o fantástico em são marcos

21
BRUNA FERNANDES CUNHA A VOZ NEGRA NA LITERATURA LATINO-AMERICANA: UMA LEITURA DE LAS ESTRELLAS SON NEGRAS, DE ARNOLDO PALACIOS E PONCIÁ VICÊNCIO, DE CONCEIÇÃO EVARISTO . Trabalho apresentado apresentado à disciplina de Crítica e historiografia literária I, ministrada pelo professor Dr. Luís Bueno de Camargo.

Upload: bruna-fernandes-cunha

Post on 04-Sep-2015

223 views

Category:

Documents


8 download

DESCRIPTION

Artigo que visa analisar como o fantástico aparece no conto São Marcos, de Guimarães Rosa

TRANSCRIPT

BRUNA FERNANDES CUNHA

A VOZ NEGRA NA LITERATURA LATINO-AMERICANA: UMA LEITURA DE LAS ESTRELLAS SON NEGRAS, DE ARNOLDO PALACIOS E PONCI VICNCIO, DE CONCEIO EVARISTO.

Trabalho apresentado apresentado disciplina de Crtica e historiografia literria I, ministrada pelo professor Dr. Lus Bueno de Camargo.

CURITIBA 2015Introduo

O objetivo deste trabalho analisar a novela So Marcos, de Guimares Rosa, observando de que modo o elemento sobrenatural interfere na narrativa, Publicada em 1946 no livro Sagarana, obra de estria de Guimares Rosa, a narrativa So Marcos a pea mais trabalhada de todo o livro, segundo o prprio autor em carta a Joo Cond (ROSA, 2002, p. 14). Tal afirmao j permite entrever a alta complexidade narrativa do texto, que apresenta diferentes questes que se relacionam entre si, como a percepo do sobrenatural, conflitos entre o saber erudito e o saber popular, conflitos tnicos, e tambm sobre a prpria criao literria e o poder da palavra, como mostra a de Luiz Roncari, em O Brasil de Rosa (2002). Em tal estudo Roncari percebe na novela So Marcos e em outros textos de Guimares Rosa trs camadas textuais: uma mais baseada na experincia do autor e nos seus vnculos com a tradio literria brasileira, onde so abordados os temas do serto, dos conflitos decorrentes da modernizao do pas e de seus modos de expresso; outra que a elaborao simblica, universal e mtica da obra, baseada em grande erudio literria e filosfica; e uma terceira camada em que se alegoriza a histria da vida poltico-institucional da primeira experincia republicana brasileira numa perspectiva conservadora, no em defesa da ordem, mas que critica a nova ordem estabelecida (RONCARI, 2002, p. 18). Ao analisar especificamente a novela So Marcos, Roncari destaca a simbologia relacionada mitologia grega, as associaes entre o sincretismo religioso brasileiro e o sincretismo religioso universal, e chama ateno para a reflexo sobre o poder da palavra, indicando que este seria um dos temas centrais da narrativa. O estudioso no deixa de abordar as questes tnico-raciais e os conflitos culturais apresentados na novela, que ser um dos focos da anlise feita no presente trabalho.Basicamente, a narrativa o relato de um homem culto sobre sua experincia com um fenmeno sobrenatural, no caso um feitio realizado por negro chamado Joo Angol, que deixa o narrador cego e perdido no meio do mato. Logo nos primeiros pargrafos do texto o narrador marca sua percepo em relao ao sobrenatural, afirmando que no tempo em que ocorrem os fatos ali relatados, ele no acreditava em feiticeiros. Ao utilizar o verbo acreditar no pretrito imperfeito o narrador j abre espao para que o leitor imagine que tal situao mudou. Ele no se mostra como algum completamente ctico, muito pelo contrrio, confessa que h 72 tabus que leva a srio, ainda que seja com algumas restries, e mantenha tais crenas com certa reserva:Dou de srio que no mandara confeccionar com o papelucho o escapulrio em baeta vermelha, porque isso seria humilhante; usava-o dobrado, na carteira. Sem ele, porm, no me aventuraria jamais sob os cips ou entre as moitas. E s hoje que realizo que eu era assim o pior-de-todos mesmo do que o Saturnino Pingapinga, capiau que a histria antiga errou de porta,dormiu com uma mulher que no era a sua, e se curou de um mal-de-engasgo, trazendo a receita mdica no bolso, s porque no tinha dinheiro para a mandar aviar. (ROSA, 2001, p.152).Ao citar crenas que considerava absurdas e as crenas que ele prprio mantinha, diferenciando aquilo que era relativamente aceitvel daquilo que seria humilhante ou contra-senso, o narrador mostra que, na realidade, o problema no estava no fato de acreditar em algo sobrenatural, mas que a questo era de cunho valorativo, ou seja, aquilo que ele, homem culto, acreditava era melhor do que as crenas do povo capiau de Calango-Duro. importante notar, no entanto, que ao olhar para o passado o narrador afirma que era pior-de-todos, o que poderia sugerir novamente que o narrador, no presente em que narra os fatos, teria outra opinio, e que tal mudana ocorreu por causa dos acontecimentos narrados. Mas qual seriam os critrios que esse narrador utilizaria para valorizar/aceitar determinada crena? Seria algo relacionado moral crist, a busca pela f apenas na religio crist, evitando qualquer tipo de paganismo? Examinando as crenas e observaes do narrador, o modo como caracterizado ao longo da histria, essa suposio totalmente repelida. O narrador um homem culto, intelectual, apresenta linguagem erudita, fazendo diversas aluses mitologia grega, como quando descreve a regio por onde faz seus passeios dominicais:Tudo aqui manda pecar e peca desde a cigana-do-mato e a mucuna, cips libidinosos, de flores poliandras, at os cogumelos cinzentos, de aspiraes mui terrenas, e a ertica catuaba, cujas folhas, por mais amarrotadas que Sejam, sempre voltam, bruscas, a se retesar. Vou indo, vou indo, porque tenho pressa, mas ainda hei de mandar levantar aqui uma estatueta e um altar a Pan (ROSA, 2001, p. 162). Alm da descrio sensual da natureza, atribuindo-lhe caractersticas humanas, h a clara meno ao deus grego Pan, sem nenhum comentrio pejorativo ou ressalva em relao a este tipo de mitologia. Em momento anterior, no que o narrador chama de sub-histria da narrativa, quando conta um embate potico que tem com um desconhecido, o narrador responde os versos de seu adversrio apenas com nomes de reis assrios, revelando alm de erudio, tambm o contato e certa admirao por outra cultura pag. Ou seja, o narrador no um religioso cristo que valoriza apenas a religio e cultura catlica, fechado para outras crenas e culturas. Segundo Roncari, o narrador de So Marcos faz associaes entre dois universos distintos do pensamento mtico-mgico-religioso, o sincrtico universal, composto de fontes gregas, romanas, assrias, egpcias e hebraicas, e o universo sincrtico brasileiro, composto por crenas afro, amerndia e catlica:Essa, associaes, que podem ser percebidas em toda a obra de Guimares, aqui tm uma particularidade: as suas matrizes esto separadas e pertencem a sujeitos distintos, elas tm expresses diferentes, e as suturas da soldagem de uma com a outra esto mais visveis. A referncia culta e universal faz parte da formao do heri-narrador-autor, e a popular-regional aparece como algo estranho, do outro, da gente do lugar. O que caracteriza o heri na histria o fato de ele ser um homem culto e de fora, distinto nisso dos habitantes do Calango-frito (RONCARI, 2002, p.111).De fato, apesar de o narrador ser culto e de fora, no se mantm totalmente alheio s pessoas da regio e suas crenas, at seleciona parte delas tambm para o seu universo, como o incio da novela. Ele mostra-se curioso e observador em relao natureza local, cuja contemplao o verdadeiro motivo para seus passeios dominicais, ainda que em alguns momentos ele parea no compreender bem aquilo que v, como nesta passagem em que fala sobre suas excurses na mata:Cachorro no meu scio. E nem! Com o programa, s iria servir para estorvar, puxando-me para o caminho de sua roa. Porque todos eles so mesmeiros despticos: um cot paqueiro pensa que no mundo s existem pacas, quando muito tambm tatus, cotias, capivaras, lontras; o veadeiro no sabe de coisa que no os esguios suaus das caatingas; e o perdigueiro desdenha o mundo implume, e mesmo tudo o que no for galinceo, f do seu faro e gosto (ROSA, 2001, p.154).O narrador recusa-se a levar cachorros para seus passeios por serem despticos, apegados aos seus gostos, quilo que crem ser importante, o que os torna cegos ao restante da natureza. Parece, no entanto, que a atitude dos cachorros bem prxima do prprio narrador, que consegue enxergar apenas parte da regio em que vive, valorizando apenas as prprias crenas e a prpria cultura. Este carter de observador raso aparece tambm no que se refere reza brava de So Marcos, que o narrador conhece, mas no percebe o poder que tem. A reza, alis, um dos temas de sua conversa com o mameluco Aursio Manquitola: Nem as sete ave-marias retornadas? Nem So Marcos? E comecei a recitar a orao sesga, milagrosa e proibida: Em nome de So Marcos e de So Manos, e do Anjo-Mau, seu e meu companheiro... Ui! Aursio Manquitola pulou para a beira da estrada, bem para longe de mim, se persignando, e gritou: Pra, creio-em-deus-padre! Isso reza brava, e o senhor no sabe com o que que est bulindo!... E melhor esquecer as palavras... No benze plvora com tio de fogo! No brinca de fazer ccega debaixo de saia de mulher sria! ... Bem, Aursio... No sabia que era assim to grave. Me ensinaram e eu guardei, porque achei engraado... Engraado?! um perigo!... Para fazer bom efeito, tem que ser rezada meia-noite, comum prato-fundo cheio de cachaa e uma faca nova em folha, que a gente espeta em tbua de mesa... Na passagem em que se invoca o nome do caboclo Gonzazabim ndico? No fala, seu moo!... S por a gente saber de cor, ela j d muita desordem. O senhor, que homem estinctado, de alta categoria e alta f, no acredita em mo sem dedos, mas...(ROSA, 2001, p. 156).Neste dilogo perceptvel o desprezo do narrador pela crena e o temor de Aurzio em relao reza de So Marcos, expressando para este o quanto aquilo que motivo de temor para o mameluco no passa de algo engraado para ele, fazendo questo de dizer as palavras proibidas para provocar o outro, que retribui com um alerta cordial, elogiando-o e mostrando que percebe as diferenas entre ele mesmo, um homem rstico, e o narrador, um homem culto, de alta categoria e alta f, mas que no acredita em mo sem dedos. Assim, as relaes entre o narrador e seu universo erudito e os habitantes de Calango-Duro mostram-se conflituosas, pois o primeiro v a cultura local como inferior, no tendo nenhum cuidado ou respeito ao expressar essa sua viso do outro, j que ocupa um lugar privilegiado nas relaes sociais. Este conflito acentua-se ainda mais nas relaes com Joo Mangol, que descrito pelo narrador sempre com expresses pejorativas e tratado com agressividade, e no apenas o ar zombeteiro que dispensado a Aurzio. interessante lembrar que o prprio Aurzio,que tambm no branco, se sente superior ao negro Mangol, ainda que tema as feitiarias dele: Voc vem vindo do Mangol, hein Aursio? Tesconjuro!... Tou vindo mas da missa. No gosto de urubu... Se gostasse, pegava de anzol, e andava com uma penca debaixo do sovaco!...Aursio um mameluco brancarano, cambota, anoso, asmtico como um fole velho, e com supersenso de cor e casta. Mas voc tem medo dele... H-de-o!... Agora, abusar e arrastar mala, no fao. No fao, porque no paga a pena...De primeiro, quando eu era moo, isso sim!... J fui gente!, gente. Para ganhar aposta, j fui, de noite, foras dhora, em cemitrio... Acontecer, nunca me aconteceu nada; mas essas coisas so assim para rapaz. Quando a gente novo, gosta de fazer bonito, gosta de se comparecer. Hoje, no: estou percurando sossego... (ROSA, 2001, p.155).J o narrador no s recusa a crena de Mangol como ataca o grupo tnico do feiticeiro, ofendendo-o desde o incio do primeiro dilogo entre os dois: Hora de missa, no havia pessoa esperando audincia, e Joo Mangol, que estava porta, como de sempre sorriu para mim. Preto; pixaim alto, branco amarelado; banguela; horrendo. O Mangol! SenhusCristo, Sinh! Pensei que voc era uma cabina de queimada... Isso graa de Sinh...Com um balaio de rama de moc, por cima!... Ixe! Voc deve conhecer os mandamentos do negro... No sabe? Primeiro: todo negro cachaceiro... i, i!... Segundo: todo negro vagabundo. Virgem! Terceiro: todo negro feiticeiro...A, espetado em sua dor-de-dentes, ele passou do riso bobo carranca de dio, resmungou se encolheu para dentro, como um caramujo coclia, e ainda bateu com a porta. Mangol!: Negro na festa, pau na testa!... (ROSA, 2001, p. 155)Aqui vlido mencionar a anlise de Rancori sobre a passagem: O homem culto, aqui, se faz portador escarninho da expresso preconceituosa da velha sociedade escravista, mas enganoso pensar que a oposio, no caso, s entre uma mentalidade religiosa branca, crist, e uma negra, afro. O modo como descrito Joo Mangol, a sua cafua e as prticas religiosas caracterizam-no como um catimbozeiro, o que o aproxima mais dos caboclos da tradio indgena e da feitiaria europia medieval do que dos cultos afros organizados, como o candombl e a macumba (RANCORI, 2002, p. 117).Mais adiante o estudioso refora que, na novela no possvel definir Joo Mangol e suas prticas essencialmente como expresso simblica s negra, mas antes seria a representao daquilo que regional, pobre e marginal, pois as prticas religiosas do feiticeiro no so descritas como um culto afro organizado, elas so algo a que se apela em situaes prticas da vida. De fato, no h como negar o carter sincrtico e marginal do catimb, nem recusar o argumento de que na novela o narrador renega e desvaloriza aquilo que faz parte do universo sincrtico regional. Mas no deixa de se destacar tambm as diferenas de tratamento que Mangol e Aurzio recebem do narrador: o primeiro ganha o adjetivo de horrendo, ofendido explicitamente com termos pejorativos referentes sua cor; por sua vez, o segundo tambm visto como inferior, mas com ele o narrador estabelece ainda um dilogo, ouve-o com certas condescendncias, e mesmo frisando que um mameluco brancarano, cambota, anoso, asmtico como um fole velho, e com supersenso de cor e casta (ROSA, 2001, p. 155), no remete ao pertencimento tnico para ofend-lo frontalmente. Ainda possvel comparar a trajetria dos dois personagens em relao ao narrador dentro da histria: Aurzio aquele que alerta o narrador sobre os perigos de se provocar foras sobrenaturais desconhecidas, e quem o lembra do poder da reza de So Marcos, que acaba impulsionando o narrador a encontrar o caminho para sair da mata; j Joo Mangol aquele que, ofendido, odiando o narrador, prepara o feitio para prejudic-lo. preciso lembrar tambm que logo na primeira descrio do negro, o narrador afirma que ele remanescente da guerra do Paraguai e do ano da Fumaa, provavelmente referindo-se ao de 1833, quando em meio a vrias revoltas contra o governo regencial, ocorreu o maior levante de escravos nas Minas Gerais, em fazendas de uma poderosa famlia mineira, localizadas no curato de So Tom das Letras, freguesia de Carrancas e comarca do Rio das Mortes, onde os escravos rebelados exterminaram os brancos que estavam nas fazendas, segundo Andrade:o que mais chama a ateno na Revolta de Carrancas foi a organizao e sucesso do levante enquanto no houve represso, alm do nmero de escravos condenados pena de morte, superando os da Revolta do Mals, e a composio tnica variada dos participantes (ANDRADE, 2005, p.20.Assim, ainda que, ao ouvir os primeiros insultos do narrador, Joo Mangol mostre-se obediente e submisso, uma revolta j estava anunciada, na referncia a ser remanescente do ano da Fumaa e tambm quando o narrador conta que at os meninos utilizaram um feitio em uma revolta contra o professor que lhes castigava demais (ROSA, 2001, p. 152). Alm disso, h os avisos diretos da cozinheira do narrador, S Nh Rita Preta, que inclusive j havia mencionado um caso de feitiaria feita com bonecos, semelhante ao que mais tarde ocorrer com o narrador:Bem, ainda na data do que vai vir, e j eu de chapu posto, S Nh Rita Preta minha cozinheira, enquanto me costurava um rasgado na manga do palet (Coso a roupa e no coso o corpo coso um molambo que est roto...), recomendou-me que no enjerizasse o Mangol.Bobagens! No cu e na terra a manh era espaosa: alto azul glceo, emborcado; s na barra sul do horizonte estacionavam cmulos, esfiapando sorvete de coco; e a leste subia o sol, crescido, oferecido um massa-mel amarelo, com favos brilhantes no meio a mexer (ROSA, 2001, p. 153).

Para o narrador bobagem preocupar-se com uma possvel vingana ou punio por ter ofendido Joo Mangol, j que vive em uma sociedade, a brasileira, onde no incomum ofender negros. Conflitos inter-raciais, onde o negro aquele mais ofendido fazem parte da configurao da sociedade brasileira, como afirma Darcy Ribeiro:Aqui, vemos opondose umas s outras todas as trs matrizes da sociedade, cada uma delas armada de preconceitos raciais contra as outras duas. Esses antagonismos alcanam carter mais cruento no enfrentamento dos negros, trazidos da frica para serem escravos, que se vem condenados a lutar por sua liberdade e, mesmo depois de alcanada a abolio, a continuar lutando contra as discriminaes humilhantes de que so vtimas, bem como contra as mltiplas formas de preterio (RIBEIRO, 1995, p.173).Assim, a postura do narrador em relao a Joo Mangol e Aurzio, bem como suas crenas, e tambm a atitude depreciativa do mameluco em relao ao personagem negro, esto dentro da normalidade da sociedade brasileira. claro que na narrativa no se trata apenas da oposio entre brancos e negros, ou apenas conflitos inter-raciais, mas nas relaes estabelecidas entre os personagens de So Marcos possvel perceber tambm o retrato de uma sociedade marcada por conflitos tnicos, sociais, econmicos, religiosos e raciais, que, segundo Darcy Ribeiro, nunca so conflitos puros. Cada um se pinta com as cores dos outros (RIBEIRO, 1995, p. 167). Deste modo, o conflito central da narrativa est no mbito religioso e cultural, mas no deixa de passar tambm pela questo econmica e racial, j que esses conflitos esto entrelaados. O fato, alis, de no haver meno cor e origem do narrador no problema, j que por ele ser patro, ter uma cozinheira sua disposio, e toda sua caracterizao como intelectual, levam a compreend-lo realmente como um homem branco, oposto de Joo Mangol, sendo vlido lembrar que na sociedade brasileira, onde a maior parte da populao mestia, o racismo no incide sobre a origem racial das pessoas, mas sobre a cor de sua pele (RIBEIRO, 1995, p.225). Na narrativa, esta situao estvel (ainda que seja repleta de tenses sociais), rompida pela cegueira causada pelo feitio de Joo Mangol. A cegueira incide sobre o narrador quando ele j est descansando prximo a uma lagoa, aps fazer o trajeto pela mata mostrando-se grande conhecedor daquele ambiente, caracterizando-se ainda mais como um intelectual observador, e em certo momento fazendo tambm certa aluso ao prprio autor do conto, comparando-se a um pssaro: joo-grande, contemplativo, ao modo em que eu aqui estou, sob a minha corticeira de flores de crista de galo e coral (ROSA, 2001, p. 163). Ento ocorre o fato sobrenatural:Paz. E, pois, foi a que a coisa se deu, e foi de repente: como uma pancada preta, vertiginosa, mas batendo de grau em grau um ponto, um gro, um besouro, um anu, um urubu, um golpe de noite... E escureceu tudo (ROSA, 2001, p. 164)O acontecimento sobrenatural aqui intervm no equilbrio da trajetria do narrador-personagem, que estava em paz com suas crenas, atitudes e posio social, no caso a de intelectual observador, e desencadeia mudanas no personagem. A cegueira tira a sua capacidade de ver, contemplar, algo que est relacionado tambm ao seu carter intelectual, racional. O narrador nos primeiros momentos trata de utilizar sua razo, buscando entender o que ali ocorre, se seria algo relacionado ao ambiente ou apenas a ele mesmo. Ao que era o caso da segunda alternativa, que s para ele as coisas estavam pretas, entra em desespero e apela para seu conhecimento religioso, primeiramente reza Santa Luzia, mas sua f parece ser fraca e passageira, e seu lado ctico o faz desistir rapidamente. Ele recobra parcialmente sua calma e procura raciocinar, o que tambm no dura muito, pois logo pressente perigos e se desespera novamente. Ento o narrador resolve seguir seus instintos e chega em um ponto onde a floresta j desconhecida para ele. Ento, ouve um grito familiar: Genta o relance, Iz!..., a terceira vez que ouve tal grito, sendo que a primeira foi ainda no caminho para a mata, quando v a sua frente um homem chamado Z-Prequet equilibrando-se sobre um cavalo, que o derruba justo no momento em que o narrador ouve o chamado. O narrador presta ateno no grito e na cena, assumindo um nome: Estremeci e me voltei, porque, nesta estria, eu tambm me chamarei Jos (ROSA, 2001, p. 154). A segunda vez que o narrador ouve a expresso significativa tambm j est cego, e quando a ouve sente impulso de sair andando pela mata. A partir da terceira vez que ouve a expresso, o narrador lembra-se do dilogo que tivera com Aurzio e da conversa sobre a reza de So Marcos, cujos poderes antes havia desprezado. Ele apela para esta superstio, sendo ento tomado por um impulso violento, misturado tambm com medo da floresta que antes tanto elogiara, passando a ser agora um espao estranho, perigoso. Mais uma vez, so acontecimentos sobrenaturais que rompem com uma situao estvel, quando o narrador procura manter-se racional, a partir dos gritos Genta o relance, Iz!..., ou das sensaes sbitas de perigo iminentes, que resolve agir, mover-se. E em seguida, outro dado sobrenatural, o apelo reza proibida de So Marcos, ao sobrenatural, faz com que ele tenha aja e consiga sair da mata e, por fim, chegar casa de Joo Mangol, onde o dio que sentia pelo negro aflora: Apanha, diabo! esmurrei o ar, com formidvel inteno.Porque a ameaa vinha cia casa do Mangol. Minha fria me empurrava para a casa do Mangol. Eu queria, precisava de exterminar o Joo Mangol!...(ROSA, 2001, p. 168).Antes de ter certeza do que Joo Mangol havia feito, o narrador j ansiava exterminar o feiticeiro, como se naquele momento se exacerbasse um sentimento que j havia sido insinuado antes, na agressividade de suas primeiras falas com o negro e tambm quando observa a casa em que ele vivia: A casa do Mangol ficava logo depois.Havia um relaxamento no aramado da cerca, bem ao lado da tranqueira de varas, porque o povo preferia se abaixar e passar entre os fios; e a tranqueira deixara de ter maior serventia, e os bons-dias trepavam-lhe os paus, neles se enroscando e deflagrando em campnulas variegadas, branco e prpura. A cafua taipa e colmo, picum e pau-a-pique estava l, bem na linha de queda da macaba. Linha terica, virtual, mas, um dia... Porque a sombra do coqueiro, mesmo sem ser hora das sombras ficarem compridas, divide ao meio o sap do teto; e a rvore cresce um metro por ano; e os feiticeiros sempre acabam mal; e um dia o pau cai, que no sempre...(ROSA, 2001, p. 154)O desejo de ver o feiticeiro acabar mal, anunciado nesta passagem do incio da novela, no se acaba e o narrador invade a casa do negro, atacando-o com violncia at o momento em que o feiticeiro revela que havia feito: No quis matar, no quis ofender... Amarrei s esta tirinha de pano preto nas vistas do retrato, pra Sinh passar uns tempos sem poder enxergar... Olho que deve de ficar fechado, pra no precisar de ver negro feio...Havia muita ruindade mansa no paj espancado, e a minha raiva passara, quase por completo, to glorioso eu estava. Assim, achei magnnimo entrar em acordo, e, com decncia, estendi a bandeira branca: uma nota de dez mil-ris. Olha, Mangol: voc viu que no arranja nada contra mim, porque eu tenho anjo bom, santo bom e reza-brava... Em todo o caso, mais serve no termos briga... Guarda a pelega. Pronto! (ROSA, 2001, p. 168)

Como se v, o negro mantm a postura aparentemente submissa e servil, refere-se ao narrador como sinh, enfatizando a posio do outro como seu superior, no entanto, no deixa de ser irnico ao aludir s ofensas feitas pelo narrador anteriormente. O narrador percebe ento o rancor do negro, parecendo intuir tambm a necessidade de estabelecer paz com o feiticeiro, ainda que ao propor o acordo, oferecendo dinheiro - relembrando que ali quem tinha maior poder econmico era ele - tambm afirme que as foras sobrenaturais que o protegiam eram mais fortes. De qualquer modo, notvel que a postura do narrador muda, agora passando a acreditar na fora da reza brava, alm de demonstrar certo temor pelos feitios de Mangol, buscando assim no provoc-lo mais. Ao sair da casa de Mangol, o narrador est com pssima aparncia, mas feliz por ter voltado a ver, neste ponto, no fim da narrativa, olha para o cu e v uma paisagem colorida:Na baixada, mato e campo eram concolores. No alto da colina, onde a luz andava roda, debaixo do angelim verde, de vagens verdes, um boi branco, de cauda branca. E, ao longe, nas prateleiras dos morros cavalgavam-se trs qualidades de azul (ROSA, 2001, p.169).

agora uma paisagem diferente daquela que viu no incio do dia, aps desfazer dos avisos da cozinheira S Nh Preta sobre o poder do feiticeiro, sugerindo que aps recuperar a viso, percebe mais cores na paisagem da regio, o que tambm pode ser relacionado com seu carter de intelectual observador. Conforme Roncori observa: ver era chegar s representaes simblicas e essenciais das coisas, como se o que se passava no plano terreno fosse uma imagem ou influxos sombrios da dana csmica, mas que s se revelavam aos crentes ou iniciados e na sua linguagem prpria (RONCORI, 2002, p. 138). Deste modo, perceptvel que o narrador passa por uma mudana, que na realidade j estava anunciada desde a primeira frase da novela. Ele estava, inicialmente, em uma situao estvel e tranquila, em que podia desprezar e ofender as crenas e cultura dos habitantes de Calango-duro, especialmente o negro Mangol, categorizando e atribuindo maior valor cultura erudita, associada ao sincretismo universal, e menosprezando aquilo que se refere ao sincretismo popular. O que rompe com a tal estabilidade na narrativa o sobrenatural, a cegueira causada pelo feitio do negro Mangol, que o obriga a rever seus valores. O fator sobrenatural aquilo que interfere na situao estvel e tambm aquilo que o faz voltar normalidade, ou seja, a reza de So Marcos que permite que saia da mata e resolva seu problema com o feiticeiro. Nota-se ento que na narrativa o sobrenatural exerce a funo mencionada por Todorov: O elemento sobrenatural resulta ser o material narrativo que melhor cumpre esta funo precisa: modificar a situao precedente e romper o equilbrio (o desequilbrio) estabelecido. Ter que reconhecer que esta modificao pode produzir-se por outros meios, por certo, menos eficazes. (TODOROV, 1981, 86).O elemento sobrenatural tem a mesma funo no caso em que Aurzio conta para o narrador, sobre o pobre Tio Tranjo, que aprendeu a reza de So Marcos e a usou para fugir da priso, e para vingar-se da mulher que o traa e seu amante. Assim como no caso do narrador, a reza tambm age transformando aquele que a faz, j que Tio deixa de ser o sujeito pacato e medroso, e passa ao, encontrando uma forma de se livrar de sistema prisional injusto e violento, como o prprio Aurzio testemunha: Diz-se que, l na cadeia do arraial, os soldados fizeram graa... Diz-se qu, no! Me arrependo: eles fazem mesmo, sei, porque tambm j estive l, sem ter culpa de crime nenhum, bem entendido; e eles, na hora em que eu cheguei, foram me perguntando: Voc matou? Ah, no matou no? Que pena! ... Se tivesse matado, ia ficar morando aquicom a gente!.......Bom, eles trancaram o Tio. De certo que eles bateram tambm no Tio (ROSA, 2001, p.158).Aqui se apresenta mais uma crtica social dentro da narrativa, que vem no bojo de uma histria cuja temtica central aparentemente um caso sobrenatural, o que no fundo tambm se pode perceber na novela So Marcos como um todo, onde o sobrenatural no , na realidade, o tema central, mas um dos tantos que aparecem nas camadas textuais da narrativa. Rancori observa que o tema dos poderes do feitio, da reza ou da possesso encobre um tema mais importante para o autor, o da perspectiva a ser assumida pela literatura (2002, p.123) e tambm percebe no conto certo questionamento sobre at onde o iderio literrio modernista seria possvel:At que ponto era legtimo a alta literatura valorizar e absorver, como temas e formas, os elementos da cultura popular, como as vrias tendncias do modernismo tentaram fazer, principalmente com os de arte negra e indgena, expressivas de um tipo particular de subjetividade e religiosidade? (RONCORI, 2002, p. 114).Realmente, o modo como se desenvolve o narrador e a sua forma de observar e lidar com a cultura popular da regio em que vive, parece apontar para este tipo de reflexo sobre os caminhos literrios a serem percorridos na literatura brasileira. Conforme se procurou observar na presente anlise da novela So Marcos, a configurao do narrador como um homem erudito, funcionando quase como uma alegoria ao trabalho do escritor, e as relaes que ele prprio estabelece com os demais personagens e sua cultura levam reflexo sobre os conflitos sociais brasileiros, no apenas no mbito religioso, mas cultural, econmico e racial, e tambm no modo como a literatura pode interferir em tais conflitos.

Referncias bibliogrficasANDRADE, Marcos Ferreira de. Negros rebeldes nas Minas Gerais: a revolta dos escravos de Carrancas. (Texto de apresentao do processo digitalizado da Revolta de Carrancas. Disponvel na Wide Word Web: http://www.acervos.ufsj.edu.br/) 2005 (Cientfica).RIBEIRO, Darcy. A formao e o sentido do Brasil. 2 edio. So Paulo: Companhia das Letras. 1995.RONCORI, Luiz. O Brasil de Rosa: (mito e histria no universo rosiano): o amor e o poder [online]. So Paulo: Editora Unesp. 2004.ROSA, Joo Guimares. Sagarana. Rio de Janeiro: Ed. Nova Fronteira. 2001.