o fantasma de tio william - rubens francisco luccetti [impactodownload.blogspot.com]

92
O FANTASMA DE TIO WILLIAM Autor RUBENS FRANCISCO LUCCETTI Digitalização e Revisão ARLINDO_SAN

Upload: oscarff

Post on 26-Nov-2015

42 views

Category:

Documents


23 download

TRANSCRIPT

O FANTASMA DETIO WILLIAM

AutorRUBENS FRANCISCO LUCCETTIDigitalizao e RevisoARLINDO_SAN

UMA HISTRIAQUE RESISTE AO TEMPO

U

m dos mais calejados escritores brasileiros, Rubens Francisco Lucchetti, paulista nascido em Santa Rita do Passa Quatro e criado na capital do Estado, escreve h cerca de meio sculo. Nessa longa e ininterrupta atividade profissional, vem produzindo romances, contos, histrias em quadrinhos e roteiros para cinema, rdio e televiso.

Autodidata (s completou o primrio), foi alfabetizado pela me, que usava a Bblia como cartilha. A partir da, o menino viciou-se em leitura: todo o dinheiro que ganhava vendendo sucata recolhida nas Indstrias Matarazzo ia para a compra de livros de aventura. A essa alegria somou outra: o cinema, paixo que, garoto nos anos 30 e 40, descobriu nas salas de exibio de seu bairro, a Lapa.

Lucchetti tem por este Fantasma de tio William um carinho todo especial. Imaginei a histria no comeo dos anos 40, contando-a para distrair minha irm, a qual sofria de uma doena que cedo iria lev-la. O livro tem muito de minhas lembranas da Lapa daquela poca: os guardas-civis, com quem eu gostava de conversar; o gostoso bonde aberto que saa da rua Doze de Outubro e ia para vila Anastcio; os passeios de domingo a Pirituba, onde os funcionrios ingleses da So Paulo Railway tinham suas manses e jogavam crquete... So quadros inesquecveis, que me esforcei por passaro leitor.Desde seu aparecimento, tio William no deixou de fazer das suas: foi folhetim na dcada de 40, radionovela na de 50 e livro na de 80, divertindo trs geraes. Agora, reescrito especialmente para a Srie Vaga-Lume, chega aos anos 90, forte e sacudido. Com vocs, o fantasma!

SUMRIO

1.DA INGLATERRA PARA PIRITUBA ...................................................... 62.UM PE DE COELHO PARA MAGDA ...................................................... 63.FANTASMA UM MORTO QUE NO MORREU? ............................... 94.ONDE JA SE VIU UM QUADRO MONTAR A CAVALO?! ...................125.TUDO POR CAUSA DE UM PRATO DE UVAS .....................................146.SERIA A MANSO A CULPADA? ...........................................................167.QUANDO UM NOME PRPRIO IMPRPRIO .....................................19

8.UM GUARDA ATNITO ...........................................................................21

9.O QUE MAGDA IR PROPOR A CARMEN DE LUNA? .......................2110.NUNCA PROVOQUE ALGUM DE NOME FILOMENA STOPPA ......23

11.FRIA E FLOR DE LTUS ......................................................................2612.A SOLUO NUMA AMPOLA ................................................................3013.QUANDO MAGDA NO MAGDA E CARMEN NO CARMEN ...3314.O TRIUNFO DE UM VELHO FANTASMA .............................................3415.A BOLSA ROUBADA ................................................................................3516.TIO WILLIAM DE CASTIGO ....................................................................3717.NEM TUDO PARECE SER O QUE ........................................................3818.UM TRIO DECIDIDO .................................................................................4019.UMA CAMISOLA PARA O JANTAR .......................................................4120.UM FANTASMA AO TELEFONE .............................................................4221.COLOCOU O RETRATO, MAS TRANCOU A PORTA! ..........................4322.UM CONSELHO DE AMIGO .....................................................................4423.A CADEIRA VAZIA ....................................................................................4524.O SEGREDO TEM DE SER MANTIDO .....................................................4725. AGORA, TUDO DEPENDE DE CARMEN ................................................5026. ALGUMA COISA EST ANDANDO NO ESCURO .................................5127. MANH DE SOL, MAS UM DIA DAQUELES .........................................5128. SER OU NO SER .......................................................................................5329. E AGORA, ANFITEATROFF? ....................................................................5430. QUEM QUERIA NO QUER, QUEM NO QUERIA QUER ..................5531. O SEGREDO NO BOLSO DO COLETE .....................................................5632. A NOVA FRMULA ...................................................................................5633. UMA COMPOSIO FEITA DE ESPERANAS E SONHOS .................5734. DE VOLTA AO LAR ....................................................................................5835. COISAS QUE NINGUM EXPLICA ..........................................................58

1- DA INGLATERRA PARA PIRITUBAN

a Inglaterra, toda manso que se preze tem seu fantasma. O solar dos Winston no era exceo: durante sculos, a famlia teve uma distinta linhagem de almas do outro mundo. Dizia-se que o ltimo representante dessa longa srie de assombraes era William Winston, cientista um tanto excntrico que viveu no tempo da rainha Vitria.

Em vida, esse simptico cavalheiro criou e descobriu coisas fantsticas. Mas parece que todos o consideravam um maluco, e seu gnio no recebeu o reconhecimento que merecia. Ele morreu bem no ltimo dia do sculo XIX, num terrvel acidente provocado por seu mais recente invento, a revolucionria mquina de dar lao em gravata.

Pouco depois da tragdia, seu irmo mais novo, o engenheiro Sir Arthur, ltimo dos Winston, veio construir uma estrada de ferro no Brasil. To logo chegou, apaixonou-se pelo pas e resolveu viver aqui. Bem depressa, o engenheiro, que j era rico, ficou milionrio negociando com caf e banana.

Tal qual seu falecido irmo, Sir Arthur tinha suas manias. Uma delas foi construir no bairro de Pirituba, em So Paulo, uma rplica exata do velho lar da famlia. Depois, mandou trazer para a nova casa todos os pertences da manso original e isso, juravam os assustados operrios que realizaram a mudana, inclua um fantasma, preso no sto.

Sir Arthur casou-se com uma brasileira e ganhou um filho, John. Muitos anos depois, o ingls, bem velhinho, ficou com saudades de sua terra. O casal ento se mudou para a Gr-Bretanha, mas John, que j era homem feito e acabara de casar, permaneceu no Brasil.

Nossa histria comea em 1940, poca em que, como vocs vero, idias, esperanas e sentimentos eram um pouco diferentes dos nossos mas nem tanto.

Era uma noite de muita chuva. Trovejava, e os relmpagos riscavam os cus...

2- UM P DE COELHO PARA MAGDA

No grande salo de jantar, John Winston estava sentado mesa com sua mulher, Magda. O mvel, muito comprido, mantinha-os separados por boa distncia. John era um homem alto e alourado, de uns trinta anos. Sua aparncia seria impecavelmente britnica, no fosse pelo bigodinho, que o amalandrava um pouco.

Magda disse ele com muita naturalidade, como se fosse falar sobre o tempo , estou gostando de outra mulher e vou pedir nosso desquite.

Ela, uma bonita morena de seus vinte e cinco anos, ficou calada por alguns segundos, sem demonstrar nenhuma surpresa, e ento perguntou:

Por que esperou tanto tempo para me contar?

Queria ter certeza.

E... j tem... certeza?

Tenho, Magda.

Mesmo? indagou ela, delicadamente. Acha ento que uma artista vaidosa e exuberante como Carmen de Luna...

Como sabe que se trata de Carmen de Luna? No houve resposta.

Magda, como soube que se trata de Carmen de Luna? insistiu John.

Ainda fingindo que no ouvira, Magda tornou a perguntar:

Por que tanta certeza, John? Voc est mesmo convencido de que ser feliz com Carmen de Luna?

Sei o que estou fazendo. Isto , acho... disse ele, cofiando com vagar o bigodinho. Depois, levantou-se e deixou cair o guardanapo sobre o pequins Sunshine, que estava deitado sossegadamente aos ps da mesa. Vou cidade dar uma volta. Talvez passe a noite num hotel. At mais, querida.

Magda no se perturbou ao ver o marido sair. Nem mesmo o olhou de maneira diferente. Conhecia John muito bem. Quando ele tomava uma deciso, nada o fazia voltar atrs.

Magda achava que o motivo daquela situao era um s: naqueles cinco anos de casamento, ela, por mais que se esforasse, no conseguira dar um filho a John. Achava que o marido, o qual ultimamente andava muito calado e distante, a estivesse abandonando por causa disso. Entristecida, a moa comeava a considerar-se um fracasso.

Logo depois, entrou no salo a velha Magnlia, uma preta gorda e jovial.

O patro j acabou de jantar? perguntou a cozinheira, com sua voz cantante.

J respondeu Magda, acrescentando: E tambm acabou comigo, Magnlia. Talvez tenha sido melhor assim. Alis, j que chegamos a este ponto, eu e voc teremos de deixar a casa hoje mesmo.

Isso no, patroa! retrucou Magnlia, meneando a cabea decididamente, como se falasse a uma criana teimosa. No vou sair daqui. E a senhora tambm no.

A empregada era categrica.

Mas, Magnlia! Voc detesta a casa tanto quanto eu.

verdade. No gosto daqui, parece um cemitrio. Mas quem sai assim no volta mais!

Que posso fazer?... Havia angstia nos imensos olhos castanho-claros da moa.

Magnlia ficou mais animada e convidou:

Vamos tomar uma xcara de caf bem quente e pensar numa soluo.

A preta afastou-se. Por alguns minutos, Magda ficou pensativa. Ento, ao dar-se conta de que estava sozinha, levantou-se apressada e foi atrs de Magnlia.

Quando Magda ia passando pelo hall to cheio de sombras, sentiu um calafrio. Apressou o passo, na esperana de no precisar encarar a longa fila de retratos da famlia Winston. Mas no pde deixar de notar a hostilidade com que todos a olhavam. L estava a tia Gracie, o tio William, a tia Ada, o primo Howard, o vov Cedric e, principalmente, a vov Dee, a que mais a impressionava. Magda ouviu um rudo abafado e parou, amedrontada. Um a um, os quadros foram ganhando vida! Todos aqueles parentes mortos apontavam o dedo para Magda, acusando-a. Ento, Magda pareceu ouvir um coro de vozes:

Voc a runa dos Winston! No cumpriu com seus deveres. Por isso John a deixou! Por isso ele se apaixonou por outra!Magda correu s tontas at a copa, batendo ruidosamente a porta. Magnlia logo apareceu com uma xcara fumegante. A velha cozinheira adoou o caf e olhou para Magda, que se recostara na cadeira, com os olhos quase fechados.

Voc tem razo, Magnlia! Vou encontrar uma sada! Preciso convencer o John a...

Magnlia nem a deixou terminar a frase.

assim que se fala! exclamou, oferecendo algo patroa. Pegue isto.

O que ?

Um p de coelho. Vai lhe trazer sorte.

Verdade?

, sim. Eu mesma criei esse coelho. Ele s comia trevo de quatro folhas. Tome.

3- FANTASMA UM MORTO QUE NO MORREU?

Mais tarde, enquanto Magda dormia, tio William caminhava de um lado para o outro.

Se essa moa me tirasse daqui, eu poderia ajud-la! Preciso sair o quanto antes, seno vou explodir!

Tio William no conseguia dominar a impacincia. Agarrou nervosamente a maaneta e quase conseguiu derrubar a porta.

O barulho despertou Magda e Sunshine. Magda levantou-se, assustada, e Sunshine comeou a latir.

Quieto, Sunshine! sussurrou Magda. J ia chamar John, mas lembrou-se de que ele no voltara para casa. Com a respirao em suspenso, ficou aguardando a repetio do barulho.

Tio William tambm estava atento, espera de algum sinal animador. Como tudo continuava em silncio, tornou a agarrar a maaneta da porta e a sacudi-la com violncia. O barulho chegou ntido aos ouvidos de Magda, que arregalou os olhos.

Outra vez! exclamou. Sunshine replicou com um latido mais forte. Vamos dormir, Sunshine. Voc pode pensar que acredito em almas penadas.

Mas Sunshine no estava mais a seu lado. Como uma flecha, o pequins subira a escada, indo em direo ao quarto de tio William.

Magda ficou intrigada. Que haveria l em cima? Naqueles cinco anos de casamento, nunca se preocupara em abrir aquele cmodo.

Apanhou um castial, acendeu a vela e foi para a escada, comeando a subir os degraus que levavam ao sto. Mais uma vez, ouviu o barulho de algum forar a maaneta. Sunshine latia como louco.Chegando ao topo, Magda encaminhou-se para a porta. Sunshine dava pulos de ansiedade. Ela olhou em torno e viu a chave, pendurada no batente. Enfiou-a na fechadura. Quando a porta se abriu, uma golfada de ar apagou a vela!

A porta rangeu demoradamente, e Magda ouviu passos. Morrendo de medo, esperava que a qualquer momento uma mo ossuda lhe apertasse a garganta.

Mas o barulho cessou. Depois, veio um rudo diferente! Parecia que algum tentava acender um fsforo. Magda ficou ainda mais apavorada. Pensou em ajoelhar-se e rezar para que tudo passasse.

Ento, uma chama de fsforo iluminou o ambiente. E o que surgiu? Nenhum monstro horrvel, mas a imagem, um tanto etrea, de um homenzinho de olhos claros e simpticos.

Como vai? cumprimentou ele, timidamente.

Tio William! Magda estava boquiaberta. De imediato, ela reconhecera o velhinho retratado num dos quadros no hall.

Isso mesmo. Espero que no tenha ficado amedrontada disse o fantasma, irritado com o ranger dos prprios sapatos.

Magda no estava apenas amedrontada. Estava petrificada. Tio William parou diante dela.

Quer que acenda a vela? perguntou ele, com certo acanhamento. Como no houvesse resposta, acrescentou: Minha filha, no fique com medo. No fao mal a ningum.

Magda afinal encontrou foras para falar.

O senhor... est... mo... morto... no est? Tio William sorriu, benevolente.

Que voc acha? Pareo um cadver? Magda sacudiu a cabea, devagar.

No, mas... H quanto tempo o senhor est a dentro? Tio William fez uma careta de desgosto e afrouxou o colarinho.

Quarenta anos. No gosto nem de pensar nisso!

A mo de Magda comeou a tremer. Quando ela tornou a falar, sua voz estava quase inaudvel.

No acha melhor voltar para o quarto? Surpreso, tio William arregalou os olhos azuis.

Por qu?

Porque... Sei l... seu lugar ali... no ?

Tio William viu que Magda continuava apavorada. Sabia o que ela estava pensando. Se ele no agisse rpido, a simples fora mental da moa o empurraria de volta para o quarto. Pois , fantasma tem dessas coisas... E s Deus sabe quantos anos mais ele teria de ficar ali, esperando que outra pessoa viesse em seu auxlio! Mas tio William era um homenzinho esperto e j tinha um plano. A primeira providncia era colocar-se na posio de amigo. Proporia ajuda a Magda e alcanaria a liberdade que tanto almejava. Com muita diplomacia e simpatia, tio William comeou a agir.

Querida, vejo que minha presena perturba voc um pouco. Mas confie em mim. Posso ser de grande utilidade.

Grande utilidade? repetiu Magda.

Claro respondeu o velhinho.

Tio William sabia que sua prxima fala seria decisiva. Dela resultaria ou a liberdade ou um novo e longo cativeiro. Tudo dependia da reao da moa.

Magda, quer que John volte para voc?

A expresso de Magda passou do medo surpresa:

Como soube desses... acontecimentos?

Tio William estava ciente de que qualquer palavra menos apropriada poria tudo a perder.

No quero que pense que estive bisbilhotando. Mas o fato que no pude deixar de ouvir...

E ento?...

Tio William ficou mais animado. A reao parecia positiva.

Minha filha, vou mostrar-lhe o quanto posso ser til.

Pode mesmo?

O tom de Magda era esperanoso. Sua mo j no tremia, e ela esquecera-se do medo. Agora, tio William estava certo de que seu plano tivera sucesso. Podia enfim conquistar a liberdade.

Nisto, como num passe de mgica, tio William perdeu todo o aspecto de imagem ilusria. Tornou-se to real quanto a mais real das coisas reais pelo menos aos olhos de Magda.

Todos os receios e dvidas da moa dissolveram-se como bolhas de sabo. Tio William era apenas uma criaturinha simptica e prestativa. Assim, a expresso nervosa de Magda transformou-se num sorriso.

Por que o senhor quer me ajudar? perguntou, sem temor.

No posso tomar outra atitude. A famlia deve permanecer unida! E tenho certeza de que voc vai ajudar na concluso de minha frmula.

Eu? Frmula? Magda espantou-se, sem saber a que ele se referia.

O velhinho abriu bem os braos e falou mais alto:

Graas a voc, deixarei os cientistas estupefatos e revolucionarei o mundo inteiro!

A voz de Magda reduziu-se a um simples sussurro de admirao:

O mundo inteiro?

Isso mesmo. A cincia reconhecer minha genialidade. Ajudarei milhares de pessoas! Cada vez mais exaltado, apontou o dedo para Magda. E tudo vai comear por voc!

No estou entendendo... Afinal, que tipo de ajuda vai me dar?

Tio William ficou surpreso com a pergunta. Afrouxando mais o lao da gravata (ele j no gostava muito de gravatas...), disse:

Ora, toda a ajuda de que voc precisar. Mas o xito de minha frmula depende inteiramente de voc, de John... fez um rpido silncio ...e da outra mulher.

Magda no sabia o que dizer. Estava um bocado confusa. Entretanto, sua intuio dizia-lhe que devia seguir o tio.

Depende de ns? Acho que no entendi.

No h nenhuma complicao, querida. Vocs sero minhas cobaias.

Cobaias?!

s um modo de falar assegurou tio William.

E no vai ser perigoso?

Perigoso? Nem um pouco! Ser uma experincia interessantssima enfatizou ele, pondo a mo no ombro de Magda , principalmente para voc. J no est mais amedrontada, est?

Magda esboou um sorriso.

Bem... se isso me ajudar... Acho que no terei medo.

No h motivo para ficar preocupada. A que horas servem o caf da manh?

s oito.

Os olhos de tio William brilhavam, cheios de expectativa.

Diga-me, querida, voc segue o hbito dos Winston de fazer um pouco de exerccio antes do caf?

Sim, eu costumo cavalgar um pouco.

Nesse caso, serei aceito como companhia? Estou ansioso por ver a luz do sol.

Mas claro! Vai ser timo.

Ento, vamos nos encontrar nas cavalarias s sete horas. Que tal?

Perfeito! concordou ela, muito animada.

Agora, boa noite e... sonhe com os anjos.

4- ONDE J SE VIU UM QUADRO MONTAR A CAVALO?

Na manh seguinte, o sol veio brilhante, inundando os jardins da manso Winston. Da terra, desprendia-se o gostoso aroma de mato molhado.

Nas cavalarias, Jambo, o preto alto e magro que tratava dos animais, estava espera de Magda. Jambo falava devagar, to devagar que s vezes se tinha a impresso de que no estava vivo. Parecia ter os olhos sempre pesados de sono. Magda aproximou-se, muito alegre.

Bom dia, Jambo!

Jambo tirou lentamente o bon e, mais lentamente ainda, voltou a coloc-lo.

Bom dia, madame. Selei Betsy e Juno, conforme o recado que a senhora deixou.

Sunshine latiu e disparou pelo caminho. Seguindo-o com os olhos, Magda viu tio William. Muito contente, Magda virou-se para Jambo.

timo! Traga os cavalos.

Sim, senhora.

Magda precisou conter-se muito para no rir do antiquado traje de montaria de tio William: botas que chegavam aos joelhos, calas de montaria xadrez, fraque, camisa de peito duro, gravata listrada e, encimando tudo isso, uma cartola. Jambo voltou trazendo os cavalos. Tio William, com ares de conhecedor, observou-os atentamente.

Hum! Os Winston ainda sabem escolher cavalos aprovou ele.

Fico satisfeita em ouvir isso.

Jambo, que via apenas Magda, perguntou:

A senhora est falando comigo? Magda sorriu.

No. Estava agradecendo os elogios de tio William.

Qu? Jambo arregalou os olhos.

Mas Magda no percebeu o espanto do empregado e ordenou:

Jambo, ajude tio William a montar Juno.

Os olhos do cavalario pareciam querer saltar das rbitas.

Ajudar quem?

Ajudar tio William! repetiu Magda, um pouco impaciente.

Jambo olhou em torno, procura do tal tio, mas no o viu em parte alguma.

Agora no mais preciso disse Magda. Tio William montou sozinho.

Com graa e firmeza, Magda montou seu animal e virou-se mais uma vez para Jambo, que continuava boquiaberto.

Jambo, corra at a casa e diga a Magnlia que tio William tomar caf comigo.

Ainda mais espantado, Jambo fitou Magda afastar-se montada em Betsy. Juno seguia ao lado, aparentemente sem ningum na sela.

O negro correu mesmo para a casa e, ofegante, entrou na cozinha. Magnlia estava preparando torradas e ovos.

No me diga que est acordando agora, Jambo.

A patroa... disse... que tio William... vem tomar caf com ela.

Tio William?!

Voc... conhece... o homem?

Claro que conheo. um dos parentes do patro. Morreu faz tempo. Est num quadro l no hall.

Jambo sacudiu a cabea, triste.

Ele no est mais no quadro...

Ento onde est?

Jambo abriu os braos, num gesto de desalento.

Foi passear a cavalo com a patroa. Magnlia retrucou, desdenhosa:

Ora essa! Quem j viu um quadro montar a cavalo? Ainda mais o tio William...

A patroa pediu que eu ajudasse tio William a subir no cavalo, mas no vi ningum... Ento, ela disse: No precisa mais, ele j montou. Depois os dois saram juntos.

Magnlia fez cara de choro e levou um guardanapo aos olhos.

Tadinha! O patro a abandona, e agora ela fica vendo coisas...

Jambo tremia dos ps cabea.

Eu vou embora daqui disse ele. Sou um homem doente e no estou em condies de selar cavalos para almas do outro mundo!

Escute uma coisa, seu vagabundo ralhou a cozinheira, mudando rapidamente de expresso , ningum vai embora, entendeu? Agora, saia da minha frente antes que eu perca a pacincia e rache sua cabea com esse pau de macarro!5- TUDO POR CAUSA DE UM PRATO DE UVAS

Quando voltaram do passeio, Magda e tio William foram para o terrao. Magda estava linda em suas calas de montaria brancas e seu suter verde-claro, com os longos cabelos escuros presos num rabo-de-cavalo.

Sempre adorei tomar caf no terrao disse Tio William, muito bem-disposto.

Os dois caminharam para as cadeiras de ferro laqueado.

Sente-se aqui, tio William! sugeriu Magda.

Como voc achar melhor, minha filha.

Sin Low, o copeiro chins, apareceu porta trazendo uma enorme bandeja com caf, leite, torradas, ovos e uma pra partida ao meio.

Bom dia, madame.

Bom dia, Sin Low. Enquanto o chins arrumava a bandeja sua frente, Magda acrescentou: Tio William talvez prefira um suco de laranja.

Sin Low, que no via pessoa alguma alm de Magda, ficou meio desconcertado.

Est falando comigo, patroa?

Antes que Magda pudesse responder, tio William interveio, timidamente:

Seria possvel um prato de uvas?

Uvas? V ver se encontra uvas, Sin Low.

Muito bem, patroa.

Na cozinha, Sin Low contou tudo a Magnlia. No estava alarmado com o comportamento da patroa, mas Magnlia ficou preocupadssima.

Continue! pediu a cozinheira.

Ento a patroa olhou para a cadeira e perguntou se ela queria suco de laranja. A cadeira disse que no, preferia uvas.

Uvas?!

. Que tem isso?

Mas a patroa nunca gostou de uvas!

No so para ela, so para a cadeira.

Deixe. Eu mesma vou l resolver isso.

No terrao, Magda sorriu ao notar que um pedao do jornal havia sido cortado. Ia explicar a tio William que o recorte devia ter alguma ligao com John, mas Magnlia apareceu.

Que , Magnlia?

A patroa nunca gostou de uvas, no ? perguntou angustiada, quase em prantos.

, nunca gostei. Mas no so para mim, so para tio William.

Ao ouvir esse nome, Magnlia desatou a chorar.

Mas que vergonha, Magnlia! Fazer um escndalo por causa de umas uvinhas!... Agora pare com essa choradeira e me d o pedao de jornal que voc cortou.

Era s uma receita de bolo. A senhora no vai se interessar.

No faz mal. Eu quero essa receita insistiu Magda, estendendo a mo.

Magnlia assoou o nariz, meteu a mo no bolso da saia e passou o recorte de jornal patroa. Magda leu-o em voz alta.

Agora que o casal John Winston resolveu desquitar-se, Carmen de Luna abandonou o teatro, deixando sem sua estrela principal a pea de Slvio Neto. Diga-me uma coisa, tio William. Havia ansiedade na voz da moa. Quando vai comear a trabalhar em sua frmula?

Logo depois do caf, querida.

Estou to ansiosa que mal posso esperar.

Magda, porm, teve de ser paciente. Tio William no comia havia quarenta anos e estava com enorme apetite. Magda achara que ele comera muito, mas, quando se levantaram, Sin Low viu que um dos pratos continuava intocado.

Tio e sobrinha passaram pelo hall.

Deixe-me pensar um pouco disse ele. Esqueci onde fica a entrada do poro.

debaixo da escada.

Ah! mesmo.

Magda seguiu-o at a porta. Ele abriu-a e olhou o lgubre interior.

Que escurido!

Quer uma vela, tio?

tima idia.

Magda foi rapidamente copa e voltou com duas velas e fsforos. O velhinho as acendeu, dizendo:

Eu vou na frente.

Magda j ia segui-lo, mas Magnlia apareceu no hall.

Vai descer? perguntou a preta, alarmada.

Vou acompanhar tio William.

No faa isso! muito escuro l embaixo. Magda irritou-se.

Chega dessas preocupaes! Eu tenho uma vela. A empregada desesperou-se.

Por favor suplicou, ajoelhando-se , no desa com tio William!

Magnlia, ponha-se de p! esbravejou Magda. A cozinheira levantou-se.

Que vai fazer no poro?

Tio William precisa de mim.

Para qu?

Vou ajud-lo a revolucionar o mundo cientfico sussurrou Magda, em tom confidencial.

Qu?! espantou-se Magnlia. Mas a patroa j descera. Magnlia tomou coragem, foi ao telefone e, com dedos ainda trmulos, discou um nmero. Quando atenderam, ela falou aos gritos:

o Dr. Lus? Magnlia, doutor. Pelo amor de Deus, venha antes que seja tarde! No estou doente, no. Quem precisa do senhor a patroa! Qu? Onde est ela? Est no poro com tio William. Quem tio William? No ningum, doutor. um quadro l do hall. Morreu faz muito tempo. Como? Isso no verdade, doutor. Todo mundo sabe que eu no bebo! Como que sei que h um tio William? Sei porque ele andou a cavalo com a patroa e depois no quis comer minhas uvas.6- SERIA A MANSO A CULPADA?Quando o Dr. Lus Brito chegou manso Winston, foi recebido pela trmula e chorosa Magnlia.

Muito bem, que est acontecendo? perguntou ele.

O Dr. Lus parecia mais um mdico de subrbio do que um clnico procurado pela alta sociedade. Homem de meia-idade, suas maneiras calmas, sem afetao, agiam como verdadeiro sedativo sobre os doentes. Alto e um pouco encurvado, tinha olhos to penetrantes que pareciam descobrir os mais ntimos pensamentos de seus clientes.

Nos ltimos meses, passara muitas noites com a famlia Winston e estava cada vez mais preocupado com Magda. Notava que a velha manso exercia sobre a moa uma influncia perniciosa. Como amigo, tinha vontade de propor que o casal se mudasse para local mais alegre, mas ainda no se sentia to ntimo a ponto de fazer uma sugesto desse tipo.

Doutor disse Magnlia , o senhor sabe que eu no gosto de me meter na vida dos outros. Mas a situao ficou muito sria. O senhor precisa ajudar dona Magda!

Onde est ela? O mdico no deixou transparecer sua preocupao.

Ela foi ao poro com tio William.

Esse tio morreu h quanto tempo?

Mais de quarenta anos. Magnlia apontou o quadro no hall. aquele. Morreu l na Inglaterra.

O mdico examinou o quadro e no conteve um sorriso.

Desde quando ela comeou a imaginar a presena do falecido?

Desde que o patro disse que gostava de outra. No que o patro saiu, tio William entrou...

John a deixou? No acredito!

verdade. Est escrito aqui Magnlia entregou-lhe o recorte do jornal.

Incrvel! mais grave do que eu imaginei. Diga a Magda que desejo falar com ela.

Sim, senhor. Vou cham-la.

Mas no conte nada, ouviu? Quero que ela pense que estou aqui por acaso. Outra coisa: vamos fingir que tambm estamos vendo tio William.

preciso, doutor?

, sim. No devemos contrari-la.

Est bem. Vou preparar todas as uvas que o tio pedir, mesmo que no coma nada...

Muito bem, Magnlia.

Nesse momento, a porta do poro abriu-se e Magda apareceu. O Dr. Lus logo viu o quanto ela estava alegre.

Lus! Que bom v-lo!

Como vai, Magda? Vim visitar um paciente aqui perto e passei para perguntar como vo as coisas. O mdico olhou-a da cabea aos ps. Pelo que vejo, voc est com tima aparncia.

No melhor assim?

Sem dvida. Andou tomando aquelas vitaminas que receitei?

No. Quer mesmo saber quem o responsvel por minha aparncia?

Claro.

No vai ficar com cimes?

Bem, talvez um pouquinho. Mas j estou bem crescido e no vou ficar emburrado. Quem ?

Tio William.

Tio William?

o tio de John explicou ela. O homem mais inteligente do mundo.

Gostaria de conhec-lo. O amigo fingia seriedade.

Em outra ocasio. Ele agora est ocupadssimo com sua frmula. Por falar nisso, Magnlia, traga-me um clice graduado.

Um clice graduado? perguntou a cozinheira, com voz sumida.

, daqueles marcados com nmeros. Tio William vai precisar disso.

Sim, senhora.

Vendo Magnlia afastar-se triste e abatida, Magda meneou a cabea e virou-se para o mdico:

ela quem precisa de vitaminas, Lus.

Ansioso por retornar ao assunto tio William, o mdico perguntou:

Que frmula essa? Parece muito interessante. Os olhos de Magda brilharam de contentamento.

sim! No conheo todos os detalhes, mas tio William garante que ser uma verdadeira revoluo.

Mesmo?

Sem dvida! E, de quebra, far John mudar de idia.

Mudar de idia? Como assim?

John me deixou por causa de outra mulher.

Bem... o mdico esforava-se por parecer natural. Se tio William fizer John voltar atrs, ser timo.

Isso mesmo! concordou Magda. Magnlia voltou com o clice graduado.

Desculpe-me, Lus disse Magda, recebendo o clice , preciso levar isso a tio William. Ele me espera no poro.

Tudo bem. Eu estou s de passagem.

Ento estou desculpada?

Claro.

sempre to bom v-lo, Lus. Aparea quando quiser. Vamos jantar juntos uma noite dessas. Assim voc ter a oportunidade de conhecer tio William.

Ser um prazer.

Magda desceu a escada do poro. Magnlia olhou-a, atenta.

Que vai fazer, doutor? perguntou a empregada.

John precisa voltar. Seno...

Seno?

...nada poderei fazer.

E no h o que se possa fazer por agora?

J tenho uma idia.

J? Qual?

Vou cidade procurar John.

Tomara que tudo d certo!... suspirou Magnlia, mais animada.

O mdico saiu da manso Winston e dirigiu at o Clube de Tnis, onde John costumava ficar. Mas, chegando ao clube, soube que John no estava.

Resolveu esperar. Quase com certeza, John no iria demorar. O Dr. Lus foi sala de estar e acomodou-se numa das poltronas de couro. Angustiado, ficou imaginando o que estaria acontecendo naquele velho casaro cheio de sombras.

Enquanto o doutor aguardava John, tio William saa apressado do poro, gritando:

Completei minha frmula! Magda! Onde est voc?

Na mo direita, o velhinho agitava uma pequena ampola cheia de um lquido vermelho brilhante.

Magda estava no andar de cima, escovando os cabelos. Ao ouvir o chamado, correu ao patamar da escada.

Estou aqui em cima, tio William. Ele comeou a subir a escada.

Est terminado o trabalho, querida! A frmula est completa!

To depressa?!

Por que esse espanto?

O senhor havia dito que a coisa era fantstica. Pensei que fosse demorar mais tempo.

Voc se esquece de que passei quarenta anos planejando todos os detalhes? Tio William baixou a voz e sussurrou no ouvido de Magda: E, agora que est tudo pronto, quer saber qual o segredo?

Claro!

Ento venha c. Vamos a meu quarto. L, ningum nos ouvir.

Horas depois, tio William abriu a porta de seu quarto no sto, e Magda saiu muito contente.

Vou trocar de roupa disse ela. Daqui a pouco nos encontraremos na garagem.

Ao descer a escada, quase trombou com Magnlia, que subia a passos lentos.

Que gritaria, patroa! Aconteceu alguma coisa? Magda, jubilante, agarrou Magnlia pelo brao.

Tio William completou a frmula! Uma maravilha!

A tal frmula que vai mudar o mundo?

Essa mesmo. Ele vai me deixar experiment-la. Tio William um gnio, Magnlia. Um gnio! Ah, se voc soubesse!...

Magda seguiu adiante.

Aonde vai, patroa?

Vamos cidade!

O tio William tambm?

Claro! Temos de resolver assuntos importantes.

Mas a senhora no vai almoar? A comida j est pronta.

Almoar? Ora, Magnlia, que idia!

Nisto, tio William apareceu no alto da escada. Seu traje era impecvel, embora um tanto fora de moda: botinas pretas, polainas brancas, calas risca-de-giz, fraque, colete, camisa de colarinho duro, gravata listrada larga e chapu-coco. Comeou a descer apoiando-se numa bengala, mas parou de sbito, olhando para o corrimo com um ar de criana travessa. Sem se importar com Magnlia, o velhinho jogou a perna por sobre o corrimo e escorregou com a rapidez de um raio. Magnlia sentiu o deslocamento de ar que se produz quando algo passa velozmente a nosso lado. Os cabelos da cozinheira se arrepiaram: que teria sido aquilo?

7- QUANDO UM NOME PRPRIO IMPRPRIO

A separao do casal Winston era o assunto de todas as rodas. A notcia, publicada pelo cronista Flix S, cara como uma bomba, e o mais indignado era Slvio Neto, produtor da pea em que Carmen de Luna deveria atuar.

Slvio era um quarento baixo, gordo e nervoso. Na boca, trazia sempre um enorme charuto apagado. Sabia farejar um talento, e suas descobertas muitas vezes chegavam ao estrelato. No momento, considerava Carmen sua maior atriz.

Encontrara-a anos antes, num pequeno teatro de subrbio, quando ela ainda usava seu nome verdadeiro, Filomena Stoppa. Seus cabelos de fogo, seus olhos verdes e seu charme logo deslumbraram Slvio.

Mas ela tinha um temperamento difcil, imprevisvel. No incio, essa sua faceta no se mostrara. Durante os ensaios da pea, comportara-se com disciplina, cooperando com todos e contribuindo para o sucesso geral.

Depois da primeira noite de espetculo, entretanto, seu jeito de ser foi se revelando cada vez mais. Colrica, egocntrica, autoritria, fazia exigncias mil e conseguira indispor-se com todos os colegas. Slvio, considerando os valores positivos da nova estrela, procurou conviver com a situao.

Carmen estava sempre representando um papel, no palco e, principalmente, fora dele. A parte mais difcil comeara quando conhecera John Winston. Diante deste, Carmen tomava atitudes gentis e ponderadas, que a faziam parecer bastante equilibrada. Afinal, John Winston representava tudo o que ela sempre almejara: dinheiro e uma posio na alta-roda. O fato de ser casado era um detalhe sem muita importncia. Para conquistar o milionrio, ela colocara em cena todo o seu poder de seduo.

Slvio Neto sabia que a verdadeira Filomena Stoppa s vinha tona quando a atriz ficava furiosa.

Bom dia, Slvio! disse Carmen, amvel.

O produtor sentiu o sangue ferver nas veias. Se ao menos ela deixasse aquele fingimento de lado...

Desculpe-me se o fiz esperar continuou ela, aproximando-se e fazendo biquinho. Mas voc veio to fora de hora.

Vamos deixar o charminho de lado e entrar logo no assunto.

Nossa, Slvio! Que palavras rspidas!

Talvez eu seja mesmo rspido, mas ao menos no tenho duas caras.

Carmen apertou os olhos.

Que voc quer dizer?

S isto respondeu ele, abrindo o jornal diante dela. Agentei muita coisa, mas agora j demais!

No sei do que est falando.

Quem mandou voc dar ao jornal uma notcia dessas?

Mas verdade, Slvio. John vai desquitar-se. Disse-me isso ontem noite.

Ontem noite? Voc anda depressa!

No tive a menor interferncia no caso.

Claro que no. Voc uma pombinha inocente, seria incapaz de uma coisa dessas.

Carmen afastou-se bruscamente e fixou Slvio com olhos faiscantes:

Sabia que isso no de sua conta?

Est enganada, meu bem. de minha conta, sim, senhora. Voc tem um contrato comigo!

Escute aqui, Slvio Neto! Tenho o direito de viver minha vida como bem quiser. No vai ser um pedao de papel o que me far mudar de idia.

Com raiva, Slvio mordeu o charuto.

verdade. No posso for-la a trabalhar. Mas vou process-la por rompimento de contrato.

E da? No ligo a mnima. Logo serei a Sra. Winston e no vou ter de me preocupar com essas picuinhas.

Isso impossvel!

Pois voc no perde por esperar! retrucou ela, gritando. Assim que o desquite estiver arranjado, John e eu vamos nos casar no Uruguai.

Mas e sua carreira?

A carreira que v para o inferno! Vou ser da alta!

Ora, Filomena, deixe de palhaada e volte ao teatro!

Filomena! Ela estava possessa. Slvio abaixou-se a tempo de no ser atingido por um vaso, que se espatifou contra a parede. Quem lhe deu o direito de me chamar assim?!

Voc e sempre ser Filomena Stoppa!

o que voc pensa, idiota!

Nunca ser uma gr-fina.

Ora, seu...

Querida, conheo voc muito bem e sei o que estou dizendo.

Caia fora, Slvio!

Fique sabendo que s sairei de sua vida quando essa farsa terminar retrucou o empresrio, com firmeza. Primeiro, esse tal Winston precisa saber do seu passado... das suas mentiras...

No me venha com ameaas. Sem mim, voc no nada. Alis, benzinho, acho que voc ter de cancelar sua pea.

Por qu?

Voc sabe, esse texto foi escrito exclusivamente para mim.

verdade... concordou ele, encaminhando-se para a porta. Mas que posso fazer? Se voc no quiser continuar, vou procurar Lilian Dias.

Lilian Dias?! Aquela loura oxigenada?! Voc no se atreveria!

Slvio riu.

Passe bem, Filomena! disse ele, desviando-se de uma cigarreira de nix atirada em sua direo.

8- UM GUARDA ATNITO

Magda nunca deixava de cumprimentar o guarda Raul, o simptico policial que costumava se postar na esquina da Doze de Outubro com a Clemente lvares. Ela aguardou que o bonde de Vila Anastcio se adiantasse e freou.

Boa tarde, Raul!

No banco de trs, Sunshine latiu para o guarda.

Boa tarde, dona Magda! Eu... eu... Desculpe, mas... verdade o que est escrito no jornal?

Aquela notcia idiota? Magda riu. Claro que no!

Ainda bem!

Raul, voc conhece tio William? perguntou ela, apontando para o lado. Respeitoso, tio William tirou o chapu para o guarda.

Raul arregalou os olhos, mas no viu coisa alguma no banco do carro.

Bem, j vamos indo, Raul. Temos muita coisa para fazer hoje. At logo.

Magda seguiu caminho. Vendo o carro ir-se embora, Raul tirou o quepe e coou a cabea, perplexo.

9- O QUE MAGDA IR PROPOR A CARMEN DE LUNA?

John voltou ao clube e soube que o Dr. Lus o esperava.

Ol, Lus! exclamou ele, adiantando-se para o mdico. Que bom v-lo! Alguma novidade?

Sim, John. Preciso muito conversar com voc. John percebeu que o amigo j sabia de sua deciso.

Ser que vou ouvir um sermo?

No vim para isso. O mdico estava muito srio.

Que , ento?

Acho que voc tem de voltar para casa agora mesmo.

Por qu?

Tm ocorrido coisas estranhas. Sua deciso transtornou Magda por completo. Ela j no a mesma.

John esforou-se por ocultar sua preocupao.

Ora, em pouco tempo ela estar boa.

Talvez, John. Mas tambm pode ser algo muito mais grave e permanente.

O milionrio j no escondia sua curiosidade.

Afinal, o que est acontecendo?

Magda est vendo coisas. Estive na manso h duas horas, e sua mulher me garantiu que um parente j falecido vai fazer que voc volte para casa.

John ficou bem espantado.

Falecido? Quem?

Um tal tio William.

O milionrio mergulhou o rosto entre as mos e gemeu:

Ser possvel?

Passados alguns segundos, recomps-se:

Ela sempre detestou aquela casa, Lus. Fui eu quem a obrigou a morar l. Mas vou tomar providncias para que ela se mude hoje mesmo.

Eu no faria isso. Pode ser perigoso.

Perigoso?

Sim. Veja bem, Magda associa tio William manso. Se a tirarmos de l, ela pode entrar em parafuso. O melhor esperar que essa fase passe. Enquanto isso, temos de fingir que tambm vemos tio William, como se ele estivesse to vivo quanto ns. Acho melhor no discutir com Magda nem ridicularizar suas fantasias. Uma atitude hostil poderia ter resultados fatais.

Fatais? John estava boquiaberto.

Isso mesmo. Ela pode obstinar-se e manter indefinidamente viva a imagem desse fantasma. No podemos correr esse risco.

Bem, se assim... aquiesceu John, abatido.

O Dr. Lus ficou com muita pena do amigo e procurou anim-lo:

Ora, no sejamos pessimistas! Quem sabe?...

John estava num dilema. Seu lugar agora era junto de Magda, mas qual seria a reao de Carmen? Ainda na vspera, prometera a Carmen no retornar manso Winston enquanto a atriz no fosse sua esposa.

John no queria mentir. Por isso, antes de voltar para casa passaria pelo elegante edifcio em que morava Carmen, o Chteau dArgile, e lhe explicaria a situao. Ao entrar em seu carro, porm, John estava longe de imaginar que naquele mesmo instante Magda estacionava em frente ao Chteau.

Magda desligou o motor e, franzindo as sobrancelhas, perguntou:

Tio William, e se a tal Carmen se recusar a provar a frmula?

Ela no pode recusar. Voc tem de convenc-la, custe o que custar.

E se me fizer uma poro de perguntas? Por exemplo, suponhamos que ela queira saber quanto tempo duraro os efeitos da frmula.

Nesse caso, acho que teremos de dizer umas mentirinhas.

Como assim? Magda ficou ressabiada.

Pense bem, minha filha. Essa atriz por acaso hesitou em tomar seu marido?

Magda respondeu em voz quase inaudvel:

Acho que no.

Pois ento! Acha que devemos ter remorsos de engan-la? A moa deixou-se convencer:

, o senhor est certo.

Tudo ser muito fcil, voc vai ver. Agora, voltando quela sua pergunta, acho que voc pode dizer a Carmen que os efeitos da frmula duraro apenas uma semana.

Est bem, mas quanto tempo vo durar de fato?

O quanto voc quiser.

No estou entendendo.

Tenho aqui um antdoto respondeu tio William, tirando do bolso do colete um frasquinho cheio de um lquido.verde-esmeralda. Enquanto voc estiver com essa ampola, ter o controle da situao.

O senhor um gnio, tio William!

Obrigado, Magda. E agora tenho outra sugesto.

Qual?

To logo a frmula produza os primeiros efeitos, quero que voc procure o jornalista que escreveu a tal notcia.

Flix S?

Ele mesmo! Quanto mais cedo for publicada a retificao, tanto melhor para todos.

Mas e se Carmen de Luna estiver mesmo querendo abandonar o teatro?

Fique certa de que ela no tem essa inteno. Agora, v em frente. Boa sorte!

Magda desceu do automvel, dando um beijo estalado no rosto do velhinho. Depois, acenou para Sunshine, que balanava a cauda e latia estridente.

10- NUNCA PROVOQUE ALGUM DE NOME FILOMENA STOPPA

Magda entrou no sofisticado Chteau dArgile. O porteiro, que a observara falar sozinha no carro, olhou-a curioso. Magda foi at ele e perguntou pelo apartamento de Carmen. O homem falou com a empregada da atriz pelo interfone e pediu a Magda que subisse.

Cheia de entusiasmo, ela ficou cantando baixinho at sair do elevador. Tocou a campainha, e a empregada veio atender.

Boa tarde. Carmen de Luna est?

Est. Pode entrar, Sra. Winston.

Magda no se surpreendeu ao ser tratada pelo nome. Sua foto saa constantemente nas colunas sociais.

Enquanto esperava, Magda sentou-se numa poltrona e ficou examinando a decorao da sala de estar, que demonstrava um gosto meio duvidoso.

Carmen estava sentada diante de uma luxuosa penteadeira, repleta de frascos de perfumes caros. Embora j fosse o comeo da tarde, usava uma camisola de cetim.

Sofia, a empregada, entrou e anunciou a visitante.

Essa mulher est aqui?! E que tal? perguntou Carmen, baixinho.

Parece de boa paz.

Boa paz?! Eu, hem!... preciso ter muita coragem para vir at aqui.

Tambm acho. Que ser que ela quer?

Seja o que for, vou me sair bem.

Cheia de si, Carmen molhou a ponta das orelhas com seu perfume favorito e levantou-se.

Tome cuidado, patroa disse-lhe Sofia. No v pr o carro na frente dos bois.

Eu sei o que fao! retrucou Carmen, petulante. Mas pensou melhor e perguntou: Que voc quer dizer com isso?

Bem... a senhora sabe, ela pode criar caso no desquite.

verdade... No pensei nisso.

Talvez ela tenha vindo apenas para conhecer a outra.

Olhe como fala, Sofia!... Mas voc pode ter razo. melhor no me precipitar concordou Carmen, pensativa.

Na porta que dava para a sala de estar, Carmen parou um momento, em nervosa expectativa. Depois, respirou fundo e apareceu diante de Magda, afetando um sorriso.

Madame Winston!

Magda levantou-se, admirada. Por alguns segundos, as duas mulheres se mediram em silncio. O contraste entre ruiva e morena era ainda mais acentuado pela diferena de trajes, pois Magda usava um discreto conjunto de l. Ento, Magda tomou a iniciativa de falar.

Como a senhorita bonita! disse, sincera. Carmen, pega de surpresa, esqueceu-se da afetao e voltou a ser a verdadeira Filomena Stoppa.

A senhora tambm no feia! respondeu. Depois, retomando sua atitude controlada, indicou uma poltrona. Sente-se, por favor.

Obrigada agradeceu Magda. Vendo Carmen curvar-se e apanhar uma caixa de cigarros, no pde deixar de notar o belo busto da atriz. Agora entendo por que John est to fascinado.

Bem... retrucou Carmen, passando a mo nos cabelos, vaidosa. Gosto de sua franqueza. Aceita um cigarro? Estendeu para Magda a mesma caixa de nix que atirara contra Slvio Neto.

Obrigada, no fumo. Acho que a senhorita deve estar querendo saber a razo de minha visita.

Naturalmente.

sobre sua deciso de abandonar a carreira teatral.

Minha carreira? Carmen lanou um olhar desconfiado. Por que esse interesse?

Ora, meu futuro depende disso.

No estou compreendendo...

Muito simples. Espero que no fique zangada com o que vou dizer.

E eu espero que a senhora compreenda que estou aqui, conversando, apenas por uma questo de cortesia.

Sim, eu sei disso.

Nesse caso, no acha que seria melhor evitar certos assuntos?

Talvez, mas creio que preciso encarar os fatos. Ento, posso ser sincera?

Carmen no estava entendendo bem, mas preferiu concordar.

Claro que pode, Sra. Winston.

De agora em diante, sua vida ser como a minha, no? comeou Magda.

H algum mal nisso?

No, mas voc acha que vale a pena sacrificar a carreira? Carmen respondeu com voz um tanto rspida.

Acho que sim. Nasci num meio humilde e agora poderei participar da alta sociedade.

Mas no acha que a vida da alta sociedade, como diz, pode vir a ser bastante montona?

Aonde quer chegar?

Seu trabalho no teatro tem sido to cheio de aventuras e emoes. Para que trocar isso por um casamento?

Diga-me uma coisa: se a vida na alta assim to desagradvel, por que a senhora no a abandona?

Magda sorriu.

Comigo diferente. No tenho vocao alguma para a arte dramtica...

problema seu. Eu nada tenho que ver com isso.

Exato Magda baixou a voz, num tom quase sigiloso. Se quer saber, invejo seu talento e seu futuro de artista. Levo uma vida rotineira, e minha nica motivao o amor que tenho por John.

Carmen ficou ofendida.

Vamos acabar com isso. Chega de confidencias disse, pondo-se de p num timo.

Srta. Luna, no estou procurando fazer que simpatize comigo. S quero que veja o outro lado da situao.

O seu, claro ironizou a outra. Magda continuou imperturbvel.

No acha que est se arriscando muito ao desistir da nova pea?

Isso no de sua conta, Sra. Winston. Carmen no estava mesmo para brincadeiras.

Muita coisa pode acontecer at John conseguir o desquite. A senhorita talvez mude de idia quanto ao teatro.

Que quer dizer?

Bem... algum ter de fazer seu papel na nova pea e, com isso, pode surgir uma nova estrela.

Magda percebeu que estava pondo o dedo na ferida. Carmen cerrou os punhos e mordeu os lbios.

No me importo. H apenas uma Carmen de Luna, no se esquea!

Mas o pblico pode muito bem esquecer-se.

Ao ouvir aquilo, Carmen sentiu que chegava a seu limite.

Ento a senhora acha que pode mudar minha atitude? Fique sabendo que...

Magda logo a interrompeu.

Pelo contrrio. Desejo apenas adverti-la do perigo que essas mudanas sero para a senhorita. E, depois de pensar muito, conclu que essencial conhecermos melhor a vida uma da outra. Quero que compreenda bem sua situao.

Compreender minha situao?

Isso mesmo. Oua-me, tenho um plano que pode ajudar o futuro de ns duas.

Carmen encarou-a com desdm.

Olhe aqui, Magda Winston. J ouvi demais suas maluquices. Agora, queira desculpar-me...

A rispidez de Carmen fez Magda levantar-se tambm e dizer:

Diante disso, s me resta uma opo...

Qual? perguntou a outra, com altivez.

Vou meditar bastante e decidir se devo ou no concordar com o desquite.

Sem dizer mais palavra, Magda pegou a bolsa e caminhou para a porta. Carmen, vendo a difcil situao que criara para si mesma, ficou desorientada.

Sra. Winston! Espere! Magda virou-se. Sim?

Perdoe minha falta de tato disse a atriz, com um sorriso bem falso.

No necessrio pedir desculpas. Magda estava muito tranqila, certa de seu domnio sobre a situao.

Bem... no quer explicar qual seu plano? Magda sorriu, satisfeita.

Quer ouvir mesmo?

Quero respondeu Carmen, engolindo o orgulho.

Muito bem.

Magda voltou para a poltrona.

Estou precisando tomar alguma coisa observou Carmen. Gostaria de um caf?

Sim, obrigada.

Vou pedir a Sofia que prepare um.

11- FRIA E FLOR DE LTUSNesse momento, John Winston chegou portaria do edifcio e aproximou-se do porteiro. Passara diante do carro de Magda, mas no o reconhecera.

Boa tarde. A Srta. Luna est?

O porteiro tornou a chamar o apartamento de Carmen. Da extenso na cozinha, Sofia atendeu. Carmen acabava de entrar para pedir o caf e ficou escuta.

A empregada virou-se para Carmen:

Xi, patroa! O Sr. Winston est no saguo e quer subir. Carmen fez uma careta, impaciente.

Que ele vem fazer aqui a esta hora?

No sei. Vou dizer que a senhora est descansando. No, espere! Carmen concentrou-se em busca de uma soluo. H algo de estranho em tudo isso. Diga ao Delmo que o Sr. Winston pode subir.

E a mulher dele?

Eu dou um jeito. Carmen voltou para a sala.

Sra. Winston disse, numa voz despreocupada , lamento muito, mas esqueci que havia marcado uma entrevista para agora. O reprter j est subindo. A senhora poderia esperar alguns minutos em meu quarto?

Pois no Magda levantou-se prontamente, sem demonstrar nenhuma contrariedade.

Carmen completou:

Logo que o reprter sair, quero ouvir seu plano. Estou realmente curiosa.

No momento em que Carmen fechava a porta do quarto, a campainha tocou.

Sofia, mande o Sr. Winston entrar e diga-lhe que estou esperando no terrao sussurrou Carmen, fazendo um gesto em direo do quarto. Ela deve estar de orelha na porta.

Quando John chegou ao terrao, sofreu uma verdadeira ofensiva carinhosa de Carmen.

Que bom v-lo, amor!

Carmen aproximou-se para dar-lhe um beijo. John, alterado como estava, deu um passo atrs, instintivamente. O forte aroma do perfume Ptalas de Ltus confundiu-lhe os sentidos. Carmen sorriu.

Est sentindo alguma coisa, querido?

N-no, nada!

Sente-se, ento convidou, enquanto se estendia numa espreguiadeira. Sabe, tive uma discusso terrvel com Slvio Neto, e tudo por sua causa.

Por minha causa?

. Slvio acha que voc no vale meu grande sacrifcio.

Sacrifcio?

Carmen percebeu que John no lera a nota de Flix S.

Querido! Tenho boas notcias para voc.

Boas notcias?

Isso mesmo. Eu, Carmen de Luna, abandonei o teatro!

Abandonou o teatro! John ficou perplexo, sem saber o que dizer.

A seguir, ela fez uma pergunta que o deixou ainda mais perturbado.

Quando vai obrigar sua mulher a pedir o desquite?

Obrigar?

Precisamos nos prevenir, querido. Ela pode adiar o desquite indefinidamente insistiu Carmen, sabendo aonde queria chegar.

verdade.

Carmen ofendeu-se com a indiferena de John.

Estou deixando o teatro, voc compreende? John alisou o bigodinho e arriscou uma observao.

Talvez fosse aconselhvel no sair assim to cedo. Carmen precisou de todo o seu autocontrole para no explodir.

Que voc quer dizer?

Ontem noite falei em desquite com Magda.

Isso voc j me contou. Alis, por que no falou com Magda h mais tempo? Ela tem de concordar com isso agora mesmo.

John ficou chocado com a atitude autoritria de Carmen, mas no se alterou.

Acho que Magda no est em condies de concordar com coisa alguma.

No? retrucou Carmen, levantando os olhos, ameaadora. E por qu?

Ela est doente.

John acabara de esgotar os ltimos resqucios de boa educao de Carmen.

Doente?! esbravejou a atriz.

.

Que raio de doena?

John preferiu no entrar em pormenores.

Ela est um pouco... transtornada.

Ora essa! Carmen cerrou os punhos e ps-se de p. Foi para isso que voc veio aqui?

John tambm se levantou.

Foi. Queria avis-la de que vou voltar manso para ver como esto as coisas.

Carmen mordeu os lbios.

Muito atencioso de sua parte, John. Mas por que no me diz logo a verdade? perguntou ela, aumentando ainda mais a voz.

Esta a verdade respondeu John, sincero.

S isso?

Um pouco espantado, John fitou Carmen. Era a primeira vez que a via falar naquele tom e com aquela expresso de clera.

Voc no pode me iludir, querido! Quer voltar para junto de sua mulherzinha! Vamos, confesse!

Ele respondeu em voz baixa.

S acho que devo...

Deve o qu? gritou Carmen. Voc tem a ousadia de vir me falar em dever?

Acho que voc pode entender.

Ora, quer que eu acredite em suas mentiras?!

Mas no estou mentindo, Carmen!

Ah, ? E quem lhe disse que ela est doente?

Um bom amigo nosso, que tambm mdico da famlia e esteve hoje no clube.

Carmen levou alguns segundos para coordenar as idias: Talvez John esteja dizendo a verdade. Na certa o mdico est bancando o conciliador, querendo fazer John mudar de planos. Com esse pensamento, a atriz resolveu adotar outra ttica. De sbito, seu tom voltou da raiva meiguice.

Querido, perdoe-me se no acreditei no que disse. Mas voc deve entender que sou mulher e... bom, fiquei enciumada. Voc me desculpa, no?

O milionrio no respondeu. Carmen abraou-o, mas John notou a falta de brilho em seus olhos, e aquela brusca mudana de atitude o irritou.

Amor, e se seu amigo mdico estiver mentindo?

O Lus no mente.

Mas vamos supor que esteja mentindo. Voc vai se demorar naquela casa?

John queria pr fim conversa.

Claro que no. Volto assim que puder.

Como fui boba em duvidar de voc... Me perdoa? John desvencilhou-se dos macios braos de Carmen.

Acho melhor eu ir andando disse ele, deixando o terrao e atravessando o salo a passos largos. Carmen alcanou-o porta do apartamento, agarrando-se a John outra vez.

Quero que pense sempre em mim.

O milionrio respondeu com certa frieza:

Est bem. Ela insistiu: Voc sabe como eu gosto de voc!...

John, porm, estava impaciente e saiu. Quando entrou no elevador, ouviu-se um forte barulho dentro do apartamento. Era Carmen, que atirara um elefante de loua contra a porta.

12- A SOLUO NUMA AMPOLAQuando queria, Carmen sabia controlar suas emoes. Com voz serena, abriu a porta do quarto e disse:

Pode sair, Sra. Winston.

Obrigada. Ouvi um rudo estranho. Aconteceu alguma coisa?

Nada de mais. Aquele reprter estabanado esbarrou num bibel e o quebrou. Mas vamos falar de seu plano.

Ento ainda est interessada? perguntou Magda, sorrindo.

Estou, mas primeiro desejo fazer uma pergunta.

Sim?

Quando esteve com John pela ltima vez?

Ontem noite.

s o que eu desejava saber...

Antes de mais nada, quero deixar bem claro comeou Magda que no vim pedir que John volte para casa.

claro que ele vai voltar para aquela casa afirmou Carmen, maldosa. Mas, quando isso acontecer, eu serei sua esposa.

Magda no se perturbou e seguiu em frente:

O que eu quero convenc-la a participar de uma experincia que trar benefcios para a senhorita e para mim.

No sei como pode ser isso... Se a senhora no tem mesmo interesse em que John volte para seu lado, que benefcio essa experincia pode trazer para ns duas?

Vou lhe mostrar respondeu Magda, tirando da bolsa uma pequena ampola cheia de um lquido bem vermelho.

Carmen olhou com curiosidade o frasco.

isso a a experincia?

. Trata-se de uma frmula criada por tio William informou Magda, orgulhosa.

E quem tio William?

o tio de John. Uma criatura muito simptica.

Engraado. Pensei que todos os parentes de John j fossem falecidos. Ele nunca me falou desse tio William.

que tio William j morreu, mas voltou.

?!

Depois eu explico. Por ora, eis a resposta para seus problemas proclamou Magda, levantando a ampola um pouco mais.

Mas quem disse que estou com problemas? Acho que a senhora est invertendo as situaes.

Mais uma vez, Magda no fez caso da ironia de Carmen e continuou:

Tio William um gnio. Levou quarenta anos para criar essa frmula. A senhorita vai ver como ela funciona.

Sra. Winston, no acha melhor explicar tudo de uma vez? Magda ficou empolgada.

Preste bem ateno. Se ns duas a tomarmos, uma coisa impressionante vai acontecer.

O qu?

Vamos trocar nossos corpos! Assim, poderemos saber exatamente como a vida uma da outra e escolher o melhor para ns. Que tal?

Carmen, boquiaberta, no sabia o que dizer ou pensar. Magda prosseguia.

Isso pode mudar tudo... No acha fantstico? A atriz explodiu:

Fantstico?! A senhora, por acaso, pensa que sou alguma estpida? Acha que vou acreditar em suas histrias de fantasmas e frmulas mgicas? Francamente!

Magda continuava tranqila. Sabia que a reao de Carmen de Luna no poderia ser diferente.

De modo algum. Uma atriz como a senhorita no pode ser estpida. Pelo contrrio: a senhorita me parece bastante inteligente.

Muito bem. Se viu isso em mim, por que veio minha casa propor um absurdo desses? Carmen levantou-se mais uma vez. Tenho muito o que fazer, Sra. Winston...

uma pena murmurou Magda. Pensei que havamos chegado a um acordo.

Nisto, a atitude de Carmen de Luna tornou a mudar. Lembrou-se do dilogo que, momentos antes, tivera com John:

Magda est doente.

Quem lhe disse que ela est doente?Um amigo... mdico da famlia...Carmen raciocinava rpido, sem prestar ateno ao que Magda dizia. Pobre John. Ele estava mesmo falando a verdade. Fui uma cretina tratando-o daquela maneira. O pedido de desquite deve ter mexido com a cabea da mulher. O melhor fingir que concordo com essa bobagem. Quanto mais depressa me livrar dela, melhor. Tenho de garantir esse desquite. E preciso telefonar para John me desculpando... ...e ningum notar a diferena Magda estava concluindo a explicao.

Desculpe, no entendi Carmen, absorta em seus prprios pensamentos, perdera o fio da meada.

Eu disse que ningum vai notar a diferena na troca dos corpos.

Ningum? A atriz esforava-se por demonstrar interesse.

Ningum, a no ser ns mesmas e tio William.

E nossas vozes?

Nem isso. S nossa personalidade vai continuar inalterada.

Essa aginha vermelha pode fazer tudo isso?

Claro. Acredite em mim.

fantstico!

Carmen comeava a se divertir, como se atuasse ante uma grande platia. Seu desempenho convenceria qualquer um.

Eu bem que lhe disse repetiu Magda, acreditando na representao de Carmen.

Quero saber mais. Quanto tempo duram os efeitos desse lquido?

Magda lembrou-se das recomendaes de tio William. S uma mentirinha. Uma semana respondeu ela, cruzando os dedos.

Hum... fez Carmen, sempre com estudado fingimento. Pelo que diz, se eu tomar essa coisa posso at ir manso Winston e me passar pela senhora.

Exatamente.

Os pensamentos relampejavam na cabea da atriz: Ah, seria timo se isso fosse possvel! Agora que John est decidido a voltar para casa... E se quisermos destroar os corpos antes de completar uma semana? indagou Carmen, continuando a viver seu papel naquela pea imaginria.

Graas a Deus!, pensou Magda. Ela acreditou em mim. Tio William vai ficar bem satisfeito. No ser possvel. Magda tornou a cruzar os dedos. Esta qumica tem de ser eliminada naturalmente. E h um detalhe muito importante.

Qual?

Nenhuma de ns poder revelar o segredo. Ningum pode saber de nosso trato. Outra coisa: no poderemos beijar John nem lhe fazer nenhum carinho.

Essa boa!, divertiu-se Carmen. Entretanto, no deixou cair a mscara de seriedade e perguntou:

Mas e se isso acontecer?

melhor nem pensar. A simples vontade de beijar John vai causar uma tontura fortssima.

E se eu no ligar para a tontura? Magda deu de ombros.

Vai perder os sentidos.

Tudo isso ajudava Carmen a armar seu plano: Essa a est mais biruta do que eu imaginava. timo! Com uma doida assim, logo, logo John vai querer voltar para meus braos.

Que coisa complicada! comentou Carmen, fingindo acreditar em tudo.

No tem nada de complicado. A senhorita sabe que isso pode nos ajudar bastante.

Carmen olhou mais uma vez para o tal lquido. De repente, ocorreu-lhe um pensamento terrvel: Meu Deus! E se isso for veneno? Ela pode ter endoidado de vez e resolvido dar cabo de mim. Melhor tomar cuidado.

Bem, Sra. Winston, h uma coisa que me preocupa. Essa frmula no poderia, h... ser perigosa?

Magda leu os pensamentos da outra e a tranqilizou:

No h o que temer, Srta. Luna. Eu provei um pouquinho, e o gosto mesmo amargo, mas garanto que no veneno. E ento?

Carmen pensou um pouco: , ela me parece uma louca mansa. Acho que vou confiar.

Muito bem, Sra. Winston. Vamos em frente. Como diz, no tenho nada a perder. E, j que amargo, que tal misturar com o caf? sugeriu Carmen, olhando para a bandeja que Sofia trouxera e fazendo enorme esforo para no rir.

Boa idia! concordou Magda.

Magda preparou as xcaras e dividiu cuidadosamente o contedo da ampola, gota a gota, sob o olhar atento de Carmen. Depois, cada uma tomou sua dose.

Viva a frmula! exclamou Magda, levantando a xcara num brinde.

Viva! disse Carmen, fingindo entusiasmo e imaginando a cara que Magda faria quando ingerissem aquilo e nada acontecesse.

As duas sorveram o lquido at o fim, fazendo caretas, pois era amargo como quinino.

No demoraria muito, as coisas comeariam a mudar.

13- QUANDO MAGDA NO MAGDA E CARMEM NO CARMEM Argh! Que coisa amarga! disse Carmen, j no corpo de Magda.

ruim mesmo retrucou Magda, no corpo de Carmen.

Haviam trocado de corpo to rapidamente que a transformao ainda no fora notada. Magda sentiu a pele mais fria e percebeu que vestia apenas uma camisola de cetim. Carmen estava acalorada e, ao desfazer o lao de l no pescoo, deu-se conta do que acontecera.

Nossa! Esta coisa funciona! A atriz estava atnita. Ento... ento o que voc me disse era verdade.

Claro. Por acaso voc imaginava que era loucura minha? Desapareceram todos os vestgios de formalidade entre as duas.

Bem... para ser franca, sim confirmou Carmen, apalpando sua nova pele.

mesmo incrvel disse Magda, cruzando os braos para cobrir o decote da camisola.

Carmen sussurrou, para que Sofia no ouvisse:

Como voc est se sentindo?

Magda respondeu, tambm num sussurro:

Muito bem. E voc?

Bem. Seu corpo parece perfeito.

O seu tambm.

No de estranhar! Sempre tomei cuidado com ele garantiu Carmen. E voc, cuide-se bem e siga uma dieta. No quero voltar para meu corpo dentro de uma semana e me ver transformada numa leitoa.

Magda respondeu no mesmo tom:

No se preocupe. Eu sempre fiz exerccios matinais.

Que espcie de exerccios?

Gosto de passeios a cavalo, em casa ou na Hpica.

Isso no! Assim vai sacrificar demais meu corpo. Quero apenas que voc faa umas caminhadas.

Est bem concordou Magda. Mas eu quero que voc ande a cavalo. Na manso, tenho duas belas montarias.

Lamento muito, Magda, mas s sei apostar em cavalos, no mont-los.

Magda sorriu.

Ento meu corpo que vai ser sacrificado.

Talvez... Ah, outra coisa. Por favor, no fique muito exposta ao sol. Minha pele muito sensvel.

No se preocupe Magda continuava a sorrir. Carmen observou-a com curiosidade.

Parece que voc no se preocupa com o que vou fazer com seu corpo.

Claro que me preocupo. Gosto muito dele, mas tenho certeza de que est em boas mos.

A atriz no se importou com a ironia e j ia para o quarto:

Vou arrumar minhas coisas. Magda interveio.

Voc no pode levar nada. Lembre-se, vai usar o que meu.

Nem minha escova de dentes? perguntou Carmen, surpresa.

L em casa, h tudo de que voc precisa.

Pensando em certa gaveta da cmoda, onde guardava numerosas cartas de amor, Carmen arranjou um pretexto:

S vou me maquiar.

Est bem, mas no exagere. Pode dar na vista. Carmen no pde deixar de fazer uma observao ferina:

claro. Agora sou uma criatura de nariz brilhante, que gosta da vida ao ar livre.

Magda sorriu, divertida.

E eu sou uma flor de estufa.

Carmen conteve-se e pensou: Logo que eu sair daqui, farei o que quiser com o corpo dela.

Depois, entrou no quarto, trancou a gaveta da cmoda, escondeu a chave debaixo do tapete e parou diante da penteadeira.

Se no der um jeito nesta cara, estou perdida! considerou ela, enfiando na bolsa (de Magda) seu estojo de maquiagem e um frasco de Ptalas de Ltus. Depois, sem nenhum remorso, voltou para a sala.

Pronto! exclamou.

Tio William e meu cozinho, Sunshine, esto esperando no carro. Voc sabe dirigir?

Claro que sei. Adoro velocidade.

Mas no corra muito, por favor. Tio William pode ficar receoso.

Carmen riu maldosamente.

Ora, esse tio William deve ser um morto bem esquisito. Magda ofendeu-se.

No gosto que caoem de tio William.

Por que no? perguntou Carmen, s gargalhadas. Ao ver Carmen em seu corpo, Magda teve um estremecimento.

Nunca poderia imaginar-se daquela forma, rindo to vulgarmente.

Por qu? continuou Magda, mais calma. Porque ele um gnio e merece respeito. Quanto a dirigir rpido demais, lembre-se de que pode acontecer alguma coisa, e, voc sabe, ns duas dependemos inteiramente de tio William.

O riso de Carmen desapareceu num instante. Em seu lugar, veio uma ameaa.

Pois tome nota de uma coisa: quem vai se sair mal nesta histria toda voc.

Magda sacudiu os ombros, e Carmen continuou:

John est voltando para a manso! No sabia? Pois , agora sou eu quem ficar em seu lugar. No final das contas, fui eu quem levou a melhor. Vou fazer tudo para que dentro de uma semana o desquite esteja acertado!

Magda ficou em silncio, vendo Carmen sair e bater a porta.

14- O TRIUNFO DE UM VELHO FANTASMAMagda isto , Carmen adiantou-se para o carro, com um andar diferente. Tio William desceu para cumpriment-la. Em seus olhos, brilhava uma expresso de vitria.

Minha frmula um sucesso! Srta. Luna! Ele fez uma reverncia. um grande prazer...

Ento o senhor tio William? cortou Carmen, observando as roupas dele.

s suas ordens confirmou o velhinho, ajudando-a a subir no carro.

Enquanto ela se instalava ao volante, Sunshine rosnou no banco de trs.

Sunshine? perguntou a atriz. O animal balanava a cauda e inclinava a cabea, olhando-a com curiosidade e notando que havia algo diferente em sua dona. Bem, vamos andando.

Carmen ligou o motor.

Sabe onde ? perguntou tio William.

Acho que sim respondeu Carmen, com um sorriso. H muito tempo penso na manso.

15- A BOLSA ROUBADAA sada precipitada de Magda (Carmen) atraiu a ateno de Sofia, que surgiu da cozinha. A criada comentou com Carmen (Magda):

Que mulher barulhenta!

E que golpe inteligente! observou Magda.

Golpe inteligente? Sofia no estava entendendo.

Por que ela no me disse logo que John ia voltar para casa?

Ento ela sabia de tudo? No me diga! Sofia assumiu um ar de cumplicidade.

Se eu soubesse que John queria voltar, toda essa confuso seria evitada continuou Magda. Mas pode haver algum engano. Ele deve ter ido l apenas para buscar suas coisas, no para ficar.

Mas a senhora no me disse que ele ia voltar porque... Magda no ouviu Sofia e seguiu com seus pensamentos.

O pior que ela vai fazer tudo para que John fique contra mim.

Mas isso no justo! A senhora abandonou a carreira por causa dele...

Magda continuou a raciocinar em voz alta, sem tomar conhecimento da empregada.

Se ao menos tio William estivesse aqui!

Quem tio William? indagou Sofia, surpresa.

Mas estou me preocupando toa. Tio William explicou muito bem o que ia acontecer e o que devo fazer.

Explicou?! Sofia estava boquiaberta. Magda afinal notou Sofia e perguntou-lhe:

Onde fica o telefone?

Patroa! Que brincadeira essa?

Ah! J sei exclamou Magda, virando-se e correndo para o quarto.

Sofia seguiu-a, intrigada com aquele comportamento.

Estou to emocionada que no me recordo de coisa alguma explicou Magda, sentando-se diante do telefone. Qual mesmo o nome daquele homem que escreveu a nota no jornal?

A senhora no se lembra? No possvel! O nome Flix S.

Ah! Flix S. Mas, por favor, qual o nome do jornal?

Correio Paulistano.

Sabe o telefone de l?

Sofia foi buscar o jornal e mostrou-lhe o nmero, espantada com as maneiras delicadas da patroa.

Onde est o frasco de Ptalas de Ltus? perguntou a empregada.

Al! do Correio Paulistano? Posso falar com o Sr. Flix S? Diga-lhe que a Sra. Winston... isto , Carmen de Luna. Pois no, eu espero, obrigada.

Onde est o frasco de Ptalas de Ltus? insistiu Sofia.

Ptalas de Ltus? No sei.

Puxa! Ento aquela gr-fina afanou o perfume! E a maquiagem tambm!

Al, Sr. S? falou Magda ao telefone. Isso... Carmen de Luna. Como? Ah, sim. Gostei muito da nota, mas gostaria que o senhor fizesse outra, anunciando o contrrio. Decidi no abandonar o teatro. Exatamente, Sr. S. Mudei de idia. Isso mesmo. Vou aparecer na nova pea, sim. Exato. Comearemos os ensaios amanh de manh. No, no vou mudar de idia outra vez. Obrigada! Escute, Sr. S, a notcia sair no jornal de amanh? Ah! exclamou Magda, com um sorriso satisfeito. Muito obrigada e at logo.

Magda colocou o fone no gancho e, recostando-se na poltrona, observou:

A situao agora est melhor.

E seu vidro de Ptalas de Ltus?

Como?

A mulherzinha da alta roubou seu perfume e o estojo de maquiagem, enquanto a senhora estava com o Sr. Winston.

Magda levantou-se num salto:

Sr. Winston?

. A dona Magda deve ter acreditado que era mesmo um jornalista, mas, quando ficou aqui no quarto, roubou seu perfume!

Magda, passando a entender tudo o que ocorrera, ficou indignada.

Que mulher mesquinha...

Ainda bem que sua bolsa estava guardada.

Minha bolsa! gritou Magda, assustando Sofia.

A moa comeou a correr de um lado para o outro, procurando a bolsa.

Est vendo? observou Sofia. No se pode confiar nem em gente rica.

Instantes depois, Magda parou, lvida, ao se convencer de que sua bolsa fora levada por Carmen.

Ela pegou a bolsa! gemeu Magda, boquiaberta. Sofia tomou uma expresso malvada.

A senhora podia complicar a situao dela. Por que no vai polcia e d queixa do roubo?

Magda, porm, no estava ouvindo a sugesto de Sofia. Tenho de recuperar a bolsa de qualquer maneira. Sem o antdoto, estou perdida. Vou esperar um pouco at eles voltarem manso. Depois quero ver tio William. Ele achar um meio de recuperar a ampola.Decidida a nova estratgia, Magda sentiu-se mais vontade.

Tudo vai terminar bem anunciou, mais animada. Sofia tambm sorriu, pensando que sua sugesto tinha sido aceita.

Vai chamar a polcia?

No, vou chamar tio William.

Dizendo isso, virou-se e saltou para o terrao, deixando Sofia com cara de quem no est entendendo nada.16- TIO WILLIAM DE CASTIGOQuando John chegou em casa, ficou preocupado ao notar que o automvel de sua mulher no estava na garagem.

Onde est o carro de dona Magda? perguntou a Jambo.

Ela... gaguejou o homem saiu de automvel com tio William.

Tio William! exclamou John.

Sim, senhor.

Disse aonde ia?

No, senhor. Parece que ningum sabe. Alis, eu preciso falar com o senhor, patro. s vezes, meus olhos escurecem e no consigo ver direito... Acho que estou doente...

Antes que Jambo continuasse a falar, John caminhou apressado para a manso. Magnlia estava na cozinha e, ao v-lo, ergueu os braos para o cu.

Graas a Deus! Minhas preces foram ouvidas.

Magnlia, onde est Magda?

A alegria de Magnlia transformou-se em preocupao.

Ela foi cidade com tio William.

A que lugar?

Isso no sei. Ela disse apenas que ia tratar de assuntos importantes.

Assuntos importantes?

John falou baixinho:

Preciso tomar alguma atitude, mesmo que seja enrgica. Compreende o que quero dizer?

Claro.

John bateu afavelmente no ombro da cozinheira.

Conto com voc, Magnlia.

O milionrio saiu da cozinha, encontrando Sin Low na sala de jantar. Ao ver os talheres e pratos arrumados para trs pessoas, John parou.

Ol, Sin Low! Para quem esse terceiro lugar? O copeiro ergueu a cabea.

Temos um hspede.

Quem?

Tio William.

No! exclamou John, comeando a se irritar.

Ele parece ser um homem bom comentou Sin Low. O patro perdeu o controle e gritou:

Pare de dizer bobagens! e saiu da sala.

John ficou ainda mais confuso quando entrou no hall. Sentiu um calafrio ao passar diante dos retratos dos parentes, e seu bigodinho se eriou. A imaginao dominou-o por completo. J estava quase na outra extremidade quando pensou ouvir algo. Parou. Parecia que algum ria baixinho.

John levantou os olhos para a parede e viu o retrato, em tamanho natural, de tio William. O velhinho ria gostosamente.

O senhor, hem? disse John, erguendo o dedo acusadoramente. Agora est aprontando das suas, no ? No toa que sempre foi o luntico da famlia. Mas fique sabendo que desta vez a coisa vai ser diferente.

Sem hesitar, subiu numa cadeira e tirou o quadro da parede.

Vou coloc-lo em lugar mais apropriado! disse, resoluto.

O retrato era pesado, e John teve de fazer fora para arrast-lo at o sto. Quando chegou l, John ficou surpreso ao ver aberta a porta do quarto de tio William. Quase sem foras, conseguiu colocar o quadro em cima da cama. Mas outra surpresa o esperava: o quarto estava limpo e arrumado. Sobre a cmoda, havia um vaso com rosas, as flores favoritas de Magda.

Pobre Magda! suspirou John, amargurado. Depois, puxou o retrato de tio William para o armrio embutido.

Fique a at tomar juzo!

Enfiou o quadro no armrio e esfregou as mos. Depois, trancou a porta e guardou a chave no bolso.

Tenho de impedir que Magda venha aqui!, pensou ele.

Com essa idia na cabea, trancou a porta do quarto, guardando tambm essa chave no bolso.

17- NEM TUDO PARECE SER O QUE

Enquanto John estava ocupado com o quadro, tio William entrou com Carmen. Os dois pararam no vastssimo hall, conversando em voz baixa. A moa olhava para todos os lados, muito admirada das dimenses de tudo. Quase do tamanho de uma estao de trem! Olhe aquela fileira de quadros!

So os retratos de famlia esclareceu tio William. Carmen riu.

A galeria dos parasitas, no ?

o que John diz de nossa famlia?

Ele fala muito de sua rvore genealgica.

Bem... no devemos mencionar os segredos da famlia.

Ora, por que no? perguntou Carmen. Agora somos parceiros, no somos?

que comeou ele, fingindo relutncia e cruzando os dedos h alguns maus elementos na famlia.

Mesmo? Que eles fizeram?

Alguns foram ladres de cavalos confidenciou tio William. Outros, mercadores de escravos. Houve at ladres de bebs.

Ladres de bebs?! Carmen estava boquiaberta, com os olhos arregalados.

. O rapto de crianas era coisa comum na famlia.

Incrvel! Depois, ela sussurrou: Houve algum crime de morte?

Tio William deu de ombros.

No muitos.

Foram enforcados por isso?

Poucos.

Ela ficou branca de susto. O velhinho, assumindo uma atitude misteriosa, aproximou-se mais de Carmen e segredou-lhe:

Dizem at que Jack, o Estripador, era um Winston... Mas, claro, no h provas.

Nossa! Carmen fez o sinal-da-cruz. E eu que estava convencida de entrar para uma boa famlia!

No se esquea retrucou tio William, descruzando os dedos , at as melhores famlias tm um esqueleto no armrio.

Mas esta parece ter mais de um!

Ora, ora! disse ele, paternal. No deve pensar assim. Nisto, Carmen notou uma armadura medieval, que Sir Arthur arrematara num leilo em Londres. A atriz perguntou:

Diga, havia um cavaleiro na famlia? Tio William tornou a cruzar os dedos.

Ah, sim. Egbert, o Furibundo.

Furibundo?

Pois . Durante as Cruzadas, ele enlouqueceu e passou a matar seus companheiros e todos os pobres coitados que encontrava.

Quer dizer que esse sujeito era um carniceiro...

Bom, as pessoas exageram muito. Dizem que ele matou mais de mil, mas no acredito. O nmero deve ter sido bem menor, talvez s uns quinhentos ou seiscentos.

Cruzes!

Dizem que at hoje os restos mortais de Egbert esto no interior da armadura.

Como ?! Carmen estava visivelmente alarmada. Na armadura?

Tio William divertia-se cada vez mais.

Isso mesmo. At hoje ningum teve coragem de levantar o elmo e olhar l dentro. Quer dar uma espiada?

Qu?! Deus me livre! J estou cheia dessa conversa. Vamos sair daqui!

Muito bem concordou tio William, escondendo um sorriso de vitria. Quer ver meu laboratrio?

Qualquer coisa, desde que seja longe daqui.

Ento, venha comigo disse ele, caminhando para o poro. Tio William deteve-se subitamente, e Carmen quase trombou com ele. Os olhos do velhinho pareciam procurar alguma coisa.

Que foi? perguntou a atriz.

Tiraram meu retrato da parede respondeu tio William, um pouco abatido.

Por que fizeram isso?

Tio William encarou Carmen com uma expresso triste.

No queria revelar certas coisas, mas... no sou muito benquisto aqui.

No? Por qu?

Talvez porque sei muita coisa sobre o passado da famlia. Por favor, no comente com John o que falei h pouco. Pode ser pior.

Carmen, que estava simpatizando muito com o homenzinho, ficou desolada com aquela situao.

Claro que no vou dizer nada. Afinal, somos parceiros, no ?

Tio William forou um sorriso pattico.

Obrigado, minha filha.

Vou at mandar algum recolocar seu retrato na parede.

Muita bondade sua. E agora, venha c...

Mas, quando viu a porta do poro, Carmen recuou.

Vamos descer nesse buraco escuro?

Tio William tirou duas velas do bolso e procurou uma caixa de fsforos.

Com essas velas podemos ver o caminho.

No h eletricidade nesse buraco?... Tio William riu discretamente.

No, mas seguro. Ento, vamos descer?

Vamos, mas bem juntinhos...

18- UM TRIO DECIDIDOSunshine estava descansando no hall quando ouviu os passos de seu dono, que descia a escada. O pequins subiu ligeiro.

Sunshine! John desceu rpido, pois a presena do cozinho era sinal de que Magda chegara. Magda! Magda! Onde est voc? chamou John, preocupado.

No teve resposta. Pela janela, viu o carro da mulher. Magda deve estar na cozinha, pensou. Correu para os fundos, mas encontrou apenas Magnlia, que preparava o jantar.

Magnlia, onde est Magda? perguntou ele, quase sem flego.

J falei, patro. Foi cidade.

Mas o carro est l fora. Deve estar em algum lugar retrucou o milionrio, em pnico.

Magnlia, vendo Sunshine, ficou furiosa.

Ento aquele tio William deve t-la levado para o poro.

Poro? gritou John.

Magnlia agarrou o pau de macarro. Vamos at l ver se aconteceu alguma coisa.

Ao ver os dois passarem apressadamente pela sala, Sin Low juntou-se ao grupo. Sunshine corria atrs. Os trs caminharam para o poro. Mas todos estacaram vendo a porta abrir-se. Magda (isto , Carmen) apareceu diante deles.

John estava to transtornado que cometeu o erro de sacudi-la.

Que voc foi fazer a embaixo? Zangada, Carmen livrou-se dos braos dele.

No grite comigo s porque no gosta de tio William! John ficou calado por alguns instantes. Lembrou-se do conselho do Dr. Lus. Precisava evitar discusses com a mulher. Por causa de seu envolvimento com Carmen, no queria magoar Magda ainda mais.

Acho bom pedir desculpas continuou Carmen, irritada. E acho que devemos pendurar o retrato de tio William novamente na parede, agora mesmo.

Agora? perguntou John, com voz sumida.

Por que no? Afinal, ele da famlia e tem de ser tratado como tal.

Procurando conter-se ao mximo, John afinal concordou.

Est bem.

S ento Carmen notou que Magnlia estava chorosa e Sin Low, perplexo.

Que h com eles?

Nada, querida respondeu John.

Ora essa! Que gente apalermada!

John no conseguiu evitar um tremor em sua voz.

Tem razo, Magda.

Magda! exclamou Carmen, em voz alta. Depois riu, divertindo-se com a idia. Quase me esqueo.

Esquece o qu? perguntou John, com muita delicadeza. Carmen caiu na gargalhada.

Quase esqueo quem sou. John esboou um sorriso.

engraado...

19- UMA CAMISOLA PARA O JANTARNo quarto de Magda, Magnlia espantava-se com a mudana de comportamento da patroa. Observando as atitudes de Magda, a cozinheira j no estava entendendo nada.

Veja s! Parece uma priso! exclamou Carmen. Vou dar um jeito nisso. Quero encher o quarto de cortinas e espelhos.

Magnlia, calada at ento, conseguiu dizer:

Que vestido a senhora vai usar no jantar?

O menor deles respondeu Carmen, despindo-se. Magnlia mexeu no armrio e apanhou um vestido.

Serve este?

Claro que no, eu no vou a nenhum velrio! Esse a serve disse.

Mas uma camisola!

Escute uma coisa, Magnlia: esta casa precisa de um pouco de calor. E eu tenho calor de sobra.

Sim, senhora concordou Magnlia, resignada.

Aps entregar a camisola patroa, Magnlia correu a John.

Patro, o senhor tem de tomar providncias.

Que houve? perguntou ele, apoiando o retrato de tio William no assoalho. O trabalho ficava mais difcil com a intromisso de Sunshine, que latia sem parar.

Ela est querendo usar uma camisola no jantar.

Verdade?! John, assustado, quase deixou cair o quadro. Uma camisola! Ela est biruta!

Disse tambm que a casa precisa de calor.

Calor? repetiu ele, procurando terminar logo a colocao do quadro.

Isso mesmo. No sei o que ela quis dizer.

Estou vendo que a situao pode ficar muito ruim concluiu John.

verdade. A patroa est at dizendo que vai encher o quarto de cortinas e espelhos acrescentou Magnlia, entristecida.

Vou ter de chamar o Dr. Lus. Mas primeiro vou pendurar este quadro. Vai ficar a por uns tempos. Mas no tenha dvida: depois, vou ter o prazer de queim-lo.

20- UM FANTASMA AO TELEFONE

No apartamento de Carmen, Magda sentia-se uma ovelha desgarrada. Aguardava a hora do jantar para telefonar a tio William. Os minutos, porm, pareciam horas, e a impacincia e a ansiedade a dominaram por completo. Fechou-se no quarto de Carmen e discou o nmero. Veio o sinal: ocupado.

Magda ps o fone no gancho e perguntou de si para consigo: Quem pode estar usando o telefone da manso?No podia desconfiar de que, no outro lado da linha, seguia-se uma conversa entre John e o Dr. Lus.

o que estou dizendo, Lus. Magda est estranhssima. Suas atitudes so muito esquisitas, ela no reconhece mais nada da casa.

Mantenha a calma, John.

Estou muito confuso, Lus. Preciso de sua ajuda. Voc poderia vir para c?

Muito bem. Daqui a pouco estarei a para jantar com vocs. Que tal?

timo! A propsito: no se surpreenda se ela aparecer usando uma camisola.

No se preocupe. Nessas horas, temos de demonstrar naturalidade. At logo mais.

Magnlia, que estava ao lado de John, animou-se com o que ouvira.

Ainda bem que o mdico vai estar aqui. Com aquelas roupas, ela pode pegar um resfriado.

E verdade concordou John, retirando-se para o quarto. Magnlia comeou a resmungar:

Tudo por causa do tio William... Na certa, foi ele quem a mandou vestir a camisola.

Nesse momento, o telefone tocou.

Al? disse ela.

Magnlia? perguntou Magda, com a voz de Carmen, a qual a preta nunca escutara. Os olhos da cozinheira ficaram arregalados quando ouviu o pedido:

Pode chamar tio William?

Qu?!

Pode chamar tio William ao telefone? repetiu a voz. Magnlia estava cada vez mais espantada. Afastou o fone do ouvido, examinou-o e largou-o, como se estivesse fugindo de uma cobra venenosa.

No estou entendendo nada! bradou, correndo.

O hall voltou ao silncio. A porta do poro abriu-se, e tio William espiou para ver se havia algum. No percebendo vivalma, dirigiu-se ao hall.

Notou o fone fora do gancho. Antes de coloc-lo no lugar, a curiosidade levou-o a dizer Al e esperar uma resposta.

Tio William? indagou a voz do outro lado, surpreendendo o homenzinho.

Que coincidncia! disse ele.

Aconteceu um verdadeiro desastre! disse Magda, Carmen de Luna levou o antdoto dentro de minha bolsa.

Que azar!

E agora, tio? Que vamos fazer? perguntou ela.

No se preocupe. Voc vem at aqui e pega a ampola.

Ir manso? entusiasmou-se ela. E como vou fazer para no ser vista?

Aparea bem tarde, l pela meia-noite. Eu posso desligar a chave geral...

tima idia. O senhor um gnio! No sei o que faria sem sua ajuda.

Apenas estou retribuindo a liberdade que voc me proporcionou argumentou tio William.

Mas como vou entrar em casa? Carmen de Luna est com as chaves em minha bolsa.

Vamos fazer o seguinte: voc bate trs vezes na janela de meu laboratrio. Eu vou estar l, trabalhando na nova frmula.

Combinado. meia-noite eu apareo por a.

Com todo o cuidado possvel, tio William colocou o fone no gancho. Depois saiu do hall e subiu a escada. Quando chegou ao sto, ficou surpreso de verificar que a porta de seu quarto estava trancada.

21- COLOCOU O RETRATO, MAS TRANCOU A PORTA! Magnliaaa! o grito de Carmen ressoou pela casa toda. John apareceu na porta do quarto, lvido, no mesmo instante em que Magnlia passava o mais ligeiro que seus trpegos passos permitiam. Nem bem a cozinheira entrou no quarto, Carmen esbravejou:

Que est acontecendo nesta casa?

Eu tambm no sei respondeu a criada, num fio de voz.

Foi sempre assim? Nunca poderia imaginar que tratassem um pobre homem dessa forma...

De quem a senhora est falando?

De quem pode ser? De tio William! O coitado perseguido s porque fala a verdade sobre aquela cambada que est l no hall.

Mas o patro j colocou o retrato do... tio William na parede.

S que no permite que ele tenha luz nem no laboratrio nem no quarto. E ainda teve a ousadia de trancar-lhe a porta do quarto! Onde titio vai dormir? Com certeza faz tudo isso para que tio William apanhe uma pneumonia e morra outra vez.

Magnlia no agentou e correu para John.

Patro, a pobrezinha est cada vez pior. Pediu que o senhor abra agora mesmo a porta do quarto de tio William, seno ele pode pegar pneumonia e morrer de novo.