o fardo da liberdade, bruno alves

Upload: causa-liberal

Post on 06-Apr-2018

215 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

  • 8/3/2019 O Fardo Da Liberdade, Bruno Alves

    1/3

    O Fardo da Liberdade

    Bruno Alves

    Julho de 2004

    Um dos fenmenos mais curiosos da realidade poltica portuguesa sem dvida o Bloco deEsquerda. E mais do que curioso, indicador da realidade, no s portuguesa, mas dasdemocracias ocidentais em geral. O BE no um partido. uma agremiao de vriospartidos. Partidos esses que devem muito pouco democracia, e muito menos aopluralismo. So partidos revolucionrios, partidos que advogam a supresso da propriedadeprivada, e, em passagens mais delirantes dos seus manifestos polticos, a apropriao pormeios violentos dos meios de produo (julgo ser esta a terminologia utilizada). Este tipo depalavreado agrada a certas camadas da populao. Diminutas. E a aceitao que o Blococonsegue, da parte da "juventude" (grupo etrio ao qual, por culpa do timingdos meus pais,vou pertencendo, sem particular orgulho pelo facto), no se deve certamente aos momentoslricos mais delirantes dos seus cada vez mais obscuros programas. Pela simples razo deestes serem cada vez mais obscuros e, por conseguinte, desconhecidos da maioria dos

    jovens que tanto apreo manifestam pelo BE, e, nestes tempos de personalizaodesenfreada da poltica, pelo dr. Lou em particular.

    A esquerda radical, a que pertencem os grupos que se agrupam no BE, viu a sua poltica

    econmica descredibilizada pela decadncia sovitica, e pela satisfao, pelo menos emmaior grau, das necessidades bsicas das populaes, ou pelo menos da sua maior parte,que os sistemas capitalistas ocidentais conseguiram oferecer. E sem puderem oferecer oParaso na Terra da sociedade sem classes, que no foi mais que o Inferno na Terra dosGulags, a esquerda radical, e no caso em anlise o BE, teve de procurar outra rea para asua aco poltica, por natureza radical. Surgiram assim os "temas fracturantes". O aborto.Os direitos dos homossexuais. A liberalizao das drogas. Para os mais politizados, adefesa destas liberalizaes uma forma de "libertao interior", de "libertar" o indivduo dosconstrangimentos da irracional moralidade crist. Parecem ignorar que, ao fazerem essa"libertao", esto a tomar tambm eles uma posio moral, to "irracional" ou "tirnica"

    como aquela que condenam. Mas mais uma vez, o que aqui me interessa, por ser precisamente o mais revelador, no a aceitao do programa do BE por parte dos maispolitizados, mas por parte daqueles que pouco ou nada conhecem da identidade do BE, edos partidos que o constituem. Esses olham para o BE, e para os seus "temas fracturantes",como a defesa da liberdade de escolha para cada um levar a sua vida como bem entende.

    Ao mesmo tempo que defende a total liberdade nestas questes, o BE defende programascolectivistas da economia, por inerncia contrrios liberdade econmica. Para os maispolitizados, isso no mais do que a consequncia lgica do verdadeiro carcter dospartidos que formam o BE. Para os restantes, para os jovens que mostram o seu apreo

    desmedido pelo dr. Lou, apenas o indicador de algo que se vai generalizando, oumelhor, que j se generalizou, nas sociedades ocidentais. Os mesmos que querem a

    1

  • 8/3/2019 O Fardo Da Liberdade, Bruno Alves

    2/3

    liberdade de "escolher", no que toca s questes "fracturantes", so os mesmos queesperam do Estado a proteco econmica, que esperam do Estado a garantia deprosperidade. No fundo, nota-se a vontade de usufruir as vantagens da liberdade sem ofardo que ela acarreta. A ideia de que cabe ao Estado ( "sociedade") zelar pelo bemcomum, garantindo a todos a prosperidade, para que todos tenham a "liberdade" de dela

    usufruir.

    um claro exemplo daquilo a que Oakeshott chamou a "moralidade do anti-indivduo". Aomesmo tempo que surgia a "moralidade individual", a noo de que a sociedade eracomposta por indivduos autnomos, que deveriam ser responsveis pelas suas prpriasescolhas, surge tambm uma outra "moralidade", a do "anti-indivduo", que via noindividualismo a fonte dos males daqueles que dele no colhiam benefcios. O ncleo destamoralidade a noo de "Bem-Comum". No o "bem" dos indivduos autnomos que, frutoda escolha ou do acaso, convivem numa determinada sociedade, mas o "bem" dessaentidade abstracta que a "comunidade". E assim, desta "moralidade" decorre a ideia deque a funo de um Governo a de zelar pelo "Bem-Comum". No perodo daindustrializao, por exemplo, assiste-se a um enorme crescimento da riqueza produzida.De acordo com a "moralidade do anti-indivduo", essa riqueza era passvel de serredistribuda. Para que todos possam gozar da prosperidade que a "moralidade"individualista, e o arranjo poltico que dela decorria, negava a alguns.

    Com a institucionalizao do Estado-Providncia, no ps-II Guerra, generalizou-se a ideiade que cabia ao Estado zelar pelo bem-estar de todos. Hoje em dia, aps a queda do Muro,e a derrocada do mundo sovitico, s mesmo uma franja muito diminuta da populao pensaque a planificao econmica o caminho para a generalizada felicidade terrena. Mas docredo geral que cabe ao Estado garantir a todos uma vida decente. O que significa que aspessoas querem ter liberdade de escolher. Querem a liberdade que o sistema capitalistaproporciona. Mas no querem o fardo que acompanha a liberdade. A responsabilidade.Assusta-as terem de se responsabilizar por escolhas erradas. E da, esperam do Estado agarantia de que, independentemente das suas escolhas e do sucesso ou insucesso delas,nada tm a temer. Que o seu futuro estar garantido, sem que tenham de sofrer o fardo daresponsabilidade pela escolha feita. Os jovens que evidenciam a sua admirao pelo dr.Lou mostram que apreciam a oportunidade de escolher, ao quererem a liberdade deescolha nos "temas fracturantes". Mas mostram tambm que no esperam ter que arcar

    com a responsabilidade de fazerem certas escolhas, e a incerteza da decorrente. Mostramque querem a escolha que a liberdade capitalista proporciona, mas uma escolha que notraga consigo o fardo da responsabilidade.

    Segundo Oakeshott, o "anti-indivduo" vive sob uma iluso. A iluso de que tem direito aalgo, que lhe negado numa sociedade individualista. Mas como no aspira individualidade, estando assim sujeito ao "bem-comum", no tem nenhum direito comoindivduo. Apenas como parte de um todo. E se o "todo" estiver satisfeito, ou seja, seaqueles a quem cabe zelar pelo todo acharem que o todo v as suas necessidadessatisfeitas, pouco interessa que um ou outro indivduo (que no fundo ser algo que no

    existe, de acordo com esta "moralidade") viva em pobreza.

    2

  • 8/3/2019 O Fardo Da Liberdade, Bruno Alves

    3/3

    O "anti-indivduo" aspira segurana. Os jovens admiradores do dr. Lou aspiram segurana. Mas no segurana face interferncia de terceiros. Aspiram segurana daproteco face s consequncias das suas prprias escolhas. O problema que, hoje emdia, nem essa segurana o Estado-Providncia consegue assegurar, se que algum diaconseguiu. A realidade demogrfica faz com que o Estado tenha cada vez mais encargos

    para suportar, e cada vez menos gente para os suportar, sem um aumento brutal dosimpostos. Aumento esse que se traduziria numa ainda maior rigidez na economia, queaumentaria ainda mais o desemprego. O que condenaria os mais pobres, aqueles a quemuma sociedade individualista supostamente priva da prosperidade que garante a outros, perpetuao da sua condio, que se generalizaria a uma parte ainda maior da populao. Eno entanto, apesar deste cenrio apocalptico, a grande generalidade das pessoas no estdisposta a abrir mo dos benefcios que o Estado-Providncia ainda lhes vai garantindo.Continua a querer estar protegida das consequncias das suas escolhas, no percebendoque nada nem ningum lhes pode garantir isso. a receita para a desgraa.

    (Originalmente publicado no blogue Desesperada Esperana.)

    3