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1 O EXCESSO E O RESTO EM SILVINA OCAMPO E LUIS MARTÍN-SANTOS Giseli Tordin (UMass, Amherst) RESUMO: Procura-se apresentar a correlação entre corpo, ficção e realidade a partir da leitura de três obras: uma peça teatral, Festa, baseada no conto “Las fotografías”, de Silvina Ocampo, e encenada pela companhia de teatro Shiva, Los traidores, teatro escrito por Silvina Ocampo e J.R. Wilcock, e uma narrativa de Luis Martín-Santos, Condenada belleza del mundo, inspirada em um filme espanhol, El próximo otoño (1963). Condenada belleza del mundo assemelha-se a um roteiro no qual se relata como a personagem deve evidenciar ao espectador que os encontros que alcança não provocam uma transformação em sua vida. Já Los traidores centra-se na história da família imperial romana. A impostura de um dos filhos de Septimio Severo, Basiano, o Caracalla, gera realidades outras. Apenas os traidores sabem algumas verdades, como o assassino do imperador e de seu outro filho, e Basiano dificilmente reconhecerá o próprio mundo que criou. Em Festa, é a posição do corpo do ator que provoca tanto o efeito das diferentes sensações de realidade quanto a indiferença em relação ao outro, a que provém de um excesso do eu que transforma este outro em objeto ou desloca-o a um lugar de indiferença. O mal-estar que o corpo do ator capta, mas não sente, é devolvido ao espectador. A leitura comparada das três obras deve permitir reconhecer que o mais real é aquilo que, muitas vezes, escapa da personagem ou do ator, mas que tem no espectador ou leitor a possibilidade de apreensão. Palavras-chave: Silvina Ocampo. Luis Martín-Santos. Corpo. Ficção e realidade. Um corpo, outras vidas Antonin Artaud, certa vez, em carta endereçada a um amigo, escreveu que ele, Artaud, era o seu próprio corpo, mas o corpo dele não era ele (ARTAUD apud FORTES, 2010). Nesta sua leitura, o dramaturgo, escritor e ator francês afirmava que o corpo era uma instância muito mais ampla do que qualquer identidade ou uma identidade-ipseidade (em termos ricœurianos). 1 A identidade, portanto, estava compreendida pelo corpo. Mas o corpo não se subordinava à identidade. 1 Segundo Paul Ricœur (1978), a identidade-ipseidade não se forma a partir de uma acumulação de conhecimentos, mas provém do entendimento de si em relação ao outro. Diferentemente da identidade- mesmidade, que é a permanência de uma identidade ao longo do tempo, a identidade-ipseidade é um traço da constituição do sujeito que se forma no decorrer dos anos e através do outro.

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Page 1: O EXCESSO E O RESTO EM SILVINA OCAMPO E … · encenada pela companhia de teatro Shiva, Los traidores, teatro escrito por Silvina Ocampo e J.R. Wilcock, e uma narrativa de Luis Martín-Santos,

 

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O EXCESSO E O RESTO EM SILVINA OCAMPO E LUIS MARTÍN-SANTOS

Giseli Tordin (UMass, Amherst)

RESUMO: Procura-se apresentar a correlação entre corpo, ficção e realidade a partir da leitura de três obras: uma peça teatral, Festa, baseada no conto “Las fotografías”, de Silvina Ocampo, e encenada pela companhia de teatro Shiva, Los traidores, teatro escrito por Silvina Ocampo e J.R. Wilcock, e uma narrativa de Luis Martín-Santos, Condenada belleza del mundo, inspirada em um filme espanhol, El próximo otoño (1963). Condenada belleza del mundo assemelha-se a um roteiro no qual se relata como a personagem deve evidenciar ao espectador que os encontros que alcança não provocam uma transformação em sua vida. Já Los traidores centra-se na história da família imperial romana. A impostura de um dos filhos de Septimio Severo, Basiano, o Caracalla, gera realidades outras. Apenas os traidores sabem algumas verdades, como o assassino do imperador e de seu outro filho, e Basiano dificilmente reconhecerá o próprio mundo que criou. Em Festa, é a posição do corpo do ator que provoca tanto o efeito das diferentes sensações de realidade quanto a indiferença em relação ao outro, a que provém de um excesso do eu que transforma este outro em objeto ou desloca-o a um lugar de indiferença. O mal-estar que o corpo do ator capta, mas não sente, é devolvido ao espectador. A leitura comparada das três obras deve permitir reconhecer que o mais real é aquilo que, muitas vezes, escapa da personagem ou do ator, mas que tem no espectador ou leitor a possibilidade de apreensão.

Palavras-chave: Silvina Ocampo. Luis Martín-Santos. Corpo. Ficção e realidade.

Um corpo, outras vidas

Antonin Artaud, certa vez, em carta endereçada a um amigo, escreveu que ele,

Artaud, era o seu próprio corpo, mas o corpo dele não era ele (ARTAUD apud

FORTES, 2010). Nesta sua leitura, o dramaturgo, escritor e ator francês afirmava que o

corpo era uma instância muito mais ampla do que qualquer identidade ou uma

identidade-ipseidade (em termos ricœurianos).1 A identidade, portanto, estava

compreendida pelo corpo. Mas o corpo não se subordinava à identidade.

                                                                                                                         1 Segundo Paul Ricœur (1978), a identidade-ipseidade não se forma a partir de uma acumulação de conhecimentos, mas provém do entendimento de si em relação ao outro. Diferentemente da identidade-mesmidade, que é a permanência de uma identidade ao longo do tempo, a identidade-ipseidade é um traço da constituição do sujeito que se forma no decorrer dos anos e através do outro.

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Assim, poderíamos pensar que o corpo aceita outras identidades. No teatro, isso

parece óbvio. O ator encena aquilo que ele não é, dando vida a situações e personagens

através da ação. No entanto, as percepções e os sentimentos dos atores não são

imutáveis. Inclusive na repetição de uma peça, suas percepções diferem-se.

O que garante a verossimilitude de uma obra ou o que permite que os

espectadores envolvam-se mais com aquilo que lhes é apresentado é a existência de um

efeito de verdade, o qual provém da própria ação das personagens, dos corpos que

atuam. Segundo Konstantin Stanislavski (1936), o efeito de verdade no teatro não

significa atestar a real existência de um evento, mas, sim, apontar que determinado fato

tem possibilidade de ocorrer.

No entanto, há obras teatrais e literárias que parecem pôr em xeque algumas

dessas concepções. Em Los traidores, única peça teatral escrita por Silvina Ocampo e

Juan Rodolfo Wilcock, reconta-se uma história oficial, trazendo, inclusive, os nomes

verdadeiros de quem figurava no poder do império romano no ano 211 da nossa era.

Basiano, filho do imperador Septimio Severo, expressa explicitamente que algumas das

outras personagens com quem está em contato agem por agir. Ele começa a ter dúvida

com relação ao desdobramento dos fatos porque observa que muitos parecem

representar a história de um livro, atuando de modo automático.

Já em Condenada belleza del mundo, de Luis Martín-Santos, o narrador controla

a personagem descrevendo como esta deve atuar para persuadir o espectador e ela

mesma sobre tudo aquilo que deve sentir. A ênfase às percepções da personagem parece

reduzir o efeito de verdade ou de qualquer beleza estética que a obra poderia suscitar. E

em Festa, uma peça encenada por uma companhia brasileira de teatro, grupo Shiva, e

adaptada de um conto de Silvina Ocampo, “Las fotografías”, os corpos em cena

parecem não perceber a própria angústia que representam. E o espectador fica com o

ônus da tragédia criada.

Como, portanto, compreender através das personagens as diferentes dimensões

de realidade e ficção? O que é a verdade numa obra de ficção ou em um teatro? O que é

o real nessas obras? Estariam as obras colocando ênfase na possibilidade de os atores

agirem de modo automático? Quais os efeitos de sentido?

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A partir da fronteira entre cinema, teatro e literatura, procura-se neste trabalho

responder a essas questões considerando as diferentes espessuras da realidade

transvasadas ao corpo: como os corpos que estão no espaço da cena, corpos que ganham

o plano através da visualidade háptica e os corpos que estão além dos corpos, na sua

virtualidade circunstancial, permitem outros reconhecimentos ao modificar a postura do

espectador ou leitor. Pressupõe-se que esse reconhecimento constrói-se a partir daquilo

que não podemos nomear e que está no inconsciente ou nos subterfúgios que, desde o

outro, percebemos como nossos.

O real no outro lado da moeda

Em Los traidores, trata-se de uma peça sobre a história de dois irmãos, Basiano,

conhecido como Caracalla, e Publio, que herdarão o império romano após a morte do

pai, Septimio Severo. São todas personagens históricas que fazem uma releitura do

acontecimento principal, que é a morte de Publio, cujo assassinato é supostamente

perpetrado por Basiano. A peça, porém, não reafirma o que a História provê. A beleza

encontra-se nas dimensões de incerteza que a atuação possibilita. Todos os fatos

históricos reaparecem ali, porém, entrelaçam-se gerando uma leitura outra: a de que

nunca se sabe quem, de fato, mata Publio tampouco o pai, morto havia dois meses,

apesar de todos ali fingirem que ainda está vivo.

Como o fingimento posto em cena é de conhecimento do espectador, sua

encenação parece ser dirigida aos que não pertencem à corte. No entanto, as

personagens, ao atuarem de modo a inventar outras possibilidades sobre a situação de

Septimio Severo – um faz-de-conta –, criam realidades paralelas em relação a uma

realidade primeira. A atuação mistura-se à atuação da atuação. No desenvolvimento da

peça, é esta desconfiança que gera incertezas:

La imperfecta visión de dos hermanos que se odian y su madre que los ama. ¡Quiere decir efigie y dice esfinge Los tres aislados, como en un teatro,

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representando un drama establecido, iluminados, sin mirar al público que nada entiende y sin embargo aplaude allá arriba en oscuras graderías. ¡Si pudiera encontrar en algún libro el texto de esa historia defectuosa que los dioses me obligan a inventar! ¿Viste que dijo esfinge en vez de efigie? (OCAMPO, 1956, p.34).

As palavras de Basiano, conquanto sejam irônicas e coloquem em primeiro

plano o isolamento de cada personagem, não são capazes de revelar a ele mesmo, dentro

desta metalinguagem (que é capaz de observar), que o mais real é a ausência de uma

história coletiva pela qual ele mesmo, Basiano, teria responsabilidade. O isolamento

deve-se à sua própria incapacidade de entretecer as narrativas das demais personagens e,

assim, construir um sentido de verdade que mude os caminhos de uma história já

estabelecida.

Basiano não percebe que ele poderia ser ator dele mesmo e não de outrem. As

personagens deixam de criar ou de representar uma realidade da qual todas elas

deveriam fazer parte. Elas não atuam no sentido mais amplo e plural porque o outro é

excluído de sua própria constituição. O outro é sempre o inimigo.

Um aspecto fundamental da peça não é a descoberta ou não do assassino de

Publio, mas o simulacro da atuação que revela um espaço desprovido de realidade.

Basiano, ao explicitar desconfiança e temor e, portanto, ao isolar-se, faz nascer de seus

atos mundos que se distanciam. O mundo de seu irmão, o mundo de sua mãe e de todas

as pessoas da corte não se correspondem ao seu porque uns desconfiam dos outros.

Segundo Hannah Arendt, a realidade do mundo é garantida pela presença dos outros.

Somente há potencialidade de ação no lugar onde exista confiança mútua. Ora, é

exatamente o oposto engendrado por Basiano que começa a governar suspeitando de

todos. Sua tirania produz o seu isolamento (refletido em seu monólogo) e fomenta,

utilizando as palavras de Arendt no contexto da análise do poder tirano, “os germes de

sua própria destruição” (ARENDT, 2005, p.229). E isso é o mais real da peça.

No prólogo, as Eumênides, sentadas junto ao público, aparecem repentinamente

e anunciam a todos que a obra teatral está repleta de traidores. Embora refiram-se a

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personagens que ainda não estão no palco, elas são capazes de prever seus atos e ouvir

as vozes de quem sequer apareceu. Elas repetem que a noite é antiga, assemelhando-se à

Scherezade de As mil e uma noites, pois narram acontecimentos dos quais estão

ausentes, não obstante falem de dentro da história e revelem aquilo que só elas podem

ouvir. Quando se abrem as cortinas, elas voltam a sentar-se e retornam ao final para

reafirmar a traição. Sempre há a tentativa de marcar a dimensão da ficção como se a

atuação fosse um fingimento. Mas o que se observa ao final é o contrário.

Isto não é um cachimbo

A peça de Ocampo e Wilcock lembra a obra de René Magritte, Ceci n’est pas

une pipe, de 1928-1929. A frase escrita no quadro, Isto não é um cachimbo, recordando

os moldes de uma legenda, contradiz a figura de um cachimbo. Cria-se uma disparidade

entre o enunciado e o objeto. Talvez Magritte desejasse chamar atenção para o fato de o

desenho não ser o objeto, mas apenas uma representação. Portanto, a arte não é a

realidade em si, mas espelha a realidade, é uma imagem desta. Também se poderia

pensar que a frase – a palavra – exerce um poder muito forte sobre nós porque a

representação de um objeto não é suficiente para afirmar o valor do objeto, mas é a

palavra que o determina.2

A similaridade entre Los traidores e Ceci n’est pas une pipe provém deste

aspecto: Basiano, na peça, desconfia de todos de sua família porque não acredita na

representação. Não é capaz de observar que esta tem um valor de verdade e espelha o

engano que está nele mesmo, mas é atribuído ao outro. Basiano acredita em suas

palavras as quais funcionam como uma espécie de legenda à representação à que

assiste. Ele aponta, na peça, às relações entre o conhecido e o desconhecido: por um

lado, demonstra conhecer o estatuto da ficção, que há personagens que atuam ou que

                                                                                                                         2 Para mais detalhes, consultar Isto não é um cachimbo, de Michel Foucault, disponível em http://ltc-ead.nutes.ufrj.br/constructore/objetos/FOUCAULT,%20Michel%20%20-%20Isto%20n%e3o%20%e9%20um%20cachimbo.pdf

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mentem. Por outro lado, na vertente do desconhecido, teme qual será o fim da história;

não sabe se conseguirá permanecer no poder.

Tomo emprestado um exemplo de Slavoj Žižek sobre a relação entre o

conhecido e o desconhecido, a fim de tornar meu argumento mais claro. Donald

Rumsfeld, secretário de defesa dos Estados Unidos, em fevereiro de 2002, justificou por

que os Estados Unidos deveriam invadir o Iraque. Disse Rumsfeld que havia o

‘conhecido conhecido’, ou seja, sabemos que sabemos; o ‘desconhecido conhecido’: há

coisas que agora sabemos o que não sabemos; e o ‘desconhecido desconhecido’: há

coisas que não sabemos e que sequer podemos suspeitar. Assim, justificava a invasão

no Iraque porque havia ameaças iminentes que os Estados Unidos não sabiam, além de

outra ameaça que nem imaginavam.

Žižek diz que Rumsfeld é um filósofo amador porque o principal não era dizer

sobre as ameaças de Saddam Hussein das quais não suspeitavam, mas, sim, ‘o

conhecido desconhecido’, que é o inconsciente freudiano: o conhecimento que não se

conhece a si mesmo. Tudo o que negamos estar em nós e que dirige nossas ações. O que

julgamos ver no outro (ou o que os Estados Unidos julgavam ver no Iraque) é a

existência de algo que está em nós mesmos (nos Estados Unidos) sem suspeitar que este

inimigo existe devido às nossas (às suas) crenças.

Basiano é incapaz de observar que, no excesso de suas palavras, há algo que lhe

escapa: suas ações dirigem-se a ele mesmo. A convicção em suas suposições não lhe

permite ver que tramam contra ele. A existência da metalinguagem apontava também a

um espelho. Basiano deixa de olhar-se e é surpreendido pela repetição do passado, de

uma história já escrita. Ele evita que o passado seja dinâmico. Ele não elabora, portanto,

outra experiência porque talvez tenha medo: o medo de encontrar a sua verdadeira face.

O medo impede a sua autonomia, provoca reincidências, dificultando que ele modifique

a dimensão virtual do passado.

Dom Quixote, diferentemente de Basiano, transforma seu próprio caminho: ao

saber que um escritor apócrifo conduzia-o rumo à cidade de Zaragoza, o Cavaleiro da

Triste Figura, por vontade própria, dirige-se a Barcelona. Dom Quixote é uma

reinvenção de si mesmo. Reinventa-se no interior de sua própria leitura. Porém, não se

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trata de uma leitura parada. A leitura ocorre enquanto atravessa o mundo. Dom Quixote

vive porque lê e modifica, inclusive, os rumos de uma história já escrita.

Michel Foucault (2002) afirma que a grande façanha de dom Quixote não são as

batalhas, mas, sim, a própria transformação da realidade em signo. A ficção reinscreve a

realidade vivente de Dom Quixote. O cavaleiro modifica o passado virtual porque vive

no mundo da aparência sem, no entanto, percebê-lo como separado da realidade. Já

Basiano vive o mundo de suas palavras separadamente das ações que presencia e

desconfia das aparências que são, no fundo, o real.

O amor é o mais real

Condenada belleza del mundo, de Luis Martín-Santos, não é simplesmente uma

narrativa baseada em um filme espanhol, mas, sim, uma história outra que se faz a partir

de uma releitura desse filme. À semelhança de Los traidores, pode-se supor que

também há a descrença na aparência e, mais primordialmente, no amor, o que leva o

protagonista a afastar-se do universo da bela moça francesa, por quem se apaixona. Essa

descrença é criada pelo narrador cujas palavras funcionam como uma legenda, guiando

as ações do protagonista.

A convite do diretor catalão, Antonio Eceiza, Martín-Santos acompanha as

gravações de El próximo otoño, lançado em 1963. O texto do escritor e psiquiatra

espanhol nascido em Marrocos assemelha-se a um roteiro porque descreve como a

personagem masculina deve construir-se de modo a evidenciar ao espectador que os

encontros que alcança não provocam uma transformação em sua vida. Há um narrador

que impõe uma história de modo que a personagem parece não conseguir atuar de outra

maneira exceto a de fazer prevalecer o próprio desejo do narrador.

São destacados os enganos desse protagonista: de que a jovem francesa que ali

vem passar as férias não o ama. Há uma metatextualidade que amplifica essa

desconexão do protagonista com relação aos outros e consigo mesmo:

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El muchacho está absolutamente anclado en su vida anterior. Está enajenado por las circunstancias de su familia y él mismo. Es un débil. No tiene capacidade de cambio. Está resignado a su destino. (MARTÍN-SANTOS, 2004, p.12)

A ênfase nesta descrição pode ser compreendida como uma maneira de tornar o

corpo um objeto, um fantoche nas mãos de um autor: “No es necesario que se le vea

bien [...]. La cámara tiene que moverse a su alrededor, para demostrar que es un objeto”

(idem, p.17). É interessante destacar que o narrador tece uma descrição como se

estivesse apenas observando ou fazendo uma tradução dos fatos. No entanto, é o próprio

narrador quem cria esses sentimentos. O tempo todo o leitor não perde de vista que se

trata de uma história de um “encuentro no modificante” (idem), frase que é repetida.

Ora, a ênfase na exposição desses desejos (especialmente como devem ser expressos) é

uma tentativa de apagar a própria dimensão do protagonista e do seu corpo. Assim,

pode-se afirmar que essa própria ênfase, que desvela ainda uma metatextualidade que

nos coloca de frente com uma linguagem despida tanto de uma realidade quanto de uma

magia ficcional, mitiga o mundo das percepções, evidenciando que esta personagem,

este eu, não se adequa ao mundo, ou seja, que ele está em constante conflito.

A narrativa é tecida não a partir dos fatos, mas, sim, da própria gestualidade

inventada. São os gestos que o narrador diz vislumbrar a priori que vão determinar que

se trata de um encontro não-modificante. O que salta à vista, portanto, não é

propriamente a passividade da personagem exceto a formulação de um mundo

desencantado. Assim, o encontro efetivo com o outro não existe. Segundo Jacques

Lacan (1975), apenas os encontros produzem um mundo simbolizado. Na narrativa, o

momento do encontro já coincide com sua própria desfeitura. Desmancha-se no ar

porque as palavras do narrador proíbem o acesso ao outro. Os significantes, ao invés de

abrirem o texto para a multiplicidade de sentidos, adormecem-no.3

                                                                                                                         3 A literatura produzida por Luis Martín-Santos data do momento em que Espanha vivia a ditatura franquista que, iniciando-se em 1936, só terminaria no ano de 1975. A sociedade retratada por Martín-Santos em seus romances é uma sociedade moderna repleta de conflitos, como a impossibilidade de o sujeito assumir seus próprios papéis. Em um documentário sobre o dia do livro exibido pela Red de Televisión Española (RTVE 2), o livro Tiempo de silencio, único romance que publicou em vida, é comentado como uma das obras mais importantes do século XX na Espanha cujas formas de apresentação

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No filme de Eceiza, o sentimento de frustração da personagem Juan, quem não

consegue aproximar-se de Monique por acreditar que a jovem francesa não o ama, além

do fato se sentir-se impedido de viver este amor devido à sua condição social e familiar,

é percebido através da visualidade háptica. Trata-se, na verdade, de um conceito da

teoria fílmica desenvolvido pela pesquisadora canadense, Laura Marks, segundo o qual

a imagem que se projeta pretende que o espectador tenha uma experiência táctil. É

como se os olhos pudessem tocar a imagem e senti-la. Esta percepção isola o objeto de

seu campo visual. Assim, o espectador percebe, no filme de Eceiza, o próprio

afastamento dos mundos de Monique e Juan. Já no texto de Martín-Santos, a frustração

do amor acontece na medida em que as palavras do narrador impedem o contato entre as

personagens.

No entanto, não se deve perder de vista que o real é ainda o amor, sentimento

presente nas personagens. Por isso as inúmeras tentativas de dizer o contrário. Assim,

tanto no filme quanto na narrativa o que poderia devolver à personagem a sua crença no

amor seria um resgate do seu papel, essencialmente a tomada de consciência de seu

corpo como totalidade, o que lhe permitiria situar-se ativamente no mundo simbólico,

reescrevendo, com suas palavras, uma nova relação entre o imaginário e o real

(LACAN, 1975, p.130).

A verdade em um clic

Diferentemente do filme de Eceiza no qual o mal-estar é pressentido tanto pelo

protagonista quanto pelo espectador, em Festa, peça adaptada do conto de Silvina

Ocampo, o mal-estar será pressentido pelo espectador e não (ou em menor medida)

pelas personagens. O espectador não parece ser cúmplice, mas a quem o desafeto dirige-

se, visto que as personagens ali são mediadoras, passando indiferentes às circunstâncias

que se lhes apresentam. Trata-se da festa de aniversário de Adriana, uma jovem

paralítica. Os convidados, em silêncio, chegam com um presente, depositando-o em um

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                   das personagens e encadeamento dos fatos são as mais arriscadas e inovadoras até então já produzidas. Disponível em: http://www.rtve.es/alacarta/videos/pagina-2/pagina-2-dia-del-libro/3097172/

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canto. Posicionam-se em pé e não conversam entre eles. No entanto, eles esperam

avidamente pelo fotógrafo cuja chegada modifica inteiramente o clima da festa. O que

era estático, sem palavras, ganha um ruído de vozes difícil de compreender. Eles fazem

da festa de Adriana um espetáculo particular, posto que cada um quer uma foto com a

melhor pose.

Adriana morre na festa, vítima do esquecimento, já que os convidados não

percebem que ela não estava bem. Todos são anti-heróis, provocadores de uma ação

parada, crua, engessada. Os convidados projetam ante o fotógrafo (através de inúmeras

poses) a imagem daquilo que eles não são (os seus excessos). As supostas imagens

estampariam, na verdade, o que gostariam de ser, mas o público sabe que enquadram o

oposto, ou seja, o resto: um quase não-existir.

O centro da festa é o flash da câmera fotográfica o qual preenche um desejo de

satisfação que, no entanto, nunca se sacia. Os assuntos sobre que conversam giram em

torno do banal, dos acidentes, de outras tragédias do cotidiano que se somam e que

pertencem exclusivamente ao outro. Os convidados são sempre emissores da

mensagem, nunca destinatários. Falam de tragédias, mas não a veem em si mesmos.

Os presentes configuram o que Walter Benjamin denomina “valor de

exposição”, já que estão subtraídos de uma esfera de uso e parecem relembrar a

constante indiferença entre convidados e aniversariante. Os presentes não cumprem sua

finalidade. Não são presentes com os quais se presenteia. São presentes empilhados. São

presentes ausentes. A pergunta que se poderia formular é por que as personagens não se

dão conta do mal-estar de Adriana. As personagens não se dão conta porque estão

imersas em outra realidade, a da fotografia. Há uma ênfase em torno à espetacularização

do elemento fotográfico.4 O real é a indiferença e todas as poses cujas imagens

poderiam revelar uma forma harmoniosa são o puro meio, não possibilitando a abertura

de um mundo outro. Tudo se esgota em uma sucessão de flashes.

                                                                                                                         4 Tanto o conto quanto a peça têm pontos de contato com a autoexposição nas mídias sociais. Silvina Ocampo elucidara nos anos de 1970, muito antes do Facebook, certa necessidade do mundo contemporâneo: a exposição para que o outro, quem está de fora, ateste a felicidade do sujeito. O que vale é a imagem da felicidade e do amor declarados a todos, não um sentimento no âmbito privado.

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Considerações finais

Como os convidados de Festa, Basiano não se coloca no ponto de vista do outro.

Não há empatia. Em Los traidores, as múltiplas menções ao espelho não são capazes de

fazer que Basiano enxergue sua própria história de destruição porque há um

adensamento da autossuficiência. Publio, já morto, ao aparecer ao irmão em forma de

espírito, diz que ao matá-lo Basiano estava matando a si mesmo.

Assinalar uma dimensão que contenha mais realidade que outra ou mais ilusão

do que outra – um excesso da metateatralidade – pode expressar o desejo, na peça de

Ocampo e Wilcock, de proteção; como se a própria metateatralidade fosse uma tela

protetora, dificultando um conhecimento de si mais profundo. O mesmo se pode afirmar

com relação à Condenada belleza del mundo. O narrador tenta dissolver os efeitos da

ficção, mas não consegue esconder que esse excesso reativa um resto, que é ainda a

possibilidade do amor.

Já em Festa, fotografar as inúmeras poses dos convidados revelava aquilo que

não era ou que não existia: a alegria. Com a morte de Adriana, apenas um ator

permanece em palco. O fotógrafo. Espera-se uma atitude dele ante o corpo sem vida.

Ele afasta-se de Adriana e, de costas ao público, começa a disparar novos flashes. A

indiferença persiste de modo mais monstruoso, pois agora é o espectador quem a

pressente mais de perto, como se fosse o próprio fotógrafo, uma vez que assume a

mesma perspectiva deste. Afirma Giorgio Agamben que graças ao objetivo fotográfico

um gesto aparentemente comum, sem relevância, carrega o peso de uma vida inteira;

“assume em si o segredo de toda uma existência” (Agamben, 2005, p.31). Mas em

Festa, o sentido maior não está no excesso das fotografias, mas naquilo que não foi

capturado pela lente e que só pode ser apreendido, em última instância, por quem

assiste, e não por quem atua.

Referências

AGAMBEN, Giorgio. Profanaciones. Tr. Edgardo Dobry. Barcelona: Anagrama, 2005.

Page 12: O EXCESSO E O RESTO EM SILVINA OCAMPO E … · encenada pela companhia de teatro Shiva, Los traidores, teatro escrito por Silvina Ocampo e J.R. Wilcock, e uma narrativa de Luis Martín-Santos,

 

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