

imaginário, como o recém instituído Dia Nacional da Alfabetização, em 1966, com o intuito de

motivar os alunos a saírem da condição de analfabeto... Faz-se uma grande comemoração, uma

festa, cria-se uma data para dar legitimidade a uma mudança que mais uma vez dependeria do

próprio alfabetizando, deixando-o, contudo, na mesma posição de fala e de poder.

Neste mecanismo de produzir um sentido em certa direção, o domínio da leitura e da

escrita é tomado como suficiente por si só para que o analfabeto, individualmente, mude as suas

condições de vida e as relações de produção da sociedade, e saía de um lugar de dominação para

o de dominador, enquanto elementos de uma oposição. A(s) ideologia(s) produzida(s) nesse

processo, permite(m) que o indivíduo '‘sonhe", "acredite" nessa possibilidade, mesmo que elas

não existam, nessas condições e nesses termos, pelo menos para a maioria da população

brasileira. Aqui, fica evidente uma forma de assujeitamento, onde se faz pensar que a liberdade

individual, a autonomia de idéias, a não-determinação do sujeito se dêem independentemente das

condições materiais de existência.

Isso me leva a pensar, ainda, sobre as diferentes formas de aquisição de leitura e

escrita que a escola possibilita ao sujeito. Sabemos que esta apropriação é diferenciada para

todos. A prática pedagógica é, pois, a que organiza essa apropriação, produzindo e reproduzindo

leitores e autores, ao mesmo tempo em que mantém e/ou modifica o próprio modo de

apropriação. Estas noções - a de dominado e a de dominador - já estão tão enraizadas no aluno,

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que ele não percebe outra forma de apropriação. Da forma como está se dando essa apropriação o

aluno terá sempre possibilidade de fazer a leitura de receitas e nunca a de ‘criar’ receitas...

Percebemos aqui as injuções ideológicas que bloqueiam o movimento significante: o sujeito não

se desloca, ele estaciona, só repete mecânica e formalmente.

Os diferentes exercícios pedagógicos refletem diferentes modos de assujeitamento do

indivíduo. Porém, segundo Pfeiffer (1995), “estes significam diferentes modos de relacionamento

entre sujeito e texto, sujeito e signo, sujeito e letra, e não diferentes modos de relação com o

“saber”. O saber continua mitificado, seja sob a forma do divino, seja sob a forma da

razão/lógica.” (p.29)

Desta forma, o processo ensino/aprendizagem, enquanto uma discursividade

determinada historicamente, é organizada, controlada, redistribuída, através de mecanismos de

exclusão que funcionam em diferentes instâncias e de diferentes formas, na instituição escolar.

No funcionamento dessa instituição esse controle se dá, por exemplo, quando se seleciona as

turmas e os turnos de aula, quando se adota uma ou outra metodologia, quando se opta por um

ensino presencial ou semipresencial, quando se propõem classes-especiais, classes-de-aceleração,

quando capacita ou não os seus professores, quando se aplica determinados tipos de provas para

a avaliação de seus alunos.

Uma outra forma de que a escola se serve para regular o discurso, são as produções

de textos de seus alunos. Entendendo como Orlandi (1999), que o texto é uma unidade de análise,

porque representa uma contrapartida à unidade teórica, o discurso, definido como efeitos de

sentidos entre locutores. O texto é texto porque significa. E o que interessa não é organização

lingüística do texto, não como ele organiza a relação da língua com a história no trabalho

significante do sujeito. Vamos nos ocupar do fato de que o sujeito está, de alguma forma, inscrito

no texto que produz, marcando a sua inscrição como sujeito no texto.

Algumas da marcas que atestam essa incrição do sujeito no texto, aparecem nestas

produções, como uma forma de compartilhar o sofrimento que esses alunos-autores viveram, sob

a forma de um desabafo, falando sobre as dificuldades pessoais que encontraram no decorrer dos

anos em encontrar emprego, em se tornarem "alguém", em serem respeitados. Reafirmando o

sentido de que o alfabetizado fala de uma posição superior que o outro, o analfabeto, "escutamos"

a fala desse alfabetizando “eu em particular posso falar muito bem a respeito dessi asunto”(texto

3). Compartilhar o sofrimento, aconselhar os filhos, a família, os amigos evidencia importância

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de saber ler e escrever, é como se fosse uma forma de contribuição para com o outro, como se

assim dissessem: não passe pelas mesmas dificuldades por que passei. O ser solidário.

O sentimento de vergonha em ser analfabeto, já se faz presente na nossa história

brasileira desde a década de 30, como vimos no segundo capítulo desta dissertação, quando um

referente se discursiziva como "vergonha nacional" e como "responsável pelo atraso social e

tecnológico do país". Estes sentidos vêem ecoando em nossa história, através da memória e do

esquecimento, e faz com que um homem adulto, trabalhador, sinta vergonha moral de ser o que é

e, paradoxalmente, assuma o discurso do dominador e se tome como causa de sua vergonha, de

seu fracasso (texto 5).

Outra evidência deste imaginário é a relação entre a cegueira X inaptidão. O não

domínio da leitura e da escrita pode, significar, a falta de visão de mundo, a falta de luz, o ser

“uma pessoa obscura” (texto 3). Fui buscar no dicionário os sentidos de "obscuro" e fiquei

bastante surpresa pensando-a como um determinante de pessoa:

OBSCURO – adj. Que não tem claridade; escuro; tenebroso; sombrio (fig) pouco inteligível, confuso, difícil de entender; ignorado, pouco conhecido: artista obscuro; de baixa condição; humilde; plebeu; vago; indistinto; retirado; oculto ( do lat. Obscuru).

O dizer-se uma “pessoa obscura” já coloca sujeito, não só no lugar da falta de

claridade e de pouco conhecimento, mas também em uma condição econômica já determinada: a

de baixa condição, o de ser humilde, plebeu, vago, indistinto. E mais uma vez este aluno é

colocado em uma posição de irregularidade, indistinta, vaga, confusa e extremamente tenebrosa e

sombria. Aí que medo...e que perigo! Essa frase me fez relembrar a imagem por mim construída

destes jovens e adultos quando entrei pela primeira vez na escola onde trabalhei com essa

modalidade de ensino: o meu primeiro sentimento era o de medo de encontrar pessoas sujas,

pobres, marginalizadas, doentes e que poderiam me atacar de alguma forma, o que me deixava

numa posição de defesa contra eles, e esta posição só me fez sentir, posteriormente, vergonha de

ter desconfiado e sentido medo desses jovens e adultos, pois o que eu encontrei nessa escola

foram pessoas humildes sim, porém, amigas, dignas, trabalhadoras, com muito calor humano e

muita vontade de aprender e, como eu estava ali para ensinar, eles me tratavam com muito

carinho e respeito, respeito profissional..

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Devemos procurar entender como essa falta se faz tão importante na significação

do mundo? Como a relação com o mundo está tão dependente da leitura e da escrita a ponto de

uma aluna escrever “eu não saberia viver no mundo”(texto 6) se não soubesse ler e nem

escrever... Essa fala retomou sentidos vindos com a teoria evolucionista de Darwin em que

poder-se-ia compreender que a aquisição da leitura e da escrita é uma forma de seleção natural,

construída historicamente numa sociedade de classes e, em se tratando do Brasil, de uma

sociedade extremamente desigual. Os que adquirem esta habilidade – mesmo que de forma

mecânica – evoluem, torna-se homem, responsável, alguém, cidadão - mesmo que de segunda

classe em relação a seus direitos. Os que não adquirem esta habilidade, continuarão na condição

menos evoluída: a de bicho, coisa, de nada, de incapaz, de ninguém...

“O saber ler não é ser o melhor do mundo...”(texto 6), existem outros melhores,

ou outras formas de ser o melhor do mundo, mas ainda assim, saber ler e escrever, é sempre uma

possibilidade... “ ...mas é querer ser alguma coisa no mundo” (texto 6) é querer se significar no

mundo, se identificar com o outro - letrado - de uma sociedade construída e gerida pela escrita.

Há, então, nestes textos uma repetição que reproduz, mas que também desloca

sentidos. Os dizeres não são apenas mensagens a serem decodificadas, são efeitos de sentidos que

são produzidos em determinadas condições e que estão de alguma forma presentes no modo

como se diz. Esses efeitos de sentidos ficam claros quando percebemos que os alunos com mais

de 25 anos de idade foram alvos de várias políticas e campanhas educacionais adotadas pelo

governo na década de 60 e 70. Eles são frutos de uma educação desigual e excludente que não

oportunizou condições de equidade e de melhoria na educação. Muitos destes adultos de hoje

ouviram ou cresceram ouvindo os discursos de várias entidades governamentais dizendo que o

analfabeto era uma vergonha, que o analfabeto não era cidadão, era uma nada, que homem que

não sabe ler é homem sem alma, sem respeito. Já na década de 80 e 90 estes dizeres não se fazem

presentes, porque não são mais "politicamente corretos" e não se pode dizer tais coisas desta

forma, por isso elas são ditas de outras maneiras, em outros lugares como podemos observar nos

capítulos anteriores. São ditas nos não-ditos, nos pré-construídos, nos esquecimentos...

Em uma pesquisa realizada por Rangel (1996) intitulada “ A imagem real e a

imagem ideal do bom aluno”, podemos observar esse funcionamento discursivo. A autora

focalizou em sua pesquisa a dimensão da representação do "bom aluno", especialmente na

imagem "real" ou "ideal" deste aluno, em três contextos escolares diferentes: escola pública,

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escola particular, escola militar. E o que ela percebeu com esta pesquisa, considerando a relação

entre cultura e representações, foi o que há de crucial nesta relação:

“quando se admite que a formação comum de conceitos e imagens do ‘bom aluno’ se explique, entre outros fatores, por percepções, crenças e valores próprios de uma ‘cultura escolar’ que, perpassando várias camadas sociais, supera também as diferenças de contexto das escolas.” (p.291) Podemos pensar que aqui está em funcionamento a ideologia, o imaginário do

que é ser um bom ou mau aluno, um aluno de sucesso ou um aluno de fracasso, e que este

aluno bom ou mau é o mesmo para diferentes contextos escolares. O fracassado é sempre

fracassado, seja na escola pública, particular ou militar, o que me faz refletir mais uma vez

sobre as possibilidades efetivas de mudança na posição-sujeito, nas formas de

individualização de posições, que produzam efeitos reais sobre o que vim chamando de

posição de fala e de poder, tão almejada pelos analfabetos e tão prometidas por tantos...

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6. CONCLUSÃO

Um longo e produtivo caminho percorrido, um logo caminho a percorrer... No início

deste trabalho pensava que se tomasse, isoladamente, as metodologias de aprendizagem – os

métodos utilizados para ensinar a ler e a escrever os jovens e adultos deste País – ou as

motivações individuais como algo vindo do interior do próprio indivíduo chegaria a conclusões

surpreendentes.

Porém, no caminho percorrido, nos momentos de desconstrução e reconstruções

teóricas e metodológicas, percebi que não podia entender essas questões de forma estanque e

fragmentária, desvinculadas das condições reais de existência dos indivíduos e de outra

exterioridade, a discursiva, o que implicou todo um trabalho de reformulação de conceitos no

campo da linguagem e da língua. E, principalmente, das noções de sujeito e de sentido,

considerando que se constituem, ao mesmo tempo, na articulação entre língua e história em que

entra a ideologia e o inconsciente para produzir um imaginário, fazendo funcionar uma sociedade

dada.

Foi, então, que entendi que as metodologias utilizadas para ensinar jovens e adultos,

são importantes ferramentas ou instrumentos de construção de uma forma-sujeito determinada,

pelas articulações de diferentes discursos, como os científico, político e jurídico na nossa

sociedade, fazendo funcionar um imaginário de que a aprendizagem da leitura e da escrita é um

lugar de mudança nas relações de fala e de poder, e que quem não consegue chegar a este lugar

continuará na condição de fracassado, marginalizado, doente.

Porém, a aprendizagem da leitura e da escrita não possibilita, por si só, esta mudança

de lugar nas relações de fala e de poder, é preciso muito mais para sair dessa condição de

analfabeto, de fracassado, de marginal, de bicho, de coisa. É preciso, entre outras coisas, que

façamos trabalhar os sentidos que fundam e fundamentam a educação de jovens e adultos,

criando condições para que ocorram mudanças e transformações pedagógicas, mas também

sociais e políticas. A forma de assujeitamento é histórica e se dá em diferentes épocas e em

diferentes lugares e nos diferentes discursos. O nosso sujeito de linguagem, marcado por uma

forma-sujeito histórica, tem que se submeter à linguagem para que tenha a ilusão da sua

determinação, seja essa determinação marcada pela metodologia mecânica ou criativa, seja pela

garantia ou não do seu direito fundamental, seja pela consciência ou não de sua forma-sujeito.

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Mas, a formação do autor é função da escola, ou melhor, é uma questão da subjetividade na

relação com a escrita na escola. E aí ficam algumas questões. Como pensar nessa formação do

autor na escola em relação às classes populares? Aprender as formas legítimas da cultura

dominante. Sim, mas e as suas formas culturais? Ficam como alternativas ou variedades?

O que pude evidenciar, também, nos espaços discursivos que fundam e fundamentam

o fracasso escolar é que o lugar de interpretação do ser alfabetizado/letrado sempre foi para

poucos não só pela exclusão do indivíduo do processo de escolarização, característica da

sociedade capitalista em manter as diferenças, mas sobretudo pelos modos de individuação social

e histórica que se instalaram na nossa sociedade e pela configuração que a função-autor adquiriu

na própria prática pedagógica. A escola enquanto uma instituição ‘reguladora’ do Estado, que

surgiu para oferecer educação para todos é responsável pela reprodução e transformação social, e

ao tentar inscrever o sujeito adulto analfabeto o vem fazendo de modo desigual e marginal, não

conseguindo organizar as desigualdades econômicas e/ou sociais.

Não foi um “caminho” fácil chegar nesse lugar de compreensão. Para tanto tive que

retomar o discurso da Psicologia, com uma nova compreensão dos seus fenômenos, obrigando-

me a rever teorias psicológicas até então adotadas como únicas e verdadeiras. Foi um efeito de

verdadeira descontrução e ao mesmo tempo construção de uma compreensão de uma posição

sujeito historicamente determinada, de uma percepção da consciência articulada ao imaginário

social, tudo isso sustentado por um referencial teórico, que era novo para mim, a Análise do

Discurso um instrumento de análise de texto e uma teoria.

O contato com a AD, também, me permitiu “olhar”, “ler”, “perceber” as teorias

científicas de outra forma, além de fazer-me parar e refletir sobre a minha própria prática

profissional: a da clínica e a de sala de aula.

Comecei a pensar nas metodologias de ensino, no ensinar a ler e a escrever, na

palavra como "um microcosmo da consciência humana", como lugares de estruturação e

significação, em que o sujeito inscrito em uma formação discursiva, significa e re-significa o

mundo e a si próprio. Onde a relação entre sujeitos em um momento histórico dado é que produz

efeitos de sentidos. E que isso tem história e faz história. Por isso dizer certas coisas aqui e agora

significa também dizer as antigas: o dito funciona em relação ao não dito e ao já dito.

A estruturação da consciência no e pelo sentido e pela percepção do e relação com o

outro, em que o sujeito e o sentido se constituem ao mesmo tempo na articulação entre língua e

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história, é ponto fundamental para compreendermos a construção de um imaginário acerca do

adulto analfabeto no Brasil. O modo como este adulto aprende a ler e a escrever pode ser

considerado um elemento estruturante da sua consciência, e conseqüentemente, do modo de

como ele irá se significar e se constituir como autor, ou responsável pelo que diz.

O sujeito-aluno exercita a função autor, quando ele se inscreve no repetível histórico,

representando-se como controlador e criador dos sentidos e sentindo-se seguro e capaz de dizer

aquilo que quer dizer, quando toma consciência de que suas palavras podem refletir o seu

pensamento, mesmo que seja por esquecimentos, ou pela memória discursiva. Os alunos desta

pesquisa repetem o que está dito e o que está no não-dito na sua e na nossa história, e nos

principais discursos que fundamentam a EJA. O aluno que não aprende a ler e a escrever se

assume como marginal, doente, não cidadão, bicho ou coisa. A autoria só se dará de uma forma

legitimada institucional e socialmente se os sentidos fizerem sentido para o sujeito a ponto de se

sentir fonte e origem destes sentidos, dos efeitos do interdiscurso da ideologia. O dizer significa

enunciar outros ditos para que o nosso faça sentido. Para que o sujeito de direito – sujeito adulto-

analfabeto -, deixe de ter, então, uma identidade socialmente reconhecida e reconhecível como a

de marginal, bicho, coisa, não cidadão.

Penso, contudo, que é muito importante capacitar os jovens e adultos para

responderem às exigências do mercado, proporcionando-lhes conhecimentos gerais e específicos

e o domínio de habilidades flexíveis e adequadas às novas formas de produção e gestão, porém,

rejeito a idéia de que deve haver uma coincidência entre os objetivos dos patrões e dos

empregados para o alcance do “bem comum” e da qualidade total. Esse discurso que preconiza a

igualdade de oportunidades no trabalho e na escola, o consenso e a unidade, parece-me um

discurso desastroso, porque nos textos aqui analisados preconizou-se a importância de atitudes e

habilidades, tais como a capacidade de trabalhar em equipe, solidariedade, autonomia,

criatividade, potencialidade para tomar decisões, flexibilidade e espírito de iniciativa. Mas na

nossa prática pedagógica e social, em contextos de trabalho específicos, sedimentam-se cada vez

mais, a cultura do controle e a permanência de relações hierarquizadas, e valorizam-se os padrões

de disciplina, a subserviência, o cumprimento das ordens e a aceitação silenciosa das

determinações superiores. No cotidiano das relações interpessoais, o intenso ataque ao

corporativismo e o conseqüente apelo à solidariedade, embasados em princípios éticos,

camuflam, negam evidentes conflitos e confrontos.

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Não podemos deixar de mencionar que uma das condições para a manutenção da

exploração em países capitalistas, é a reprodução da divisão entre o trabalho manual e trabalho

intelectual, a reprodução do fracasso escolar enquanto um lugar estruturante das desigualdades.

Tendo feita essa primeira experiência com o mundo da pesquisa, de rupturas teóricas,

de experiências novas e produtivas que resultaram na elaboração desta dissertação, tenho

pretensões futuras: as de continuar neste caminho de construção e desconstrução de sentidos e de

produção de conhecimentos científicos, considerando os caminhos deixados abertos pelas

diferentes discursividades analisadas.

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8. ANEXO