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O EVANGELHO DO REINO PHILIP MAURO Traduzido por Nathan Cazé

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O EVANGELHO DO REINO

PHILIP MAURO

Traduzido por Nathan Cazé

Tradução: Nathan Cazé

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O Evangelho do Reino por Philip Mauro

Tradutor e editor: Nathan Cazéi

i E-mail para contato: [email protected]. Traduzido e publicado em outubro de 2016. Esta obra está oficialmente disponível em: monoergon.wordpress.com e https://pt.scribd.com/user/36525724/Nathan-Caze

Tradução: Nathan Cazé

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O Evangelho do Reino Título original: The Gospel of the Kingdom Autor: Philip Mauro Ano de publicação da obra original: 1927 Tradutor e editor: Nathan Cazé Fonte original: http://www.preteristarchive.com/Books/1927_mauro_gospel-kingdom.html 1ª edição desta tradução: outubro de 2016 Disponível em: monoergon.wordpress.com e https://pt.scribd.com/user/36525724/Nathan-Caze

Esta tradução do livro The Gospel of the Kingdom (1927) é a primeira a ser realizada em língua portuguesa. Esta tradução está protegida pela LEI Nº 9.610, DE 19 DE FEVEREIRO DE 1998. De acordo com esta Lei de Direito Autorais, esta tradução é uma obra “inédita - a que não haja sido objeto de publicação;” (Art. 5º, inc. VIII, d); “derivada - a que, constituindo criação intelectual nova, resulta da transformação de obra originária;” (Art. 5º, inc. VIII, g); “São obras intelectuais protegidas as criações do espírito, expressas por qualquer meio ou fixadas em qualquer suporte, tangível ou intangível, conhecido ou que se invente no futuro, tais como: as adaptações, traduções e outras transformações de obras originais, apresentadas como criação intelectual nova;” (Art. 7º, inc. XI); “É titular de direitos de autor quem adapta, traduz, arranja ou orquestra obra caída no domínio público, não podendo opor-se a outra adaptação, arranjo, orquestração ou tradução, salvo se for cópia da sua” (Art.14).

É PROIBIDA a reprodução, para fins comerciais, desta obra traduzida.

É PERMITIDA e INCENTIVADA a reprodução e a distribuição, desta obra traduzida, somente de forma gratuita, sem modificações e desde que a fonte desta tradução seja citada (Art. 46, inc. III da lei nº 9.610, de 19/02/1998).

Referência bibliográfica desta tradução:

MAURO, Philip. O Evangelho do Reino. 1ª ed. 2016. 118 p. Tradução: Nathan Cazé. Disponível em: <monoergon.wordpress.com>.

Tradução: Nathan Cazé

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AGRADECIMENTOS

Sou grato a Deus, em primeiro lugar, por ter colocado em meu coração este projeto de tradução e ter efetuado em mim a motivação e a perseverança, dia após dia, para que eu a terminasse.

Também sou grato ao Reverendo Bruce G. Buchanan por ter me auxiliado quanto ao significado de certas expressões idiomáticas e estilos gramaticais arcaicos empregados pelo autor.

Tradução: Nathan Cazé

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Sumário

INTRODUÇÃO ....................................................................................................................... 5

1. DISPENSACIONALISMO DO SÉCULO XX: O QUE E DE ONDE? ...................................... 7

2. AS “SETE DISPENSAÇÕES” VISTAS À LUZ DAS ESCRITURAS ...................................... 11

3. A LEI E O EVANGELHO ................................................................................................... 17

4. O PRINCÍPIO DO EVANGELHO DE JESUS CRISTO, O FILHO DE DEUS ......................... 25

5. O REINO DE DEUS: TEM ESTE SIDO ADIADO? .............................................................. 33

6. OS EVANGELHOS: A QUAL “DISPENSAÇÃO” ESTES PERTENCEM? ............................ 44

7. O REINO “ESTÁ PRÓXIMO”. A ORDEM DA REVELAÇÃO ................................................ 48

8. O REINO PREDITO PELOS PROFETAS ........................................................................... 54

9. O REINO PREDITO PELOS PROFETAS (Continuação) ..................................................... 62

10. A LEI DE CRISTO .......................................................................................................... 70

11. O CARÁTER DO SERMÃO NO MONTE ......................................................................... 81

12. O REINO DE DEUS VINDO COM PODER ...................................................................... 87

13. ELE DETERMINA UM CERTO DIA ................................................................................. 94

14. A ESPERANÇA DE ISRAEL ......................................................................................... 101

15. ASSIM TODO O ISRAEL SERÁ SALVO ........................................................................ 110

16. TRANSPORTADOS PARA O REINO DO FILHO ........................................................... 115

Nota do tradutor:

Todos os versículos que o autor usou pertencem à King James Version [Versão Rei Tiago], exceto quando indicado ser de outra versão.

Os versículos em português foram adaptados à King James Version, a qual foi usada pelo autor. Acrescentei colchetes ao texto original para esclarecer o significado de certas palavras e expressões.

Ademais, as minhas notas do tradutor estão indicadas no rodapé pelo “i”. Também acrescentei o termo “[sic]” para indicar um erro por parte do autor em seu texto original.

Tradução: Nathan Cazé

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INTRODUÇÃO

POR MEIO de um incidente de ocorrência recente, tornei-me ciente da extensão― muito maior do que eu tinha imaginado― a que o sistema moderno do dispensacionalismo tem encontrado aceitação entre cristãos ortodoxos; e também da extensão― correspondentemente grande― a que a recém-publicada “Bíblia Scofield” (que é o veículo principal do novo sistema de doutrina referido) tem usurpado o lugar de autoridade que pertence a Bíblia de Deus somente.

O incidente aludido acima é o que levou a redação desse livro. Pois, em minha alma, despertou-se um senso de responsabilidade ao povo de Deus para dar-lhes, em forma concisa, os resultados da examinação minuciosa que tenho sido levado a fazer desse sistema novo de doutrina (dispensacionalismo).

Que seja compreendido, desde o início, que a minha controvérsia é unicamente com a doutrina em si; e de nenhuma forma com aqueles que acreditam e ensinam-na, ou qualquer um desses. De fato, eu mesmo era um deles por tanto tempo que eu consigo sentir uma consideração terna, e uma simpatia profunda da mesma forma por todos eles.

Além disso, como tenho dito em outro lugar:

“É óbvio que, numa questão envolvendo a verdade de Deus tão vital para a Sua família inteira, considerações pessoais devem necessariamente ser desconsideradas. Lamento grandemente ter que mencionar, pelo nome, a Bíblia Scofield de Referência [Scofield Reference Bible]; mas isso não pode ser evitado, na medida em que é, infelizmente, o caso de que essa publicação tem sido, e é, o meio principal para promulgar os erros contra os quais sinto-me chamado a protestar. Lamento profundamente ter que mencionar o nome de qualquer homem na discussão. Mas devemos lidar com as condições conforme as encontramos. É uma questão de dor para mim que um livro exista no qual as palavras corruptas do homem mortal são impressas na mesma página com as Palavras santas do Deus vivo; essa mistura do precioso com o vil sendo feita num artigo de venda, intitulada como ‘Bíblia’, e distinguida pelo nome de um homem”.

É vergonhoso lembrar que eu mesmo não apenas acreditava e ensinava essas novidades, mas que eu até mesmo apreciei um senso complacente de superioridade por causa delas, e encarava com sentimentos de pena e desprezo aqueles que não tinham recebido a “nova luz” e não estavam familiarizados com esse método moderno de “dividir corretamente a palavra da verdade”. Pois eu acreditava plenamente o que um panfleto publicitário dizia na apresentação das “Doze Razões pelas quais você deve usar A BÍBLIA DE REFERÊNCIA SCOFIELD”, a saber, que:

“Primeiro, a Bíblia Scofield descreve as Escrituras do ponto de vista da VERDADE DISPENSACIONAL, e não pode haver entendimento adequado, ou dividindo corretamente da Palavra de Deus, exceto do ponto de vista da verdade dispensacional”.

Que insulto é isso sobre o entendimento espiritual dos dez milhares de homens, “poderosos nas Escrituras”, aos quais Deus deu como professores ao Seu povo no decorrer de todos os séculos cristãos antes de que a “verdade dispensacional” (ou erro dispensacional) fosse descoberta! E que afronta aos milhares de homens de Deus de nossos próprios dias, como

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obreiros que não têm de que se envergonhar, os quais nunca aceitaram o sistema recém-inventado! No entanto, eu estava entre aqueles que ansiosamente abraçaram-na (somente com base na autoridade humana, pois não há outra) e que sinceramente pressionava-a nos meus irmãos cristãos. Sou profundamente grato, entretanto, que o tempo veio (isso foi a somente dez anos atrás) quando as inconsistências e autocontradições do próprio sistema, e, acima de tudo, a impossibilidade de reconciliar as suas posições principais com as declarações simples da Palavra de Deus, tornaram-se tão brilhantemente evidentes que eu não pude fazer outra coisa senão renunciá-las.

Naquela época eu estava ocupado quase exclusivamente com a doutrina central do sistema; uma doutrina muito radical, de fato, a respeito do assunto supremamente importante do Reino de Deus, que nosso Senhor e Seu antecessor proclamaram naquela época como “está próximo”, e que esses dois identificaram com a era do Espírito Santo.1

De acordo com o dispensacionalismo novo, nosso Senhor e João o Batista não estavam proclamando a vinda próxima daquele “Reino de Deus” que realmente começou logo depois com o derramamento do Espírito Santo no dia de Pentecostes, e que realmente estava, naquela época, “próximo”, mas estavam anunciando um reino de grandiosidade terrena para o qual os judeus de mente carnal e os seus professores estavam então (e estão ainda) procurando em vão; ainda que o reino terreno de Israel não seja chamado nas Escrituras de “o Reino de Deus”, e ainda que (como é agora suficientemente evidente) não estava de nenhuma forma “próximo”.

Enquanto eu continuava, entretanto, a estudar esse novo sistema de ensino em seus diversos detalhes, descobri que havia mais erros nela, e piores, do que eu tinha no início suposto; e esses [erros], ao passo que tornavam-se evidentes para mim, tenho tentado, por meio de subsequentes escritas ocasionais, expor. O trabalho, entretanto, ainda não está concluído; daí a necessidade de o presente volume. Na verdade, o tempo está completamente maduro para uma examinação aprofundada e exposição franca dessa forma nova e sutil de modernismo que tem se espalhado entre aqueles que tem adotado o nome "fundamentalistas". Pois o cristianismo evangélico deve purgar-se deste fermento de dispensacionalismo antes que possa exibir o seu poder anterior e exercer a sua influência anterior.

Felizmente, entretanto, há um lado positivo e construtivo para o que estou agora buscando cumprir. Pois o objetivo não é meramente de expor os erros do dispensacionalismo do século XX, mas também e principalmente para estabelecer as verdades grandes e verdadeiramente “fundamentais” das Escrituras que aquele sistema tem, para aqueles que receberam-na, ou completamente obliterado ou pelo menos obscurecido grandemente.

Finalmente, é apropriado nessas observações introdutórias chamar a atenção (como terei oportunidade de fazer uma e outra vez nas páginas que se seguem) para o fato marcante e extremamente significativo de que todo o sistema de “ensino dispensacional” é modernista no sentido mais estrito; pois isso primeiramente veio a existir na memória das pessoas que vivem agora; e era completamente desconhecida até mesmo em seus dias mais novos. Esse sistema é mais recente do que o darwinismo.

Pense no que significa que um sistema elaborado, ramificado e abrangente que adota ensinamentos radicais relativos a tais assuntos vitais como a pregação e ministério de Jesus Cristo, o caráter e “lugar dispensacional” dos quatro Evangelhos, a natureza e era do Reino de

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Deus, o Sermão no Monte, o Evangelho do Reino, e outros tópicos de primeira importância, um sistema de doutrina que contradiz o que tem sido crido e ensinado por todo cristão expositor e todo ministro de Cristo desde o princípio da era cristã, deveriam ter repentinamente feito a sua aparição na parte final do século XIX, e ter sido aceito por muitos que são proeminentes entre os grupos ortodoxos mais declaradamente de cristãos! É um fenômeno incrível de fato. Pois o fato é que o dispensacionalismo é modernismo. Isso é modernismo, ademais, de um tipo muito pernicioso, tal que deve ter a sua própria “Bíblia” para a propagação de suas doutrinas peculiares, já que as mesmas não estão na Palavra de Deus. Prova ampla disso será dada nas páginas que se seguem.

No entanto, o que agora insisto em vista disso é somente:

Primeiro, que temos nesses fatos históricos uma razão muito convincente por que devemos, cada um por si, escrutinar esse sistema moderno mais cuidadosamente à luz da Escritura; e segundo, que o fato afirmado acima, da origem muito recente do sistema, levanta a presunção que o dispensacionalismo não está de acordo com a verdade de Deus, e não deve ser aceitado exceto sob prova clara e ampla.

Ao concluir essas observações introdutórias, eu salientaria que esse sistema moderno de “ensino dispensacional” é motivo de divisão e controvérsia entre aqueles seguidores de Cristo que deveriam estar, neste tempo de crise, firmemente unidos contra as forças poderosas de descrença e apostasia; e, ainda, que esse [sistema] tende a tornar a verdade vital da segunda vinda do Senhor em descrédito a muitas pessoas, porque esse [sistema] associa essa grande doutrina bíblica com vários detalhes especulativos para os quais nenhum apoio bíblico pode ser encontrado.

NOTAS

1. João pregou dizendo “Arrependei-vos, porque está próximo o reino do céu”, e ele anunciou a vinda de Cristo dizendo “Ele vos batizará com o ESPÍRITO SANTO” (Mateus 3:1[-2], 11). E o próprio Cristo ensinou a um rabino judaico dizendo “quem não nascer da água e DO ESPÍRITO não pode entrar no reino de Deus” (João 3:5). Compare a definição de Paulo desse Reino: “Porque o Reino de Deus não é comida nem bebida, mas justiça, e paz, e alegria NO ESPÍRITO SANTO” (Rom. 14:17).

CAPÍTULO UM 1. DISPENSACIONALISMO DO SÉCULO XX:

O QUE E DE ONDE?

PARA alguns de nossos leitores a definição do dispensacionalismo moderno será uma necessidade, e para todos será uma conveniência. Isso tem sido definido como “aquele sistema de doutrina que divide a história da economia de Deus com o mundo em períodos de tempo, chamados de ‘dispensações’”. E é um princípio do sistema que “em cada dispensação Deus lida com o homem com um plano diferente do plano de outras dispensações. ... Cada

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dispensação é uma coisa completamente à parte das outras, e, quando um período sucede outro, há uma mudança radical de caráter e princípios governantes” (Rock or Sand, Which? [Rocha ou Areia, Qual?], de Matthew Francis).

Por exemplo, somos ditos que a era presente é “a dispensação da Graça”, e a anterior era “a dispensação da Lei”; e, portanto, os professores do novo sistema forçam a sua ingenuidade para mostrar que não havia graça na “dispensação” precedente, e que não há lei agora; enquanto, de fato, há toda a lei de Deus agora que sempre teve, e havia abundância da graça de Deus nos “tempos anteriores”.

Na elaboração desse sistema cru de erro, o maior dano tem sido feito à verdade revelada de Deus relativa a esta era presente do Evangelho. De acordo com as profecias do Velho Testamento e as escrituras apostólicas do Novo, como esses têm sido sempre compreendidos até agora, esta é a muito procurada era do Reino de Deus, predita pelos profetas. Como Pedro afirmou: “Todos os profetas, desde Samuel, todos quantos depois falaram,”― ele tinha há pouco feito referência a Moisés― “também predisseram ESTES DIAS” (Atos 3:24); e em sua primeira epístola ele declarou que as coisas agora relatadas por aqueles que pregam o evangelho com o Espírito Santo enviado do céu, são as próprias coisas, inclusive a salvação de almas, que foram ministradas nos tempos passados pelos profetas; e que foi o mesmo “Espírito de Cristo que estava neles”, Quem agora capacita os pregadores do evangelho (1 Pedro 1:9-12).

Semelhantemente, Paulo enfaticamente declarou que em toda a sua pregação (que até mesmo os dispensacionalistas mais extremistas reconhecem como pertencendo a esta era da graça) que ele dissera “nada mais do que o que os profetas e Moisés disseram que devia acontecer” (Atos 26:22).

Mas de acordo com o “ensinamento dispensacional” esta era é “um mistério”, um intervalo de tempo sem medidas intervindo entre a era passada do Israel natural, e uma era futura no qual (assim que é ensinado) aquela nação apóstata será reconstituída e as suas glórias terrenas serão restauradas e aprimoradas. Somos ditos que “esta era do evangelho não estava na visão dos profetas de nenhuma forma”; e isso é mantido apesar das declarações simples das Escrituras há pouco citadas acima e de outras para o mesmo efeito.

Um dos resultados mais infelizes dessa torcedura violenta das “coisas que anjos anelam perscrutar” desde o lugar ao qual a palavra de Deus designa-lhes é “o Reino de Deus” em sua totalidade, incluindo “o evangelho do Reino” (Mat. 24:14; Atos 20:25; 28:31), tem sido corporalmente transferido desde esta era presente, e “adiada” para uma hipotética e mística “dispensação” ainda por vir. Isso certamente é uma questão de tamanha importância que exige a atenção mais séria de cada santo de Deus, pois faz violência a ambos Velho e Novo Testamentos.

UM SISTEMA RADICAL DE DOUTRINA

Será prontamente visto, portanto, que estamos lidando aqui com um sistema de ensino que, seja verdadeiro ou falso, é do tipo mais radical. Portanto, se verdadeiro, é muito surpreendente que nenhum dos professores piedosos e espirituais de todos os séculos cristãos tiveram tão

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somente um vislumbre disso; e, se falso, é chegada a hora que o seu caráter herético fosse exposto e todo o sistema tratado em conformidade. E na medida que esse sistema contradiz o que cada professor cristão, sem nenhuma exceção conhecida, têm crido ser a verdade incontestável da Escritura relativa ao Evangelho de Deus e o Reino de Deus, esse [sistema] claramente pertence na categoria daquelas “doutrinas diversas e estranhas”, contra as quais somos especialmente advertidos (Heb. 13:9). Pois é inegavelmente diversa de tudo que tem sido até agora ensinado pelo povo de Deus, e é completamente “estranha” aos seus ouvidos. Isso eu considero digno de atenção especial, e, portanto, pediria ao leitor para manter constantemente em mente o fato da novidade absoluta do dispensacionalismo. Pois aqui está o modernismo no sentido mais rigoroso; e isso é muito mais a ser temido e evitado porque vem a nós sob o disfarce e traje da ortodoxia rigorosa.

DE ONDE VEIO ESSE SISTEMA MODERNO?

Quanto à origem do sistema: os seus primórdios e as suas características principais são encontradas nos escritos daqueles conhecidos como “Irmãos” (às vezes chamados de “Irmãos de Plymouth”, que vem do nome da cidade inglesa onde o movimento atraiu atenção pela primeira vez) embora seja justo afirmar que os líderes mais conhecidos e mais espirituais desse movimento― como Darby, Kelly, Newberry, Chapman, Mueller e outros, “cujos nomes estão no Livro da Vida”― nunca creram no caráter “judaico” do Reino pregado pelo nosso Senhor e João o Batista, ou o caráter “judaico” dos Evangelhos (especialmente Mateus), ou que o Sermão no Monte seja “lei e não graça” e pertença a um reino “judaico” futuro.

A partir do que tenho sido capaz de reunir pelo inquérito de outros, (que estavam “em Cristo antes de mim”) o novo sistema de doutrina que estamos agora discutindo foi primeiramente trazido para as proximidades de Nova Iorque por um homem muito talentoso e piedoso, o Sr. Malachi Taylor, (um dos “Irmãos”) o qual ensinava-a com muito fervor e plausibilidade. Isso foi perto do início do século presente, ou um pouco antes ou um pouco depois. E entre aqueles que escutaram e foram cativados por isso [o sistema] (pois verdadeiramente, há alguma fascinação estranha inerente nisso) estava o falecido Dr. C. I. Scofield, que estava tão encantado com isso que ele procedeu sem demora a produzir uma nova edição de toda a Bíblia, tendo por sua característica distintiva que as doutrinas peculiares desse dispensacionalismo novo estão tecidas no seu fundamento, na forma de notas, títulos, subtítulos e sumários. Não há nenhuma dúvida de que é principalmente para esse trabalho executado inteligentemente que o dispensacionalismo deve a sua atual popularidade. Pois sem essa ajuda o dispensacionalismo seria, sem dúvida, visto por todos os que prestam bastante atenção à doutrina que o mesmo é um sistema humanamente inventado que tem sido imposto sobre a Bíblia, e não um esquema de doutrina derivada dela.

UM REAVIVAMENTO DO RABINISMO ANTIGO

Em seguida, quanto ao que é esse sistema moderno de ensino, será uma surpresa para a maioria daqueles que amam o Senhor Jesus Cristo saber que, no que diz respeito ao tema central e de vital importância do Reino de Deus, o dispensacionalismo do século XX é praticamente idêntico ao rabinismo do primeiro século. Pois a doutrina cardeal dos rabinos

Tradução: Nathan Cazé

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judaicos dos dias de Cristo era que, de acordo com as predições dos profetas de Israel, o propósito e resultado da missão do Messias seria a reconstituição da nação judaica; a reconstituição deles da terra da Palestina; o estabelecimento outra vez do trono terrestre de Davi; e a exaltação do povo de Israel ao lugar de supremacia no mundo.

Ora, visto que uma doutrina é conhecida pelos seus frutos, relembremos que efeito essa doutrina relativa ao Reino de Deus teve sobre os judeus ortodoxos que tão seriamente creram-na naquela época. E em vista do que essa doutrina incitou aqueles homens zelosos a fazerem, perguntemos a nós mesmos se não há grave razão para temer seu efeito sobre os cristãos ortodoxos que creem e zelosamente ensinam-na em nossos dias? O efeito então foi que, quando Cristo veio para o Seu próprio povo, proclamando que o Reino de Deus estava próximo, mas tornando conhecido que esse Reino não correspondia, de nenhuma forma, a ideia deles quanto a isso, e quando Ele disse “Meu Reino não é deste mundo”, e ensinou que, longe de ser judeu, foi de tal sorte que um homem deve nascer do Espírito para adentrá-lo, então eles rejeitaram Ele (“não o receberam”), odiaram Ele, traíram Ele e fizeram com que Ele fosse morto.

Ora, que seja cuidadosamente observado nesse contexto que o apóstolo Paulo, referindo-se ao que tinha sido feito a Jesus por aqueles “que habitam em Jerusalém e as suas autoridades”, disse que a razão para o ato assassino deles era “porque eles não conheceram Jesus nem os ensinos dos profetas que se lêem todos os sábados”, e ademais, que “cumpriram as mesmas palavras dos profetas que se ouvem ler todos os sábados” (Atos 13:27). Isso declara claramente que era porque os professores judeus tinham interpretado errado as mensagens dos profetas que eles estavam procurando pela restauração da sua grandeza nacional, em vez daquilo que os profetas haviam predito realmente, um Reino espiritual governado pelo “Jesus Cristo da descendência de Davi ressuscitado dentre os mortos” (2 Tim. 2:8).

Não temos, portanto, boa razão para temer as consequências desastrosas a partir do fato de que os professores do dispensacionalismo novo dizem que os rabinos judaicos estavam certos em sua interpretação das profecias, de que o reino predito pelos profetas é um reino terreno de caráter judaico, e que, de fato, a missão de Cristo naquele exato momento era para restaurar de novo o reino terreno para Israel? E porque então Ele não o fez? A resposta que os dispensacionalistas dão a essa questão fundamental é uma das características mais estranhas de todo o sistema. Eles dizem, com efeito, que Cristo estava pronto para fazê-lo, e que Ele teria feito-o, mas que quando Ele lhes “ofereceu” a própria coisa que eles estavam esperando ardentemente, eles (muito inconsistentemente, parecer-se-ia) “rejeitaram a oferta”, e consequentemente a mesma foi “tirada” e o reino “adiado para uma dispensação futura”. E quando perguntamos pela citação de uma única Escritura que menciona a suposta “oferta”, ou a sua “rejeição”, ou a suposta “tirada” e “adiamento”, nenhuma referência é produzida. E particularmente, quando pressionamos a questão vital: o que, em caso a oferta tivesse sido aceita, teria sido da Cruz do Calvário, e a expiação pelo pecado do mundo, a melhor reposta que recebemos é que naquele evento “a expiação teria sido feita de alguma outra forma”. Pense nisso! “Alguma outra forma” que não pela Cruz!

Ora, em vista dos fatos acima, eu insisto mais positivamente que, seja qual for a conclusão que alguém possa chegar após uma examinação de todo o assunto, há para começar-se, e por causa dos fatos há pouco citados, um “ônus da prova” muito pesado repousando sobre aqueles que defendem esse sistema novo e radical de ensino. E insisto especialmente que, no

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que se refere a doutrina de uma restauração futura da nação de Israel, com o acompanhamento de uma grandeza e domínio terreno supremo, há dois fatos relevantes que devem receber nossa mais séria atenção: primeiro, que aquela doutrina era a pedra angular do credo do judaísmo apóstata em sua última fase, e a causa principal de sua rejeição e crucificação de Cristo; e segundo, que essa doutrina apareceu pela primeira vez entre os cristãos perto do final do século XIX. Esses fatos podem não resolver nada; mas certamente os mesmos impõem um “ônus da prova” pesado sobre aqueles que agora ensinam que os judeus apóstatas estavam certos em sua interpretação dos profetas (cujas “vozes”, o apóstolo declara, “eles não conheceram”, Atos 13:27) e que professores e expositores cristãos, por dezenove séculos, estavam todos errados.

ALGUMAS QUESTÕES URGENTES

Além disso, por causa do aparecimento em nosso meio desse novo sistema de doutrina, certas questões de mais profundo interesse ao povo de Deus estão demandando uma resposta nesse momento. Entre elas estão as seguintes:

Fazia qualquer parte da obra de Cristo reviver e reconstituir a nação judaica? Reviver o sistema judaico de adoração, etc.? Veio Ele para restabelecer a escrava e o filho dela na família de Abraão? E para fazer o filho da escrava ser herdeiro com o filho da mulher livre? Veio Ele para ressuscitar de novo, e para tornar permanente aquela “parede de separação que estava no meio” entre judeus e gentios, ou para removê-la inteiramente e para sempre? Veio Ele para restaurar as “sombras” da velha aliança, ou para aboli-las? Essas são questões de importância insuperável, e as mesmas demandam por solução no tempo presente. Estamos profundamente convencidos que uma das questões mais urgentes para os servos e povos do Senhor nesses últimos dias é de compreender a verdade de que absolutamente não há nenhuma sorte de salvação, nenhuma esperança para qualquer ser humano, exceto “pelo sangue da aliança eterna” [Heb.13:20]; que não há nada a não ser a ira de Deus que permanece para aqueles que não permanecem nos termos daquela aliança; e especialmente que não há absolutamente “nenhuma diferença” aos olhos de Deus, e em Seus planos futuros, entre judeu e gentio.

É meu propósito, nas páginas que se seguem, buscar as respostas bíblicas para as questões acima, e outras questões de importância semelhante.

CAPÍTULO DOIS 2. AS “SETE DISPENSAÇÕES” VISTAS À LUZ DAS ESCRITURAS

DEIXE-NOS, neste ponto, inquirir que, se houver, apoio a Bíblia oferece à ideia básica do dispensacionalismo moderno, isto é, que Deus tem dividido todo o tempo (passado e futuro) em sete distintas e claramente distinguíveis “dispensações”; e que em cada uma dessas “dispensações”, Ele lida com a humanidade com um plano especial e com princípios peculiares que diferem de todas as outras.

Tradução: Nathan Cazé

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O QUE É UMA “DISPENSAÇÃO”?

E primeiro, com relação ao significado da própria palavra, é facilmente visto que o significado bíblico dessa palavra é radicalmente diferente daquele atribuído a ela pela “Bíblia Scofield”, em que afirma-se que:

“Uma dispensação é um período de tempo durante o qual o homem é testado quanto à alguma revelação específica da vontade de Deus” (nota de Gên. 1:28).

Mas em nossa Versão Inglesa das Escrituras a palavra “dispensação” não é em nenhum momento usada para designar um período de tempo. Paulo diz: “uma dispensação do evangelho me é confiada” (1 Cor. 9:17); isso significa dizer, o evangelho tinha sido confiado a ele para ser dispensado por ele. E a palavra tem um significado semelhante em outras passagens, todas as suas ocorrências estando nos escritos do apóstolo Paulo. Assim, em Efésios 1:10 há uma referência à “dispensação da plenitude dos tempos”; e o apóstolo está ali falando daquilo que Deus tinha projetado para administrar ou dispensar nesses últimos dias. (“a plenitude do tempo”, de acordo com Gálatas 4:4, é a era quando “Deus enviou Seu Filho”.).

De novo em Efésios 3:2 Paulo fala da “dispensação da graça de Deus, que para convosco me foi dada”; o significado sendo que o ministério confiado a ele era para dispensar a graça de Deus aos gentios.

E por último, em Colossenses 1:25 ele faz referência à “dispensação de Deus”, que tinha sido confiado a ele, “para cumprir a palavra de Deus”; a referência sendo para aquilo que Deus tem feito ele responsável para administrar ou dispensar, em cumprimento da palavra de Deus relativa ao Seu propósito previamente escondido quanto à salvação dos gentios. Essas são todas as ocorrências da palavra.

Na Versão Inglesa da Bíblia, portanto, a palavra “dispensação” sempre significa administração, ou mordomia. Nossa palavra inglesa “economia” vem diretamente da palavra grega traduzida como “dispensação” nas quatro passagens referidas acima. É de ser lamentado que uma palavra bíblica de significado definitivo fosse escolhida para o propósito desse novo sistema de doutrina, e um significado radicalmente diferente atribuído a ela.

Então mais adiante somos ditos, nas palavras de um dispensacionalista proeminente, que cada um desses sete períodos distintos de tempo tem “um caráter exclusivamente próprio”, sendo “inteiramente completo e suficiente em si mesmo”, que “não é de forma alguma trocável por outros, e não pode ser misturado”. Isso significa que cada “dispensação” tem suas próprias características peculiares e distinguíveis, na medida que, quando uma sucede a outra, há uma mudança completa e radical no caráter e princípios das interações de Deus com o mundo. Assim dizem os dispensacionalistas; mas não encontro nas Escrituras nenhuma evidência para apoiar a afirmação. Do contrário, sei que, em cada período e era, Deus tem aceitado aqueles que creram n’Ele e recusou aqueles que não creram n’Ele. A salvação tem sempre sido “pela graça, através da fé”, e com base no sacrifício de Cristo, o Cordeiro imolado desde a fundação do mundo. Adão e Eva e Abel e Enoque e Noé e Abraão e Davi foram cada um e todos salvos exatamente como nós somos.

Tradução: Nathan Cazé

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POR QUE SETE DISPENSAÇÕES?

E agora, que prova há para a afirmação de que “sete dispensações são distinguidas na Escritura” (Bíblia Scofield, nota de Gên. 1:28)? E como a Escritura distingue-as?

A resposta correta é que não há “sete dispensações distinguidas na Escritura”. O método pelo qual chegaram-se à essas [dispensações] é puramente arbitrário, fantasioso, e destituído de apoio bíblico; o método sendo de selecionar arbitrariamente alguma época, tal como o Êxodo, e dizer “aqui começou uma nova dispensação”. Mas, obviamente, o número sete é inteiramente arbitrário, pois é possível, pelo método descrito, dividir a história humana como relatada nas Escrituras em qualquer número desejado de “dispensações”. Uma pessoa tem liberdade para tomar qualquer e todas as eras importantes, tais como o início da era dos juízes, o reino israelita, de sua divisão em duas partes, o cativeiro assírio, o retorno desde a Babilônia, a destruição de Jerusalém, a pregação de Cristo aos gentios (Atos 10), e dizer: “Aqui começou uma nova dispensação”; e essa pessoa teria, por seu esquema dispensacional, todas as provas que nossos dispensacionalistas têm para o deles― isto é, nenhuma.

E se alguém que procurou nas Escrituras por indicações de divisões dispensacionais afirmasse que havia uma dispensação que estendia-se desde Abraão até Davi, outra desde Davi até o cativeiro babilônico, e outra desde o cativeiro babilônico até Cristo, esse alguém pode referir-se a Mateus 1:17 para apoiar seu esquema; contrariamente ao sistema dispensacionalista estabelecido na Bíblia Scofield, não há nenhuma aparência de qualquer prova bíblica.

Ao engendrar o seu esquema de sete dispensações, a Bíblia Scofield faz a primeira ser a dispensação da “Inocência”, e não tem muito a dizer sobre ela. A segunda, somos ditos, é a da “Consciência”, que começou, nossa autoridade afirma, com a expulsão de Adão e Eva do Éden. Mas onde há um fragmento de evidência para apoiar a ideia de que esse período foi distinguido de qualquer maneira especial, no que se refere às interações de Deus com os homens, dos tempos posteriores? Ou que a “consciência” existiu nesse período mais conspicuamente do que em outros períodos? Para cumprir as definições dadas pelos próprios dispensacionalistas, é necessário que a “consciência” caracterize esse período exclusivamente, pois não pode existir “nenhuma mistura”. Mas o fato é que nada é dito nas Escrituras, seja diretamente ou por implicação a respeito da consciência humana durante aquele período da história, ou a respeito do homem ser deixado naqueles tempos remotos à voz de sua consciência; enquanto que, por outro lado, muito é dito no Novo Testamento sobre a parte que a consciência deve ter na formação de nossa conduta nesta era do evangelho, e quanto à importância de ter-se uma “boa consciência”, uma “consciência pura”, uma “consciência sem ofensa”; e sobre o que nós devemos fazer por “questão de consciência”.

Assim, todo o sistema desmorona-se nessa fase inicial, pois manifestadamente ela é impossível de confinar as operações da consciência humana ao período comparativamente desconhecido que estende-se desde a queda do homem até o dilúvio.

Terceira dispensação. É dito para adotar o período que estende-se desde o dilúvio até o chamado de Abraão; e somos ditos que isso era a dispensação do GOVERNO HUMANO (Bíblia Scofield, nota de Gên. 8:20). Mas com base em que evidência, eu pergunto, pode ser afirmado que Deus estava, em qualquer sentido especial (e muito menos em um sentido exclusivo), lidando com o mundo, durante aquela era de tempo, por intermédio do “governo humano”? O

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fato é que não há nenhuma menção de governo humano durante aquele período. O único evento relatado pertencente a esse período é a construção da torre de Babel; e não há nenhuma indicação de governo humano em conexão com esse evento. A construção daquela torre não havia começado, continuado ou terminado às ordens de um governador humano. Do contrário, o que lemos é que:

“E aconteceu que, partindo eles do oriente, acharam um vale na terra de Sinar; e habitaram ali. E disseram uns aos outros: Eia, façamos tijolos… e edifiquemos nós uma cidade e uma torre cujo cume toque nos céus, e façamo-nos um nome” (Gên. 11:1-4)

Não há nenhum vestígio de governo humano aqui. Mas agora, nesta era do evangelho, somos especialmente ordenados a estarmos em sujeição às autoridades governamentais humanas― reis, governantes, e magistrados de menor grau; e somos instruídos pelas Escrituras de que “as autoridades que existem foram por ele instituídas”, e que o magistrado civil é “o ministro de Deus” (Rom. 13:1-4; Tito 3:1; 1 Pedro 2:13, 14). Não é isso mais do que suficiente para mostrar que o esquema de sete dispensações distintas é o produto da imaginação humana, e destituída de apoio bíblico? Não estamos justificados em concluir sem ir mais adiante no assunto, de que a razão pela qual os estudantes discernentes da Bíblia, de séculos passados, não encontraram as sete dispensações nas Escrituras é que elas não estão lá.

Mas deixe-nos, no entanto, buscar o assunto interessante um pouco mais, e dar atenção ao que é dito a respeito.

A Quarta Dispensação. Esta, de acordo com a mesma autoridade, era a dispensação da “Promessa” (Bíblia Scofield, nota de Gên. 12:1); e a mesma estendeu-se desde o chamado de Abraão até que a lei fosse dada no monte Sinai. Esse período abrangeu as vidas de Abraão, Isaque, Jacó e José. Nesse período ocorreu a multiplicação da descendência deles no Egito, as aflições que eles sofreram naquela terra, sua libertação milagrosa ao sair de lá pela mão de Moisés, e o recebimento da lei de Deus com os “estatutos e juízos”, os quais prescreveram para aquele povo a adoração de Deus e definiu suas relações e deveres uns para os outros. Agora pergunto, era esse período, em qualquer sentido especial, a “dispensação da Promessa”? Havia realmente promessas dadas aos pais de Israel durante aquele período; mas tinha promessas dadas anteriormente, notavelmente aquela grande, toda-abrangente e mais gloriosa promessa relatada em Gênesis 3:15, a respeito da Descendência da mulher; uma promessa que inclui ambos “os sofrimentos de Cristo”, a vinda do Redentor do mundo, e também “a glória que se lhes havia de seguir”. Havia também a promessa mundialmente-abrangente dada para Noé (Gên. 9:9-17). E havia também promessas em profusão em tempos subsequentes, como por exemplo na era de “a lei e os profetas”. E é desnecessário dizer que as Escrituras do Novo Testamento simplesmente abundam em “grandíssimas e preciosas promessas”.

Portanto, não há a menor prova para marcar os séculos durante os quais os descendentes naturais de Jacó estavam sendo multiplicados numa nação, e fazendo dessa era uma “dispensação” especialmente caracterizada por promessas divinas.

A Quinta Dispensação. Esta é dita ser a dispensação da “Lei”, e ela é posta no mais forte contraste possível à próxima subsequente “dispensação” que é a da “Graça”. E mais adiante

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somos ditos que “Essa dispensação [da Lei] estende-se desde o Sinai até ao Calvário; desde o Êxodo até a Cruz; desde Êx. 19:8 até Mat. 27:35” (notas da Bíblia Scofield).

Aqui é onde alguns dos males mais graves do dispensacionalismo vêm claramente à vista, pois as calúnias que os professores desse sistema lançaram contra a santa lei de Deus constituem, em sua totalidade, uma completa e grave representação deturpada disso; e em certos casos extremos eles assumem o caráter de vilipêndio calunioso. Mas antes analisar alguns desses males, note-se que a muito difamada “dispensação da lei” é dita ter abrangido todo o tempo de vida de nosso Senhor― “desde Êx. 19:8 até Mat. 27:35”, pois isso é um dos pontos sobre os quais os dispensacionalistas insistem principalmente, que os Evangelhos pertencem à era da lei, e não à [era] da graça, que eu ouso dizer ser um erro palpável e pernicioso. Pois no que se refere à terminação da era da lei, temos a palavra de nosso Senhor de que “A Lei e os profetas duraram”― não até o Calvário, mas― “até João; desde então o reino de Deus é anunciado” (Lucas 16:16). E em concordância a isso, está escrito: “Porque a lei foi dada por Moisés, mas a graça e a verdade vieram por Jesus Cristo” (João 1:17).

Essas Escrituras declaram, com os termos mais claros, que a vida e palavras e obras do nosso Senhor “nos dias da sua carne”, inclusive o “Sermão no Monte” (a respeito do qual temos algo especial a dizer) pertencem, não na era obscura da lei de Moisés, mas na era cheia da luz do dia da “graça e verdade”. As Escrituras também esclarecem que a era do “Reino de Deus” seguiu imediatamente após “as leis e os profetas”; ademais, que a era do “Reino de Deus” e a da “graça e verdade” são uma e a mesma. E isso é uma questão de importância especial porque, como espero salientar com alguns detalhes mais adiante, o esquema humanamente inventado de as “sete dispensações”, que estamos agora analisando, tem tido o efeito de obscurecer, para aqueles que aceita-a, a verdade iluminante que as Escrituras revelam a respeito das Duas Alianças, “a velha aliança”, da qual Moisés era o mediador, e “a nova aliança” da qual Jesus Cristo é o Mediador. Pois a Bíblia claramente distingue essas duas alianças e as eras que elas pertencem respectivamente; e ademais, com base nessa diferença depende a verdade do mais alto valor. Portanto, um objetivo que tenho em mente, ao expor o caráter infundado do dispensacionalismo, é de limpar o terreno para a apresentação da verdade relativa à “AS DUAS ALIANÇAS” (Gál. 4:24).

Mas além do erro palpável de colocar a vida e ministério do nosso Senhor na era da lei como distinguida daquela [era] da graça, a mais forte exceção é de ser levada ao ensinamento que a graça estava completamente ausente da era da lei, assim como a lei é dita estar ausente da era da graça; isso sendo um erro duplo. E nesse contexto eu particularmente gostaria de perguntar àqueles que acreditam nesse ponto de vista, e que colocam o ministério de Cristo na dispensação da lei: não era o ministério d’Ele um ministério da graça? E não eram as Suas palavras “palavras da graça”? Fico imaginando se esse ensinamento grave não evoca rajadas de indignação daqueles que amam o Senhor e que estão acostumados a encontrar seu conforto nos Evangelhos.

Isso nos leva ao que a “Bíblia Scofield” ensina a respeito da santa lei que Deus deu no monte Sinai ao povo que Ele tinha libertado da “fornalha de ferro” do Egito. E começo chamar a atenção para estas afirmações extraordinárias:

“É extremamente importante observar...que a Lei não foi imposta até ela ter sido proposta e voluntariamente aceitada” (nota da Bíblia Scofield de Êx. 19:3). “No Sinai eles (Israel)

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trocaram Graça por Lei. Eles precipitadamente aceitaram a Lei” (nota da Bíblia Scofield de Gên. 12:7).

Aqui temos sucintamente o ensinamento (que é ampliado nas escritas dessa nova escola de teologia) de que a Israel foi dado uma oportunidade de escolher entre Lei e Graça, e que eles foram postos sob a lei de Deus pela própria escolha deles; e ademais, que eles escolheram “precipitadamente”, e, portanto, fizeram― não meramente uma má escolha, mas― uma que foi fatal, caso as diferenças entre a lei e a graça sejam o que os dispensacionalistas alegam.

E a isso eu digo, em primeiro lugar, que é um erro palpável. Pois nenhuma escolha foi apresentada a Israel entre Lei e Graça, ou entre Lei e qualquer alternativa. Do contrário, era uma parte essencial do plano de Deus em tirá-los do Egito, que Ele realizou pelos sinais e pelos prodígios e pela mão poderosa, para que Ele pudesse ter um povo que deveriam ser os guardiões de Sua lei. Assim, o Salmo 105 cita o fato de que a entrega das leis era em cumprimento da aliança de Deus com Abraão (v. 8-10). E esse [Salmo] continua a relembrar como Ele libertou-os para fora do Egito pela mão de Moisés e Arão, levou-os pela coluna de nuvem e fogo, deu-lhes comida no deserto e água de dentro da rocha; e tudo com este fim: “Para que guardassem os Seus preceitos, e observassem as Suas leis” (v. 45).

É bastante claro a partir do relato dado em Êxodo, e também a partir das referências ao evento prodigioso em muitos versículos posteriores, que a entrega da lei no monte Sinai foi um ato de Deus somente; e também que isso foi um ato da graça e bondade. A razão pela qual Ele deu-lhes Seu “fogo da lei” era porque “Ele ama o povo”. Todavia, o ensinamento da “Bíblia Scofield” é que o povo de Israel fez uma escolha fatalmente má em consentir estar sob a lei de Deus. A afirmação que “eles precipitadamente aceitaram a Lei” implica que eles agiram sem a devida consideração, e não sabiam o que estavam fazendo ou quais seriam as consequências de sua escolha precipitada. E isso necessariamente implica que Deus agiu injustamente para com eles; que Ele se aproveitou da ignorância deles a respeito do que significa estar “sob a lei”, que Ele, assim, os levou para dentro de uma armadilha mortal da qual era impossível, a partir dali, para eles ou seus descendentes de libertarem-se.

Mas nada poderia estar mais longe da verdade. Pois o dom da lei para Israel era ambas uma honra distinguida e um benefício incrível. Esse dom deu-lhes o conhecimento do verdadeiro Deus; deu-lhes um caminho de acesso a Ele para adoração e para obter misericórdias e bênçãos; deu-lhes um santuário, um sacerdócio, sacrifícios aceitáveis― inclusive uma oferta pelo pecado― e promessas de modo que, mediante o cumprimento das condições justas e razoáveis, eles pudessem ter sido um “tesouro peculiar” para Deus e “um reino de sacerdotes e uma nação santa” para sempre (Êx. 19:5-6). Portanto, se for perguntado “Que vantagem, pois, tem o judeu” sobre todas as outras nações no mundo? A resposta inspirada é “Muita, em todo sentido; primeiramente, porque LHE FORAM CONFIADOS OS ORÁCULOS DE DEUS” (Rom. 3:1-2).

Com muita certeza o versículo citado anteriormente nunca poderia ter sido escrito se Israel tivesse sido posto sob a lei por sua própria escolha, e se sua escolha tivesse sido uma escolha má; pois o versículo declara que os judeus, tão longe de serem postos em uma desvantagem, gozaram de muita vantagem e em todos os sentidos; e que a principal de todas as suas vantagens era que a eles foram confiados os oráculos de Deus― a lei e os profetas.

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Esse assunto, entretanto, é muito grande e muito importante para receber atenção adequada nessa fase de nosso inquérito. Então reservemo-la, para análise, para depois.

A sexta dispensação. O sexto lugar no esquema dispensacional que estamos examinando é designada para a Graça. E bem podemos regozijar que “a graça de Deus que traz salvação se manifestou” (Tito 2:11). Mas é outra coisa bem diferente dizer que a Graça de Deus caracteriza esta era exclusivamente; que Lei e Graça não podem ser misturadas; e que “Estas [Lei e Graça] estão tão distantemente separadas como o monte Sinai e o lugar chamado Calvário, e não podem misturar assim como o ferro e o barro do sonho da estátua de Nabucodonosor”.

A verdade com relação a isso é que havia graça durante a era da Lei, e que há lei durante esta era do Evangelho; que a Nova Aliança completa a Velha; e que o Evangelho de Deus termina a obra que havia começado com a Lei de Deus. Pareceria, a partir da linguagem que o nosso Senhor usou em Mateus 5:17, que Ele tinha esse mesmo erro em vista; pois as Suas palavras eram “Não penseis que vim destruir a lei ou os profetas; não vim destruir, mas cumprir”. E de semelhante modo Paulo, na pergunta que ele faz e responde com relação ao Evangelho: “Anulamos, pois, a lei pela fé? De maneira nenhuma, antes estabelecemos a lei”.

Uma análise mais aprofundada desse assunto, também, deve ser adiada para um capítulo posterior; então só acrescentaremos que a grande diferença entre a era passada e a era presente, no que diz respeito à lei, é que no passado a lei de Deus estava gravada nas tábuas de pedra, enquanto que agora está escrita nos corações de Seu povo redimido (2 Cor. 3:3; Heb. 8:10).

A Sétima Dispensação. Esta, de acordo com o esquema dispensacional mais comumente crida, será o Milênio; embora algumas pessoas dão um lugar dispensacional para uma suposta “grande tribulação”, ou “tempo de angústia de Jacó”, que as mesmas creem que esteja ainda por vir. Mas na medida em que a nossa atual preocupação não é com quaisquer dispensações conjeturais ainda no futuro, pularemos essa parte do assunto geral sem comentário.

CAPÍTULO TRÊS 3. A LEI E O EVANGELHO

A Bíblia distingue― não sete dispensações, cada uma tendo um caráter exclusivamente próprio―, mas duas grandes eras das interações de Deus com a humanidade; a primeira da qual era preparatória à segunda, e a segunda da qual completa a primeira. As designações bíblicas são:

Primeiro: A Velha Aliança; ou a Lei e os Profetas; ou simplesmente, a Lei.

Segundo: A Nova Aliança; ou o Reino de Deus; ou simplesmente, o Evangelho.

Essa divisão não é inventada pelo homem, nem artificial ou conjectural; pois essa divisão vem-nos claramente marcada na estrutura da própria Bíblia, que é composta de duas grandes divisões: o Velho Testamento e o Novo Testamento. (E deve ser observado que a palavra

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“Testamento” é uma das traduções de uma palavra grega que é, às vezes, como em Hebreus 8:6-10, e deveria sempre ser, traduzida por “Aliança”).

Ademais, essas duas grandes divisões da Bíblia são claramente marcadas e separadas, uma da outra, pelo longo espaço de tempo que interveio entre elas, havendo um período de quatrocentos anos entre o último Livro do Velho Testamento e os primeiros eventos (Lucas 1) relatados no Novo.

DEUS TEM FALADO: AOS PAIS―A NÓS

Essa divisão bíblica da interação de Deus com os homens em duas grandes eras é referida em várias passagens. Já citei Lucas 16:16 “A lei e os profetas duraram até João; desde então o reino de Deus é anunciado”, e João 1:17 “Porque a lei foi dada por Moisés, mas a graça e a verdade vieram por Jesus Cristo”. Outra passagem que claramente distingue-as e também esclarece todo o assunto é Hebreus 1:1-2 “Havendo Deus antigamente falado muitas vezes, e de muitas maneiras, aos pais, pelos profetas, a nós falou-nos nestes últimos dias pelo Seu Filho”.

Por meio dessa passagem aprendemos que Deus tem falado em duas eras diferentes: (1) “antigamente”, e (2) “nestes últimos dias”. Aqui temos certeza de algo, e, portanto, podemos seguramente edificar em cima disso. Quão valorosa é a informação de que estes dias do Evangelho de Cristo são “os últimos dias”! Mas os dispensacionalistas devem justificar o significado dessas duas palavras porque, por uma razão, o esquema deles prevê, pelo menos, uma dispensação após o término da era do Evangelho. Há, portanto, outras passagens que confirmam e estabelecem o significado delas. Assim, Pedro, falando do derramamento do Espírito Santo no dia de Pentecostes, disse: “Mas isto é o que foi dito pelo profeta Joel: E nos últimos dias acontecerá, diz Deus, que do meu Espírito derramarei sobre toda a carne” (Atos 2:16, 17); que claramente localiza o dia do Pentecostes na era que a Bíblia de Deus chama de “nos últimos dias”.

Semelhantemente, o mesmo apóstolo escreve a respeito de Jesus Cristo como o Cordeiro de Deus, sem mácula e sem mancha, dizendo: “O qual, na verdade, em outro tempo foi conhecido, ainda antes da fundação do mundo, mas manifestado nestes últimos tempos por vós” (1 Pedro 1:19, 20). E o apóstolo João diz com brevidade característica e ênfase: “Filhinhos, é já a última hora” (1 João 2:18).

Em seguida, temos as palavras de Paulo que, referindo-se às coisas que aconteceram aos israelitas no deserto, disse: “Essas coisas aconteceram a eles como exemplos e foram escritas como advertência para nós, sobre quem tem chegado o fim dos tempos [lit., os fins dos séculos]” (1 Cor 10:11). E, de novo, está escrito a respeito da primeira vinda de Cristo que “agora ele apareceu uma vez por todas no fim dos tempos, para aniquilar o pecado mediante o sacrifício de si mesmo” (Heb. 9:26). É digno de observação especial que essa última passagem contém o advérbio de tempo “agora”, enfatizando o fato de que o período da vinda do nosso Senhor e de Seu sacrifício pertence ao “fim dos tempos”. Lembramos que a “Bíblia Scofield” coloca-o [o “período da vinda...”] na era da lei, e faz isso com o propósito de separar as Suas palavras (e particularmente o Seu Sermão no Monte) de nós, filhos de Deus, e aloca-as para um Reino Judaico imaginário de uma suposta dispensação futura. Quão satisfatório

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para o coração, e quão fatal para esse erro modernista e pernicioso, são as palavras de Hebreus 1:1-2, citado acima, que claramente declara que Deus “A NÓS falou-NOS nestes últimos dias pelo Seu Filho”!

A LEI DE MOISÉS UMA BÊNÇÃO INCRÍVEL PARA ISRAEL

E agora no que se refere ao caráter das interações de Deus com aqueles que estavam sob a Lei e o caráter da própria Lei, é difícil, de fato, explicar e mais difícil falar calmamente dos termos de menosprezo e forte repugnância em que os líderes dos dispensacionalistas expressam a si mesmos quando falam da Lei de Deus. Do nosso Senhor foi profetizado que Ele iria “engrandecer a lei e torná-la gloriosa”, mas o objetivo de muitos de Seus ministros nestes dias parece ser de depreciar a lei e fazê-la detestável. Tome alguns espécimes dos escritos de dispensacionalistas proeminentes: “A Lei é um ministério de condenação, morte, e a maldição divina”. Assim diz a Bíblia Scofield (notas de Gál. 3:24). Mas fala assim a Bíblia de Deus? Veremos. E outro dispensacionalista proeminente declara que “A lei era o instrumento de condenação, e somente isso”. De fato, os líderes entre os dispensacionalistas parecem deleitarem-se ―não como os Salmistas deleitaram-se “na Lei do Senhor” (Sl. 1:2), mas― em injuriar em termos da mais forte reprovação contra a Lei. Em apoio a essa compreensão da Lei, referências são comumente feitas a certas passagens em Gálatas, e também ao sétimo capítulo de Romanos, que são mal interpretadas de tal forma a fazê-las transmitir uma aparência de apoio para essa compreensão. Mas antes de examinarmos aquelas passagens, vamos analisar a testemunha das Escrituras, que é clara e inequívoca, quanto ao que realmente seja o caráter da Lei. Já temos citado o testemunho de Moisés de que a Lei entregada no Sinai era o dom de amor de Deus ao povo (Deut. 33:3). É afirmado mais adiante naquele relato inspirado da “bênção com que Moisés, homem de Deus, abençoou os filhos de Israel antes da sua morte”, que “postos serão no meio, entre os Teus pés, e cada um receberá das Tuas palavras” (v. 3). E ele continua a dizer: “Moisés nos prescreveu uma lei”, e que esta lei é “a herança de Jacó” (v. 4).

Várias passagens nos Livros de Moisés revelam que a lei foi dada como um meio de vida. Assim, em Deuteronômio 4:1 Moisés exorta Israel a dar ouvidos aos estatutos e juízos que (ele diz) “eu vos ensino, para os cumprirdes, para que vivais”. (E para o mesmo efeito ver Levítico 18:5). E a respeito das Leis de Deus, ele diz: “porque isso é a vossa sabedoria e o vosso entendimento à vista dos povos, que ouvirão todos estes, estatutos, e dirão: Esta grande nação é deveras povo sábio e entendido. . . . E que grande nação há que tenha estatutos e preceitos tão justos como toda esta lei” (Deut. 4:6-8). Assim, a Lei de Deus foi dada ao povo de Israel para ser sua vida; e constituía sua sabedoria, seu entendimento, e sua grandeza à vista de todas as outras nações. E um pouco mais adiante Moisés diz: “O Senhor nos ordenou que cumpríssemos todos estes estatutos e temêssemos o Senhor, nosso Deus, para o nosso perpétuo bem, para nos guardar em vida. . . . E será justiça para nós, se tivermos cuidado de cumprir todos estes mandamentos” (Deut. 6:24-25). E ele diz-lhes que foi porque o Senhor os amou que Ele tinha os redimido para fora do Egito; e que “Ele é o Deus fiel, que guarda a aliança e a misericórdia, até mil gerações, aos que O amam e guardam os Seus mandamentos” (Deut. 7:8-9). Assim, eles deveriam amá-Lo, porque Ele os amou primeiro; e eles deveriam manifestar o seu amor guardando os Seus mandamentos. E é diferente agora? Não está escrito “Nós o

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amamos porque ele nos amou primeiro” (1 John 4:19)? E não diz o nosso Senhor a nós assim como Ele disse a eles: “Se me amais, guardai os meus mandamentos” (João 14:15)?

Finalmente, antes de deixar Moisés, chamamos a atenção para Deuteronômio 30:11-20, onde ele diz ao povo que o mandamento que deveria ser a vida deles, não estava escondido deles (pois Deus tinha o revelado a eles) nem estava longe. Não estava no céu, nem estava além do mar; mas tinha sido trazido mui perto deles para que pudessem ouvi-lo e cumpri-lo. “E os seus mandamentos não são penosos” agora (1 João 5:3); nem eram penosos então. Pois naquela ocasião, Moisés deu, como o grande mandamento da lei, para “que ames ao Senhor teu Deus, que andes nos Seus caminhos, e que guardes os Seus mandamentos, e os Seus estatutos, e os Seus juízos” (Mat. 22:37). E ele repete no verso 20 a exortação que eles “amariam o Senhor” e “obedeceriam a Sua voz”; e para a razão que “Ele é a tua vida, e o prolongamento dos teus dias”.

De acordo com Paulo, a palavra que Moisés tinha dito que estava “perto” deles, não longe (no céu ou além do mar), era a mesmíssima “palavra da fé que pregamos” (Rom. 10:8-13); citando como prova disso duas passagens do V.T.: “aquele que confia n’Ele jamais será abalado” (Isa. 28:16); e “Todo aquele que invocar o nome do Senhor será salvo” (Joel 2:32).

Semelhantemente, Pedro testifica que as coisas ministradas pelos profetas durante a era da Lei são as mesmas que são agora proclamadas por aqueles que pregam o Evangelho (1 Pedro 1:12). Não estamos dizendo, é claro, que não é uma coisa muito melhor estar sob Graça do que sob Lei; pois verdadeiramente Deus tem “provido coisa melhor a nosso respeito” (Heb. 11:40), mas estamos buscando o testemunho da Bíblia de Deus quanto ao caráter de Sua lei, que a “Bíblia Scofield” gravemente maldiz; e o seu [Bíblia de Deus] testemunho quanto ao que isso significava para os israelitas de estarem sob a lei de Deus ao invés de serem deixados para os seus próprios caminhos, assim como os pagãos todos ao redor deles. E temos visto que Moisés, o mediador daquela Velha Aliança, repetidamente declarou a eles que, na possessão da lei de Deus, eles estavam indescritivelmente abençoados, e principalmente em que isso providenciava uma forma de vida para todos que colocam o seu coração para obedecê-la. Olhando um pouco mais adiante, observamos que o Livro dos Salmos começa com uma referência brilhante à bem-aventurança do homem cujo “prazer está na lei do SENHOR” e que medita nela “de dia e de noite” (Sl. 1:2). E há outras passagens, não só algumas, que testificam que a lei de Deus era uma coisa que o coração do homem poderia (e, portanto, deveria) encontrar prazer, e encontrar também meditações proveitosas continuamente (Jó 23:12; Sl. 119:70, 77, 92, 174).

Ora, quanto aos efeitos da lei, tão longe de ser verdade que era “o instrumento de condenação, e somente isso” ou “um ministério de condenação, morte, e maldição divina”, o testemunho do Espírito Santo é que “A lei do Senhor é perfeita, e refrigera a alma”; e que “o mandamento do SENHOR é puro, e ilumina os olhos” (Sl. 19:7-8). E o mesmo Salmo declara quanto ao valor dos mandamentos e julgamentos do Senhor, que esses “Mais desejáveis são do que o ouro, sim, do que muito ouro fino”― mais intrinsicamente valioso do que grandes quantidades dos mais ricos tesouros da terra― e que, tão longe de ser desagradável e detestável, os mandamentos “são mais doces do que o mel, do que as gotas do favo” (v. 10).

O escritor do Salmo 119 adiciona o seu testemunho de que há coisas prodigiosas a serem vistas na lei (v. 18); que isso [a lei] era melhor para ele “do que milhares de ouro ou prata” (v.

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72); que ele amou-a além do seu poder para expressar (v. 97); que por meio de seus preceitos ele adquiriu entendimento, e aprendeu, assim, a odiar todo caminho falso (v. 104); e que “Grande paz têm os que amam a tua lei; para eles não há tropeço” (v. 165).

Salomão, também, testemunha que “o mandamento é lâmpada, e a lei é luz” (Prov. 6:23); e que “a lei do sábio é fonte de vida” (13:14). Luz e vida estavam certamente lá para todos que buscavam-nas; e muitos buscaram e encontraram. Salomão também relata as palavras “Guarda os meus mandamentos e vive; e a minha lei, como a menina dos teus olhos” (7:2).

Isaías, ao predizer algumas das coisas gloriosas que Cristo (quem Deus designa naquela passagem como “Meu Servo”) deveria realizar, diz que Deus tem dado Ele “para luz dos gentios”; e que “Ele irá engrandecer a lei e fazê-la gloriosa” (Isa. 42:6, 21). Não é isso uma repreensão àqueles que difamam a lei e tornam-na desprezível? Semelhantemente, durante o cativeiro babilônico, Deus, ao contar as grandes coisas que Ele tinha feito para Israel e Seus muitos atos de misericórdia em favor deles, enfatiza a entrega da lei como uma das principais dessas grandes coisas, dizendo: “E dei-lhes os meus estatutos e lhes mostrei os meus juízos, os quais, cumprindo-os o homem, viverá por eles” (Ezequiel 20:11).

Também, através de Oséias, Deus, ao contar as ofensas de Israel, disse: “Escrevi-lhe as grandezas da minha lei, porém essas são estimadas como coisa estranha” (Oséias 8:12). E através do último dos profetas de Israel, e em quase as últimas palavras de sua mensagem, Deus chama a eles: “LEMBRAI-VOS DA LEI DE MOISÉS, MEU SERVO, QUE LHE MANDEI EM HOREBE PARA TODO O ISRAEL, A SABER, ESTATUTOS E JUÍZOS” (Mal. 4:4).

É possível, diante desses testemunhos, crer que a lei foi “imposta” sobre Israel por causa de sua própria escolha imprevidente? Que “No Sinai eles trocaram Graça por Lei; que eles precipitadamente aceitaram a lei”? Ou que “A Lei é um ministério de condenação, morte, e maldição divina”, um instrumento de “severidade impiedosa”? Se não for assim, deveremos permitir essas coisas falsas e depreciativas relativas à lei, de Deus, que é santa, que dá vida, que ilumina a alma, a continuarem a ser pregadas e ensinadas entre nós sem protesto fervoroso de nossa parte?

Isso é uma questão séria, de fato; e, portanto, acredito que meus leitores possam ser movidos a juntarem-se em um protesto solene contra publicações futuras e vendas de um livro que muitos filhos, de Deus, desavisados, aceitam como uma “Bíblia”, e que contém uma representação errônea tão grave “somando-se a um vilipêndio” da santa Lei de Deus.

O QUE O NOVO TESTAMENTO DIZ COM SOBRE LEI

Mas será perguntado se os servos de Deus sob a Nova Aliança, os apóstolos de nosso Senhor que sempre têm sido ensinados pela Graça, não dão um caráter diferente à Lei daquele [caráter] que lhe é atribuída pelos escritores do Velho Testamento. Temos citado as palavras de Cristo que Ele veio, não para destruir a lei e os profetas, mas para cumpri-las; e também as palavras de Paulo para o mesmo efeito, que o propósito do Evangelho é de “estabelecer a Lei”. Mais adiante, o nosso Senhor declarou que “o que há de mais importante na lei”, que os Fariseus tinham omitido, são “juízo, a misericórdia e a fé” (Mat. 23:23).

Tradução: Nathan Cazé

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O apóstolo Paulo também, cujas palavra são citadas com autoridade para o ensinamento que estamos agora examinando, fala claramente e forçosamente para o mesmo efeito. Ele diz que “a justiça de Deus”, que é agora manifestada à parte da lei (i.e. pelo evangelho) foi “testemunhada pela lei e pelos profetas” (Rom. 3:21). Ademais, ele declara que “o mandamento” foi “ordenado PARA VIDA”; que “a lei é santa, e o mandamento é santo, justo e bom”; e que “a lei é espiritual” (Rom. 7:10, 12, 14); esses testemunhos carregam mais peso [são mais importantes] porque são encontrados naquela mesma passagem que deve ensinar coisas depreciativas à lei.

Mas não diz o apóstolo Paulo que a lei trouxe morte e uma maldição? Que aqueles que estão sob a lei estão sob uma maldição? E que ninguém pode ser justificado pela lei? A resposta é que a lei é, de fato, uma espada de dois gumes, trazendo vida àqueles que submissamente recebem-na e que posicionam o seu coração para obedecê-la; mas trazendo morte e condenação e uma maldição àqueles que desprezam-na, ou que somente professam respeitá-la com os lábios enquanto que, em seus corações, eles continuam sem mudança em seus próprios caminhos. Mas, precisamente a mesma coisa é verdade quanto ao Evangelho. Pois o ministério do evangelho, assim como o da lei, enquanto um ministério de “vida para vida” a todos que com humildade recebem e submissamente “obedecem ao evangelho”, é também um “cheiro de morte para morte” a todos que recusam-na, ou negligenciam-na, ou que professam com a boca, mas continuam sem mudança no coração (2 Cor. 2:16). Pois a palavra de Cristo é salvação e vida para todos que recebem-na; mas, a respeito de uma pessoa que não recebe as Suas palavras, Ele mesmo tem dito: “a palavra que tenho pregado”― a própria palavra que foi dada para a salvação dessa pessoa― “essa o há de julgar no último dia” (João 12:48). Precisamente, assim é com o mandamento de Deus; naquela mesma passagem Cristo declarou que "o Seu mandamento é a vida eterna" (v. 50).

De fato, as consequências ameaçadas “aos que não obedecem ao evangelho” são representadas como sendo ainda mais severas do que aquelas ameaçadas àqueles que recusaram obediência à lei (2 Tess. 1:7-10). E em Hebreus 10:28-29 é afirmado assim: “Quem rejeitava a lei de Moisés morria sem misericórdia; ―de quanto mais severo castigo julgais vós será considerado digno aquele que calcou aos pés o Filho de Deus”―etc.

Retornando para Paulo, notamos que depois de dizer que “o mandamento era ordenado para vida”, ele imediatamente acrescenta que ele “verificou que me era para morte” (Rom. 7:10). Por que razão? Porque Paulo era um fariseu. Ele tinha sido profundamente doutrinado para o rabinismo, uma das doutrinas cardeais da qual era esse mesmo ensinamento quanto ao caráter terreno e “judaico” do Reino, que tem se tornado a pedra angular do dispensacionalismo moderno. Ele tinha sido educado em uma ortodoxia estéril. Ele era “chamado judeu”, e “se orgulhava na lei” (Rom. 2:17-18, 23); mas ele ainda tinha que aprender que “não é um judeu”― embora “chamado judeu”― “o que o é exteriormente; . . . mas é judeu o que o é no interior” (v. 28, 29).1 É claro, para tal, achar-se-á que a lei era “para morte”; e precisamente assim com o evangelho. Mas todos que eram como Esdras, de quem é relatado que “tinha preparado o seu coração para buscar a lei do Senhor e para cumpri-la” (Esdras 7:10), têm achado que ela [a lei/mandamento] foi de fato “ordenada para vida”. Paulo claramente declara o princípio envolvido aqui quando ele diz “Sabemos, porém, que a lei é boa, se alguém dela usa legitimamente” (1 Tim. 1:8). E o mesmo é verdade a respeito do evangelho também.

Tradução: Nathan Cazé

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Ademais, no que se refere a afirmação frequentemente ouvida nestes dias, que aqueles que estavam sob a lei estavam sob uma maldição, o que Paulo diz é que “todos quantos são das obras da lei estão debaixo da maldição” (Gál. 3:10), que é outra coisa bem diferente. Pois Paulo está aqui protestando contra aqueles que estavam contando, para sua salvação, com os ritos e cerimônias (as “obras”) da lei, com a circuncisão, com a guarda dos dias e afins. “O homem”, ele diz, “não é justificado pelas obras da lei, mas pela fé em Jesus Cristo” (Gál. 2:16). Assim era sob a Lei precisamente como agora sob Graça. E não deveria ser necessário dizer que um homem não pode ser salvo por ritos cristãos e observâncias (batismo, a ceia do Senhor, a guarda dos dias santos etc.) do que por aqueles [ritos e observâncias] do judaísmo. Então o apóstolo declarou, em outro lugar, dizendo “Israel, que buscava a lei da justiça, não a alcançou. Por quê?” [Rom. 9:31-32a] (Era porque a justiça era alcançável pela lei? De modo nenhum; mas) “Porque não a buscavam pela fé, mas como que pelas obras da lei” [Rom. 9:32] (Rom. 11:7); e como temos visto a partir da palavra do próprio Cristo, a fé é um dos “preceitos mais importantes da Lei”; e, claro, nenhum montante de “as obras da lei” servirá ao invés.

Continuando em Gálatas, Paulo pergunta se eles tinham recebido o Espirito “pelas obras da lei ou pelo ouvir com fé” (3:2); e se ele mesmo, que tinha ministrado a eles pelo Espírito e tinha operado maravilhas entre eles, tinha feito isso “pelas obras da lei, ou pelo ouvir com fé” (v. 5). E se ele declara que― tão longe do que os dispensacionalistas ensinam a respeito de ter tido uma mudança completa nos princípios das interações de Deus com os homens― Deus atua agora com precisamente os mesmos princípios do passado, “Assim como Abraão creu a Deus, e isso lhe foi imputado como justiça”. E acrescenta como corolário: “Sabei, pois, que os que são da fé são filhos de Abraão” (v.7).

Esse versículo claramente identifica aqueles que herdarão as promessas feitas “a Abraão e à sua descendência” (v. 16), e completamente exclui os descendentes naturais de Abraão. O último versículo confirma isso; pois lemos: “E, se sois de Cristo, então sois descendência de Abraão, e herdeiros conforme a promessa” (v. 29). E isso, como mais impressionantemente mostrado pela “alegoria” no próximo capítulo, torna evidente que não restam quaisquer promessas não cumpridas de bênção para os judeus naturais como tal. A isso, espero retomar.

Mais adiante no capítulo III de Gálatas, Paulo aborda a questão de se “a lei é contra as promessas de Deus” (v. 21). De acordo com o ensino dispensacional, a resposta seria “sim”. Pois, como temos visto, a chamada “dispensação da promessa”, que abrange as vidas de Abraão, Isaque, Jacó, José e seus descendentes por várias gerações, terminou no monte Sinai onde Israel “precipitadamente aceitou a lei”; e logo após, uma nova dispensação (a lei, com seu ministério de condenação, morte e a maldição, e com um caráter e princípios regentes totalmente diferentes) foi inaugurada. Assim, é claramente o ensino da Bíblia Scofield de que a lei é contra as promessas de Deus. Mas, Paulo rejeita com indignação a ideia de que “a lei” seja, de qualquer forma, contrária às “promessas de Deus”, dizendo: “De modo nenhum” (v. 21); e ele continua a mostrar que a lei tinha um grande propósito para cumprir: introduzir a vinda d’Aquele que cumpriria justiça eterna e seria a Fonte de vida eterna a todo o mundo. Pois ele diz: “De maneira que a lei nos serviu de aio”; e para quê? “para nos conduzir a Cristo, para que pela fé fôssemos justificados” (v. 24). E ele acrescenta: “Mas, depois que veio a fé, já não estamos debaixo de aio”. Até agora, portanto, ao falar com menosprezo acerca daquele “aio” divinamente dado, ou dizendo que seu ministério era inútil e pior, ele mostra que esse [aio] era muito necessário e importante. Isso não anulou as promessas previamente dadas. Isso não

Tradução: Nathan Cazé

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introduziu uma nova era caracterizada por princípios contraditórios; mas “Foi acrescentada” (ao que Deus tinha previamente feito) “por causa das transgressões, até que viesse o Descendente a quem se fez a promessa” (v. 19). E um outro propósito da lei, em preparação para o evangelho, era “que toda boca se cale e TODO O MUNDO ESTEJA SOB O JUÍZO DE DEUS” (Rom. 3:19).

Dando continuação ao ensinamento de Gálatas, vemos que a lei, como dada do monte Sinai em tábuas de pedra, era adequada a uma fase imatura das interações de Deus com o mundo (Gál. 4:1-4); e que a subsequente entrega da lei aos corações de um povo lavado, pelo Espírito Santo, pelo sangue (v. 5-7) era a marca da fase adulta ou madura da mesma pessoa vivente (por assim dizer). E disso aprendemos que o evangelho, tão longe de ser antagônico à lei, sustenta com relação a isso a mesma relação que o período adulto da vida de um homem traz para a sua infância.

E nesse contexto, a lição pertinente para o nosso propósito presente é que “as obras da lei” contra as quais Paulo estava advertindo os gálatas (a observância dos “dias e meses, e tempos e anos” (v. 10) e a circuncisão (5:2, 6)), pertenciam à fase infantil das interações de Deus com Seu povo. E era por essa razão que, embora eles serviram propósitos úteis por um certo período, eles seriam postos de lado como coisas crescidas, agora que “a plenitude do tempo veio” (v. 4). Como Paulo disse em outro lugar: “Quando eu era menino, falava como menino, entendia como menino, pensava como menino; mas quando cheguei a ser homem, deixei para trás as coisas de menino” (1 Cor. 13:11)― não, que seja observado, porque eles eram detestáveis ou repreensíveis, mas simplesmente porque eles eram crescidos, e seriam um empecilho para os deveres da virilidade. Vemos, portanto, que as próprias passagens que são usadas hoje-em-dia para criar sentimentos de aversão contra a lei de Deus, e para fazê-la parecer como algo totalmente antagônico ao evangelho, ensinam o próprio contrário; isto é, que a lei era uma fase de obra divina preliminar àquela do evangelho; ou, em outras palavras, que a lei e o evangelho são fases complementárias da única e mesma grande obra de Deus.

Pois a verdade a esse respeito é, como tem sido ensinado por todos os séculos cristãos, que a lei era uma parte necessária do grande plano de Deus de Redenção, mesmo como é o Evangelho. E como um espécimen excelente do que os servos iluminados de Cristo, homens que eram poderosos nas Escrituras, têm sempre ensinado a respeito da relação da Lei ao Evangelho (antes que o dispensacionalismo fosse inventado), eu cito o seguinte da obra celebrada de Bernard, O Progresso da Doutrina [The Progress of Doctrine]:

“Um princípio que é defendido e protegido (pelos apóstolos de Cristo no ensinamento deles) é que o Evangelho é o herdeiro da Lei; que aquela herda o que a Lei tem preparado”.

“A Lei, no seu lado nacional e cerimonial, tem criado um sistema, de ideias, vasto e interligado de perto. Essas [ideias] foram operadas e exibidas por ela [Lei] em formas de acordo com a carne―uma nação eleita, uma história milagrosa, uma aliança especial, um santuário terrestre, um serviço perpétuo, um sacerdócio ungido, uma santidade cerimonial, um esquema de sacrifício e expiação, uma possessão comprada, uma cidade santa, um trono de Davi, um destino de domínio. Eram essas ideias para serem perdidas? Era a linguagem que expressou-as para serem deixadas quando o Evangelho veio? Não! Este [o Evangelho] era herdeiro da Lei. A Lei tinha preparado essas riquezas; e a mesma agora legou-as a um sucessor capaz de destravar e difundi-las. O Evangelho reivindicou todas elas, e desenvolveu nelas um valor

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desconhecido antes. Esse [Evangelho] afirmou a si mesmo como a continuação correta e predestinada da aliança feita de Deus com os pais, o real e único cumprimento de tudo que foi tipificado e profetizado; apresentado as mesmas ideias que tinham sido antes incorporadas nos limites estreitos, mas distintos das formas carnais de seu caráter espiritual, universal, e eterno”.

“O corpo de tipos de acordo com a carne morreu com Cristo; e com Cristo, o mesmo ressuscitou de novo, um corpo de antítipos de acordo com o Espírito. Aqueles que são segundo a carne não poderiam reconhecer a sua identidade; aqueles que eram segundo o Espírito realizaram e proclamaram-na. A mudança era tão grande, a identidade era tão real, como naquele mistério da ressurreição do corpo que os mesmos pregadores mostraram; em que o quadro terrestre deve pôr de lado a carne e sangue que não podem herdar o Reino de Deus, e devem reaparecer; mortos e ressuscitados de novo; outra e ainda a mesma; ‘semeado em fraqueza e ressuscitado em poder, semeado em desonra e ressuscitado em glória, semeado um corpo natural e ressuscitado um corpo espiritual’”.

NOTAS

1. De passagem, observe-se que, pela luz desse versículo, pode ser visto que todas as promessas de Deus onde se lê a Israel ou aos judeus, são verdadeiras para o “Israel” verdadeiro (Rom. 9:6; Gál. 6:16), e os judeus reais. Veja a passagem aqui no livro intitulada “ISRAEL NÃO ALCANÇOU; MAS A ELEIÇÃO O ALCANÇOU”. (p. 236).

CAPÍTULO 4 4. O PRINCÍPIO DO EVANGELHO DE JESUS CRISTO, O FILHO DE DEUS

AS palavras do título do nosso capítulo são as primeiras palavras do Evangelho de Marcos. Elas são palavras esclarecedoras; e, de fato, elas são bem suficientes em si mesmas para responder uma questão que nos confronta nesse ponto: Quando começou a era do Evangelho? É extremamente importante que deveríamos ter a resposta certa a essa questão; e sabemos onde buscá-la.

Temos visto que a Bíblia distingue duas grandes eras, e essas duas eras estão relacionadas de perto, uma à outra, embora exista diferenças marcantes entre elas; a primeira sendo variavelmente designada como “a velha aliança”, “a lei e os profetas”, ou simplesmente “a lei”; e a segunda sendo variavelmente designada como “a nova aliança”, “o reino de Deus”, ou simplesmente “o evangelho”. Nossa Bíblia nos diz que estamos agora no “princípio” de alguma coisa; e que esta coisa é “o evangelho de Jesus Cristo”. Poderíamos ter uma resposta mais clara à nossa pergunta?

E a passagem continua a dizer o que foi que marcou “o princípio do evangelho”; e prossegue a declarar que o evento que marcou-o era algo que tinha sido predito nas Escrituras. Pois lemos: “Como está escrito nos profetas: Eis que eu envio o meu anjo ante a tua face, o qual preparará o teu caminho diante de ti. Voz do que clama no deserto: Preparai o caminho do Senhor, endireitai as Suas veredas” [Mc 1:2-3]. A referência é de Isaías 40:3; e a profecia foi

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cumprida, como esse primeiro capítulo do Evangelho de Marcos declara, na pregação e ministério de João o Batista.

Esse é o próprio “princípio”, o próprio primeiro evento daquela longa esperada era. “EVANGELHO DE JESUS CRISTO, O FILHO DE DEUS”. Mas o ministério de João foi de curta duração; pois a inimizade dos judeus foi rapidamente despertada, por causa da contradição entre sua pregação e as expectativas deles; e ele foi jogado na prisão. E então aconteceu outro evento de interesse transcendente; pois o ministério público do próprio Cristo (cujo “caminho” João tinha sido enviado a “preparar”) começou imediatamente. Pois está escrito: “Ora, depois que João foi entregue à prisão, veio Jesus para a Galiléia, pregando o evangelho do Reino de Deus, e dizendo: O tempo está cumprido, e o Reino de Deus está próximo. Arrependei-vos, e crede no evangelho” (v. 14-15).

Essas palavras tornam evidente que “o evangelho de Jesus Cristo, o Filho de Deus”, e “o evangelho do Reino de Deus” são uma e a mesma. Ademais, as palavras “O tempo está cumprido” manifestadamente aponta para algo de importância excepcional da qual promessas tinham sido dadas pelos profetas. Essas [promessas] referem-se, é claro, àquela era prometida de vitória sobre o pecado, àquela era da ferida da cabeça da serpente, de a salvação de Deus para todos os homens através da vinda do Libertador prometido, a era da aliança eterna e as fiéis misericórdias de Davi; em suma, elas referiram-se ao tempo determinado para o cumprimento de todas as coisas gloriosas que Deus tinha falado pela boca de todos os Seus santos profetas desde que o mundo começou. “O tempo”, para a coisa a qual todos corações crentes tinham olhado e almejado, foi “cumprido”. Assim disse Cristo; e Ele também exortou aqueles que ouviram o anúncio para arrependerem-se e crerem “no evangelho”. Observe que a proclamação de que o tempo estava cumprido Ele chama de “o evangelho”.

Mas, em contradição direta a essas declarações (que são tão claras quanto é possível para alguém fazê-las), a “Bíblia Scofield” assevera que a dispensação da lei, com a sua “severidade impiedosa” e todas as características apavorantes de condenação, morte e a maldição que essa publicação [de Scofield] atribuiu a essas [declarações], continuou até a crucificação de Cristo; e aquela [Bíblia Scofield] assevera ainda que “o Reino de Deus” (que essa autoridade dispensacional interpreta como sendo o reino terreno de expectativa judaica) não estava “próxima”, mas estava no futuro bem distante. Aqui então temos uma situação muito séria. Pois se essa era de João o Batista não fosse “o princípio do evangelho de Jesus Cristo, o Filho de Deus”, então a mais simples das palavras bíblicas simples, que têm sido compreendidas por dezenove séculos de acordo com seu sentido evidente, têm um significado completamente diferente do que sempre se pensara. E se o Reino, o qual o nosso Senhor disse que naquela época “está próximo”, não estivesse de nenhuma forma próximo, mas muito longe, Ele certamente fez com que aqueles que ouviram-No, crendo, e todos os que têm escutado as Suas palavras por quase dois mil anos, cressem no que não era verdade.

Tomamos, primeiro, a questão:

Que Reino era aquele o qual Cristo disse estar próximo?

Ao considerar essa questão, note-se que havia um “Reino de Deus”, naquela época, próximo; pois os servos de Cristo logo após disso começaram a pregá-lo como uma realidade presente (Atos 8:12; 14:22; 20:25, etc.); e ademais, o apóstolo Paulo, em sua grande epístola do

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Evangelho, deu uma definição disso (Rom. 14:17). Há, então, dois Reinos de Deus diferentes, um dos quais estava próximo, e um muito longe no futuro? É Deus o autor de confusão? E se havia dois Reinos de Deus, um naquela época por perto e o outro muito longe, é concebível que o Reino de Deus, o qual Cristo disse estar naquela época “próximo”, era o que estava, na verdade, no futuro remoto?

Como é possível, pergunto eu, para qualquer um que compromete-se a explicar as Escrituras a chegar na conclusão de que o “Reino de Deus”, que na verdade estava “próximo”, não é o “Reino de Deus” que o Senhor disse estar “próximo”; ou, (para afirmar de outra forma) que o “Reino de Deus” que o Senhor publicamente declarou “está próximo”, provou não estar próximo de nenhuma forma; isso, por estranho que pareça! Outro “Reino de Deus”, acerca do qual Ele não fez nenhuma menção, estava próximo?

Tenho cuidadosamente examinado as notas da “Bíblia Scofield” em busca da explanação disso. Descobri, por um lado, que nenhum versículo é citado para apoiar o ponto de vista do editor [da Bíblia Scofield]; pois não há nenhuma palavra na Bíblia no sentido de que o Reino anunciado pelo Senhor tem sido “adiado” ou está “em suspenso”. A própria declaração do Senhor, da primeira à última, nunca modificou, mas proclamou com ênfase cada vez maior, era que o Reino estava “próximo”.

Mas o ensinamento da Bíblia Scofield quanto ao Reino de Deus está fundada, no entanto, na suposição sem-base de que os profetas de Israel, ao preverem a vinda do Messias e de uma era de bênção, salvação e vitória para o Seu povo, estavam predizendo a restauração da grandeza terrena do Israel natural. Portanto, o editor da publicação, tendo comprometido a si mesmo profundamente a essa nova ideia surpreendente, e tendo perdido vista das muitas interpretações daquelas profecias no Novo Testamento as quais mostram que referiram-se (em linguagem figurativa) à Redenção e ao Reino Espiritual baseadas nisso, tem tentado em suas notas fazer o Novo Testamento concordar com sua teoria falsa.

Mas a tentativa é uma impossibilidade. Na verdade, o próprio editor abandona-a completamente após carrega-la parcialmente pelo Evangelho de Mateus. Qualquer um pode ver isso por si mesmo, que se esforça um pouquinho para examinar a questão. Pois temos que começar com a suposição ousada, mas infundada de que as palavras “Reino de Deus” e “Reino do céu” nos lábios do nosso Senhor significou o reino terreno de Israel. Então, temos a suposição igualmente ousada e igualmente infundada de que a suposta “oferta” do reino terreno aos judeus dos dias de Cristo foi rejeitada por eles, e que, como resultado de tal suposta rejeição, o mesmo [o reino] foi tirado e adiado; embora não haja nenhum vestígio, qualquer que seja, nos relatos inspirados de qualquer tal oferta, ou rejeição, ou tirada, ou adiamento; e embora não haja nenhum indício de que o propósito de Deus de introduzir o Reino que Ele tinha anunciado (e anunciou sem qualquer qualificação) estava, ou poderia ter sido, derrotado ou adiado pela ação dos judeus dos dias de Cristo.

Nas “notas” [da Bíblia Scofield], a rejeição alegada está localizada em Mateus 11:20, como aparece pela seguinte declaração:

“O Reino do céu anunciado como ‘próximo’ por parte de João o Batista, por parte do próprio Rei, e por parte dos doze, e certificado pelas obras poderosas, tem sido moralmente rejeitado”.

Tradução: Nathan Cazé

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Em seguida, as palavras do Senhor relatadas em Mateus 11:28-29, são chamadas pelo editor [da Bíblia Scofield] como “A nova mensagem de Jesus― não o reino, mas descanso e serviço”; e isso, somos ditos, é “o ponto central no ministério de Jesus”,― isto é, o ponto em que Ele abandona a Sua mensagem sobre o Reino estando próximo, e começa a substituir por uma mensagem de caráter inteiramente diferente.

Eu protesto seriamente [crendo] que essas declarações são completamente errôneas, e confiantemente mantenho que o Senhor tinha somente uma mensagem, que era o evangelho de Deus, e que o Reino, que Ele pregou enquanto estava na terra e introduziu quando Ele enviou o Espírito Santo do céu, é o próprio “descanso e serviço” que Ele ofereceu e ainda oferece para todos os cansados e sobrecarregados.1

Na sequência disso tem uma nota [da Bíblia Scofield] (em Mat. 12:46) que assevera que o nosso Senhor “rejeitado por Israel”, agora intima a formação da “nova família de fé”. Mas o fato é que a “nova família”― composta dos filhos do Seu Pai no céu―tinha sido anteriormente referida, amplamente, e nos mais precisos termos quanto ao seu relacionamento com Deus, no Sermão no Monte. Mas na medida em que isso inquietaria completamente a teoria do editor de encontrar qualquer indício da “nova família” naquela parte de Mateus, ele firmemente fecha seus olhos à apresentação conspícua disso naqueles capítulos, e localiza a primeira “intimação” disso no capítulo 12. Pois isso é tão claro para qualquer leigo em Cristo como o sol no céu ao meio-dia, que no Sermão no Monte, Deus o “Pai que está nos céus”, está falando a Seus próprios “filhos” na terra, pelos lábios do Seu próprio Filho. Mas o fato, tão vital para todos da família de Deus, iria, se reconhecido, destruir completamente a teoria do editor, então ele ignora e até mesmo contradiz isso.

A fim de se obter uma aparência de apoio para os seus pontos de vista, o editor afirma em uma nota sobre a entrevista do Senhor com a mulher da siro-fenícia, (Mat. 1:2 [sic] [correto: nota de Mat. 15:21]) que “Pela primeira vez o rejeitado Filho de Davi ministra a um gentio”. Isso é necessário para a teoria que estamos examinando; pois se Cristo fosse encontrado ministrando a um gentio antes de Mateus 11, essa ação de Sua parte destruiria o caráter “judaico” e “legal [relativo à lei]” que o editor imputa a essa parte do ministério do Senhor; e essa [ação] demoliria a teoria completamente. Como é possível, então, que o editor e editores associados e todos os que têm ajudado a corrigir os erros dessa edição por mais de vinte anos, têm sido cegados para o fato de que o Senhor curou o servo do centurião, como registrado em Mateus 8:5-10, e em conexão com isso usou aquelas palavras admiráveis “Em verdade vos digo que nem mesmo em Israel encontrei tanta fé”? E como podemos explicar a falha, por parte de todos aqueles homens doutos, de observar o registro em Mateus 4:24 de que a fama de Jesus correu por toda a Síria, e trouxeram a Ele todas as pessoas doentes, e Ele curou-as? E pela falha deles [os editores] de observar também que, mesmo antes que o Senhor começara a pregar publicamente na Galiléia, Ele ministrou e revelou a Si mesmo como “Cristo” à mulher de Samaria, e que muitos dos samaritanos creram n’Ele? (João 4).2

Essas são somente alguns de muitos casos que mostram que os defensores da teoria do adiamento estão misteriosamente cegados aos fatos mais claros quando esses fatos estão em conflito contra essa teoria; enquanto que, por outro lado, eles afirmam ter a habilidade de “ver” coisas no texto das Escrituras que apoiam a sua teoria, embora outros são totalmente incapazes de encontrar vestígios disso. Mas, sem deter-se nisso, eu pediria atenção específica

Tradução: Nathan Cazé

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ao fato de que, mesmo de acordo ao tipo de prova pela qual nossos amigos buscam manter sua teoria, os fatos relativos ao servo do centurião e o ministério pessoal, de nosso Senhor, de salvação (a “água viva”) aos samaritanos, refutam essa teoria completamente.

Prosseguindo as notas supracitadas da "Bíblia de Referência [de Scofield]", chegamos ao capítulo, muito importante, 16 do Evangelho de Mateus, onde a “igreja” é mencionada pela primeira vez pelo nome; e ali, como um comentário sobre o versículo 20, na qual o Senhor ordenou aos Seus discípulos “que a ninguém dissessem que Ele era Jesus o Cristo”, está a seguinte nota:

“Os discípulos estavam proclamando Jesus como o Cristo, i.e., o Rei pactuado de um reino pactuado aos judeus e ‘próximo’. A igreja, do contrário, deve ser edificada no testemunho a Ele como crucificado, ressuscitado dentre os mortos, ascendido e feito Cabeça sobre todas as coisas à igreja (Ef. 1:20-23). O testemunho anterior foi encerrado; o novo testemunho não estava ainda pronto etc.”. (itálicos são meus).

Peço atenção especial a essas declarações, pois elas são de importância fundamental; e elas incorporam erros de um caráter muito sério; embora, felizmente, os erros estão claramente por ser vistos à luz das Escrituras.

1. Para começar, os discípulos não estavam “proclamando Jesus como o Cristo”, e o texto ao qual essa nota gravemente enganosa é anexada torna esse fato surpreendentemente claro. Na verdade, a nota contradiz e falsifica completamente o texto, como qualquer pessoa com apenas um pouco de atenção pode ver claramente. Pois a ideia principal das palavras do Senhor em Cesaréia de Filipe depende do fato de que os discípulos finalmente tinham se tornado cientes, através da revelação de Deus o Pai, que Ele, Jesus, era o Cristo. Se eles estivessem proclamando Ele, ou se Ele estivesse proclamando a Si mesmo no ouvir deles, como “o Cristo, o Rei pactuado”, e estivesse oferecendo aos judeus o Reino que eles estavam esperando, que significado haveria para a Sua pergunta “Quem dizem os homens que Eu sou?” Ou para as Suas palavras a Simão (quando esse último fez a grande confissão “Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo”), de que “a carne e o sangue” não revelou isso a ele, mas “por Meu Pai que está nos céus”? Claramente, é impossível que Ele deveria ter proferido essas palavras se as declarações das notas do Dr. Scofield fossem verdadeiras.

Que não seja esquecido que, de acordo com a teoria que estamos examinando, o Senhor tinha sido pregado por toda a região como o Cristo de Deus, vindo para estabelecer o trono terreno de Davi. No entanto, a Sua própria pergunta “Quem dizem os homens que Eu, o Filho do homem, sou?” e a resposta dos discípulos, mostram claramente que Ele era praticamente desconhecido. Pois se Ele tivesse anunciado a Si mesmo como Cristo, o Rei, e tivesse sido dessa forma proclamado por parte dos Seus apóstolos, Ele não poderia ter feito aquela pergunta. Nem eles podiam, naquele caso, ter dito: “Alguns dizem que é João o Batista; outros, Elias; e, ainda outros, Jeremias ou um dos profetas”. E ademais, se Ele tivesse sido publicamente proclamado como “Cristo, o Rei”, Ele não poderia ter ordenado eles a não dizerem a ninguém que Ele era o Cristo.

Não há fundamento algum para tal declaração incorreta; pois os fatos claros são que o Senhor nunca tinha proclamado a Si mesmo como Cristo, o Rei. Seu jeito tinha sido sempre de deixar as Suas obras falarem por Ele (Mat. 11:4-5; João 5:36; 10:25, etc.). O nome pelo qual Ele quase

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invariavelmente chamava a Si mesmo era “O Filho do Homem”, um nome que liga Ele com os gentios tanto quanto com os judeus.

Quando o Senhor atravessou o mar com os discípulos após alimentar os cinco mil, e acalmou o vento e as ondas mediante a Sua Palavra, eles pensaram que tipo de homem Ele era; e está registrado, em Marcos 6:52, que “não haviam considerado o milagre dos pães; antes, os seus corações estavam endurecidos”; (literalmente, o versículo diz “não haviam compreendido dos pães”); ou em outras palavras, a grande verdade do Seu messianismo ainda não havia sido apreendida por eles. Ainda depois, após alimentar os quatro mil, Ele teve ocasião de novo para repreendê-los, dizendo: “ainda não percebestes, nem compreendestes? tendes ainda o vosso coração endurecido? Tendo olhos, não vedes? e tendo ouvidos, não ouvis?”. E Ele conclui a longa lista de perguntas repreensíveis com uma afiada: “Como não entendeis ainda?” (Marcos 8:14-21).

Da primeira à última, então, é evidente que Ele poderia permitir a Si mesmo a ser proclamado como Cristo, o Rei, até que Ele tenha suportado os designados “sofrimentos de Cristo”. Pois qualquer que seja o “trono” que foi prometido a Ele, seja celestial ou terrestre, o único caminho para esse [trono] é através dos sofrimentos e morte preditos que esperava-O. O testemunho concomitante de todas as Escrituras é que as profecias relativas ao Filho prometido de Davi eram para ser cumpridas somente na ressurreição. (Ver, por exemplo, Atos 2:29-32; e 13:22-24 e 32-34). Os “negócios de meu Pai” de Jesus, sobre os quais Ele tinha vindo, não estava de nenhuma forma ligada às expectativas terrenas de Israel, mas era para a Redenção de todo o mundo, e a introdução de um Reino espiritual composto de pecadores redimidos de todas as nações debaixo do céu.

2. Considere agora a seguinte declaração da nota supracitada: “O testemunho anterior foi encerrado; o novo testemunho não estava ainda pronto”. Tenho mostrado que o que o editor entende ser “o testemunho anterior”, isto é, o testemunho de Cristo, como Rei que tinha vindo para estabelecer o reino terreno, testemunho este que ele diz ter “encerrado”, não tinha começado até aquele tempo; pois os próprios apóstolos tinham acabado de compreender que Ele era o Cristo. É tão claro que, no programa Divino (que, é claro, foi perfeitamente cumprido) o Senhor Jesus não era para ser pregado como “o Cristo” até que Ele fosse ressuscitado dentre os mortos e entronizado no céu. Essa passagem, portanto, é bem diferente em si mesma para resolver toda a questão quanto a que tipo de “Reino” o Senhor e Seu antecessor tinham anunciado. O “Cristo” ou “Messias” era, de acordo com o Salmo 2, o Rei prometido de Israel. Se, portanto, o Senhor proibiu os Seus discípulos de anunciarem-No como “o Cristo”, Ele efetivamente proibiu-os de anuncia-Lo como Rei de Israel. A Escritura será examinada em vão por qualquer ocasião quando eles proclamaram-No como ou Cristo ou Rei antes que Ele ressuscitou dos mortos. De fato, antes de Pentecostes eles não pregaram o Senhor Jesus― a Pessoa― de nenhuma forma, mas somente anunciaram a proximidade do Reino.

Mas independentemente do significado de “o Reino do céu” e “Reino de Deus”, o fato é que, ao invés da pregação do Reino ser “encerrada” nesse ponto, como a teoria demanda e como a Bíblia Scofield dogmaticamente assevera, a mesmíssima proclamação continuou até ao final do ministério terrestre do Senhor, não somente com energia não-diminuída, mas mesmo com diligência aumentada. Pois, em Sua última jornada a Jerusalém, durante a qual Ele disse aos Seus discípulos de novo e de novo que Ele estava quase para ser traído aos principais

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sacerdotes e escribas, e ser crucificado, e que ressuscitaria dentre os mortos no terceiro dia, Ele designou “outros setenta”, além dos originais doze, e enviou-os para proclamar o Reio de Deus como estando próximo. (Ver, por exemplo, Lucas 18:31-34, e observe que o assunto do discurso do Senhor é o Reino de Deus. Cap. 16:16; 17:20; 18:16-30).

A designação daqueles “outros setenta também” está registrado em Lucas 10:1-9, o envio dos doze sendo mencionado no capítulo 9, antes da Transfiguração.

O envio de os setenta, com identicamente as mesmas instruções e com identicamente o mesmo anúncio previamente dado aos doze, indica que o tempo está tornando-se tão curto para a proclamação preliminar do Reino (pois a Páscoa na qual o Senhor era para ser imolado estava somente algumas semanas por vir, eles estando então a caminho de Jerusalém), que muitos mensageiros adicionais foram necessários para irem adiante aos territórios. Isso [o envio] mostra também que o anúncio do Reino de Deus como “próximo” estava lado a lado com a explanação repetida do Senhor aos Seus próprios discípulos acerca do que sucederia a Ele em Jerusalém; e isso é prova de que o Reino que Ele tinha proclamado aguardou apenas a Sua iminente morte, ressurreição, ascensão, e entronização no céu como “Rei da Glória”, em cumprimento dos Salmos 2, 24, e 110. Quando Ele ascendeu ao “trono da Majestade nos céus” (Heb. 8:1), então o “Reino dos céus” começou.

Aqueles que creem na teoria do adiamento reconhecem que o anúncio dos sofrimentos e morte de Cristo não pode possivelmente ser juntado com aquela de um reino terreno. Por isso os nossos amigos têm estado extremamente conturbados pela proclamação de João o Batista acerca de Jesus como o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo; já que são totalmente incapazes de explicar essa proclamação consistentemente com a sua teoria. Pois essa teoria demanda que quando Cristo começou a dizer aos discípulos a respeito de Sua morte iminente, Ele deveria cessar de proclamar o Reino. Se, entretanto, a Sua morte e ressurreição fossem necessárias para a introdução do Reino que Ele estava anunciando, então deveríamos esperar encontrar as Suas referências a isso acompanhadas por uma pregação ainda mais intensa do Reino; e isso é precisamente o que nós encontramos.

As instruções dadas aos setenta eram que eles deveriam curar os doentes, e pregar, dizendo: “É chegado a vós o reino de Deus” (Lucas 10:9); e deveria ser observado que as palavras “É chegado”, são precisamente as mesmas no original como as palavras “está próximo”. Então, o anúncio desses setenta era idêntico com aquele [anúncio] do próprio Senhor como registrado em Marcos 1:15. E não somente isso, mas havia uma ênfase acrescentada ao anúncio como assim foi ordenado pelo Senhor no finalzinho de Seu ministério; pois Ele instruiu os setenta para que, em qualquer cidade que não os recebesse, eles deveriam sair às ruas e dizer: “Até o pó, que da vossa cidade se nos pegou, sacudimos sobre vós. Não obstante, sabei isto: que já o reino de Deus é chegado a vós” (Lucas 10:9-11).

De acordo com a teoria do adiamento, quando o reino, proclamado pelo Senhor, foi rejeitado pelos judeus, o foi imediatamente, e por essa razão, “tirada” e “adiada”. Mas, de acordo com a própria palavra do Senhor, os mensageiros deveriam dizer a quaisquer cidades que rejeitasse a mensagem, “Não obstante (sua rejeição), sabei isto: que já o reino de Deus é chegado a vós”. Estão essa passagem bíblica demole a teoria completamente.

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Vemos, então, que, de acordo com a Escritura, o Senhor proclamou o Reino de Deus como “próximo” desde o princípio até ao finalzinho de Seu ministério público; e isso, tão longe de abandonar a proclamação, Ele a deu uma publicidade mais larga ao final. As notas da “Bíblia Scofield” inequivocamente contradizem esse registro claro, e dizem que o testemunho do reino encerrou-se aproximadamente no tempo da degolação de João o Batista. E o que é mais notável é o fato de que muito depois do tempo quando, de acordo com a “Bíblia Scofield”, o anúncio do reino cessou, os mensageiros do Senhor estavam, por Sua ordem especial, fazendo esse mesmo anúncio em todos os lugares com as palavras acrescentadas “sabei isto”. Vemos, então, que a rejeição da mensagem por parte dos judeus era de não mudar o propósito declarado de Deus; e como alguém poderia ter suposto, por um momento, que isso mudaria? De fato, o ódio e oposição dos judeus somente serviram para cumprir o propósito eterno de Deus; e a atenção deles foi chamada para o fato por parte do apóstolo Pedro, que, após acusa-los de ter “matado o Príncipe da Vida”, prossegui a dizer: “mas Deus, assim, cumpriu o que dantes anunciara por boca de todos os profetas: que o seu Cristo havia de padecer” (Atos 3:13-18).

Aqui, de novo, está uma passagem bíblica que diz claramente o que era o grande tópico de todos os profetas de Deus; e que também diz claramente que não era a restauração da nação judaica, mas os sofrimentos de Cristo e o reino eterno e espiritual, “o reino que não pode ser abalado”, que era para ser fundado nisso.

NOTAS

1. Alguns dos erros feitos na tentativa de sustentar a teoria do adiamento são quase inacreditáveis. Assim, em um artigo do Dr. Scofield, que apareceu no “Our Hope [Nossa Esperança]” de abril de 1920, é dito que “o tempo veio rapidamente quando era claro que o verdadeiro Rei foi rejeitado”. Esse tempo ele localiza no capítulo que acabamos de considerar, Mateus 11, onde o Senhor repreende as cidades nas quais as Suas obras mais poderosas foram operadas. “A partir daquele momento”, diz o Dr. Scofield, “a mensagem é mudada; ela não é mais ‘o Reino do céu está próximo’”. A teoria do adiamento demanda que assim seja; e, portanto, o Dr. Scofield afirma sem hesitação isso que é assim. Mas está registrado que, tão tarde quanto quando o Senhor estava a caminho de Jerusalém para morrer lá, Ele enviou― não doze como no início, mas―setenta para proclamarem “É chegado a vós o reino de Deus” (Lucas 10:9). E Ele instruiu os Seus discípulos, caso eles fossem rejeitados, a dizerem― não que o Reino foi tirado e adiado, mas para dizerem― “Contudo, sabei isto: que o reino de Deus é chegado a vós” (v. 11). Assim, vemos que, exatamente onde o editor da “Bíblia Scofield” diz ter o anúncio do Reino cessado completamente, o Senhor ordenou que o Reino fosse proclamado com ênfase crescente e com maior positividade. Comentários extensos sobre essa passagem será encontrada nas páginas seguintes.

2. Os samaritanos eram mais desprezados do que os gentios, e os judeus consideravam-se mais indiferentes do primeiro do que do segundo. Pois enquanto eles tinham muitas relações com os gentios e até mesmo aceitou-os como prosélitos, eles “não se comunicam com os samaritanos” (João 4:9).

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CAPÍTULO 5 5. O REINO DE DEUS: TEM ESTE SIDO ADIADO?

CADA VEZ MAIS, convicção pressiona sobre mim de que “a palavra DO REINO” é a mensagem especial de Deus para esses― os últimos dias da nossa era― assim como era a Sua mensagem especial para os primeiros dias disso [palavra]. Lembremos que quando, no princípio da nossa era, o Semeador saiu a semear, o que Ele semeou em Seu campo era “a palavra DO REINO”; e além disso, temos a Sua promessa para isso, de que “o fim virá” quando “este evangelho DO REINO” terá sido pregado “para testemunho a todas as nações”. Então “a seara” de Sua semeadura será colhida (Mat. 24:14; Ap. 14:15).

Portanto, minha convicção é que, em pregar as boas novas de Deus “acerca de Seu Filho, Jesus Cristo nosso Senhor, que nasceu da descendência de Davi” (Rom. 1:1-3), prominência deveria ser dada à verdade revelada da Escritura a respeito de “o Reino do Seu Filho amado” (Col. 1:13). Em fazer isso, deveríamos estar seguindo o exemplo dos apóstolos, notavelmente o exemplo de Pedro no dia de Pentecostes (Atos 2:33-36). Pois essa verdade é o que deu ao evangelho a sua nota de autoridade e seu “poder” único no princípio (Rom. 1:16). Era a exaltação de Jesus, e a Sua entronização nas alturas como “ambos Senhor e Cristo”, que era pregado pelos apóstolos “com o Espírito Santo enviado do céu” (Atos 2:36; 1 Ped. 1:12).

De semelhante forma, no evangelho pregado por Paulo, a ênfase foi colocada sobre o fato de que Jesus Cristo era “da descendência de Davi” (a linhagem real); e que n’Ele estão cumpridas todas as profecias e promessas a respeito do reinado glorioso do Messias e “as fiéis misericórdias de Davi” (Rom. 1:3; Atos 13:34; 2 Tim. 2:8). Paulo pregou o Reino de Deus e de Cristo como sendo, naquela época, uma realidade presente, para dentro do qual todo crente do evangelho foi instantaneamente transportado; tendo sido primeiramente libertado, pelo grandioso poder de Deus, do reino do pecado e trevas (Col. 1:12-13).

Nunca houve dos lábios ou caneta daquele apóstolo uma dica ou sugestão no sentido de que o reinado de Jesus Cristo, que Deus tinha prometido antes por meio de Seus profetas nas Escrituras Sagradas, tinha sido adiado para outra era. De fato, alguém não pode atentamente estudar os elementos do evangelho como pregado e ensinado pelo “apóstolo dos gentios” (exceto sob a influência vinculante de alguma doutrina de homens) sem perceber que, à parte de a palavra do Reino, não há evangelho e nem salvação para os homens que estão perecendo. E que não seja esquecido, com relação a isso, que é através desse mesmo apóstolo, e com referência a essa mesmíssima heresia de um evangelho para os judeus e um evangelho diferente para os gentios, que a maldição de Deus está decretada sobre aqueles― sejam estes, apóstolos de Cristo ou anjos do céu― que pregam qualquer outro evangelho. Pois há apenas um evangelho para todo o mundo, e para todas as eras de tempo; e quer tenha sido Paulo ou um dos doze, todos eles pregaram o mesmo evangelho do Reino (1 Cor. 15:11; Atos 20:24-25).

Se, então, (como frequentemente é tristemente admitido hoje) o evangelho está com falta de poder, seria apropriado perguntar: “Não há uma causa”? (1 Sam. 1:29). Certamente existe uma causa; e o apóstolo dos gentios nos aponta para isso quando ele diz: “Porque o Reino de Deus não consiste em palavras, mas em poder” (1 Cor. 4:20).

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COMO ERA NO PRINCÍPIO

É indiscutível que o próprio Cristo e os Seus discípulos imediatos pregaram sobre um Reino. E não somente isso, mas a palavra “Reino” transmitia, àqueles que ouviam a pregação, a própria essência das “boas novas” que nosso Senhor em pessoa anunciou publicamente, e que Ele exortou e mandou os Seus ouvintes a “crer” (Mc. 1:14-15). E mais importante é observar que Ele juntou com o anúncio d’Ele a clara declaração de que “o tempo” para o longo esperado Reino de Deus, foi então [naquele tempo] “cumprido”.

Além disso, o ensinamento mais primitivo do nosso Senhor (dado enquanto João estava ainda batizando no Jordão) tinha por seu tema o Reino de Deus, e o único caminho de entrar nele― por meio do novo nascimento da água e o Espírito (João 3:3-16). Essa passagem mais conhecida na Bíblia vincula o Reino de Deus diretamente com a morte de Cristo na cruz, pela qual o grande amor de Deus pelo mundo que perece seria revelado, e a base da salvação dos homens foi estabelecida eternamente. A passagem mostra claramente, além disso, o que o termo “Reino de Deus” significou nos dias do João o Batista (v. 23-24). Como, então, pode qualquer um, vendo o assunto do Reino à luz dessa grande passagem, supor por um momento (a menos que esteja sob o feitiço de um forte delírio) que o nosso Senhor e o Seu antecessor estavam naquela época oferecendo aos judeus, e pela pregação do Reino de Deus, um reino de pompa e grandeza terrena, tal como os falsos professores deles― aqueles “cegos condutores de cegos”― tinham-lhes ensinado a esperar?

O tema do nosso Senhor após a Sua ressurreição era precisamente a mesma. Pois Ele permaneceu na terra quarenta dias, aparecendo frequentemente aos discípulos d’Ele, e “falando das coisas concernentes ao Reino de Deus” (Atos 1:3).

Um pouco depois, quando a palavra foi levada para Samaria por parte de Filipe (cumprindo a ordem de Cristo, registrado em Atos 1:8), o que ele pregou foi “as coisas concernentes ao Reino de Deus” (Atos 8:12). E ainda depois, quando Paulo levou para a Europa a mensagem que “virou o mundo de cabeça para baixo” (Atos 17:6-7), ele veio para Corinto, e falou na sinagoga “discutindo e persuadindo a coisas concernentes ao Reino de Deus” (Atos 19:8). Pois, é claro, havia forte oposição por parte dos judeus contra a proclamação de Paulo de um Reino espiritual, abrangendo todos os crentes, e dominado por um “Rei invisível” (1 Tim. 1:17), visto que eles tinham recebido, como verdade inquestionável, o falso ensinamento rabínico de um reino terreno exclusivamente judaico. Mas quão impressionante, que a mesma doutrina ruinosa tem agora, nestes últimos dias, encontrada ampla aceitação entre os professores ortodoxos cristãos!

Não será necessário seguir detalhadamente o relato das viagens de Paulo com o evangelho. É suficiente salientar que, até ao finalzinho dos dias dele, ele continuou “pregando o Reino de Deus” (Atos 28:31).

COMO A PALAVRA DO REINO FOI POSTA DE LADO

Já tenho salientado, mas é necessário manter o fato em mente, que na última parte do século XIX uma mudança extraordinária ocorreu no ensino de certos grupos de cristãos ortodoxos. Foi uma mudança radical. De fato, “revolucionário” não é um termo muito forte para aplicar nisso

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[ao ensino]; pois a literatura dos séculos cristãos será sondada em vão em busca de um vestígio da nova doutrina, que então de repente brotou, e logo espalhou-se por toda a parte. Aquela nova doutrina era um sistema de ensino “dispensacional”, caracterizada principalmente por um futurismo por atacado e indiscriminado. Toda promessa e profecia era relegada ao futuro que pôde, por qualquer possibilidade, ser lidada daquela forma; e, assim, a era da graça e do evangelho da graça foram despojadas do que propriamente pertencia às mesmas―especialmente a verdade bendita e gloriosa do Reino― o evangelho de Deus foi despojado de seu poder, e dano grave fora feito ao povo de Deus, e de fato a todos os homens.

O que é central nesse novo sistema de “dispensacionalismo” é a doutrina, até então desconhecida, que Cristo e o Seu antecessor, quando esses anunciaram que o Reino de Deus estava próximo, estavam lá “oferecendo” aos judeus o reino terreno das suas expectativas totalmente carnais; que (impressionante de se relacionar) os judeus recusaram o que eles [mesmos] mais seriamente procuravam, quando foi oferecido a eles; e que logo em seguida Deus tirou a oferta e “adiou” o Reino para outra “dispensação”.

As Escrituras, contudo, não contém nenhuma palavra a respeito dessa oferta de um reino terreno, judaico, ou a respeito da recusa desse [Reino] por parte daquela geração de judeus, ou sobre o seu adiamento para outra dispensação. Apesar disso, é reivindicado em nome dessa nova doutrina de que essa [oferta] é uma verdade recém-descoberta, que tem sido trazida à luz por um processo recentemente inventado de “dividindo corretamente a palavra da verdade”.

Assim, a questão permanece no tempo presente; e embora tem havido ultimamente algumas indicações encorajadoras de uma reação saudável contra essa heresia maliciosa do adiamento, ainda há necessidade de esforço sincero e com oração por parte de todos os que têm sido iluminados quanto ao seu [heresia do adiamento] verdadeiro caráter e consequências, a fim de que a verdade tristemente negligenciada e verdadeiramente vital do Reino de Deus possa ser restaurada a sua posição legítima e central no “evangelho de Deus concernente ao Seu Filho”.

E seja qual for as convicções do leitor quanto à doutrina de que o Reino do qual Cristo anunciou como próximo foi adiado, a verdade envolvida é tão vital, e a doutrina do adiamento é tão surpreendentemente nova, que é o dever de todos os que pertencem a Cristo de examinar e reexaminar toda a questão com o maior cuidado; e de ouvir atentamente a qualquer um que lhes pede por evidências com base na palavra de Deus. Isso é o que estou pedindo agora. E, como uma razão pela qual uma audiência justa deve ser me dada, declaro solenemente a minha profunda convicção de que tão próximo está o Reino de Deus identificado com a Salvação de Deus, que se agora não é a era do primeiro, então agora não é a era do segundo. Prova disso eu apresento neste capítulo.

Por exemplo, em Isaías 49:5-9 há uma profecia gloriosa a respeito de Cristo, o “Servo” de Deus, o Seu “Santo”, que restauraria as tribos de Jacó e restauraria os preservados de Israel; e Aquele que também seria “luz para os gentios”, para que Ele pudesse ser “a minha salvação até à extremidade da terra”. Ora, quanto ao tempo de quando isso deve acontecer, leia no versículo 8 as palavras conhecidas: “Assim diz o Senhor: No tempo aceitável te ouvi e no dia da salvação te ajudei”.

Se, portanto, “para restaurares as tribos de Jacó, e tornares a trazer os preservados de Israel” significa a restituição de uma nação terrena ao seu lugar de eminência no mundo, como os

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dispensacionalistas creem e ensinam, então certamente o cumprimento dessa profecia deve estar ainda no futuro. Mas o apóstolo Paulo refuta essa ideia completamente quando, escrevendo a uma igreja gentílica, ele diz e com a forte ênfase de repetição: “Eis aqui AGORA o tempo aceitável, eis aqui AGORA o dia da salvação” (2 Cor. 6:2). Manifestadamente, se agora é o tempo aceitável, e agora é o dia da salvação, é impossível que deveria haver qualquer outro “tempo aceitável”, ou qualquer outro “dia da salvação”; e duplamente impossível de que o que Deus promete nessa profecia em particular, para ser para “Israel” e para “as tribos de Jacó”, possa ser cumprido em uma “dispensação” diferente e futura.

É apropriado aqui salientar que um dos erros gritantes do “ensino dispensacional” é o fracasso em reconhecer o que o Novo Testamento claramente revela, isto é, que os nomes, os quais Deus temporariamente deu às coisas obscuras e típicas da Velha Aliança, pertencem propriamente e eternamente às realidades correspondentes da Nova Aliança. Assim, somo dados o significado correto de “judeu” (Rom. 2:28-29), “Israel” (Rom. 9:6; Gál. 6:16); “Jerusalém” (Gál. 4:26); “Descendência de Abraão” (Gál. 3:29); “Sião” (1 Pedro 2:6; Heb. 12:22; Rom. 9:33). Da mesma forma, é feito conhecido que, de acordo com o significado da nova aliança, “as tribos de Jacó” são aquelas que são judeus interiormente, ou seja, toda a família da fé (Tiago 1:1; Atos 26:7).

E então que o evangelho do reino e o evangelho da salvação são uma e a mesma coisa;― visto que a responsabilidade de um rei é salvar o seu povo, isso é claramente indicado pela palavra do Senhor a Israel através de Oséias: “Ó Israel, vocês têm se destruído, mas em Mim está a tua ajuda. Eu serei o seu Rei; onde está qualquer outro que pode te salvar?” (Os 13:9). Então aqui está uma promessa distinta para Israel de que o Senhor viria como Rei para salvar; e isso é apenas uma de muitas passagens que associam a salvação com o Reino de Deus. Em seguida, no versículo 14, a natureza da salvação que é prometida aqui através de Cristo, o Rei de Israel, é inequivocamente indicada pelas palavras conhecidas: “Eu os redimirei do poder da sepultura; Eu os resgatarei da morte. Onde estão, ó morte, as suas pragas? Onde está, ó sepultura, a sua destruição?”.

O significado e a importância disso são claros o suficiente para o não sofisticado; mas seja observado que, nas passagens onde isso é citado no N.T., o capítulo da grande ressurreição (1 Cor. 15:54-55), Paulo declara no contexto imediato a verdade vital de que “carne e sangue NÃO PODEM herdar o Reino de Deus” (v. 50). Isso é prova positiva e conclusiva: primeiro, que o Reino de Deus é a herança daqueles que são salvos pelo evangelho (v. 1-4); e segundo, que o Reino de Deus não é a restauração da nacionalidade judaica terrena e Reino judaico terreno.

E não somente isso, mas eu desafio qualquer um a negar, que quando os 139 textos do N.T. que mencionam o Reino de Deus (ou do céu) são tomados em seu sentido natural, que é o sentido em que esses [textos] têm sido compreendidos por todos os professores da Bíblia e leitores da Bíblia por dezenove séculos, esses [textos] estão todos em perfeita harmonia com a profecia que estamos agora considerando, e que é citada e aplicada por Paulo. Enquanto que, por outro lado, é totalmente impossível (como eu proponho agora mostrar) mediante qualquer distorção e torção da linguagem empregada, fazer uma quantidade, dos mais claros daqueles 139 textos, fazer qualquer coisa exceto conflitar claramente com os ensinamentos do dispensacionalismo moderno.

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Como, então, será perguntado, a “Bíblia Scofield” mantém a sua doutrina a respeito do Reino de Deus? Como que ela lida com aquelas 139 referências no N.T.? Isso nos traz a uma das características mais impressionantes do assunto estranho que estamos agora examinando.

Nas páginas introdutórias da “Bíblia Scofield” a promessa é dada que por meio de

“Um novo sistema de referências tópicas, todas as maiores verdades da revelação divina são rastreadas através de toda a Bíblia desde a primeira menção à última”; e também que os “sumários” desse sistema são analíticos de “todo o ensinamento da Escritura”.

Estamos agora prestes a investigar como essa promessa justa foi realizada com relação a uma das maiores das “maiores verdades da revelação divina” ―isso a respeito do Reino de Deus. E brevemente, o fato perturbador a esse respeito é que (como foi salientado pelo Sr. Thomas Bolton, da Austrália, em um folheto sobre O Reino de Deus [The Kingdom of God]), enquanto o Reino é mencionado em dezessete dos Livros do N.T., a “Bíblia Scofield” cita apenas cinco desses Livros; e enquanto que o Reino é mencionado 139 vezes por nome, apenas 21 dos versículos são citados na “Bíblia Scofield”, os outros 118 sendo totalmente ignorados!

Seria bem propício, sem dúvida, perguntar se isso está lidando justamente e mantendo a fé com os milhares que têm comprado essa nova “Bíblia”. Mas sem pressionar esse inquérito, apresso-me a dirigir a atenção do leitor para algumas das 118 referências ao Reino que são encontradas na Bíblia de Deus, mas que foram ignoradas em silêncio pela “Bíblia Scofield”, apesar da promessa que seriam “rastreadas através de toda a Bíblia desde a primeira menção à última”. E deixo para o leitor inteligente dizer se, sob as circunstâncias do caso, esses textos em particular poderiam ter sido ignorados pelo editor e coeditores por qualquer outra razão exceto que eles manifestadamente não podem concordar com, ou fazer qualquer coisa a não ser contradizer totalmente, a nova teoria do adiamento.

Para começar, vamos consultar Mat. 18:3; 19:14; Marcos 10:14-15; Lucas 18:16-17. Aqui está o ensinamento a respeito do Reino a partir dos próprios lábios do próprio Cristo, ensinamento este que é tão importante que é dado em três dos Evangelhos. E isto é a substância disso:

“Em verdade vos digo que, se não vos converterdes e não vos tornardes como crianças, de modo algum entrareis no Reino dos Céus” (Mat. 18:3).

“Deixai os pequeninos e não os estorveis de vir a Mim, porque dos tais é o Reino dos Céus” (Mat. 19:14). “Jesus, porém, vendo isso, indignou-Se e disse-lhes: Deixai vir os pequeninos a Mim e não os impeçais, porque dos tais é o Reino de Deus” (Marcos 10:14).

“Em verdade vos digo que qualquer que não receber o Reino de Deus como uma criança não entrará nele” (Lucas 18:17).

Essas passagens claramente declaram a verdade vital que, para ser salvo, a pessoa precisa “ser convertida”, e tornar-se como uma criancinha; ou seja, a pessoa deve tornar-se uma nova criatura em Cristo Jesus. E as expressões paralelas no contexto “entrar na vida” (Mat. 18:8-9) mostram que entrar no Reino de Deus, e na vida, são a mesma coisa. Além disso, quando, no mesmo capítulo de Marcos, Cristo disse “É mais fácil um camelo passar pelo fundo de uma agulha, do que um rico entrar no reino de Deus” (Marcos 10:25), está registrado que “Com isso eles ficaram sobremaneira maravilhados, dizendo entre si: QUEM PODE, ENTÃO, SER

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SALVO?” (v. 26). E o versículo seguinte mostra que eles estavam certos em sua compreensão de que entrar no Reino significa ser salvo; pois está escrito: “E Jesus, fixando os olhos neles, respondeu: Para os homens é impossível, mas não para Deus; porque para Deus tudo é possível” (v. 27).

Sem dúvida, então, à luz dessas Escrituras, o Reino de Deus, referido dezenas de vezes na pregação e ensino do Senhor, e que de fato é muitíssimo o assunto mais proeminente disso, não é o Reino terreno de esperanças judaicas, mas aquele âmbito celestial que é adentrado somente mediante arrependimento e fé individual, e somente pela porta do novo nascimento.

Por uma comparação dos textos acima, e de muitas outras passagens que são comuns aos três Evangelhos sinópticos, será claramente visto que as frases “Reino do céu” e “Reino de Deus” são usadas como sinônimos.

Ademais, deve ser observado com relação a esses textos, especificamente, de que os mesmos contradizem categoricamente o ensino da Bíblia Scofield no sentido de que a oferta do Reino tinha sido “moralmente rejeitada” por parte dos judeus na ocasião dos eventos registrados em Mat. 11 (nota de Mat. 11:20); e que naquele momento começara “a nova mensagem de Jesus—não o Reino, mas descanso e serviço” [nota da Bíblia Scofield de Mat. 11:28]. Mas a verdade com relação a isso é que o assunto do Reino ocupou o mesmo lugar de proeminência no ensino público do Senhor até o dia de Sua morte; e que após a Sua ressurreição Ele permaneceu quarenta dias na terra, sendo visto por Seus discípulos “e falando das coisas concernentes ao Reino de Deus” (Atos 1:3).

Mateus 23:13 é uma escritura especialmente iluminante, uma que é decisiva a respeito de se o Reino de Deus tinha sido tirado e adiado ou não. Esse versículo é fatal para a teoria do editor Scofield, e é ignorado no tratamento dele do assunto.

A ocasião era o último discurso público do nosso Senhor; e é digno de observação que, como o primeiro discurso d’Ele, o Sermão no Monte começou com sete bem-aventuranças pronunciadas aos Seus discípulos, então o último começou com sete ais pronunciados aos escribas e fariseus. Comparemos o primeiro de cada série:

“Bem-aventurados os pobres de espírito, porque deles é o reino dos céus” (Mat. 5:3).

“Mas ai de vós, escribas e fariseus, hipócritas! pois que fechais aos homens o Reino dos céus; e nem vós entrais nem deixais entrar aos que estão entrando” (Mat. 23:13).

Há muita e valiosa verdade a ser aprendida a partir do último texto citado, mas estou agora citando-o por causa do testemunho transparentemente claro que esse texto carrega ao fato que o Reino do céu, do qual Cristo tinha falado em Seu Sermão no Monte, e que tinha sido o assunto principal de Seu ensinamento, não tinha sido adiado, como a Bíblia Scofield afirma inequivocamente. Pois aqui o nosso Senhor dirige-Se aos escribas e fariseus, pronunciando um ai contra eles porque eles estavam naquele exato momento fechando o Reino dos céus contra os homens; eles mesmos não estavam entrando, e eles não deixavam entrar aos que estavam entrando. Sem dúvidas, portanto, o Reino estava naquela época presente, pois alguns estavam realmente “entrando”.

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Mas por que estavam os próprios líderes judaicos se recusando a entrar? E como eles estavam impedindo outros de entrar? Pela doutrina deles. Pois a pedra angular do credo deles era a mesmíssima doutrina que tem recentemente sido desenterrada da cova do falso judaísmo e tem sido feito a pedra angular do dispensacionalismo moderno. Eles mesmos não estavam entrando, e eles estavam impedindo outros de entrar, porque eles criam e ensinavam de que o Reino do céu, o reino do Messias que os profetas de Israel tinham predito, era uma questão judaica e terrena, não um reino espiritual e celestial.

Vendo, então, o efeito desastroso daquela doutrina nos rabinos eruditos, os líderes da seita mais ortodoxa dos judeus, não temos a razão mais grave para estarmos temerosos das consequências, agora que a mesma doutrina é crida e zelosamente propagada pelos líderes eruditos do partido mais ortodoxo na cristandade em nossos tempos? Pois não era os saduceus― os materialistas e modernistas daqueles dias― que ensinavam o erro mortal, mas os fariseus, os “fundamentalistas” daquela época.

E como isso funciona agora? Se estar salvo é estar no Reino de Deus, como temos a pouco mostrado pelo próprio ensino do nosso Senhor, e como Paulo também claramente ensinou (Col. 1:13), e se não há agora nenhum Reino de Deus para os homens entrarem, como eles serão salvos? Há alguma coisa no “modernismo” que é pior do que isso? E pode os “Fundamentalistas” de nossos dias esperar prevalecer no conflito deles contra os “Modernistas”, contanto que eles nutrem, e são até mesmo zelosos por, uma marca de modernismo que certamente é mais moderna, e em certos aspectos mais perniciosa, do que eles estão combatendo? Ouvi, meus irmãos Fundamentalistas; vocês devem fazer alguma limpeza-de-casa profunda em seu próprio território antes que possam proceder, com qualquer perspectiva de sucesso, em pôr a grande família cristã em ordem.

Atenção já tem sido direcionada à declaração de Cristo, registrada em Lucas 16:16 “A lei e os profetas duraram até João; desde então o Reino de Deus é anunciado, e todo o homem emprega força para entrar nele”.

Aqueles que não tem uma teoria para defender, mas o que sinceramente desejam conhecer por meio da Palavra do Senhor precisamente quando a mudança nas interações de Deus ocorreu (ou, para usar a fraseologia moderna, quando a mudança de dispensação ocorreu) poderia perguntar nada mais exato ou mais satisfatório do que isso. Pois aqui temos as próprias palavras de Cristo para isso, de que a nova era começou com a pregação e batismo de João; e, ademais, que o que propriamente caracteriza essa nova era é a pregação do Reino de Deus. Esse texto mostra, também, que a pregação do evangelho do Reino não tinha cessado na época em que essas palavras foram ditas. Pois a declaração do Senhor era que “desde então o Reino de Deus é anunciado, e todo o homem emprega força para entrar nele”.

Então aqui está outro texto que é suficiente em si mesmo para provar que o Reino não tinha, naquela época, sido adiado. Não é um fato significante, então, que essa Escritura particularmente iluminadora também foi ignorada pelo editor Scofield no processo de rastrear o assunto do Reino de Deus “através de toda a Bíblia desde a primeira menção à última”?

Passando para o próximo capítulo de Lucas, chegamos a outro texto que certamente tem uma reivindicação forte sobre a atenção daqueles que estão buscando o ensino da Palavra de Deus quanto ao assunto do Seu Reino. Nosso Senhor estava então a caminho de Jerusalém para

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morrer lá. “E, interrogado pelos fariseus sobre quando havia de vir o Reino de Deus, respondeu-lhes, e disse: O Reino de Deus não vem com observação; Nem dirão: Ei-lo aqui, ou: Ei-lo ali; porque eis que o Reino de Deus está dentro de vós” (Lucas 17:20-21).

Isso é iluminante de fato. Primeiro, nosso Senhor estava respondendo o que estava nos corações daqueles (os fariseus) que fizeram-Lhe a pergunta; a doutrina deles era que o Reino de Deus viria (quando o mesmo veio sim) com o acompanhamento de exibições exteriores de poder Divino, pelos quais os inimigos dos judeus seriam milagrosamente derrotados, e eles mesmos [fariseus] seriam varridos triunfalmente para dentro, e seguramente estabelecido no, o lugar cobiçado de supremacia mundial. Então Ele corrigiu o erro deles ao dizer que o Reino de Deus não veio com evidência ocular, que é o significado literal da palavra traduzida como “observação”; em outras palavras, isso não era o tipo de reino que eles estavam esperando. E o verbo que Ele usou estava no tempo verbal presentei, “vem”; que deixa claro que Ele estava falando acerca da maneira em que o Reino de Deus estava vindo naquela época. Isso é o que estamos especialmente buscando determinar bem agora. E Ele procedeu a enfatizar esses fatos ao acrescentar que não haveria nada de um caráter surpreendente ou sensacional, tal como faria os espectadores dizer “Ei-lo aqui! Ei-lo ali!” “porque”― e agora, estando prestes a dizer algo que Ele desejou especialmente impressioná-los, Ele usa uma palavra impressionante― “eis que o Reino de Deus está dentro de vós”. Alguns preferem a leitura marginal “entre vós”; mas o sentido é o mesmo. O Reino estava em existência naquela época. O Reino “está”. Mas era um Reino espiritual, tal como não podia ser discernido pelo olho natural. Isso concorda com o que Paulo posteriormente disse acerca do Reino; que a esfera de ser desse [Reino] era “no Espírito Santo” (Rom. 14:17).

O Reino de Deus é mencionado três vezes no Evangelho de João; e as declarações de Cristo, lá registradas a respeito do Reino, são de importância suprema; mesmo assim, todas essas [declarações] são ignoradas na Bíblia Scofield. Por quê?

O terceiro capítulo de João é o capítulo mais conhecido, e o versículo dezesseis de lá é o versículo mais conhecido, na Bíblia. Mas não é comumente ignorado, ao lê-lo, que o assunto do capítulo é o Reino de Deus? A terra toda tinha sido despertada pela pregação de João o Batista, e estavam todos num estado de expectativa mais profundo por causa da proclamação dele de que o Reino de Deus era chegado. Portanto, qualquer ensinamento que foi dado pelo Senhor naquele período (antes do começo de Sua própria pregação, que não começou até depois que João tinha sido lançado na prisão, Marcos 1:14) tem valor especial para o propósito de nosso inquérito presente, já que isso nos diz o que a frase “Reino de Deus” significava na pregação de João.1 Quão significante, portanto, de que o Espírito Santo tem observado o fato que, na ocasião da conversa do nosso Senhor com Nicodemos, João estava batizando; e que Ele acrescenta: “Porque ainda João não tinha sido lançado na prisão” (João 3:23-24).

E é da maior importância que as primeiríssimas palavras do nosso Senhor àquele “mestre de Israel” atingem diretamente o erro cardeal do rabinismo― a doutrina de que o Reino de Deus é de caráter terreno e judaico. Pois Ele disse, e com toda a ênfase tremenda de Seu duplo Amém: “Na verdade, na verdade te digo que aquele que não nascer de novo, não pode ver o

i Nota do tradutor: em inglês chama-se “present tense”.

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Reino de Deus” (v. 3); e “Na verdade, na verdade te digo que aquele que não nascer da água e do Espírito, não pode entrar no Reino de Deus” (v. 5).

Aqui está, verdadeiramente, verdade “fundamental” a respeito do Reino de Deus, verdade que foi entregue junto com a primeiríssima pregação desse Reino. Descendência natural de Abraão não garante entrada no Reino de Deus, como era erroneamente ensinado pelos rabinos naquela época e pelos dispensacionalistas agora. Para entrar naquele Reino, um homem deve nascer do Espírito. E as próximas palavras de Cristo enfatizam essa verdade fundamental: “O que é nascido da carne”― seja de Abraão ou de qualquer outro homem― “é carne, e o que é nascido do Espírito é espírito” (v. 6). João, também, em seu ensino deu proeminência a essa verdade; pois ele advertiu os fariseus e saduceus, que vieram ao batismo dele, dizendo: “e não comeceis a dizer entre vós mesmos: Temos por pai a Abraão; porque eu vos afirmo que destas pedras Deus pode suscitar filhos a Abraão” (Mat. 3:9). Pois os descendentes naturais de Abraão vieram do pó da terra, assim como todos os filhos de Adão; mas ninguém pode entrar no Reino de Deu sem “o lavar da regeneração e renovação do Espírito Santo” (Tito 3:5).

Ademais, as palavras do nosso Senhor, a Nicodemos, declararam claramente que Deus tinha enviado o Seu Filho ao mundo (não para estabelecer, ou até mesmo oferecer, um Reino judaico, mas) para salvar “O MUNDO” (v. 17). Ele revelou a ele que “Da mesma forma como Moisés levantou a serpente no deserto, assim também é necessário que o Filho do homem seja levantado; para que todo aquele”― seja judeu ou gentio― “que n’Ele crê não pereça, mas tenha a vida eterna” (v. 15); e que Ele tinha vindo― não em cumprimento de alguma suposta promessa para dar glória nacional aos judeus, mas― porque “Porque Deus amou O MUNDO de tal maneira que deu o seu Filho unigênito, para que TODO AQUELE que n’Ele crê não pereça, mas tenha a vida eterna” (v. 16).

Esses versículos claramente revelam, e toda Escritura está em perfeita concordância (é claro), que o Reino de Deus é (e era então, e será sempre) aquele âmbito espiritual em que a autoridade do “Rei eterno” de Deus (1 Tim. 1:17), Jesus Cristo ressurreto dentre os mortos, é reconhecido, e Sua lei “obedecestes de coração” (Rom. 6:17) por parte de um povo que têm crido em Seu nome, têm sido lavados em Seu sangue, e têm sido regenerados pelo Espírito Santo.

Essas são as primeiras duas referências ao Reino, no Evangelho de João. A terceira menção lá também é da maior importância; e isso de forma semelhante fornece uma refutação completa do que era ensinado pelos rabinos então e pelos dispensacionalistas agora. Essa [menção] é encontrada no testemunho de Cristo, em favor de Si próprio, diante de Pilatos. A palavras são claras o suficiente; mas para adquirir a sua força completa, e para perceber a sua relação direta na questão que estamos examinando, é necessário ter em mente que o crime do qual o Senhor foi acusado diante de Pilatos, o representador local de César, era sedição, e especificamente que Ele estava propondo a estabelecer outro reino, em oposição ao reino de César, “dizendo que Ele mesmo é Cristo, um Rei” (Lucas 23:1-2; João 19:12, 15). Quanto a essa acusação, o nosso Senhor, quando foi perguntado por parte de Pilatos a pergunta direta “És tu o rei dos judeus?”, respondeu “Tu o dizes” (Marcos 15:2), que é um “Sim” enfático. Mas, como mostra o relato de João, Ele testificou, no entanto, que Ele não tinha sido culpado de sedição contra César, porque o Reino que Ele tinha proclamado era um [Reino] que não conflitou contra o [reino] de César. De fato, aquele [Reino de Cristo] não pertencia a este mundo. Estas são as Suas palavras: “Respondeu Jesus: O Meu Reino não é deste mundo; se o Meu Reino fosse

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deste mundo, pelejariam os meus servos, para que eu não fosse entregue aos judeus; mas agora o Meu Reino não é daqui” (João 18:36).

Pense no que o ensino da Bíblia Scofield faz por implicação a essa palavra, de Cristo, simples, clara e toda-importante, que essa [Bíblia Scofield] ignora em silêncio! Pois, por esse ensino, esse testemunho do nosso Senhor, dado em audiência pública quando em julgamento por Sua vida, não era verdade. De acordo com esse ensino, o Reino que Ele estava proclamando ambos em pessoa e também por meio dos lábios dos Seus discípulos por todo o comprimento e largura da terra, era deste mundo; e o estabelecimento disso [do Reino] teria necessariamente envolvido a derrubada do domínio de César, e a subjugação do mundo todo à nação judaica. Como, então, podemos explicar isso [o ensino] já que esse texto é ignorado nas notas da Bíblia Scofield? E que seja lembrado, com relação a isso, que quando os fariseus tinham anteriormente tentado enredar o Senhor em algum enunciado que eles poderiam usar contra Ele como [se Ele estivesse] saboreando sedição contra César, Ele percebeu a hipocrisia deles e expressamente mandou-os “Dai, pois, a César o que é de César e a Deus, o que é de Deus” (Mat. 22:17-21). Pois o Reino de Deus não é de forma alguma antagônico aos reinos e governantes deste mundo. Do contrário, a lei de Cristo ordena lealdade a eles, por que “as autoridades que há são ordenadas por Deus” (Rom. 13:1); e isso [a lei] exige de todos os cidadãos de Seu Reino que submetam-se “a toda a ordenação humana por amor do Senhor” (1 Pedro 2:13).

Os últimos versículos de Atos dão uma visão de despedida do apóstolo Paulo. Os mesmos nos dizem que ele morou por dois anos inteiros em sua própria casa alugada (em Roma), onde ele “recebia todos quantos vinham vê-lo, pregando o Reino de Deus, e ensinando com toda a liberdade as coisas pertencentes ao Senhor Jesus Cristo” (Atos 28:30-31). Evidentemente, Paulo não tinha ouvido que a pregação do Reino de Deus não pertencia a esta “dispensação”. Pois naqueles dias não havia nenhuma “Bíblia Scofield” para esclarecê-lo. Por outro lado, não somos informados a respeito de como essa passagem pode ser reconciliada com o dispensacionalismo moderno, pois a Bíblia Scofield ignora-a.

Romanos 14:17, que já tenho citado, merece atenção especial; pois esse é o texto que fornece a própria definição de Deus de Seu Reino; e por essa razão, é o último versículo que devemos esperar descobrir que seja omitido de qualquer resumo que pretende dar o ensino das Escrituras a respeito do assunto desse Reino. Esta é a passagem:

“Porque o Reino de Deus não é comida nem bebida” (mais literalmente, não é comendo e nem bebendo), “mas justiça, e paz, e alegria no Espírito Santo”.

O Reino é aqui definido ambos negativamente e positivamente. Somos ditos primeiramente o que o Reino não é, e em seguida o que o Reino é; e, portanto, o texto é o mais esclarecedor para o nosso propósito presente. Pois um contraste é aqui apresentado entre o Reino de Deus e o Reino histórico de Davi, que os rabinistas supunham (como os dispensacionalistas assim faz agora) que eram uma e a mesma. A respeito do reino de Davi, está registrado que aqueles que vieram para torna-lo rei “estiveram com Davi três dias, comendo e bebendo”, e que aqueles que viviam no território das outras Tribos, “até Issacar, e Zebulom, e Naftali, trouxeram, sobre jumentos, e sobre camelos, e sobre mulos, e sobre bois, pão, provisões de farinha, pastas de figos e cachos de passas, e vinho, e azeite, e bois, gado miúdo em abundância; porque havia alegria em Israel” (1 Crôn. 12:39-40). Também está escrito que Davi, naqueles dias, “repartiu a

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todos em Israel, tanto a homens como a mulheres, a cada um, um pedaço de pão, e um bom pedaço de carne, e um frasco de vinho” (1 Crôn. 16:3).

Mas o Reino de Deus não é assim. Todos nesse Reino têm (1) a justiça de Deus, têm (2) paz com Deus, e têm (3) alegria no Espírito Santo. E é digno de observação que Paulo está aqui resumindo as bênçãos do Evangelho, como ele já tinha declarado então no capítulo 5. Pois lá está declarado a doutrina fundamental que (1) sendo justificados (feito justo) pela fé, temos (2) paz com Deus por do nosso Senhor Jesus “... E não apenas isso, mas (3) também nos gloriamos em Deus” (Rom. 5:1, 11). As bênçãos do Reino de Deus não são os frutos da terra de Canaã, mas os frutos do Espírito Santo; e a “alegria”, que estava em Israel por causa das coisas boas de comer e beber, é substituída por “alegria no Espírito Santo”. Isso é “o Evangelho do Reino”, como pregado e ensinado por Paulo.

É um motivo de profunda perplexidade que, no que pretende ser um completo estabelecimento do ensino da Escritura quanto ao Reino de Deus, este texto em particular (Rom. 14:17) deveria ter sido ignorado; já que o mesmo tem a distinção única de dar a própria definição do Espírito Santo de esse Reino.

Venho agora ao que considero a mais forte de todas as testemunhas a respeito do Reino de Deus que temos pela caneta do apóstolo Paulo. Esse [testemunho] é encontrado no primeiro capítulo de Colossenses; e o mesmo é ignorado na Bíblia Scofield. Paulo está lá falando de “a palavra da verdade do evangelho” (Col. 1:5) e acerca de o fruto produzido neles e nos outros; menção sendo feita da sua “fé em Cristo Jesus” deles, da “esperança” reservada para eles no céu, e do seu “amor que tendes para com todos os santos”. Aqui estão fé, esperança, e amor; estes três. E ele continua e exorta-os para “Dando graças ao Pai que nos fez idôneos para participar da herança dos santos na luz; O qual nos tirou da potestade das trevas, e nos transportou para o Reino do Filho do Seu amor; em Quem temos a redenção pelo Seu sangue, a saber, a remissão dos pecados” (v. 12-14).

Aqui está prova positiva que, não somente o Reino do Filho amado de Deus existia nos dias de Paulo, e não tinha sido adiado, mas que esse [Reino] é algo que é vital para a nossa salvação. Claramente, se não há Reino de Deus, não há evangelho, e nenhuma salvação. A passagem concorda em todos os pontos essenciais com o ensinamento que Cristo deu a Nicodemos. Pois isso revela redenção para todo “o mundo” como o propósito para o qual Deus enviou o Seu Filho, e o trazer a existência do Reino de Cristo, no qual aqueles que entram pela fé n’Ele são nascidos de Deus e conhecem Ele como “Pai” (o Espírito sendo mencionado no verso 8).

Essa passagem em Colossenses também lança luz sobre as palavras citadas, em um capítulo anterior, do Evangelho de Marcos: “O princípio do evangelho de Jesus Cristo, o Filho de Deus”; ... “O tempo está cumprido, e é chegado o Reino de Deus. Arrependei-vos, e crede no evangelho” (Marcos 1:1, 15). Isso nos diz que “o evangelho” é o de “Jesus Cristo, o Filho de Deus”; e Paulo em Colossenses declara a palavra da verdade do evangelho ser que Deus, o Pai, tem nos transportado para dentro do Reino do Seu Filho amado.

Podemos prosseguir mais adiante nesse ramo de nosso inquérito, e com proveito. Mas o suficiente tem sido dito para indicar o que o leitor pode esperar encontrar no caminho de instrução valiosa a respeito do Reino por meio da examinação dos mais de uma centena de

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outras referências no N.T. a esse assunto que, como aqueles brevemente examinados acima, são ignorados na Bíblia Scofield.

NOTAS

1. Pois é para ser observado que os dispensacionalistas, em seu esforço de fazer as epístolas (e também a parte posterior dos Evangelhos) concordarem com a teoria deles, têm recorrido ao estranho expediente de dizer que a frase “Reino de Deus” significava o Reino das esperanças judaicas inicialmente, mas depois de o Reino ser “rejeitado” e “tirado”, o termo era usado com um significado diferente. É claro, nenhuma prova em apoio disso é citada; pois não há nenhuma.

CAPÍTULO 6 6. OS EVANGELHOS: A QUAL “DISPENSAÇÃO” ESTES PERTENCEM?

TENHO buscado mostrar nas páginas precedentes que o Reino de Deus, que era o assunto da pregação e ensino de Cristo, é precisamente o que muitos Cristãos têm entendido que fosse até tempos recentes, isto é, um âmbito puramente espiritual; e mais, que o Reino de Deus não tem sido adiado quando as Suas palavras de despedida aos Seus discípulos foram faladas (Atos 1:3). Não consigo ver como quaisquer testemunhos quanto a isso poderia possivelmente ser mais claro e mais forte do que aquelas palavras que temos citado de todos os quatro Evangelhos; ou como, à luz das palavras de nosso próprio Senhor, pode haver qualquer questão de que a doutrina cristã aceitada há muito tempo, quanto ao Israel verdadeiro e quanto ao Reino predito pelos profetas, está fundada diretamente no próprio ensino de Cristo. Entretanto, a “Bíblia Scofield” assevera (em sua “Introdução aos Evangelhos”) que os pontos de vista aceitados há muito tempo, pelos seguidores de Cristo, relativos àqueles assuntos supremamente importantes não foram derivados a partir de Seu ensinamento, mas eram “um legado no pensamento protestante a partir das teologias pós-apostólica e Católica Romana”.

As declarações nessa nota são tão radicais, e envolvem questões de tal importância superlativa a toda a humanidade, que proponho agora examiná-las profundamente à luz do Velho Testamento, bem como do Novo. Pois essas declarações levantam a questão ambas quanto à “previsão veterotestamentária do Reino”, e também quanto a que Reino era aquele que Jesus Cristo anunciou como próximo.

Antes de começar essa examinação, há algo que deveria ser dito quanto aos efeitos verdadeiramente calamitosos de tal “nota”, como essa que acabou de ser referida (citada mais completamente abaixo), quando colocada na vanguarda dos Evangelhos. Isso [a nota] é um espécime dos meios pelos quais é buscado fabricar uma aparência de apoio à doutrina nova e extremamente perniciosa de que a vida e ministério de nosso Senhor não pertencem a esta era da graça, à “nestes últimos dias” em que Deus tem “nos falado pelo Seu Filho” (Heb. 1:1-2), mas― à era da lei; e que o mandamento de Deus o Pai, falado por parte de Jesus Cristo (especialmente o Sermão no Monte) pertence― não àqueles que estão salvos pela graça agora, mas― ao povo judeu, uma nação terrena reconstituída de uma ainda futura “dispensação”.

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Tendo em vista a afeição peculiarmente terna com a qual o povo do Senhor, através dos séculos de nossa era, tem considerado os quatro Evangelhos, e do fato de que aquelas partes específicas da Palavra de Deus nunca têm sido especialmente apreciada por toda a família da fé, é um mistério de fato, um dos maiores de “os mistérios do Reino”, como essa nova doutrina, que retira do povo redimido de Deus seus tesouros inestimáveis, e relega-os a uma geração futura conjectural de “Israel segundo a carne”, tem encontrado ainda que um apoio entre eles [povo redimido].1

Observaremos agora a forma como os Evangelhos são lidados nas notas da Bíblia Scofield com a intenção de fazer uma abertura para a nova doutrina que estamos examinando. Aquela publicação, em sua “Introdução aos Evangelhos”, diz:

“Ao abordar o estudo dos Evangelhos, a mente deveria ser liberta, tão longe quanto possível, dos meros conceitos e pressuposições teológicos. Especialmente, é necessário excluir a noção― um legado no pensamento protestante a partir das teologias pós-apostólica e Católica Romana― que a igreja é o Israel verdadeiro, e que a previsão veterotestamentária do Reino é cumprida na igreja”.

Primeiro, temos aqui o que parece ser meramente uma palavra geral de cautela; a saber, que “ao abordar o estudo dos Evangelhos”, deveríamos libertar as nossas mentes “dos meros conceitos e pressuposições teológicos”. Isso parece razoável o suficiente; pois quem contestaria que seria bom ter as nossas mentes libertadas dos meros conceitos e pressuposições teológicos, não somente “ao abordar o estudo dos Evangelhos”, mas em todos os tempos?

Mas o Dr. Scofield não estava preocupado, quando ele escreveu as palavras supracitadas, com “conceitos e pressuposições teológicos” em geral. Pois o objetivo dele claramente era de lançar descrédito contra a interpretação sempre mantida pela família da fé no tocante ao Reino de Deus, o Evangelho de Deus e as Palavras de Jesus Cristo, e introduzir, no lugar disso, uma nova doutrina radicalmente diferente disso.

O editor da Bíblia Scofield estava ciente, é claro, de que o grande tema dos Evangelhos é o Reino de Deus; pois isso é evidente para o leitor mais descuidado, e, ademais, ele deve ter sabido que, desde o princípio da era cristã, tem sido aceito como verdade incontestável que, não somente as profecias relativas ao reinado glorioso do Filho prometido de Davi, mas também os anúncios por parte de João o Batista e do próprio Cristo de que o Reino do céu estava próximo, tiveram sua realização e cumprimento naquele Reino do Filho amado de Deus, para dentro do qual aqueles que são salvos através da fé em Jesus Cristo são imediatamente transportados (Col. 1:12-13). Ele deve ter sabido que isso era o ensinamento universal, antigo, e elementar do cristianismo, de que o Reino predito pelos profetas, e anunciado pelo Senhor e Seu antecessor, foi realizado na companhia abençoada de aqueles que eram chamados e salvos através do Evangelho de Jesus Cristo. E já que era o propósito do editor de introduzir, aos seus leitores, uma doutrina-do-reino “diversa” daquela de cima, e “estranha” aos ouvidos cristãos, ele precisa começar por uma tentativa de desacreditar e abalar a confiança deles [cristãos] na doutrina cristã, de longo estabelecido e universalmente aceitado, do Reino de Deus. Isso, ele procede a fazer, nas duas sentenças citadas acima.

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A primeira sentença lida com generalidades, a intenção óbvia sendo de criar suspeita do ensinamento aceitado ao referir a isso desdenhosamente como um “mero conceito teológico”. A segunda sentença, entretanto, é bastante explícita. Aqui a doutrina aceitada do Reino é chamada de “noção”; e a afirmação é ousadamente feita de que é “necessário excluir” a noção. Por que “necessário”? Por nenhuma outra razão, pelo que parece até agora, de que a noção atrapalha diretamente a nova doutrina que o editor, e aqueles que pensam como ele, têm se comprometido a propagar. Não questionamos de modo algum de que as suas intenções são boas, seus motivos puros, e seus propósitos sinceros. Mas isso não faz a doutrina deles menos que uma inovação surpreendente e uma heresia perigosa. Certamente é “necessário excluir” ou aquela doutrina relativa ao Reino de Deus que os cristãos têm mantido desde o princípio da era do evangelho, ou, então, de excluir essa nova doutrina que é agora oferecida como uma substituição; pois há antagonismo irreconciliável entre elas. É de alguma satisfação para mim de que o Dr. Scofield reconhece isso; pois faz-se bastante evidente que uma questão afiada tem sido levantada, e que uma escolha deve ser feita entre os dois pontos de vista conflitantes.

Mas agora chegamos a uma questão mais séria. Pois a afirmação é feita de que essa “noção” é― não, de forma alguma, devidamente uma parte da doutrina Protestante verdadeira, mas meramente― “um legado no pensamento protestante a partir das teologias pós-apostólica e Católica Romana”.

Aqui está uma afirmação de fato; mas uma para qual nenhum retalho de evidência tem sido produzido, e para qual, declaro confiantemente, nenhum retalho de evidência existe. A história da doutrina cristã continua em uma linha ininterrupta desde os tempos apostólicos até os nossos dias; e se tivesse sido possível produzir, a partir dos escritos copiosos dos “pais da Igreja”, qualquer prova de que a doutrina relativa ao Reino de Deus ensinada pela Bíblia Scofield e por certas Escolas Bíblicas de nossos dias tivesse sido crido pelos cristãos, reais ou nominais, nos tempos passados, teria sido produzido há muito tempo atrás; visto que o presente autor e não alguns outros têm estado desafiado essa nova doutrina, e grandemente com base na razão de toda a sua novidade, durante dez anos passados.

Minha primeira resposta, portanto, à afirmação citada acima, é que a mesma não é verdade; e que, do contrário, o ensinamento aqui referido como uma “noção”, e como um legado da teologia pós-apostólica, é o ensinamento do próprio Novo Testamento, e tem sido o ensinamento também de professores e expositores sensatos e evangélicos de toda a Bíblia desde os dias dos apóstolos até a parte final do século XIX.

Ademais, a afirmação na citação acima da Bíblia Scofield de que o que está nela denominada de uma noção é um legado da “teologia católica romana”, é uma mistura maligna de insinuação e representação errônea. Se fosse verdade que a teologia católica romana ensina a mesma doutrina do Reino de Deus que tem sido aceitado até aqui por todos os cristãos evangélicos, aquele fato não seria, de forma alguma, para o descrédito da própria doutrina. Seria tão justo e tão razoável tentar lançar descrédito contra a doutrina da divindade de Cristo, ou contra a Sua ressureição corpórea, ou contra a inspiração das Escrituras, ao apontar para o fato de que Roma tem dado um lugar àquelas doutrinas em sua teologia.

Mas a verdade é que a doutrina romana do Reino, nos aspectos em que a mesma difere da doutrina protestante aceitada, apresenta uma semelhança impressionante ao rabinismo antigo e ao dispensacionalismo moderno. Pois a característica essencial desses três sistemas de erro

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é que “a previsão veterotestamentário do Reino” era um Reino de caráter terreno. Com respeito àquela característica cardeal da grande heresia do reino, o judaísmo, o dispensacionalismo, e o romanismo estão todos em concordância perfeita. Onde esses diferem entre si é que os dois primeiros dizem que o Reino terreno predito pelos profetas era para ser judaico, e o último diz que era para ser romano― e a respeito daqueles dois pontos de vista variantes, faz pouca diferença, na minha mente, qual é preferida.

E não somente está o novo “ensinamento dispensacional” de acordo com ambos o judaísmo e romanismo em crer que o Reino de Deus seja de caráter terreno, mas o mesmo está, a respeito de outra de suas características distintivas, muito próxima a outra grande heresia de hoje, russelismo. Pois a doutrina notável desta última é que, após esta era do evangelho, haverá outra “dispensação” (o Milênio) em que a salvação estará numa escala de venda por atacado. O dispensacionalismo não vai tão longe a ponto de ensinar que haverá salvação universal em um dia no futuro; mas o mesmo chega perigosamente perto disso. Pois o mesmo assevera que toda pessoa de descendência judaica será salva;2 e que elas serão constituídas em uma nação na terra. Ademais, é por vezes explicitamente ensinado pelos dispensacionalistas, e sempre é implicado em sua doutrina, que haverá então outras nações salvas (e, de fato, nenhuma senão nações salvas) no mundo; pois é uma caraterística proeminente desse ensinamento de que os judeus serão os mais importantes das nações, e em algum sentido exercerão autoridade sobre todas as nações na terra. Então isso vem, eu digo, perigosamente perto do russelismo.

Mas se houver qualquer verdade, seja qual for, nessa doutrina de salvação abundante num dia vindouro, está nítido de que o apóstolo Paulo errou, sim, grandemente ao dizer: “Eis, AGORA é o dia da salvação” (2 Cor. 6:2); pois essa designação pertenceria de forma justa ao Milênio vindouro.

Pretendo retornar a esse assunto em um capítulo subsequente.

NOTAS

1. Exatamente no dia após a redação do parágrafo acima, chegou uma carta de um missionário na África em que ele declarou a sua convicção de que muitos dentre o povo de Deus “estão sofrendo de uma falta de aplicação das verdades do Ministério do nosso Senhor, nos Evangelhos, à vida diária deles”. E ele disse que homens de Deus dentre os “Irmãos [Brethren]” (citando pelo nome: George Muller e Robert Chapman) “deviam a frutificação deles, e a influência de longo continuada do ministério deles, à ênfase que eles colocaram em ‘seguir Cristo’ em conformidade com as Suas declarações que agora são tão frequentemente relegadas para ‘outra dispensação’”.

2. Citando como texto de prova, entre outros, Romanos 11:26 “E assim todo o Israel será salvo”.

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CAPÍTULO 7 7. O REINO “ESTÁ PRÓXIMO”. A ORDEM DA REVELAÇÃO

AS notas da Bíblia Scofield a respeito dos assuntos do Reino deixam-nos, em Mateus 16, com a declaração de que o velho testemunho estava encerrado e o novo ainda não pronto. Lá, o assunto todo-importante do Reino foi abandonado, no que respeita as notas [da Bíblia Scofield], e nosso Senhor é deixado sem qualquer mensagem, nenhuma mesmo. Suspeitamos que a razão para isso é que a ingenuidade humana não poderia ir mais adiante. Pois como, na teoria do editor, poderia as palavras de Marcos 1:1― “Princípio do evangelho de Jesus Cristo, Filho de Deus”― serem explicadas? Ou as palavras do Senhor “O tempo está cumprido, e o Reino de Deus está próximo. Arrependei-vos, e crede no evangelho” (Marcos 1:14-15)? Ou o fato que Paulo em todos os lugares “passou pregando o Reino de Deus” e que ele testemunhou “tanto a pequenos como a grandes, não dizendo nada mais do que o que os profetas e Moisés disseram que devia acontecer” (Atos 20:25; 26:22)? Ou o fato que Deus tem “nos transportado para o Reino do Seu Filho amado” (Col. 1:13)? É somente por causa da impossibilidade de fazer essas e outras Escrituras importantes encaixarem-se na teoria do editor que podemos explicar o fato notável que ele tem passado por essas [Escrituras] sem uma palavra de comentário. Os usuários dessa edição devem ter se sentido surpresos quanto a esse silêncio estranho.

Esses leitores devem também ter se tornado confusos e decepcionados com as notas sobre Atos 13-6 [sic] [1:3-6]. No texto, temos a declaração importante de que o Senhor, após a Sua ressurreição, foi visto pelos apóstolos por quarenta dias, durante os quais Ele estava “falando das coisas concernentes ao Reino de Deus”. Isso, é claro, só poderia significar que Ele estava instruindo-os a respeito de a obra daquele Reino em que eles deveriam servi-Lo tão logo recebessem poder através da vinda do Espírito Santo, a Quem Ele, naquele exato tempo, prometeu enviar sobre eles. Pois por que deveria o Senhor estar dando-lhes, naquele momento, direções a respeito de um reino que tinha sido tirado e adiado? Certamente, uma explicação é exigida; mas, tudo o que é oferecido na nota é este comentário singular: “sem dúvida, de acordo com o Seu costume (Lc. 24:27, 32, 44-45) de ensinar-lhes a partir das Escrituras”. Obviamente, esse comentário não explica o texto, mas contradize-o. A própria passagem não precisa de explicação, pois é transparentemente clara. Mas isso é um dos “lugares difíceis” para a teoria do editor, que quebra-se em pedaços nessa única passagem. “Ajudas” de fato são necessárias; mas a nota meramente expõe a natureza errônea da teoria. Se o Senhor estava “ensinando-lhes a partir das Escrituras”, e não dando-lhes novas revelações e instruções, então certamente “as Escrituras” a partir das quais Ele estava “ensinando-lhes” deve ter tido a ver com o Reino de Deus; pois temos a declaração explícita do versículo 3 [Atos 1:3] que é aquilo o que Ele estava instruindo-lhes a respeito. E já que as próprias Escrituras que o editor cita na nota acima tinham a ver com os sofrimentos e morte e ressurreição do Senhor, como declarado em Lucas 24, então a morte e ressurreição do Senhor, e também a vinda do Espírito Santo, deve necessariamente ter precedido o Reino de Deus. Isso é de fato a verdade simples da questão, e toda Escritura pertinente está em perfeita concordância com isso. Portanto, o Reino de Deus pregado pelo Senhor desde o princípio do Seu ministério não poderia ter sido a restauração do reino terreno de Israel.

Tradução: Nathan Cazé

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As notas a que referimo-nos mostram muito claramente precisamente onde o editor tem errado o caminho dele na tentativa de rastrear a ordem do cumprimento da profecia e promessa veterotestamentárias. O editor vem ao Novo Testamento com o “conceito e pressuposição teológicos” mui novo e radical de que o Reino ou era de bênçãos predita pelos profetas de Israel era o Reino terreno de expectativa judaica; e que o tempo designado para isso, no plano de Deus de todos os tempos, era na primeira vinda de Cristo. Pois o editor diz: “Quando Cristo apareceu ao povo judaico, a próxima coisa, na ordem da revelação como ela [a revelação] então [naquela época] permaneceu [aguardando ser realizada], deveria ter sido o estabelecimento do reino davídico” (Mat. 4:17). Isso é uma declaração fundamental; mas é muito fácil mostrar que a mesma é bastante errônea. Precisamos apenas olhar para trás tão longe quanto os últimos versículos do Velho Testamento para ver que “a próxima coisa na ordem da revelação como ela então permaneceu” era o ministério de um mensageiro especial que deveria preparar o caminho do Senhor ao converter muitos dos filhos de Israel ao Senhor, seu Deus, para que Ele não venha e “fira a terra com maldição” [Mal. 4:6]. Sabemos, ademais, que a conversão de muitos Israelitas ao Senhor é exatamente o que realmente aconteceu (Lc. 1:13-17); e sabemos também que, se não fosse pelo ministério semelhante-ao-de-Elias de João, a terra teria sido ferida com uma maldição (Mal. 4:6). O ministério de João era, portanto, indispensavelmente necessário como uma introdução à era predita de bênção, era esta que ele anunciou quando disse: “é chegado o Reino dos céus” [Mat. 3:2].

Que reino, então, era este que o próprio Senhor assim proclamou como “é chegado”, e que Ele chamou de “o Reino dos céus” e “Reino de Deus”? O Senhor veio do céu pessoalmente para proclamar com os Seus próprios lábios um Reino “próximo” que não estava próximo? Ele convidou aos que O ouviram a “crer” no que não era verdade? E aqueles que creram, sim, n’Ele tiveram que aprender depois que eles tinham sido enganados, e que o Reino, que Ele positivamente declarou estar próximo, foi adiado? Os que creem com o editor da Bíblia “Scofield” deveriam ter que dizer “Sim” a essas perguntas. Pois embora havia um Reino, naquela época, próximo, e embora o nome disso, divinamente dado, é “o Reino de Deus” (Atos 8:12; Rom. 14:17, etc.), esses professores modernos dizem-nos que o Reino de Deus que estava próximo não é o Reino de Deus que o Senhor, que sabe todas as coisas e que não pode mentir, disse estar próximo; mas que o Reino de Deus que Ele positivamente declarou como próximo, era algum outro “Reino de Deus” que não estava de nenhuma forma próximo. É possível, eu pergunto com toda a seriedade, fazer maior violência do que isso às declarações do Senhor?

Mas vejamos como esse anúncio simples e transparentemente claro do Senhor é usado para encaixar-se com a doutrina nova do editor; pois temos aqui um exemplo extremamente interessante e instrutivo acerca dos métodos pelos quais a teoria do adiamento é mantida. Pois, como veremos agora, era necessário para a manutenção dessa teoria que o significado de uma frase bíblica comum fosse completamente mudada; e consequentemente a mudança necessária é operada através da instrumentalidade de uma das notas do editor, que contém a seguinte afirmaçãoi:

“‘próximo’ nunca é uma afirmação positiva que a pessoa ou coisa dita estar ‘próxima’ aparecerá imediatamente, mas somente que nenhum evento conhecido ou predito deve

i Nota do tradutor: os colchetes são meus.

Tradução: Nathan Cazé

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intervir. Quando Cristo apareceu ao povo judaico, a próxima coisa, na ordem da revelação conforme ela [a revelação] então [naquela ocasião] permaneceu [aguardando ser realizada], deveria ter sido o estabelecimento do reino davídico” (itálico nosso).

Existe alguma prova oferecida em apoio a essa declaração? Nenhuma palavra; embora se fosse verdade, seria fácil de estabelece-la por meio da citação de algumas passagens que mostrariam o uso bíblico da frase. Ora, quais são os fatos quanto ao uso dessa frase no Novo Testamento? A palavra aqui usada por parte de nosso Senhor e aqui traduzida como “próximo” é usada, por parte d’Ele próprio e por parte dos escritores inspirados dos Evangelhos e Atos, mais de cinquenta vezes, e em todas as ocorrências ela é exatamente o que o editor diz que ela nunca é, a saber, uma “afirmação positiva” de que a pessoa ou coisa dita estar “próxima” estava próximo. Em outras palavras, a afirmação do editor é exatamente o contrário da verdade. Isso é facilmente mostrado.

A palavra referida é normalmente traduzida por “está (ou é chegado) próximo, ou perto”; e apresentaremos algumas das mais de cinquenta ocorrências dessa palavra nos Evangelhos e Atos.

Mateus 21:1 “Quando se aproximaram de Jerusalém”.

Isso significa que eles estavam próximos de Jerusalém; e assim em todos os outros casos.

21:34 “chegando o tempo dos frutos”.

24:32 “está próximo o verão”.

24:33 “quando virdes todas essas coisas, sabei que ele está próximo”.

Mc. 2:4 “não podendo aproximar-se d’Ele, por causa da multidão”.

Lc. 7:12 “quando chegou perto da porta da cidade”.

15:1 “E chegavam-se a Ele todos os publicanos e pecadores para O ouvir”.

18:35 “chegando Ele perto de Jericó”.

19:11 “porquanto estava perto de Jerusalém”.

22:1 “Aproximava-se a festa dos pães ázimos”.

22:47 “Judas aproximou-se de Jesus para o beijar”.

João 2:13 “estava próxima a páscoa dos judeus”.

6:4 “a festa dos judeus, estava próxima”.

7:2 “estava próxima a festa dos judeus, a dos tabernáculos”.

6:19 “e aproximando-se do barco”.

É evidente que em todos esses casos a palavra que o nosso Senhor usou repetidamente ao proclamar o Reino de Deus como “próximo” significa por perto, próximo, prestes a chegar ou ser alcançado. Na verdade, isso é a palavra mais adequada que poderia ser escolhida para expressar a própria ideia para a qual o editor diz que ela nunca é usada.

Tradução: Nathan Cazé

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Em várias ocasiões, ao falar do Reino de Deus, o Senhor usou até mesmo uma palavra mais forte do que “está próximo”. Assim, em Mateus 12:28, Ele disse: “Mas, se Eu expulso os demônios pelo Espírito de Deus, logo é chegado a vós o Reino de Deus”. Aqui o Senhor declarou que o Reino estava realmente presente. Assim também em Lucas 17:20-21 Ele disse (falando aos fariseus): “porque eis que o Reino de Deus está dentro (i.e. entre vós) de vós”.1 Em ambos esses casos, Ele referiu a Si mesmo como constituindo o Reino de Deus naquela época; ou seja, Ele mesmo era o âmbito em que a vontade de Deus estava sendo feita no poder do Espírito Santo. Ainda depois, de novo falando aos fariseus, e muito depois do reino ter sido, na teoria do editor, tirado, o Senhor disse: “Mas ai de vós, escribas e fariseus, hipócritas! pois que fechais aos homens o Reino dos céus; e nem vós entrais nem deixais entrar aos que estão entrando” (Mat. 23:13).

Nos comentários anteriores, temos referido apenas ao uso das expressões “próximo” e “chegado” nos Evangelhos; pois é nessas [expressões] que o anúncio da era, que realmente estava próximo, seria encontrado. Tenta-se, às vezes, forçar um significado diferente na palavra “próximo” (ou, ao invés, reverter o seu significado completamente) por causa do fato de que em Romanos 13:12 Paulo diz “o dia é chegado”, e em Filipenses 4:5 ele diz “Perto está o Senhor”. É suposto, é claro, que ambas essas declarações referem-se à segunda vinda de Cristo. Mas parece bastante claro que “o dia” ao qual Paulo refere-se é o dia que tinha amanhecido então, i.e., na primeira vinda de Cristo. Pois ele diz que é “já hora de despertarmos do sono” [Rom. 13:11]; e porque o dia tem amanhecido, ele exorta-nos a lançar fora as obras das trevas e vestir a armadura da luz. Cremos que o sentido é o mesmo como em 1 João 2:8 “as trevas estão se dissipando e a verdadeira luz já está brilhando” (no grego).

Em Filipenses 4:5, não há referência à vinda do Senhor, mas ao fato que Ele está “perto” para suprir as necessidades do Seu povo.

Na nota de rodapé citada acima, há uma declaração importante a respeito da resolução que decidirá toda a questão em disputa. A asseveração é que “Quando Cristo apareceu ao povo judaico, a próxima coisa, na ordem da revelação conforme ela então [naquela ocasião] permaneceu [aguardando ser realizada], deveria ter sido o estabelecimento do reino davídico”. De novo, chamamos atenção para a ausência de qualquer tentativa de apoiar essa asseveração por meio de prova; e também à implicação que a “ordem da revelação” é uma coisa mudável. Pois é claramente implicado que a ordem da revelação pode ser algo diferente numa outra ocasião.

“Conforme ela então permaneceu [aguardando ser realizada]” a próxima coisa era “o Reino davídico”― pelo menos assim diz o editor. Mas se for assim, o que impediu a ordem da revelação divina de prosseguir? Se o reino davídico estava então [naquela época] na ordem no plano de Deus, o que impediu a sua vinda à existência? De acordo com a mesma autoridade (pois nenhuma outra é citada), a explicação é que os judeus dos dias de Cristo não queriam aceita-lo.

Isso é estupeficante. É a ordem da revelação dos propósitos de Deus uma coisa tão incerta que a oposição de homens carnais pode pô-la de lado? Se, quando “o tempo determinado” (a ordem da revelação) de Deus tivesse vindo, a vontade do homem pudesse adiar o evento por milhares de anos, que certeza existe em qualquer promessa ou profecia?

Tradução: Nathan Cazé

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Deus tinha dado ao Seu povo, por meio de Moisés, um teste por meio do qual um verdadeiro profeta devesse ser conhecido, dizendo: “se a palavra dele não se cumprir, nem suceder, como profetizou, esta é palavra que o Senhor não disse; com soberba, mas o tal profeta falou com presunção” (Deut. 18:22). De acordo com esse teste, o que aqueles que creem na teoria do adiamento compreendem da profecia do Senhor “o reino de Deus está próximo”, quando eles dizem que o reino do qual o Senhor falou foi adiado por causa da (suposta) rejeição do mesmo por parte dos judeus?

Finalmente, chegamos à asseveração (que está na fundação da teoria do adiamento) que “o Reino davídico”, significando com isso o Reino terreno que os judeus estavam esperando, era a próxima coisa na ordem na época da primeira vinda do Senhor. Essa declaração queremos trazer, na forma mais definitiva, ao teste da Escritura.

Seria, é claro, uma tarefa de grande magnitude revisar as profecias veterotestamentárias e mostrar os vários assuntos que elas abrangem, e a sequência delas―onde qualquer sequência pode ser discernida. Mas o nosso objetivo pode ser cumprido sem qualquer compromisso laborioso com tal. Pois temos no Novo Testamento certos resumos inspirados das profecias, pelos quais as declarações do editor podem ser testadas. A elas faremos a nossa objeção.

Por exemplo, em 1 Pedro 1:10-12 temos um resumo geral do que os profetas predisseram; e isso responderá perfeitamente o nosso propósito.2

Em primeiro lugar, o assunto das profecias é dividido pelo apóstolo Pedro em duas grandes partes: (1) “os sofrimentos de Cristo” e (2) “as glórias que se seguiriam”. Então temos aqui não apenas o grande assunto das profecias, em suas duas divisões, mas temos “a ordem da revelação como ela [a revelação] então [naquela ocasião] permaneceu [aguardando ser realizada]”; pois somos ditos precisamente que “as glórias” (plural no original) seguiriam [viriam depois dos] os sofrimentos. E, porquanto o Trono é a característica proeminente de “as glórias” do Cristo, é claro que o Trono não era “a próxima coisa na ordem”.

Mas isso não é tudo. Pois as Escrituras citadas anteriormente dizem-nos claramente que o tema dos profetas era― não o reino terreno, que não é referido ou aludido nesse sumário, mas― a “salvação” e a “Graça” que eram para vir a nós. Isso é uma declaração extremamente importante, e quando o seu significado (que é transparentemente claro) é compreendido, o mesmo é visto como sendo conclusivo da questão que estamos agora examinando.

E não apenas assim, mas isso foi revelado àqueles profetas que as coisas que eles predisseram foram ministradas “não para si mesmos, mas para nós”; e a passagem diz ainda mais que as mesmíssimas coisas que os profetas predisseram são o que “agora lhes foram anunciadas por meio daqueles que lhes pregaram o evangelho pelo Espírito Santo enviado do céu”.

Assim, temos isso aqui declarado, nas palavras mais claras, de que o tema geral dos profetas é o mesmo que aquele dos pregadores do evangelho; que o que os profetas da antiguidade predisseram é exatamente o que os evangelistas agora pregam! Portanto, aprendemos que o “evangelho”― isto é, a mensagem, de Deus, da graça para todo o mundo― era o assunto proeminente da profecia veterotestamentária, e era “a próxima na ordem” a “seguir [vindo depois dos]” os sofrimentos de Cristo, que estavam imediatamente prestes a ser cumpridos quando Ele veio ao mundo.

Tradução: Nathan Cazé

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De novo, em referindo-se à companhia de gentios reunidos na casa de Cornélio, o apóstolo dá um resumo conciso da mensagem que Deus tinha enviado para os filhos de Israel, “que se divulgou por toda a Judéia, tendo começado desde a Galiléia, depois do batismo que João pregou” (cf. Marcos 1:4-14) e essa mensagem (ou “palavra”) consistiu― não em pregar o reino terreno, mas em “anunciando a paz por Jesus Cristo” (Atos 10:36-37).

O testemunho de Paulo concorda perfeitamente com isso. A pregação e escrita dele eram baseadas firmemente nos profetas; e quando ele fala do que foi “antes prometido”, isso não é o reino terreno, mas “o evangelho de Deus concernente ao Seu Filho”. Isso, diz o apóstolo, é o que “prometeu pelos Seus profetas nas Santas Escrituras” (Rom. 1:1-3). Ademais, o tema da epístola aos Romanos é a justiça de Deus em justificar os pecadores crentes; e isso (não o reino terreno) é o que o apóstolo diz explicitamente que foi “testemunhada pela lei e pelos profetas” (Rom. 3:21). Paulo, também, em sua defesa de seu [próprio] ministério diante de Herodes Agripa testificou que, desde o princípio de sua comissão como um servo de Cristo até aquele exato dia, ele tinha continuado “dando testemunho tanto a pequenos como a grandes, não dizendo nada mais do que o que os profetas e Moisés disseram que devia acontecer” (Atos 26:22). Isso é outra afirmação positiva de que os evangelistas agora pregam exatamente o que os profetas predisseram.

O testemunho de “todos os profetas” também é declarado por Pedro, na casa de Cornélio, em um versículo bastante conhecido: “A Ele (Cristo) todos os profetas dão testemunho de que pelo Seu nome, todo o que n’Ele crê receberá a remissão dos pecados” (Atos 10:43).

As palavras de Zacarias, faladas antes que o Senhor nasceu, são igualmente muito claras, e são decisivas da questão em disputa. Toda a profecia (Lucas 1:67-79) deveria ser lida atenciosamente; mas para o nosso propósito imediato, é suficiente citar as palavras de abertura, que dizem claramente o que a nova dispensação era para ser― a saber, uma dispensação de Redenção e Salvação― e dizem também o que era que Deus tinha falado pela boca de Seus santos profetas “desde o princípio do mundo”, isto é, de um tempo muito antes que existisse qualquer nação de Israel:

“Bendito seja o Senhor, Deus de Israel, porque visitou e redimiu o Seu povo, e nos suscitou plena e poderosa Salvação na casa de Davi, Seu servo, como falou pela boca dos Seus santos profetas, desde o princípio do mundo”.

Veja também os versículos concludentes (77-79) que dizem especificamente o que a vindoura “Salvação” era― “a remissão de pecados”, “luz” àqueles que estão nas trevas e a sombra da morte, e um “caminho da paz”.

Outros resumos neotestamentários das profecias podem ser referidos, mas citaremos em conclusão as próprias palavras do Senhor no último capítulo de Lucas. Lá nós achamos as Suas explicações aos dois discípulos com os quais Ele andou e falou pelo caminho, e os quais Ele reprovou por não crer “para crerdes tudo o que os profetas disseram” (v. 25). As palavras que se seguem tornam claro que o tema dos profetas era, precisamente como vimos de 1 Pedro, “os sofrimentos de Cristo e as glórias que se seguiriam”. Pois o Senhor disse: “Porventura, não convinha que o Cristo sofresse essas coisas e entrasse na Sua glória?”. E que tais eram necessárias, Ele procedeu a provar. Pois “começando por Moisés, e por todos os profetas, explicava-lhes o que d’Ele se achava em todas as Escrituras”. Claramente, então, as

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duas grandes divisões das Escrituras proféticas eram os sofrimentos e morte, de Cristo, na terra, e a Sua glória como um Homem no céu. (Ver João 12:23; 13:32; 17:5; Atos 2:33; 4:13; 1 Tim. 3:16; Heb. 2:9 etc.). Em outras palavras, o tema principal dos profetas, quando espiritualmente discernido, é aquilo que está cumprido e sendo cumprido através de Jesus Cristo, durante esta era presente.

A mesma ordem de cumprimento de profecia aparece nas palavras, do Senhor, registradas na última parte do mesmo capítulo (Lucas 24:44-49), esta ordem sendo: primeiro, os Seus próprios sofrimentos, em seguida, a Sua ressurreição e a glória para dentro da qual Ele estava prestes a entrar no céu, e, em seguida, a vinda do Espírito Santo e a pregação do evangelho entre todas as nações. Citamos as palavras, as quais são tão claras que não precisam de comentários:

“E disse-lhes: São estas as palavras que vos disse estando ainda convosco: que importava que se cumprisse tudo o que de Mim estava escrito na lei de Moisés, e nos profetas, e nos salmos. Então, abriu-lhes o entendimento para compreenderem as Escrituras. E disse-lhes: Assim está escrito, e assim convinha (i.e. era necessário) que o Cristo sofresse, e ao terceiro dia ressuscitasse dentre os mortos, e, em Seu nome, se pregasse o arrependimento e a remissão dos pecados, em todas as nações, começando por Jerusalém. E dessas coisas sois vós testemunhas. E eis que sobre vós envio a promessa de Meu Pai; ficai, porém, na cidade de Jerusalém, até que do alto sejais revestidos de poder”.

Nessas palavras temos a própria explicação do Senhor acerca da “ordem da revelação como ela [a revelação] então [naquela época] permaneceu [aguardando ser realizada]” (e como, é claro, ela tem sempre permanecido); e vemos que, no progresso daqueles grandes eventos como foi declarado por Aquele que é ambos o Assunto e o Cumpridor de todas as profecias; o reino terreno não tinha nenhum lugar entre os propósitos que Ele tinha vindo para cumprir.

NOTAS

1. No grego original, há forte ênfase na palavra “é”, ênfase esta que não aparece nas nossas versões.

2. A passagem diz em parte: “recebendo o fim da vossa fé: a salvação da vossa alma, da qual salvação os profetas inquiriram e trataram diligentemente, os quais profetizaram acerca da graça a vós outros destinada, procurando saber qual o tempo ou qual a ocasião que o Espírito de Cristo que estava neles indicava, ao predizer os sofrimentos que a Cristo haviam de vir, e as glórias que se seguiriam àqueles sofrimentos” [v. 9-12].

CAPÍTULO 8 8. O REINO PREDITO PELOS PROFETAS

O ensino do dispensacionalismo a respeito do Reino é aparentemente fundado sobre duas ideais errôneas; primeira, que o Reino predito pelos profetas da antiguidade― especialmente

Tradução: Nathan Cazé

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quando a profecia relacionada a Davi ou a sua casa― era o reino terreno de Israel; segundo, que “a próxima coisa na ordem” no programa divino era a restauração nacional e supremacia terrena para os judeus. Com essas duas suposições sendo tomadas como verdadeiras, é fácil supor ainda mais que o Reino que o Senhor disse que estava próximo era o reino terreno.

Mas, na verdade, ambas as ideias apresentadas são errôneas; pois as Escrituras claramente provam que o Reino predito pelos profetas era o mesmíssimo Reino de Deus, baseado na morte e ressurreição do Filho de Davi, que foi trazido ao mundo pela vinda do Espírito Santo, e que tem sido estendido por todas as nações da terra, e por todos os séculos desta era da graça “por aqueles que têm pregado o evangelho com o Espírito Santo enviado do céu”.

E, especificamente, somos capazes de mostrar que as profecias que referem-se a Davi e a sua Descendência têm o cumprimento delas durante esta era presente. Os fatos principais a respeito das profecias davídicas são:

1. A obra que, de acordo com essas profecias, o Filho prometido de Davi deveria realizar era a dupla obra de salvar pecadores de dentre todas as nações e edificar a Casa de Deus (a igreja). Ambas as partes dessa dupla obra são apresentadas no Evangelho de Mateus.

2. O “trono” pactuado ao Filho de Davi era o trono do universo, não o trono do Israel terreno.

3. As profecias exigem, para o cumprimento delas, que o Filho prometido de Davi deveria primeiramente sofrer e morrer antes que Ele pudesse reinar, seja no céu ou na terra.

O terceiro ponto é de especial valor para os nossos propósitos presentes, em que esse [ponto] torna bastante impossível que o reino terreno, mesmo que tal coisa tivesse sido predita, poderia ter sido proclamado, ou até mesmo contemplado, nos dias do ministério terreno do Senhor. Faz certo sentido que o único reino que estava, ou poderia ter estado em vista, era o Reino espiritual de Deus que viria a ser fundado na morte e ressurreição do “Filho”, o “Cristo” de Deus, que era o “Rei” de Deus, mencionando por Davi no Salmo Segundo.

O fato de que o esperado Filho de Davi devesse necessariamente ter sofrido e ressuscitado antes que Ele pudesse reinar (seja no céu o na terra), é claramente estabelecido pelo apóstolo Pedro em Atos 2:25-31, onde ele cita o Salmo 16 e explica que Davi não estava falando de si mesmo quando disse: “não deixarás a minha alma no inferno, nem permitirás que o teu Santo veja corrupção”, mas estava falando de Cristo. E, em seguida, ele explica ainda que Davi “sendo um profeta, e sabendo que Deus lhe havia prometido com juramento que do fruto de seus lombos, segundo a carne, levantaria o Cristo, para O assentar sobre o seu trono. Prevendo isso, falou da ressurreição do Cristo”.

Isso nos dá claramente o verdadeiro significado da palavra de Deus e o Seu juramento a Davi em relação ao Trono, mostrando que a promessa seria cumprida na ressurreição.

Claramente, portanto, a promessa davídica levar-nos-ia a esperar, não um reino terreno na segunda vinda de Cristo, mas exatamente o que aconteceu, isto é, a Sua morte, ressurreição e ascensão e a Sua entronização no céu à mão direita de Deus, como predito no Salmo 110, que Pedro procede imediatamente a citar e aplicar (v. 33).

É apropriado, a esta altura, lembrar ao leitor de que o Reino de Israel não é o Reino de Deus e nunca foi chamado por esse nome. Portanto, os próprios termos do anúncio feito por Cristo e

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Seu antecessor são provas para todos os que conhecem as Escrituras que, seja lá o que fosse que Deus estava naquela época prestes as fazer, não era a restauração de glórias terrenas da soberania desvanecida de Israel.

E especialmente deve ser lembrado que o Israel verdadeiro não foi nunca em nenhum momento, no propósito de Deus, uma nação ou Reino terreno. Isso estando reconhecido, será claramente percebido sem qualquer mais ajuda das Escrituras, que toda a doutrina rabínica de um Reino terreno, sobre o qual o Messias, o Filho de Davi, deveria reinar e ao qual todas as nações do mundo deveriam ser tributárias, era, de cima para baixo, uma obra da imaginação carnal deles.

Voltando-se para Números 23:9, lemos a passagem que Jeová colocou na boca de Balaão, que “este povo (de Israel) habitará só, e entre as nações não será contado”. E Moisés, falando a Deus, tinha dito: “separados seremos, eu e o Teu povo, de todo o povo que há sobre a face da terra” (Êx. 33:16). Pois o propósito de Deus era que Israel deveria “habitará em seguro a sós” (Deut. 33:28). E isso é ainda a vontade d’Ele para aqueles que estão no Seu Reino (2 Cor. 6:17; Filip. 3:20).

Portanto, de acordo com essa finalidade, o próprio Senhor tornou-Se o Rei deles, e reinou sobre eles, até, como punição pela rebelião deles contra Ele, que Ele desse a eles o próprio desejo deles e tornasse-os num reino terreno, com um rei humano, “como todas as nações”. O registro desse evento transcendentemente importante está em 1 Samuel, capítulo 8. Lá, lemos (v. 4) que:

“Todos os anciãos de Israel se congregaram, e vieram ter com Samuel, a Ramá, e lhe disseram: Eis que já estás velho, e teus filhos não andam nos teus caminhos. Constitui-nos, pois, agora um rei para nos julgar, como o têm todas as nações”.

Essa ação da nação por parte dos anciãos desagradou a Samuel; mas o Senhor instruiu-lhe a ouvir à voz do povo, e a conceder-lhes a sua súplica, em tudo o que tinham pedido; porque, ―e que a razão seja observada e pesada―

“Eles não te têm rejeitado a ti, antes a Mim Me têm rejeitado, PARA EU NÃO REINAR SOBRE ELES” (v. 7).

Assim, Israel formalmente rejeitou o Senhor como sendo o Rei deles; e isso, como Ele prossegue nos versículos seguintes a declarar, era a culminação de toda a infidelidade e apostasia deles desde o dia que Ele os tinha libertado do Egito até naquele dia.

O Reino terreno de Israel, portanto, era a expressão do alto desprazer de Deus com aquele povo. Como Ele disse-lhes muito depois: “Dei-te um rei na minha ira” (Os. 13:11). E, no entanto, isso é o Reino cuja restauração os rabinos da antiguidade estavam nesciamente procurando; e que estavam tão confiantemente esperando que tornaram-no o fundamento de todo o sistema de doutrina deles. Há, então, qualquer coisa mais estranha entre os caprichos religiosos de nossos dias do que a mesmíssima noção insensata tornasse-se o fundamento de um sistema estritamente novo de doutrina cristã? E isso não aumenta a admiração de que os principais professores daquele novo sistema, com o seu fundamento de areia, deveriam ser proeminentes entre aqueles os quais optaram por chamar a si mesmos de Fundamentalistas?

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Era-se, é claro, de se esperar que os judeus dos dias de Cristo deveriam ter visto nas profecias apenas o que eles desejassem ver― isto é, a era da grandeza terrena de Israel. É bastante natural que eles interpretassem as profecias de acordo com os próprios desejos e pensamentos carnais deles. E fundamentamo-nos na mais alta autoridade [para afirmar] que era por causa que eles não conheciam o seu esperado Messias, quando Ele veio a eles, “nem os ensinos dos profetas que se lêem todos os sábados, que eles cumpriram as profecias quando O condenaram” (Atos 13:27). Portanto, não é surpreendente que a vinda de Cristo significasse para eles nada mais, ou nada além de, libertação política de seus opressores romanos. Mas é um motivo de surpresa, e de tristeza profunda também, que comentadores eruditos em nossos dias, homens cujos pontos de vista são amplamente aceitos como autoritários, cometessem o mesmo erro fatal. E a maravilha disso é o maior porque as Escrituras neotestamentárias têm deixado claro a todos os cristãos de que o Reino predito pelos profetas de Israel e anunciado por Cristo e os Seus servos, é de um caráter espiritual― “nem comendo e nem bebendo” como os judeus de mente carnal supuseram (e ainda supõe), “mas justiça, e paz, e alegria no Espírito Santo” (Rom. 14:17).

Os dois discípulos com quem o Senhor andou a caminho de Emaús (Lucas 24:13-27), e que estavam decepcionados e tristes porque eles tinham esperado que tinha sido Ele que deveria ter redimido Israel, foram repreendidos por Ele como “néscios (ou insensatos), e tardos de coração para crer tudo o que os profetas disseram”. E em seguida, “começando por Moisés, e por todos os PROFETAS”, Ele prosseguiu a mostrar-lhes que toda a palavra profética tornou necessário que Aquele que era “o Cristo” deveria sofrer aquelas coisas e entrar na Sua glória.

Muito provavelmente temos sentido pena daqueles discípulos néscios, os quais ignorantemente prezaram uma ideia tão contrária aos propósitos de Deus com revelados por todos os Seus santos profetas desde que o mundo começou. Ainda assim, certamente, muito reconhecimento deve ser levado em consideração quanto a eles, visto que eles eram israelitas na carne, que estavam realmente sob o calcanhar de um poder despótico pagão; e especialmente, visto que os seus professores credenciados interpretaram unanimemente as profecias naquele sentido. Mas como podemos explicar o fato de que, apesar das exposições de profecia por parte do próprio Senhor e por parte dos Seus apóstolos inspirados que dissipam completamente o pensamento de que a primeira vinda do Senhor tinha alguma coisa, seja ela qual for, a ver com a independência nacional de Israel, homens inteligentes de nossos dias têm ressuscitado essa ideia extremamente “judaica”, e têm transformado ela na pedra angular de seu sistema de ensino? Um servo discernente de Cristo tem ultimamente dito que temos aqui o fenômeno mais extraordinário a ser encontrado dentro dos limites do cristianismo ortodoxo.

No presente capítulo, proponho examinar algumas das profecias que referem-se especificamente a Davi, o objetivo sendo de determinar precisamente o que foi prometido com relação a isso. É frequentemente tido por verdade hoje em dia que, onde o nome de Davi estiver mencionado numa profecia, o assunto da mesma seja a grandeza terrena da nação de Israel. Na verdade, essa ideia tem tão completamente tomado posse das mentes de certos professores de que a própria menção do nome de Davi numa passagem da Escritura (como Mateus 1:1) é considerada como garantia suficiente para chama-la de “judaica”. Mas a verdade é que as profecias ligadas com o nome e história de Davi tem a ver especialmente com o evangelho, e com a Casa de Deus, isto é, a Igreja.

Tradução: Nathan Cazé

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O que essas profecias realmente previam era a vinda, através da descendência de Davi, d’Aquele que seria o Salvador do mundo. O evangelho de Deus a respeito do Seu Filho “o qual foi por Deus, outrora, prometido por intermédio dos Seus profetas” estava ligado com Davi tanto quanto, e tanto perto quanto, com Abraão. Paulo deixa isso muito claro no início da sua explicação inspirada do evangelho dado em sua epístola aos Romanos, onde ele diz que “o evangelho de Deus” era “concernente ao Seu Filho” que era “da descendência de Davi segundo a carne” (Rom. 1:1-3). E o mesmo apóstolo lembra-se desse ponto fundamental de verdade-do-evangelho muito enfaticamente em sua última mensagem em que ele diz: “Lembra-te de que Jesus Cristo, que é da descendência de Davi, ressuscitou dos mortos, segundo o meu evangelho” (2 Tim. 2:8, R.V. [Revised Version/Versão Revisada]).

É extremamente lamentável que a ligação de Davi com o evangelho tem sido quase completamente perdida de vista em nossos dias; pois os fatos com relação a isso são necessários para uma compreensão da largura e plenitude da mensagem do evangelho. Entretanto, não é uma questão difícil para qualquer um que esteja interessado a tomar posse desses fatos. Temos nos esforçado a estabelecê-los com algum nível de detalhe numa obra intitulada “Bringing Back the King [Trazendo de volta o Rei]”, na seção intitulada “The Sure Mercies of David [As Fiéis Misericórdias de Davi]”. Assim, limitar-nos-emos, no momento, à consideração de apenas alguns pontos proeminentes.

O fato principal a ser compreendido é que as promessas de Deus que Ele está cumprindo em nossos dias da graça e salvação, foram dadas e pactuadas aos dois homens, Abraão e Davi. Assim, o evangelho repousa nesses dois pedestais; e as promessas a Davi (ou concernentes à Descendência de Davi) eram tanto para toda a humanidade como eram as promessas a Abraão e à sua “DESCENDÊNCIA”. Deus fez a Sua “aliança eterna” com Abraão (Gên. 17:7), e também com Davi (2 Sam. 23:5). Essa era a mesma aliança; e essa seria estabelecida pela morte e ressurreição da “Descendência” prometida; pois lemos em Hebreus 13:20 acerca do “sangue da aliança eterna”, que foi derramado por Jesus Cristo. Ademais, o nosso próprio Senhor, ao instituir a Sua Ceia memorial, disse acerca do cálice: “Este cálice é a nova aliança em Meu sangue, que é derramado por vós” (Lc. 22:20).

Podemos concisamente resumir o Evangelho da graça de Deus como sendo a mensagem divina que traz aos pecadores de todas as nações “A bênção de Abraão” e “As fiéis misericórdias de Davi”; e já que a “bênção” e as “misericórdias” estão todas garantidas através de Jesus Cristo, é evidente que Mateus 1:1 é a abertura desta era da graça.

A “aliança eterna” que Deus fez com aqueles dois homens era uma aliança incondicional, ou seja, uma aliança da graça. Já que Deus somente estava restrito por ela [a aliança], não poderia haver falha nela. Essa aliança tinha a ver com as questões que são infinitamente grandes e de duração eterna, isto é, a Família, a Herança, a Bênção (i.e. o Espírito Santo, Gál. 3:14), o Trono, e a Casa. Dessas cinco coisas infinitamente grandes, as três primeiras foram abrangidas nas promessas de Deus a Abraão, e as últimas duas em Suas promessas a Davi.1 Com esses fatos simples em mente, seremos capazes de chegar a uma compreensão clara das características principais das profecias davídicas.

Todas as cinco grandes coisas mencionadas acima estão abrangidas na “Salvação de Deus”, que é agora proclamada pelo Evangelho aos pecadores de todas as nações, no Nome de “Jesus Cristo, da Descendência de Davi, ressurreto dentre os mortos”. Todas elas dependem

Tradução: Nathan Cazé

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absolutamente do sangue de Jesus Cristo, o Cordeiro de Deus, à parte do qual não poderia ter tido nenhuma bênção de qualquer tipo, seja para o judeu ou gentio. À parte do sangue de expiação, não havia nada para a humanidade a não ser condenação; pois na época da primeira vinda de Cristo “todo o mundo” tinha se tornado “culpado perante Deus”. É simplesmente uma impossibilidade que um reino terreno pudesse ter sido anunciado pelos servos de Deus naquela época.

O evangelho de Deus é, como temos visto, aquilo “o qual foi por Deus, outrora, prometido por intermédio dos Seus PROFETAS”; e, portanto, devemos voltar-nos aos profetas para descobrir exatamente o que as promessas-do-evangelho eram e são. O evangelho é um evangelho grandemente empobrecido quando as promessas concernentes à Descendência de Davi são tomadas desse [evangelho], e são caracterizadas como “judaicas”, e são “adiadas” para outra era que não esta [era], e para outro povo que não o [povo] redimido desta era. E isso é exatamente o que está sendo feito sob os nossos próprios olhos. Deixe-nos, portanto, despertamo-nos do sono, e reconhecermos o que está acontecendo.

Paulo aborda a questão muito claramente também em suas [próprias] palavras registradas em Atos 13:22-23, onde, falando numa sinagoga judaica acerca do provo de Israel, ele lembrou-se que Deus, após ter removido Saulo do trono, “levantou-lhes Davi para ser rei deles”; e ele disse: “Da descendência desse homem, Deus, conforme a Sua promessa, levantou a Israel um Salvador, Jesus”. Era, portanto, um Salvador que Deus tinha prometido a Israel através da linhagem de Davi; pois era de um Salvador que Israel precisava tanto quanto outros povos do mundo. A restauração do reino terreno não teria suprido a necessidade deles; muito menos teria suprido a necessidade do mundo. Isso, entretanto, não estava em vista nenhum pouco. Pois “quando a plenitude do tempo era chegada” e “Deus enviou Seu Filho”, isso ocorreu a fim “de redimir os que estavam sob a lei” (Gál. 4:4-5), não para restaurar a grandeza terrena deles. E de forma semelhante, quando Cristo Jesus proclamou com os Seus próprios lábios “O tempo está cumprido, Arrependei-vos, e crede no evangelho” (Mc. 1:15), era a respeito de “o Reino de Deus” que Ele estava falando, e não do reino terreno, e Ele chamou-o de “o evangelho”.

O apóstolo Paulo, no discurso do qual temos há pouco citado, mostrou que o “Salvador”, a Quem Deus tinha levantado a Israel a partir da Descendência de Davi, não era para Israel somente, mas para “todos os que creem n’Ele”; e isso está em exata concordância com a proclamação feita por parte do anjo do Senhor aos pastores que estavam guardando os seus rebanhos à noite na ocasião do nascimento do Senhor. A palavras dos anjos eram “Não temais, porque eis aqui vos trago boas novas de grande alegria, que será para todo o povo. Pois, na cidade de Davi, vos nasceu hoje um Salvador, que é Cristo, o Senhor”.

É estranho que essa proclamação do céu, que dá a designação plena “Cristo o Senhor” do Senhor, e Seu nascimento “na cidade de Davi”, e o propósito de Sua vinda, como “Salvador” para “todo o povo”, tem sido tão completamente ignorada na discussão da questão que está sendo examinada; pois a sua significância decisiva, na discussão, é evidente. Muito é feito do fato de que os magos pagãos, que viram a estrela no oriente, vieram com a pergunta: “Onde está Aquele que é nascido Rei dos judeus?” (Mat. 2:2). Essa pergunta por parte dos magos é frequentemente referida como se ela provasse que Cristo tivesse vindo em conexão com o reino terreno. Não deve ser necessário dizer que a pergunta feita por parte daqueles magos não prova nada do tipo. Vindo do Oriente onde a memória das profecias de Daniel e Ezequiel

Tradução: Nathan Cazé

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foram, sem dúvida, preservadas, e possivelmente as de Balaão também (Num. 24:17), eles provavelmente tinham recebido luz em relação a isso. Ademais, o Senhor era e é “o Rei dos judeus”; de modo que a pergunta dos magos era uma inteligente. Isso não indica de nenhuma forma que eles estavam esperando a emancipação nacional dos judeus; pois isso não teria tido nenhum interesse especial para eles. A mais razoável explicação do interesse deles acerca do nascimento de Cristo, e do problema que eles experimentaram para homenagear e “oferecer presentes” a Ele (Sl. 72:10), era que tinha sido de alguma forma revelado a eles que Aquele que nasceu “Rei dos judeus” traria bênção também aos gentios. Portanto, a vinda dos magos “para adorar” a Cristo indica um evento de importância muito maior do que o nascimento de um herdeiro ao trono de Davi. Está registrado que os magos foram “advertidos por parte de Deus em sonho para que não voltassem a Herodes”, do qual parece-se que eles estavam sendo divinamente guiados em sua missão.

Está claro, portanto, que a significância desse incidente não é de nenhuma forma o que os defensores da teoria do adiamento fazem disso.

Mas a mensagem do anjo aos pastores em Belém era um anúncio autoritário direto do céu; e isso foi dado em palavras claras que não deixam nada a conjectura. Isso diz o propósito exato para o qual Cristo tinha nascido; e os termos disso impediu toda possibilidade de que um reino terreno estivesse em vista. De fato, o propósito para o qual Deus enviou o Seu Filho tem sido repetidamente declarado em mensagens diretamente do céu, por meio de anjos e homens, como Zacarias e Simeão, e posteriormente por parte dos apóstolos inspirados, bem como por parte do próprio Senhor. Em nenhuma dessas declarações a respeito do objetivo da Sua vinda há o menor indício de um reino terreno; mas, do contrário, cada uma dessas [declarações] revelam propósitos totalmente inconsistentes com isso. Não obstante, no interesse do dispensacionalismo, todas essas declarações claras são varridas de lado, enquanto outras passagens da Escritura são forçadas e arrancadas a fim de fazê-las [as declarações] produzir a isso [dispensacionalismo] uma aparência de apoio.

É um fato significante que, enquanto a mensagem trazida por parte do anjo Gabriel à Zacarias, que seria o pai do antecessor do Senhor, foi a primeira comunicação desde o céu para terra após a corrente de profecia veterotestamentária ter terminado em Malaquias, os primeiros lábios humanos que abriram-se para profetizar o começo da era nova e mui esperada de bênção eram aqueles das mulheres Isabel e Maria (Lucas 1:41-55). As palavras proferidas por esta última dizem claramente que a nova era, que naquela época estava prestes a começar, seria― não uma [era] de qualquer reino terrestre, mas― uma [era] de “a misericórdia” prometida aos pais, “para com Abraão e sua descendência para sempre”. E foi subsequentemente revelado por meio de Paulo que a “descendência de Abraão”, que herdaria as promessas, são aqueles que creem no evangelho. Pois lemos: “Sabei, pois, que os que são da fé são filhos de Abraão” (Gál. 3:7). E de novo: “Pois todos vós sois filhos de Deus mediante a fé em Cristo Jesus... E, se sois de Cristo, então sois descendência de Abraão, e herdeiros conforme a promessa” (Gál. 3:26, 29).

Em vista, portanto, do que tem sido dito acima, posso brevemente resumir as várias predições a respeito da Descendência de Davi ao dizer que o que Deus prometeu dar através da linhagem de Davi não foi um Rei terreno para os judeus, mas um Salvador para todo o mundo.

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Mateus registra em seu primeiro capítulo que Aquele que nasceu da virgem, da linhagem de Davi, era um Salvador, e foi denominado “Jeová-Salvador” antes do Seu nascimento (Mat. 1:21). Zacarias, o pai do João o Batista, profetizou acerca da Vinda d’Aquele como sendo um Salvador, dizendo que Deus tinha levantado um chifre de Salvação na casa de Seu servo Davi; e disse ainda mais que esse levantar de um Salvador na casa de Davi estava em cumprimento do que Deus tinha falado “pela boca dos Seus santos profetas...desde o princípio do mundo” (Lc. 1:68-70). Assim, aprendemos (e muitas outras Escrituras declaram o mesmo fato) que o que era exigido, para o cumprimento daquilo que todos os profetas predisseram, era a vinda na casa de Davi― não de um rei terrestre, mas de― um Salvador.

Zacarias profetizou, ainda, a respeito do ministério de João o Batista, que ele iria diante da face do Senhor para preparar os Seus caminhos― não para avisar acerca de um reino terreno, mas― “para dar ao Seu povo o conhecimento da salvação, mediante o perdão dos seus pecados” (Lc. 1:77).

O anjo do Senhor, ao anunciar o nascimento de Jesus aos pastores na planície de Belém, não falou nenhuma palavra acerca d‘Ele ter vindo para reinar sobre Israel, mas proclamou boas novas de grande alegria para todo o povo, dizendo: “Pois, na cidade de Davi, vos nasceu hoje um Salvador, que é Cristo, o Senhor” (Lc. 2:10-11). Aqui de novo, numa mensagem trazida diretamente do céu, O prometido da linhagem de Davi é anunciado como sendo um Salvador para todos os homens, não um Rei para os judeus.

Simeão também, estando cheio do Espírito Santo, e levado pelo Espírito Santo ao templo, tomou o menino Filho de Davi dos braços de Sua mãe virgem e falou acerca d’Ele como a “Salvação” de Deus que Ele tinha “perante a face de todos os povos”; e como “uma Luz para iluminar os gentios” (Lc. 2:30-32). Assim, as mensagens inspiradas, através de homens e anjos, todas testificam claramente que, Aquele que tinha vindo da linhagem de Davi, era o Salvador e Luz do mundo.

No tempo devido “veio a palavra de Deus a João, filho de Zacarias, no deserto”, e ele pregou a todo o provo de Israel. A sua mensagem estava em perfeito acordo com a palavra de todos os PROFETAS; pois ele anunciou a vinda de um Salvador que daria a Sua vida por todos os homens― “o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo”― e declarou que “toda a carne” (judeu e gentio) “verá a salvação de Deus” (João 1:29; Lc. 3:6).

Também temos o testemunho do próprio Senhor, a Testemunha verdadeira e fiel, declarando que Ele não veio para ser ministrado (isto é, para ser servido como os reis são servidos), “mas para servir e para dar a Sua vida em resgate de muitos” (Mat. 20:28). Temos esse mesmo testemunho dos Seus próprios lábios em muitas outras passagens (como Lucas 4:18-21). E temos também a “boa confissão” que Ele testemunhou diante de Pôncio Pilatos quando falsamente acusado diante dele de tentar estabelecer um trono terreno, dizendo: “O Meu Reino não é deste mundo” (João 18:36; cf. Lucas 4:5).

Os apóstolos de forma semelhante, após a morte e ressurreição de Cristo e o batismo deles com o Espírito Santo como prometido por João o Batista, proclamaram as mesmas novas de um Salvador para todos os homens, que tinha sido levantado na casa de Davi. Assim, Pedro pregou a respeito de Davi que ele [Davi] “sendo um profeta e sabendo que Deus lhe havia prometido com juramento que do fruto de seus lombos, segundo a carne, levantaria o Cristo,

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para O assentar sobre o seu trono; ele (Davi), prevendo isso, falou da ressurreição do Cristo”; e Pedro continua a explicação das profecias relativas à Cristo, deixando claro que o trono que Ele ocuparia na ressurreição, de acordo com o juramento de Deus a Davi, era o trono de Deus no céu (Atos 2:29-36).

E de novo Pedro pregou a respeito de Cristo, dizendo: “Deus, com a Sua destra, O exaltou a Príncipe e Salvador, para dar a Israel o arrependimento e remissão de pecados” (Atos 5:31).

Paulo também liga a salvação de Deus, para todos os homens, com Davi, dizendo: “Da descendência desse homem Deus trouxe a Israel o Salvador Jesus, como prometera” (Atos 13:22-23). E em sua epístola aos Romanos, o mesmo apóstolo revela “o evangelho de Deus, o qual antes havia prometido pelos Seus profetas nas Santas Escrituras”, dizendo-nos que o evangelho prometido de Deus era “acerca de seu Filho, que nasceu da descendência de Davi segundo a carne” (Rom. 1:1-3). E as últimas palavras desse grande pregador e apóstolo dos gentios com relação ao evangelho proclamado por ele mesmo, é uma exortação empolgante para “Lembra-te de que Jesus Cristo, que é da descendência de Davi, ressuscitou dentre os mortos, segundo o meu evangelho” (2 Tim. 2:8, R.V. [Revised Version/Versão Revisada]).

Assim, temos o testemunho concomitante dos PROFETAS, anjos, homens cheio-do-Espírito (Zacarias e Simeão), o antecessor do Senhor que também foi enchido com Espírito Santo desde o ventre de sua mãe (Lc. 1:15), do próprio Senhor Jesus e dos apóstolos inspirados, ―todos declarando com uma só voz que a promessa e propósito de Deus desde a antiguidade, eram de levantar da descendência de Davi Aquele que salvaria o Seu povo mediante o sacrifício de Si mesmo, e seria diretamente exaltado ao trono celestial de um reino celestial. Toda a voz da Escritura,― na Lei, nos POFETAS, nos Salmos, nos Evangelhos, na pregação dos apóstolos no livro de Atos, e no ensino deles nas epístolas,― diz a mesma clara história acerca do firme propósito de Deus. À luz dessas Escrituras, e de muitas outras de natureza semelhante, é tão claro quanto essa luz divina pode fazê-la, que o Reino, antes prometido por parte dos profetas ao Filho de Davi, era e é aquele Reino espiritual e celestial que aquele Filho prometido de Davi primeiramente anunciou, e, em seguida, introduziu mediante a Sua morte e ressurreição, ao enviar o Espírito Santo depois que Ele tinha sido exaltado ao trono da Majestade nos céus, e ao enviar o evangelho para todo o mundo.

NOTAS

1. Ver “Our Liberty in Christ: A Study in Galatians [Nossa Liberdade em Cristo: Um Estudo em Gálatas]” por Philip Mauro, capítulo “The Everlasting Covenant [A Aliança Eterna]”.

CAPÍTULO 9 9. O REINO PREDITO PELOS PROFETAS (Continuação)

NA “Bíblia de Referência”, cujos ensinamentos estamos examinando, a seguinte é uma nota sobre Mateus 3:2—

Tradução: Nathan Cazé

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“A frase ‘Reino do céu’ significa o reinado terreno messiânico de Jesus Cristo, o Filho de Davi”. “Isso é o Reino pactuado à descendência de Davi, descrito nos PROFETAS”.

Tenho dois comentários breves a fazer a respeito dessa declaração dogmática; primeiro, que nenhum pedaço de evidência é oferecido em apoio disso, e, segundo, que isso está em contradição direta à grande nuvem de testemunhas cujo testemunho unânime tenho citado acima.

Em seguida, segue-se uma nota no mesmo capítulo em que é declarado que “O Reino do céu” tem três aspectos em Mateus, dos quais o segundo aspecto “(b) está nos sete ‘mistérios do Reino do céu’ a serem cumpridos durante a era presente”, etc.

Essa afirmação a respeito de haver “três aspectos” do único Reino; um desses “aspectos” sendo “em sete mistérios. . . . a serem cumpridos nesta era”, é muito confuso. Conforme o meu entendimento, isso não está apenas sem o menor apoio nas Escrituras, mas é totalmente ininteligível.

Que seja observado, entretanto, que temos aqui uma clara admissão [reconhecimento] de que o Reino do céu existe sim durante a era presente. Não importa o que quer-se dizer pela existência agora, do Reino, em um “aspecto” e agora em outro. Ele [o Reino] existe sim agora. As parábolas proféticas do nosso Senhor em Mateus 13, em que Ele predisse o que o Reino do céu, o qual Ele tinha anunciado como estando próximo, seria “como”, eram demais para a teoria do editor. Pois ninguém pode fechar os olhos dele ao fato de que aquelas parábolas maravilhosamente descrevem a obra de Deus e o Seu reino espiritual durante esta era presente. Muito bem então, como que o caso mantem-se de pé com base nessa admissão [reconhecimento]? Nosso Senhor disse que o Reino do céu estava próximo, e Ele disse como que isso seria; e o evento mostrou (como o editor admite aqui) que isso estava próximo, e que a semelhança disso é precisamente o que o Senhor disse que seria. Se assim for, o que tornar-se-á da doutrina básica do dispensacionalismo de que o Reino do céu, que o nosso Senhor anunciou como estando próximo, foi tirado e adiado? Claramente, a admissão do editor destrói essa noção completamente.

O caso é muito forte; e para reconhecer isso temos que somente lembrar que, nos dias de Cristo, os judeus estavam ocupando a própria terra deles e estavam gozando de um tipo de existência nacional e uma medida de independência. No entanto, ao mesmo tempo, “o Reino do céu” (o que quer que isso era) não tinha vindo ainda. Nem estava o reino terreno em existência naquela época; nem tem isso [o Reino] vindo, até o tempo presente. Mas “o Reino do céu” veio sim imediatamente, como Cristo disse que viria; e, ademais, o Reino tomou precisamente a forma e “semelhança” predita pelo Senhor em Suas parábolas. Isso o editor acredita ser necessário admitir [reconhecer]. Mas, e quanto à existência nacional de Israel, que o editor diz ser “o Reino do céu”? O que aconteceu com isso? Tão longe de qualquer coisa sendo realizada na natureza de um reino terreno, como esperado pelos judeus, o que realmente aconteceu foi a completa destruição de sua cidade, templo, e nação, e a dispersão do povo por todo o mundo, até mesmo nos dias de hoje. Resumidamente, todo vestígio da existência nacional deles foi imediatamente apagado.

Tradução: Nathan Cazé

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Está claro, portanto, que o “Reino do céu”, que formou o tema da pregação e ensino do nosso Senhor, e o reino terreno ao qual os judeus estavam e ainda estão procurando, não são um e o mesmo, mas são distintos e completamente diferentes um do outro.

Voltando-se agora para algumas das principais profecias concernentes as Davi, encontraremos, que embora os profetas não descreveram “o Reino de Deus” por nome, eles descreveram sim as características principais desta era de bênção mundial ao qual o nome “Reino de Deus” é dado no Novo Testamento.

Podemos apropriadamente começar com a grande profecia encontrada em Isaías, capítulos 7-12. As palavras “brotará um Rebento do tronco de Jessé, e das suas raízes um Renovo brotará” [Is. 11:1] definitivamente conectam essa profecia com a casa de Davi. (Ver também Is. 7:13-14). Demos a isso [a profecia] o primeiro lugar em nossa examinação porque isso é a primeira profecia citada no Novo Testamento. É, portanto, um Escritura muito significante, tanto como determinando a natureza da era que começou quando Cristo nascera de uma virgem da casa e linhagem de Davi; e também como fixando o caráter do Evangelho de Mateus. Pois, no primeiro capítulo de Mateus temos a mensagem do anjo concernente a Virgem Maria, em que ele disse:

“E ela dará à luz um filho, e lhe porás o nome de Jesus, porque Ele salvará o Seu povo dos seus pecados. Tudo isso aconteceu para que se cumprisse o que foi dito da parte do Senhor pelo profeta, que diz: Eis que a1 virgem conceberá e dará à luz um filho, e chamá-lo-ão pelo nome de Emanuel, que traduzido é: Deus conosco”.

Temos aqui a primeira declaração nas Escrituras neotestamentárias acerca do propósito para qual o Senhor, o Filho de Davi, estava vindo ao mundo. Isso fala a respeito d’Aquele prestes a nascer na linhagem de Davi o qual “salvará o Seu povo dos seus pecados”― em outras palavras, acerca do nascimento de um Salvador. Ademais, e isso é o ponto que queremos enfatizar, isso [a declaração] claramente declara que o nascimento d’Aquele que salvaria o Seu povo de seus pecados era o cumprimento das profecias de Isaías 7:14. Assim, não há espaço para qualquer incerteza quanto ao significado dessa profecia. Tal profecia predisse uma era de salvação para pecadores, não de uma grandeza térrea para Israel. Ela predisse a vinda do Senhor para o propósito explícito de fazer uma obra pela qual o Seu povo seria salvo de seus pecados. É, portanto, uma profecia acerca da cruz, não acerca de um trono terreno. Isso é o que encontramos bem no princípio do Evangelho de Mateus (que é comumente menosprezado como sendo “judaico”), e em conexão com a casa de Davi.

Com essa luz clara, é fácil enxergar muitos detalhes na profecia de Isaías― especialmente nos capítulos 11 e 12― que são cumpridos nesta era presente. O versículo 10 do capítulo 11 é especialmente significante:

“E acontecerá naquele dia que a Raiz de Jessé, a qual estará posta por estandarte dos povos, será buscada pelos gentios; e o lugar do Seu repouso será glorioso”. (Margem.)

Aqui está uma promessa distinta de salvação para os “Gentios” através desta “Raiz de Jessé”. E não somente assim, mas esse mesmíssimo versículo é citado por Paulo em Romanos 15:12, que assim definitivamente liga o seu evangelho com aquele [evangelho] anunciado no primeiro capítulo de Mateus. A forma que o versículo é citado por Paulo, e o significado assim atribuído a esse [versículo] por parte do Espírito Santo, é marcante e iluminante. Esta é a citação:

Tradução: Nathan Cazé

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“Outra vez diz Isaías: Haverá a Raiz de Jessé, e Aquele que se levantará para reinar sobre os gentios; n’Ele os gentios confiarão”.

Aqui está uma promessa-do-Reino, de fato. Essa diz acerca d’Aquele que “se levantará para reinar”. Mas o Reino aqui predito é o exato oposto do Reino esperado por parte dos judeus; pois a passagem, como assim divinamente interpretada, tinha referência à Aquele que iria “reinar sobre os gentios”, e em Quem os gentios confiariam (ou teriam esperança).

Essa porção de Isaías é, de novo, citado por Mateus no capítulo 4:14-16, a citação sendo de Isaías 9:1-2. Lá, encontramos a predição do ministério de Cristo, que começaria na “Galiléia dos gentios” (uma declaração muito significativa); e também da natureza de Seu ministério, que seria a entrega de luz (e, por implicação, a vida também) àqueles que “estavam sentado em trevas” e na “na região da sombra da morte”. Essas são as palavras da mais clara significância-do-evangelho, palavras que são tão bem compreendidas que não precisamos gastar tempo nelas. Certamente vai por um longo caminho com vistas a resolver a questão controvertida do caráter do Evangelho de Mateus, que as profecias citadas no princípio desse Evangelho, e declaradas como tendo sido “cumpridas”― uma no nascimento de Cristo e a outra no começo do Seu ministério― não têm nada a ver com um reino terreno e tudo a ver com salvação para o mundo todo.

Mas temos também, na passagem citada por último (Mat. 4:14-16), um pouco de evidência do caráter mais definitivo e conclusivo quanto à natureza precisa do “Reino” que o Senhor estava, naquela época, anunciando como “próximo”. Pois em que maneira e em que sentido o Senhor chegou a “cumprir” a promessa de trazer luz e vida à “Galiléia dos gentios”? O versículo 17 diz-nos claramente que Ele cumpriu-o mediante a proclamação da mensagem: “Arrependei-vos, porque está próximo o Reino dos céus”. Essa mensagem, portanto, não tinha nenhuma referência ao reino terreno; pois o Espírito Santo aqui testifica que essa [mensagem] anunciou a era da bênção prometida aos gentios. Assim, claramente parece que a profecia acerca da luz aos gentios está cumprida no Reino do céu.

SALMO 2

Outra profecia insuperavelmente importante ligada a Davi é o Salmo Segundo (um Salmo de Davi). Essa grande profecia é distinguida pelo fato que ela fala acerca do Cristo (“Meu Ungido”) de Deus, o Filho de Deus, e o Rei de Deus. Exigiria-se um volume para salientar, em detalhes, os significados desse Salmo. Mas, para os propósitos presentes, não precisamos determo-nos por muito tempo nisso. De início, o assunto de um reino terreno é conspícuo apenas por sua ausência. A primeira parte (a oposição de governadores e povos terrenos) foi cumprida na crucificação de Cristo (Atos 4:25-28). As palavras “Tu és Meu Filho” foram ditas pelo Pai no batismo do Senhor, onde a Sua morte e ressurreição foram figuradas, e onde Ele recebeu a unção do Espírito Santo para o ministério d’Ele. Ademais, Paulo explica que Deus cumpriu a Sua promessa aos pais, “ressuscitando a Jesus, como também está escrito no Salmo Segundo: Tu és Meu Filho, Eu, hoje, Te gerei”. Isso mostra que o Salmo Segundo era uma profecia a ser cumprida na ressurreição de Cristo. Ademais, temos no último versículo do Salmo a inconfundível promessa-do-evangelho: “Bem-aventurados todos aqueles que n’Ele confiam”.

Tradução: Nathan Cazé

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SALMO 72

Isso é a oração de Davi, o filho de Jessé. Ela contém promessas distintas a respeito do Reino do Filho prometido de Davi. Mas está claro que a profecia não tem a ver com um reino terreno. Pois, no versículo 6, há uma referência evidente à primeira vinda de Cristo; pois a mesma fala acerca da “chuva” (o derramar do Espírito Santo) e os “aguaceiros” de bênção. As referências à “justiça e paz”, nessa parte do Salmo, apontam para o Reino de Deus como esse Reino agora é (Rom. 14:17). As palavras “e os homens serão abençoados n’Ele; todas as nações Lhe chamarão bendito” (v. 17) apontam, também, para esta era presente, durante a qual o evangelho está sendo pregado a todas as nações em obediência a Mateus 28:19, enquanto os versículos 8-11 declaram a extensão do Seu domínio “até às extremidades da terra”, indicando o Reino universal de glória que está ainda por vir.

SALMO 89

Esse Salmo é especialmente pertinente em que o mesmo recorda a aliança e juramento a Davi nestas palavras:

“Fiz uma aliança com o Meu escolhido, e jurei ao meu servo Davi: A tua semente estabelecerei para sempre, e edificarei o teu trono por todas as gerações. (Selá)” (versículos 3, 4).

“Não quebrarei a Minha aliança, não alterarei o que saiu dos Meus lábios. Uma vez jurei pela Minha santidade que não mentirei a Davi. A sua semente durará para sempre, e o seu trono, como o sol diante de Mim” (versículos 34-36).

O Salmo está escrito para celebrar “as Misericórdias do Senhor”; e o seu escopo não pode ser completamente valorizado sem a compreensão do que entende-se por “as fiéis misericórdias de Davi”, um assunto muito grande para ser tratado agora. Deve ser suficiente, neste momento, dizer que “as fiéis misericórdias de Davi” abrangem as bênçãos do evangelho, e, principalmente, o perdão de pecados.2 Mas está claro o suficiente, após ler meramente o Salmo, que o seu assunto não é o reino judaico. O “trono” de Cristo, que é proeminentemente mencionado nesse [Salmo], é claramente um trono de muito maior dignidade e glória do que aquele trono de Davi ou de Salomão.

Ademais, encontramos nesse Salmo profético referências a vários assuntos de nenhuma forma ligados com a nação terrena. Está prometido que os céus louvarão as maravilhas do Senhor (v. 5), sugerindo a exaltação d’Aquele crucificado e ressurreto aos céus mais altos. A referência à “congregação dos santos”, e a declaração “Deus deve ser grandemente temido na assembleia dos santos”, tem uma aplicação óbvia a esta era presente. É, além disso, impossível confundir a significância destas palavras:

“Misericórdia e verdade irão adiante do Teu rosto. Bem-aventurado o povo que conhece o som alegre; andará, ó Senhor, na luz da Tua face. Em Teu nome se alegrará todo o dia e na Tua justiça serão exaltados” (v. 14-16).

Finalmente, os versículos 38-45 contêm sugestões acerca da cessação da linhagem de Davi na morte de Cristo. O versículo 45 é muito claro: “Abreviaste os dias da sua mocidade; cobriste-

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o de vergonha. (Selá)”. Em seguida, há no versículo 48 questões que são muito significantes em conexão com a ressurreição de Cristo: “Que homem há, que viva, e não veja a morte? Livrará ele a sua alma do poder da sepultura? (Selá)”.

Essa e outras Escrituras, escritas acerca de Cristo como Filho de Davi, indicam um fato, o qual é muito esclarecido na pregação-do-evangelho de ambos Pedro e Paulo, isto é, de que as promessas de Deus a respeito do Filho de Davi seriam cumpridas na ressurreição. E isto é a exata essência do evangelho de Paulo, como parece por meio daquelas palavras marcantes: “Lembra-te de que Jesus Cristo, que é da Descendência de Davi, ressuscitou dos mortos, segundo o meu evangelho” (2 Tim. 2:8, R.V.).

AS PROFECIAS DE JEREMIAS

As profecias de Jeremias são especialmente significantes porque foram proferidas numa época quando o juízo estava por cair sobre o povo de Judá, e sobre os ocupantes do trono de Davi. Não tentaremos nada como uma exposição dos muitos enunciados dos lábios de Jeremias que têm uma significância sobre o nosso assunto. Mas podemos, em poucas palavras, chamar a atenção para certas coisas que completamente confirmam o que estamos buscando mostrar neste capítulo.

Em Jeremias 23:5-8, lemos:

“Eis que vêm dias, diz o SENHOR, em que levantarei a Davi um Renovo justo, e um Rei reinará e prosperará, e executará o juízo e a justiça na terra”.

Isso é, sem dúvida, uma das profecias referida por parte de Pedro em Atos 3:24; e podemos ver, num olhar breve, que a linguagem marcantemente corresponde com as palavras de Pedro em Atos 2:30, e de Paulo em Atos 13:23, 33. Aqui temos um breve esboço de “estes dias” do Evangelho, começando com a vinda do “Renovo justo” da casa de Davi (“Jesus Cristo, o Justo”). Claramente, essa profecia exclui a ideia de um reino terreno durante “os dias” mencionados. Isso [a profecia] demanda precisamente o que é cumprido no presente Reino do céu. O período ao qual o cumprimento dessa profecia pertence é definitivamente fixado pelo título “O SENHOR JUSTIÇA NOSSA”; pois isso é durante esta era presente, da graça, que o Senhor é especialmente revelado como sendo a justiça do Seu povo. (1 Cor. 1:30; 2 Cor. 5:21; etc.).

A significância dessa profecia é intensificada por aquilo no Capítulo 33:15-26 [de Jeremias], começando com as palavras:

“Naqueles dias e naquele tempo farei brotar a Davi um Renovo de justiça; e Ele executará juízo e justiça na terra”.

Essas palavras apontam claramente à encarnação do Senhor, e ao que se seguiria. Os “dias” acerca dos quais o profeta está aqui falando eram os dias de “a nova aliança” sob a qual os pecados seriam perdoados e as leis de Deus seriam escritas nos corações do Seu povo. (Jer. 31:31-34). O período ao qual o cumprimento dessa profecia pertence está fixado da forma mais definitiva pelas palavras do Senhor ao instituir a Sua Ceia, quando Ele deu o cálice aos Seus discípulos e disse: “Isto é o Meu sangue, o sangue da nova aliança, derramado em favor de

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muitos, para remissão de pecados” (Mat. 26:28). O todo dos capítulos 31, 32, 33 de Jeremias deveriam ser lidos atentamente.

Chegando agora na porção a qual estamos especialmente chamando atenção, encontramos nos versículos 17 e 18 (cap. 33) estas promessas:

“Porque assim diz o Senhor: nunca faltará a Davi homem” (ou, literalmente, não contar-se-á de Davi um homem, ver margem) “que se assente sobre o trono da casa de Israel; nem aos sacerdotes levíticos faltará homem diante de Mim, que ofereça holocaustos, queime oferta de alimentos e faça sacrifício continuamente”.

Obviamente, essas promessas maravilhosas são cumpridas em Jesus Cristo, ressurreto dentre os mortos e glorificado no céu como um Sacerdote segundo a ordem de Melquisedeque, o qual era um rei bem como um sacerdote (Heb. 7:1-2). Depois que Cristo foi “cortado”, como predito por Isaías (53:8) e Daniel (9:26), não havia homem na terra para assentar no trono de Davi; e depois da destruição de Jerusalém (também predito por Daniel 9:26) não havia nenhum sacerdote na terra para oferecer sacrifícios designados a Deus. Mas há agora e tem havido desde a ascensão de Cristo, um Homem no céu para assentar-se sobre o trono da casa de Israel (o Israel de Deus). Ademais, Deus tem também um Homem diante d’Ele [próprio], como Ele disse, para oferecer sacrifícios continuamente (Heb. 8:3; 13:15).

É fácil, portanto, para vermos, à luz do Novo Testamento, que a profecia de Jeremias demandou que Cristo nascesse enquanto a casa de Davi ainda tivesse uma existência conhecida no mundo; e demandou também a ressurreição de Cristo e a Sua exaltação ao céu como ambos Rei e Sacerdote. Em outras palavras, demandou as coisas que aconteceram a partir e após a encarnação de Cristo. Então, temos de novo uma profecia muito definitivamente conectada com Davi, e muito definitivamente cumprida nesta era-do-evangelho; uma profecia que excluiu a possibilidade de um reino terreno ser anunciado na primeira vinda do Senhor; se é que, de fato, tal coisa assim estivesse na contemplação de Deus.

A PROFECIA DE ZACARIAS

Finalmente, referimo-nos à profecia marcante e muito preciosa concernente a Cristo (Zacarias 13:1-7), em que é encontrada a referência mui citada acerca das feridas em Suas mãos com que Ele foi ferido na casa de Seus amigos (v. 6). O capítulo começa assim:

“Naquele dia, haverá uma fonte aberta para a casa de Davi, para remover o pecado e a impureza” (Margem).

O versículo 7 indica como a fonte seria aberta. Pois, lá, temos as palavras: “Desperta, ó espada, contra o Meu Pastor e contra o Homem que é o Meu Companheiro; fere o Pastor, e as ovelhas ficarão dispersas”. Nenhuma dúvida pode existir quanto ao cumprimento dessa profecia, pois o próprio Senhor o tem aplicado (Mat. 26:31; ver, também, o versículo 54).

Para entender o sentido pleno dessa profecia― uma das mais claras de todas as gloriosas profecias-do-evangelho― temos que voltar-nos à palavra do Senhor falada à Davi por parte do profeta Natã, a quem Deus enviou para trazer para casa, à consciência de Davi, o terrível pecado dele de matar Urias, o seu servo fiel, a fim de aquele pudesse tomar a esposa deste.

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Naquela ocasião, Natã disse: “Agora, pois, não se apartará a espada jamais da tua casa”. Isso deve ser mantido em mente para entendermos a conexão de Davi com o evangelho da graça de Deus. Pois temos duas promessas aparentemente contraditórias a respeito de Davi: primeiro, que Deus lhe edificaria uma casa, certamente, e “nunca” tiraria as Suas misericórdias dele, e que ele “nunca” teria falta de um homem para assentar sobre o seu trono; e, segundo, que a espada “nunca” apartaria da casa dele. Essa última promessa foi cumprida quando a espada de juízo foi embainhada no seio do Filho de David; pois através desse golpe, a casa de Davi foi “cortada”, e cortada para sempre como uma coisa terrena. Mas o mesmo golpe abriu uma fonte para o pecado e para a impureza, em que, mediante a graça maravilhosa de Deus, os pecadores de todas as nações podem ser purificados de seus pecados. As outras promessas dessa passagem são, como já temos visto, cumpridas por parte de Jesus Cristo na ressurreição.

Com relação a isso, deveríamos lembrar as palavras inspiradas de Simeão a Maria a respeito de “a espada” que estava pairando sobre a casa de Davi; pois lembramos que, após falar de Cristo como a “Luz” que tinha vindo “para iluminar os gentios” e para ser a “glória de Teu povo Israel”, Simeão disse a ela: “também uma espada traspassará a tua própria alma” (Lc 2:35). Essa palavra falada um pouco depois do nascimento de Cristo é bastante suficiente, sem qualquer outra Escritura, para provar que nenhum reino terreno estava em prospecto naquele tempo. Mas a prova é grandemente fortalecida pelo fato de que o que as palavras de Simeão indicaram é precisamente o que foi predito pelas profecias a respeito do prometido Filho de Davi.

A porção concludente da profecia de Zacarias prediz, também, o cortar da parte maior dos habitantes da terra, que ocorreu na ocasião da destruição de Jerusalém por parte de Tito, 70 A.D.; e a salvação do remanescente, acerca do qual Deus: “Ela invocará o Meu nome, e Eu a ouvirei; direi: é Meu povo, e ela dirá: O Senhor é meu Deus” (Zac. 13:8-9).

Essa passagem não lida com “terços” aritméticos. A mesma não prediz que um “terço” matemático da nação judaica seria salva, e os outros dois terços seriam destruídos. O que a mesma indica é que haveria três grupos ou partidos distinguíveis na terra. E assim era. Pois, nos dias de Cristo, como os Evangelhos tornam evidente, haviam (1) os escribas e fariseus, (2) os saduceus, e (3) os publicanos e pecadores. Foi esse último grupo que, como uma classe, deram ouvidos à mensagem de Cristo, e a partir do qual os Seus discípulos foram atraídos. O versículo 9 é cumprido naqueles que foram salvos através do Evangelho. (Atos 2:21; Rom. 10:13; 1 Pedro 2:9-10).

A promessa dessa profecia de Zacarias acerca de uma fonte para o pecado e para a impureza é aparentemente muito “judaica”, sendo limitada à “Casa de Davi”. Mas o “mistério do evangelho” é isto: considerando que todas “as alianças e as promessas” pertencem, sim, de fato, aos israelitas (Rom. 9:4-5), Deus tem, em Sua graça, feito os gentios crentes serem “co-herdeiros e participantes da Sua promessa em Cristo por meio do evangelho” (Ef. 3:6). E, especialmente, o evangelho oferece, sim, a todo o mundo as bênçãos indizíveis da “aliança perpétua, que consiste nas fiéis misericórdias de Davi” (Is. 55:3). E, além disso, tem sido agora revelado, com tem sido salientado acima, que o nome “judeu” pertence propriamente a alguém que seja um judeu interiormente, e “o Israel de Deus” abrange apenas a família da fé.

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NOTAS

1. O artigo definido está no texto original.

2. Ver “Bringing Back the King [Trazendo de volta o Rei]”, capítulo sobre “As Fiéis Misericórdias de Davi”.

CAPÍTULO 10 10. A LEI DE CRISTO

O caráter de todo Reino é expressado em sua lei. Próxima, em termos de importância, à pessoa do rei, e no que chamamos de “monarquia limitada” ou “Reino constitucional” acima do próprio rei, é a lei. Em todo caso, a obediência à lei envolve, em primeiro lugar, a honra do rei, e, depois disso, a paz de seu reino e o bem-estar de seus súditos. Se, portanto, o Reino de Deus não tem lei, o mesmo não seria um reino. Onde então devemos nós, os quais Deus têm transportado para o Reino do Seu Filho amado, procurar pela lei desse Reino? Nenhum inquérito poderia ser de tamanha importância para aqueles que são salvos pela graça.

Toda revelação da vontade de Deus, para o homem, é lei; e a Sua vontade é sempre “boa e agradável e perfeita”. “Os Seus mandamentos não são penosos”. Isso é verdade sempre e em todos os lugares. O homem não considera que isso seja assim; mas isso é porque o estado por natureza do homem, como consequência da queda de Adão, é um estado de desobediência e iniquidade [grego: anomia], e, portanto, de inimizade contra Deus. “Porquanto a mentalidade da carne” (de que todos nós temos por natureza) “é inimizade contra Deus, pois não é sujeita à lei de Deus, nem, em verdade, o pode ser” (Rom. 8:7, margem).

Ora, a obra divina de Redenção é, entre outras coisas, um processo de recuperar o homem de seu estado natural de iniquidade [anomia] para um estado de submissão perfeita à vontade de Deus, que é um estado de felicidade perfeita, alegria sem fim, gozo indescritível. É um longo processo. No decorrer da realização disso [a redenção], Deus escolheu um povo em particular, de toda a descendência do homem conspícuo, para “obediência da fé”, que é obediência do evangelho (Rom. 1:5; 16:26), e Ele deu-lhes a Sua lei em forma sistematizada (uma coisa que Ele nunca tinha feito antes, e não tem feito desde então; pois “Ele não fez assim a nenhuma outra nação”). Aquele dom da lei de Deus era uma marca de favor especial àquele povo; e a possessão disso [a lei], não obstante o fracasso deles de mantê-la, ou até mesmo de respeitar o Legislador dela, tem sido, no entanto, uma fonte para eles de bênção indizível.

Nisso sinto-me constrangido em insistir e com toda ênfase possível; pela razão de que um objetivo especial do ensino dispensacional dos dias atuais aparentemente é a de inspirar no povo de Deus um sentimento de aversão contra a Sua lei. De fato, o assunto é por vezes apresentado de tal maneira para dar a impressão que estar “sob a lei” é quase a mesma coisa que estar no lago de fogo.1

Um dos propósitos da provação do homem sob a lei era para tornar evidente a corrupção sem esperança do seu coração, e para convencê-lo da necessidade absoluta de uma obra especial de Deus, pela qual ele possa obter o perdão de todos os seus pecados, e também adquirir

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uma vida e natureza novas. Isso é o que Jesus Cristo veio cumprir mediante a Sua morte sacrificial e mediante a Sua ressurreição dentre os mortos; e é por isso que “a plenitude do tempo”, para Deus enviar o Seu Filho, não veio até após a provação do homem, sob a lei de Moisés, tivesse tornado evidente a necessidade disso.

Por isso a provação do homem sob a lei não era de forma alguma um fracasso. Do contrário, isso [a provação] cumpriu exatamente o que Deus projetou mediante isso; e isso era uma fase, bastante necessária, do longo processo da recuperação do homem do domínio do pecado. Para ter certeza, isso mostrou que fracasso o próprio homem é; e isso [provação sob a lei] tornou evidente que, por causa do estado corrupto sem-esperança de seu ser, ele não pode obedecer a uma lei justa e santa, mesmo que ele reconheça que isso seja assim (Rom. 7:12, 14-16), e mesmo que ele entenda que a sua prosperidade agora e seu bem-estar na eternidade depende disso. Aqueles indivíduos que aprenderam isso enquanto estavam sob a lei, reconheceram que eles devem cessar de todos os autos-esforços de salvarem-se, e devem lançarem-se para isso na misericórdia de Deus. Todos tais, e o número total era sem dúvida grande, descobriram, assim como Davi, a bem-aventurança do homem cujas iniquidades são perdoadas, e cujos pecados são cobertos (Rom. 4:6-7; Sl. 32:1-2).

Ora, quando o propósito da lei do Sinai foi cumprido, e a era da velha aliança foi encerrada; quando a plenitude do tempo havia chegado, e Deus enviado o Seu Filho para cumprir “o que era impossível à lei, visto como estava enferma pela carne”,― isto é, para trazer de volta o homem para um estado de obediência― havia necessidade de fazer mudanças na lei de Deus para que ela pudesse estar em conformidade com a nova ordem das coisas que estão quase prestes a existir através da obra de Jesus Cristo como o Mediador da Nova Aliança. Pois Cristo veio para estabelecer um Reino, como uma centena de textos declaram; e a característica mais importante de um reino, depois do ocupante do trono, é a lei do reino. Mas manifestamente a lei de Deus como dada a um povo terreno, não regenerado como um todo (embora houvesse muitas pessoas regeneradas espalhadas pela massa da nação), não seria adequada para um povo nascido de Deus, Seus próprios filhos, “gerados de novo para uma viva esperança, pela ressurreição de Jesus Cristo dentre os mortos” (1 Pedro 1:3).

A ideia de que o povo redimido e regenerado de Cristo não deveria ser “sujeito à lei de Deus” está tão longe da verdade da Escritura quanto é possível estar. Pois o objetivo principal no decorrer das interações de Deus com a humanidade tem sido que Ele possa ter um povo para o Seu nome, que obedeceriam a Sua lei de coração. Isso tinha sido feito evidente por certas profecias do Velho Testamento como, por exemplo, aquela de Jeremias 31:31-34, onde a nova aliança foi distintamente predita; e onde, a respeito do povo que eram para ser abrangidos por aquela aliança, Deus disse: “Porei a minha lei no íntimo deles e a escreverei nos seus corações”. A epístola aos Hebreus declara que Jesus Cristo é o Mediador dessa nova aliança (Heb. 8:6; 12:24); e que os “muitos filhos” que Deus está “trazendo à glória”, através de Jesus Cristo, “o príncipe da salvação deles” O qual “não se envergonha de lhes chamar irmãos” (Heb. 2:10-11; 12:7-9), são o povo da nova aliança, em cujos corações Deus quis escrever a Sua lei. Estes “muitos filhos” constituem o Reino de Deus, de acordo com a palavra “Pelo que, recebendo nós um reino que não pode ser movido (abalado), retenhamos a graça, pela qual sirvamos a Deus de modo aceitável, com reverência e santo temor” (Heb. 12:28; este versículo não foi comentado na Bíblia Scofield).

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E semelhantemente Isaías, em uma de suas profecias a respeito desta era de bênção do evangelho para “todas as nações”, falou disso como o tempo em que “de Sião sairá a lei, e de Jerusalém a palavra do Senhor”. Essa “lei” que era para “ir adiante [sairá]” para todo o mundo era a lei de Cristo, e que “palavra” era a palavra do evangelho de Cristo. E o tempo do cumprimento disso e de outras profecias semelhantes está claramente fixado nas Escrituras do Novo Testamento, como onde Paulo falou a respeito de seu evangelho, e a pregação de Jesus Cristo, que “agora se tornou manifesto, e pelas Escrituras dos PROFETAS, segundo o mandamento do Deus eterno, se tornou conhecida a todas as nações para a obediência da fé” (Rom. 16:25-26).

Portanto, havia duas grandes partes para a obra que estava diante do Filho de Deus quando Ele veio ao mundo: Primeiro, Ele deveria libertar os “muitos filhos” do domínio do pecado e morte; e isso Ele fez quando “pela morte Ele destruiu o que tinha o império da morte, isto é, o diabo” (Heb. 2:14); e segundo, Ele deveria dar a lei de Deus àqueles que Ele traria para a família de Deus através da porta do novo nascimento; e isso Ele fez em Seus vários discursos ao Seus discípulos, e principalmente em o Sermão no Monte. E, assim como Moisés e os profetas acrescentaram de tempos em tempos ao corpo principal da lei originalmente dada no Sinai, assim também Cristo e os apóstolos acrescentaram revelações especiais relativas a vontade de Deus para Seu povo da nova aliança ao corpo principal da lei do Reino entregue por Jesus no Sermão no Monte.

Lembrando que Moisés era um tipo de Cristo, é instrutivo observar como essa obra de duas partes de Cristo foi prefigurada por aquela [obra] de Moisés. Pois ele não apenas tirou um povo do domínio de Faraó, atravessando o Mar Vermelho (típico da morte e ressurreição de Cristo que abre um caminho para Seu povo através das águas da morte), mas também entregou-lhes a lei de Deus, que era para ser a vida e bem-estar deles.

“ESTAS MINHAS PALAVRAS” Portanto, é no Sermão no Monte (Mat. 5, 6, 7) que encontramos a declaração completa e formal de a Lei de Cristo, respondendo à Lei de Moisés, dada no monte Sinai.

O contraste entre as duas montanhas e entre as circunstâncias consequentes dessas duas entregas da Lei de Deus a um povo na terra, é maravilhosamente expressivo da diferença entre as duas alianças a que respectivamente pertencem. Em uma [montanha] havia espetáculos e sons incríveis; a montanha queimando com fogo e tremendo na presença de Deus, o soar longo e estrondoso da trombeta, e, sobretudo, aquela apavorante “Voz das palavras”, que fez com que o povo se estremecesse e ficasse de longe para que a palavra não mais fosse falada a eles; “O espetáculo era tão terrível que até Moisés disse: Estou apavorado e trêmulo”. Enquanto que na outra montanha, o mesmo Legislador Divino, agora em forma humana humilde, assenta-se mansamente, e as multidões juntam-se voluntariamente aos Seus pés para beberem de Suas palavras; e essas [multidões] estando, assim, voluntariamente reunidas ao redor d’Ele, então “Ele, abrindo a Sua boca, os ensinava, dizendo --”.

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FUNDAMENTALISMO VS. MODERNISMO E são essas “palavras” lei? Sem dúvida elas são. Quando já houve qualquer dúvida quanto a isso? Mas elas são a lei da Nova Aliança, não aquela da Velha Aliança; nem tampouco são elas a lei de um reino judaico reconstituído de uma dispensação futura, como a Bíblia Scofield declara. Isso é a questão em disputa, e é uma questão de importância central. Se o leitor tem qualquer dúvida quanto à importância da questão em disputa, deixe-o apenas relembrar o que o próprio Cristo disse no encerramento do discurso incomparável relativo aos mandamentos que Ele duas vezes designou “estas Minhas palavras”. “Todo aquele” (pois assim Mat. 7:24 está no texto original) que ouvi aquelas palavras d’Ele, e as pratica, é comparado com um homem sábio que construiu a sua casa na rocha; e todo aquele que as ouve e não as pratica, é comparado ao homem insensato, que construiu a sua casa na areia.

Assim, a questão que estamos agora considerando tem a ver (temos as próprias palavra de Cristo para isso) com o fundamento no qual o homem constrói a sua estrutura de vida. Isto é, a questão é fundamental; e, portanto, isso é (ou deveria ser) do interesse mais profundo aos Fundamentalistas. E não somente isso, mas o “ensinamento dispensacional” que classifica essas palavras do nosso Senhor com a lei do Sinai, e relega-as a um reino judaico em algum momento no futuro, é modernismo no sentido mais estrito, e do tipo mais pernicioso. Portanto o que estamos agora discutindo é do maior interesse possível a todos aqueles que professam e chamam a si mesmos de Fundamentalistas.

O dispensacionalismo deve inevitavelmente cair em ruína; pois o mesmo está construído sobre a fundação de areia. É verdade, a sua estrutura tem sido engenhosamente arquitetada e inteligentemente montada. Além disso, materiais excelentes têm sido investidos na construção da mesma; e o tempo, trabalho e habilidade dos homens capazes, inteligentes e tementes a Deus têm sido usados na construção e ornamentação da mesma. Mas isso tudo é em vão; pois isso [a estrutura do dispensacionalismo] não está fundada sobre as palavras de Cristo. Na verdade, nunca houve um caso em que o verdadeiro fundamento tem sido tão ostensivamente posto de lado. Pois os construtores dessa estrutura elaborada e ornamentada de doutrina, que tem animado a admiração de centenas de milhares, têm publicamente menosprezado e rejeitado as próprias “palavras” do Filho de Deus dada por Ele para servir como a fundação do nosso edifício de vida. Portanto, a queda do dispensacionalismo é apenas uma questão de tempo; e minha convicção é que a hora está bem próxima quando será dito: “e grande foi a sua queda”.

“DEUS A NÓS FALOU-NOS”

Aqui é onde nós que somos “os filhos de Deus pela fé em Cristo Jesus” (Gal. 3:26) devemos ir para encontrar a mais completa declaração de que o nosso Pai no céu falou especialmente a nós, e que tem a maior reivindicação de nossa obediência voluntária e afetuosa porque foi dito pelos lábios de Seu próprio Filho. Pois “Deus... nestes últimos dias A NÓS falou-NOS PELO SEU FILHO”. E aqui é onde encontramos os mandamentos do nosso Senhor quanto ao que Ele disse: “Se me amais, guardai os Meus mandamentos” (João 14:15). E assim isso tem sido sempre crido pelos seguidores de Cristo, reais e nominais. Também não foi sequer suposto antes de nossos tempos de que poderia haver qualquer outra interpretação do assunto. Mas

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agora é dogmaticamente ensinado, e sem repreensão, no próprio meio dos grupos mais ortodoxos de cristãos, nas escolas bíblicas e nas conferências bíblicas, que “O Sermão no Monte é lei e não graça”; que isso é “lei, e é elevada a sua potência mais alta, mais mortífera, e destrutiva”. Pense em tais expressões sendo aplicadas ao Sermão no Monte, do nosso Senhor!

UM POUCO DE HISTÓRIA RECENTE

No ano 1918, publiquei um pequeno livro (“O Reino do Céu: O Que é este?”) em que salientei que o Sermão no Monte traz em seu próprio texto a mais clara evidência de que o Sermão é uma mensagem da parte de Deus o Pai para os Seus próprios filhos; já que Cristo fala repetidamente de “teu Pai”, “vosso Pai”, “vosso Pai celeste”; e Ele ali ensina-os como eles devem agir “para que sejais filhos do vosso Pai que está no céu”, e a orar dizendo “Pai nosso, que estás nos céus”. E salientei que, nas notas da Bíblia Scofield, o fato que Cristo dá, em Seu Sermão no Monte, as palavras do Pai aos Seus próprios “filhos”― um fato que certamente é decisivo relativamente às questões que estamos discutindo― é totalmente ignorado. O Dr. Scofield sentiu-se chamado a estar ciente disso; por isso ele publicou logo depois disso um artigo de revista com o título “É o Sermão no Monte, Lei? [Is the Sermon on the Mount Law?]”. E então eu estava disposto (como eu ainda estou) que ambos os lados fossem ouvidos, que publiquei o artigo do Dr. Scofield na íntegra com alguns de meus próprios comentários.2 Segue-se o primeiro parágrafo do artigo do Dr. Scofield:

“Pela primeira vez em quase dois mil anos de estudo e discussão da verdade revelada, a declaração tem recentemente sido feita de que o Sermão no Monte não é Lei. Os tempos são barulhentos com novidades de todo tipo, e especialmente na esfera da verdade bíblica. Se essa novidade específica ficasse sozinha, ela pode, mais seguramente do que quaisquer outras, ser deixada para quebrar-se contra o próprio frasear daquela grande declaração”.

Escusado será dizer que eu nunca tinha declarado ou implicado que “o Sermão no Monte não é Lei”. A questão que eu tinha levantado em meu livro referido acima foi declarada assim:

“A questão é, a quem são essas palavras (o Sermão no Monte) dirigidas? São essas palavras faladas diretamente ao, e para serem obedecidas pelo, povo de Deus desta dispensação? Ou são essas palavras faladas aos judeus de alguma era passada ou futura, com possivelmente uma ‘aplicação moral’ indireta a nós?”.

No entanto, ao responder a esse livro, o melhor que o Dr. Scofield pôde fazer era ignorar a verdadeira questão completamente, e de limitar a si mesmo a discussão de uma questão que nunca tinha sido levantada. E ele procede a dizer que “os tempos são barulhentos com novidades de todo tipo, e especialmente na esfera da verdade bíblica”, e a colocar o ponto de vista que ele estava supostamente respondendo na categoria daquelas novidades barulhentas, assim completamente revertendo a situação atual, em que a “novidade” (seja “barulhenta” ou de outra forma) está além de toda disputa do ponto de vista propagado pelo Dr. Scofield.

Assim, a questão permanece até hoje como a mesma estava então.

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NÃO VEM DAS OBRAS

Para algumas pessoas a doutrina de Cristo, como dada no Sermão no Monte, apresenta uma dificuldade em que ela não declara expressamente que a salvação do homem depende na sua fé, não nas suas obras; conforme foi subsequentemente escrito pelo apóstolo Paulo, “Porque pela graça sois salvos, por meio da fé, e isto não vem de vós, é dom de Deus; não vem das obras, para que ninguém se glorie” (Ef. 2:8-9).

Mas não há dificuldade aqui; pois o Sermão no Monte não foi falado para explicar como um homem recebe o novo nascimento e entra no Reino de Deus, mas para ensinar àqueles que já tinham entrado naquele Reino como agir como convém aqueles que são salvos pela graça através da fé e têm o conhecimento de Deus o Pai por meio do Filho.

Cristo tinha anteriormente explicado a Nicodemos, um professor dos judeus, que a entrada no Reino de Deus era somente pelo caminho apertado do novo nascimento― uma coisa possível a Deus somente― e que para o homem, a única condição de salvação era crer n’Ele a quem Deus tinha enviado ao mundo, Seu Filho (João 3:5, 14-18). E essa verdade vital é declarada também no Sermão no Monte; pois lá nós lemos:

“Entrai pela porta estreita; porque larga é a porta, e espaçoso o caminho que conduz à perdição, e muitos são os que entram por ela; E porque estreita é a porta, e apertado o caminho que leva à vida, e poucos há que a encontrem” (Mat. 7:12, 13[-14]).

E isso, na sabedoria do Senhor, foi considerado suficiente a respeito daquele assunto para o propósito daquele discurso e para o registro permanente do mesmo que era para tornar-se uma parte das Escrituras do Novo Testamento, as quais não foram escritas e recolhidas por quase uma geração depois. Pois, para ser salvo, um homem não precisa entender as condições da salvação, ou de saber qualquer coisa a respeito do novo nascimento. A única condição que ele deve cumprir é crer no Senhor Jesus Cristo. E essas palavras no monte foram faladas aos “Seus discípulos”, aqueles que “aproximaram-se d’Ele”, e que assim manifestaram a fé deles n’Ele; embora, sem dúvida, havia entre eles alguns que foram movidos por outros motivos, que não a fé, e para estes a advertência dada nas palavras citadas acima era necessária.

O Sermão no Monte, portanto, pressupõe que os ouvintes já são o povo de Deus tendo entrado no Reino de Deus através do único caminho que pode ser entrado.

Pois aqui temos outro ponto de semelhança entre Moisés, o mediador da velha aliança, e Jesus Cristo, o mediador da nova [aliança], de quem Moisés falou quando ele disse:

“O Senhor teu Deus te suscitará do meio de ti, dentre teus irmãos, um Profeta semelhante a mim; a Ele ouvirás; conforme tudo o que pediste ao Senhor teu Deus em Horebe, ... dizendo: Não ouvirei mais a voz do Senhor meu Deus, nem mais verei este grande fogo, para que não morra. Então o Senhor me disse: Falaram bem naquilo que disseram. Do meio de seus irmãos lhes suscitarei um Profeta semelhante a ti; e porei as Minhas palavras na Sua boca, e Ele lhes falará tudo o que Eu lhe ordenar” (Deut. 18:14-18).

Cristo era um Profeta semelhante a Moisés em que (entre outros pontos de semelhança) Ele falou as palavras de Deus a um povo a quem Deus tinha separado para Si mesmo. E assim como a lei do Monte Sinai foi dado a, e destinado a ser obedecida por, um povo a quem Deus

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livrou do Egito, sob o jugo de Faraó, e levado através das águas do Mar Vermelho; mesmo assim, a lei daquele outro Monte é dada para a obediência de um povo libertado para fora deste presente mundo mal, sob o jugo de seu príncipe, e levado através das águas da morte e julgamento pela morte e ressurreição de Jesus Cristo.

O Sermão no Monte não foi falado às multidões promíscuas na planície abaixo, a “todos os doentes”, àqueles “acometidos de várias enfermidades e tormentos: endemoninhados, lunáticos e paralíticos”; os quais Ele curou; e por causa dos quais “seguia-O grandes multidões da Galiléia”, e de outras regiões, algumas bem remotas (Mat. 4:24-25). Aquelas grandes multidões viram os Seus milagres e receberam os benefícios temporais; mas eles não ouviram o Sermão no Monte. Para desfrutar daquele privilégio indizível eles devem ter o coração de um discípulo, e devem passar pelo esforço de subir o monte. Pois “[Jesus] vendo as multidões, subiu a um monte, e, assentando-se, aproximaram-se d’Ele os Seus discípulos; e Ele abriu a Sua boca, e os ensinava” [Mat. 5:1]. E, então, procedeu de Seus lábios graciosos (Sl. 45:2) aquelas “palavras da graça” inigualáveis, que Deus tinha prometido através de Moisés quando Ele disse: “E porei as Minhas palavras NA SUA BOCA”.

A Palavra de Deus registra para a nossa instrução as duas ocasiões grandes e maravilhosas na história do mundo quando homens ouviram a Voz do próprio Deus proferindo os mandamentos que eles deveriam obedecer. Que contraste maravilhoso que há entre aquelas duas ocasiões! Já fiz uma breve referência àquele grande contraste; mas é extremamente importante que observemos cuidadosamente a diferença, e verifiquemos a razão disso.

No Monte Sinai, havia espetáculos e sons apavorantes; pois o monte estava completamente na fumaça, pois o Senhor desceu sobre o mesmo em fogo; e todo o monte tremeu grandemente. Havia, além disso, trevas e escuridão e tempestade, e o som da trombeta, que soou longamente e ia aumentando cada vez mais. Mas o mais difícil de tudo era para eles aguentarem aquela “Voz das palavras”, a Voz do Senhor que é tão poderosa e tão cheia de majestade, que tanto os encheu de terror que rogaram que a Palavra não mais deveria ser falada a eles. Como está escrito (Êx. 20:18-20):

“E todo o povo viu os trovões e os relâmpagos, e o sonido da buzina, e o monte fumegando; e o povo, vendo isso retirou-se e pôs-se de longe. E disseram a Moisés: Fala tu conosco, e ouviremos: e não fale Deus conosco, para que não morramos”.

Quão diferente era na outra montanha, a respeito da qual está escrito (Mat. 5:1):

“E Jesus, vendo a multidão, subiu a um monte, e, assentando-se, aproximaram-se d’Ele os Seus discípulos”!

Por que eles vieram a Ele agora, e não retiraram-se e puseram-se de longe como quando o mesmo Senhor deu mandamentos a um povo terreno no Monte Sinai? Por que eles subiram aquele monte e ouviram, sem medo, às Suas palavras? Ele não estava operando milagres no monte, nem distribuindo pães e peixes; mas estava dando mandamentos, assim como no outro monte [Sinai]; ainda “os Seus discípulos aproximaram-se d’Ele” e calmamente ouviam enquanto Ele trazia-os a relações conhecidas com o Pai que tinha enviado Ele para esse exato ministério.

Há muito a ser aprendido deste maravilhoso contraste; mas só podemos indicar brevemente os pontos principais; e o mais importante é que, nestas duas cenas contrastadas, temos as

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principais diferenças entre as duas eras a que pertencem respectivamente. Em uma, vemos o homem estremecendo-se da presença e da voz de Deus, e pondo-se “de longe”. Isso é “LEI”. Na outra, temos o Emanuel, Deus o Salvador, vindo na forma humilde de carne pecaminosa, associando a Si mesmo com os pecadores, a fim de trazê-los às relações mais íntimas e santas com Ele mesmo. Isso é “GRAÇA”.

Ademais, vemos o caráter da era da graça no fato de que o vir, até Ele, por parte dos discípulos, foi voluntário. Era o próprio coração deles que levou-os a subir aquela montanha e a ouvir as Suas Palavras. O Senhor atendeu as necessidades de “as multidões” nos níveis baixos da planície; mas somente aqueles que foram atraídos a Sua própria Pessoa até ao topo do monte, recebeu de Suas palavras. Àqueles que respondem ao evangelho, Ele dá “descanso” do fardo e penalidade do pecado; e a eles Ele diz: “Tomai sobre vós o Meu jugo, e aprendei de Mim”; mas Ele não força o Seu jugo sobre ninguém, nem mesmo obriga o Seu próprio povo a aprender d’Ele. É pura graça.

Ao pensarmos nessas coisas e meditarmos na grande obra da graça que tem continuado por dezenove séculos com tão pouca manifestação exterior, podemos ver com o olho da mente os “muitos filhos” recém-nascidos no Reino do céu apressando-se, em resposta a um impulso enviado do céu, ao subir o monte, para longe dos espetáculos e sons distrativos da terra, àquele lugar tranquilo onde a própria voz de Cristo pode ser escutada falando as palavras que Seu Pai deu a Ele para falar (João 7:16; 17:8). Mas coisa estranha tem acontecido nos nossos dias. Até agora, aqueles que eram reconhecidos e confiados como líderes entre o povo de Deus fizeram tudo o que podiam para encorajar os crentes novos a tomarem o jugo de Cristo, e a submeterem-se aos Seus mandamentos, assegurando-lhes, nas palavras do apóstolo João, que “os Seus mandamentos não são pesados”. Mas agora, ai de que tal coisa viesse acontecer! Há homens inteligentes e habilidosos, estimados amplamente como expositores sensatos e seguros da Escritura, que fazem de seus próprios negócios um impedimento contra aqueles da família da fé que subiriam o monte onde as próprias palavras de Cristo devem ser ouvidas; e os quais dizem-lhes nos termos mais positivos que aquelas palavras não são de nenhuma forma para os filhos de Deus, mas para “discípulos judaicos” de outra era. E que, após ter representado a lei de Deus como uma coisa a ser temida e evitada, declararam que o Sermão no Monte é “Lei elevada a sua potência mais alta, mais mortífera e destrutiva”!

Nos tempos passados, os obstáculos no caminho de alguém que subiria o monte para estar na presença de seu Senhor e receber “a doutrina de Cristo” de Seus próprios lábios, eram tais que podem ser atraídos ao coração natural. O mundo espalhou as suas atrações diante do olho, e a carne levantou-se contra o esforço necessário para a subida. Mas agora o caso é muito mais sério; pois encontramos homens da ortodoxia mais rigorosa que têm se colocado no caminho para interceptar qualquer dos filhos a quem eles possam encontrar indo para aquele Monte de nove vezes “bem-aventurados”; e escutamos esses professores dizerem nos tons mais autoritários que o monte e as palavras d’Aquele que lá fala do céu, não pertencem de nenhuma forma a esta dispensação da graça; que é “fundamento relativo a lei”; que as palavras do Pai são “judaicas”, sendo o “princípio” de um reino terreno bem distante; e que os cristãos primitivos que “fundamentaram-se” naquelas palavras eram uma “seita perigosa”! Que vergonha! Que profunda desonra ao trono de Deus! E que injustiça cruel aos leigos inocentes em Cristo, que estão, assim, afastados das palavras dadas a eles como “a Rocha” em cima da qual construiriam uma estrutura de vida que permanecerá! Irmãos, oremos por esses homens,

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que Deus irá realmente dar-lhes arrependimento para reconhecimento da verdade; e também que os “pequeninos” possam ser resgatados desse novo perigo. Bem, o apóstolo disse sim que nos últimos dias “tempos terríveis” viriam.

O Senhor Jesus Cristo, como Primogênito sobre toda a família de Deus, compartilha tudo o que Ele tem com os filhos amados. E entre os mais excelentes daquelas possessões familiares estão os “mandamentos” do Pai. Falando desses [mandamentos], Ele disse: “Eu tenho guardado os mandamentos de Meu Pai, e permaneço no Seu amor” (João 15:10); e de novo “é para que o mundo saiba que Eu amo o Pai, e que faço como o Pai Me mandou”. Por meio desses [mandamentos], e por muitas outras Escrituras, aprendemos que o Reino do céu chama aqueles que estão dentro desse [Reino] para obedecer aos mandamentos de Deus voluntariamente, e através do amor somente. Mas, de acordo com esse novo ensinamento, o cumprimento dos mandamentos do Pai é “legalismo”.3 Se, portanto, os nossos corações chegarem a responder à graça de Deus manifestada em nós em trazer-nos para dentro de Sua família, ao nível das crianças, então não estaremos à procura de desculpas para justificar-nos em não guardar Seus mandamentos, mas, pelo contrário, devemos ser bastante ávidos para guardá-los; devemos considerar isso um privilégio de tê-los; esses [mandamentos] serão a nossa alegria, nosso tesouro, nosso prazer principal; e a lei de Sua boca será melhor para nós do que milhares de ouro e prata.

Deixe-me aqui mencionar outro fato que prova conclusivamente que o Sermão no Monte pertence, e exclusivamente, a esta era presente da graça. Pois esta mensagem é manifestadamente para aquele povo de Deus que encontra-se em condições que existem nesta era presente e nenhuma outra. Um leitor atento destes capítulos (Mateus 5, 6, 7) não pode deixar de ver que as circunstâncias daqueles que foram referidos são precisamente o que os filhos de Deus têm de enfrentar nesta era; e que aquilo é simplesmente uma impossibilidade para encaixar o discurso nas condições que existirão na terra após a segunda vinda de Cristo.

O Senhor diz àqueles os quais esse Sermão é dado que eles são “a luz do mundo”, e que eles devem deixar a sua luz brilhar; que é precisamente o que os apóstolos escreveram posteriormente à igreja (Ef. 5:8; Filip. 2:15; Tg. 1:17; 1 Pedro 2:9). Na era vindoura o próprio Senhor será a Luz do mundo, que será cheia de Sua glória. No Sermão no Monte, Ele diz ainda que o Seu povo será perseguido e injuriado por causa do nome d’Ele; que eles não resistam ao mal [Mt. 5:39a], que ofereçam a outra face quando feridos; que eles devem ser injuriados e odiados e expostos aos falsos PROFETAS. Essas condições prevalecem durante esta era de Sua rejeição e ausência; mas serão completamente abolidas quando Ele voltar de novo.

Ademais, uma seção grande e importante do Sermão é dedicada ao assunto do cuidado e ansiedade a respeito das necessidades desta vida― comida e vestimenta. É nesta era presente da ausência do Senhor, e em nenhuma outra, que o Seu povo deve passar por provações da fé com relação a essas coisas necessárias, e encontram-se expostos aos cuidados do dia de amanhã. É manifestadamente impossível encaixar o sexto capítulo de Mateus dentro de qualquer era com exceção desta [era]; e ainda temos que ver a primeira tentativa de fazer isso. Esta é preeminentemente e visivelmente a era em que o deus das riquezas, o Mamon da injustiça, compete com o próprio Deus para [ter] o amor e a confiança de Seu povo. De fato, se tivéssemos apenas as palavras “Não ajunteis tesouros na terra [...] Mas ajuntai tesouros no céu”, para nos iluminar, poderíamos ver claramente que o Sermão no Monte não é “judaico”,

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mas para um povo celestial. A ideia de que esses mandamentos de Cristo destinam-se para um Reino de prosperidade judaica e supremacia-mundial para a qual os judeus de mente carnal estavam (e estão) procurando, e que, de acordo com o “ensinamento dispensacional”, virá após esta era do evangelho, não é apenas contrário à Palavra de Deus, mas é grotescamente absurdo.

FAZENDO A VONTADE DE DEUS DE CORAÇÃO

Mas temos nos desviado de nosso assunto; então voltemos à grande verdade de que a salvação é pela graça somente através da fé. E observe-se que isso é verdade não apenas nesta era, mas em todas as outras também. Mas Deus demanda que a fé seja real; e a prova da fé real é obediência, submissão leal de amor à vontade revelada de Deus. Portanto, que os membros da igreja em Corinto estavam salvos foi manifestado por sua “submissão que confessais quanto ao evangelho de Cristo” (2 Cor. 9:13). E, portanto, a doutrina de Cristo contida em Mateus 7, enquanto ela afirma a verdade fundamental de que a salvação é somente pela fé n’Ele, coloca a mais forte ênfase sobre o fato de que a fé verdadeira manifesta-se como tal, e também constrói para o seu possessor uma estrutura durável, no praticar da vontade de Deus como revelada naquelas “palavras” de Seu Filho.

Portanto, o que é mais necessário para nós entendermos, os quais Deus libertou do poder das trevas e transportou para o Reino do Seu Filho amado, é que a obediência na qual o Senhor tão fortemente insisti naquele grande proferimento, é― não o esforço do homem natural de obedecer à lei de Deus (uma coisa que Deus claramente diz ser impossível, Rom. 8:7), mas― o desejo e propósito espontâneo do coração renovado para fazer a boa e aceitável e perfeita vontade de Deus. Pois nisso está a essência da semelhança de Cristo; e, assim, isso é a natureza do “novo homem” e o resultado do novo nascimento.

Não é, é claro, exigido como uma condição de salvação final que o filho de Deus estará manifestando, em todos os seus atos e palavras, o caráter d’Aquele que é Obediente; pois nenhuma outra pessoa poderia dizer “Deleito-me em fazer a Tua vontade, ó Deus meu; sim, a Tua lei está dentro do meu coração” (Sl. 40:8). Pois é uma verdade da Escritura, e da experiência humilhante também de todo filho de Deus, que o “velho homem” permanece ainda naqueles que têm nascido de Deus, e os seus caminhos odiosos são muito frequentemente vistos em seus comportamentos. Mas, por outro lado, se a “obediência de Cristo” nunca é vista na pessoa que professa a fé de Cristo, isso é prova que nunca houve uma obra de Deus no coração dela. Pois quando os discípulos chegaram a Jesus perguntando “Quem é o maior no reino dos céus?”. Ele chamou uma pequena criança até Ele, e ao colocá-la no meio deles como uma lição objetiva, Ele disse: “Em verdade vos digo que, se não vos converterdes” (uma obra de Deus) “e não vos tornardes como pequenas crianças, de modo algum entrareis no reino dos céus” (Mat. 18:1-3).

POR SEUS FRUTOS

Ademais, nos versículos do Sermão no Monte imediatamente após aqueles [versículos] em que Cristo fala acerca de entrar pela porta estreita, Ele usa outra ilustração que serve para tornar o

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Seu significado mais claro. Naqueles versículos (Mat. 7:15-20), Ele salienta que o fruto é o resultado de vida (e assim a evidência dela); e que o caráter da fruta depende inteiramente no caráter da árvore. Isso vai até a raiz da questão. Isso declara da forma mais forte que a árvore corrupta não pode dar bons frutos. Isso é uma impossibilidade. O que então? Vendo que cada homem é por natureza totalmente corrupto, como pode qualquer pessoa dar os bons frutos de boas obras? O próprio Senhor tem dado a resposta, dizendo: “fazei a árvore boa, e o seu fruto bom” (Mat. 12:33); e o contexto mostra (v. 35) que Ele está falando ao coração do homem. Em outras palavras, a pessoa deve nascer de novo, e receber o Espírito Santo, antes que ela possa produzir o fruto do Espírito (Gal. 3:26; 4:6; 5:22-23).

Encontramos, então, que a doutrina de Cristo, como dada na porção concludente do Sermão no Monte, tão longe de estar em conflito com a verdade do evangelho, apresenta essa verdade na luz mais clara. O evangelho demanda obediência; e esse [o evangelho] é pregado para o propósito definitivo de produzir obediência entre todas as nações, até mesmo “a obediência da fé” (Rom. 1:5; 6:17; 15:18; 16:19, 26). De fato, “eterna perdição, longe da presença do Senhor” será a porção de todos os que “não obedecem ao evangelho de nosso Senhor Jesus Cristo” (2 Th. 1:7-9).

Assim, a primeira pergunta de alguém que tem sido salvo pela graça é aquilo que Saulo de Tarso perguntou: “Senhor, que queres que eu faça?”. Alguém que faz sinceramente essa pergunta já tem sido salvo pela graça através da fé; e tal alguém encontrará uma resposta cheia, embora concisa, a sua pergunta, no Sermão no Monte. E a “estas Minhas palavras” ele irá, não para ganhar a salvação ao obedecê-las; mas, sabendo que a sua salvação já está segura pela obra de Cristo e do Espírito Santo, fazendo-o um filho de Deus, ele irá a elas [a palavras de Jesus] para, ao praticá-las, que ele possa deixar a sua luz brilhar diante dos homens para que eles possam ver as suas boas obras e glorificar o seu Pai que está no céu.

NOTAS

1. É bom lembrar, quando ouvimos falar assim da lei de Deus, que é a “mente carnal” que está sendo permitida a expressar-se. Pois a mente espiritual ama a lei de Deus, e está até mesmo incapaz de encontrar palavras para expressar a sua admiração por ela [a lei]. Mas a própria menção da lei de Deus atiça a inimizade da mente carnal. O pensamento de estar sob ela [a lei] é intolerável. O pensamento não consegue suportar a contemplação de tal coisa; porque ela [a mente carnal] “não é sujeita à lei de Deus, nem, em verdade, o pode ser”.

2. Ver “Is the Sermon on the Mount Law?” por C. I. Scofield; com Comentários de P. Mauro. Hamilton Bros.” 10c.

3. No artigo do Dr. Scofield, ao qual foi feita referência acima, é afirmado que qualquer pessoa que ensina que o Sermão no Monte é para os filhos de Deus é um “Legalizante”, do mesmo tipo como aqueles que ensinaram nos tempos apostólicos que os discípulos gentílicos devem ser circuncidados e guardarem a Lei de Moisés para serem salvos, e a respeito dos quais o apóstolo disse “seja anátema”, como pregador de “outro (i.e. um diferente) evangelho”. Temos, portanto, um contraste surpreendente ao qual muita atenção dever ser dada, pois isso apresenta a questão numa forma impressionante: O Senhor diz de Seus mandamentos no Sermão no Monte que “Todo aquele que praticar e ensinar estes mandamentos será chamado

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‘grande’ no Reino dos céus”; mas o editor [da Bíblia Scofield] diz que os mesmos [“Todo aquele”] devem ser chamados de “Legalizador”, e ser responsável perante a maldição referida.

CAPÍTULO 11 11. O CARÁTER DO SERMÃO NO MONTE

MEU propósito principal neste capítulo presente é mostrar mais completamente do que já tem sido feito nas páginas anteriores que o Sermão no Monte exibe, em cada parte sua, o caráter da graça.

Há a maior necessidade de tornar isso claro e simples ao povo de Deus porque a nova “Bíblia” popular, cujos ensinamentos estamos examinando, declara da forma mais desqualificada que―

“O Sermão no Monte é lei, não graça”; e que “As doutrinas da graça devem ser buscadas nas epístolas, não nos Evangelhos” (Edição [da Bíblia Scofield] de 1909, p. 989).

Além disso, afirma-se na "Bíblia" referida que―

“O Sermão no Monte, em sua aplicação primária, nem dá o privilégio nem o dever da igreja” (Edição [da Bíblia Scofield] de 1909, p. 1000).

E outra vez que―

“É evidente que a seita realmente perigosa em Corinto era aquilo que disse ‘eu sou de Cristo’. Eles rejeitaram a nova revelação através de Paulo da doutrina da graça; baseando-se provavelmente nos ensinamentos do reino do nosso Senhor” (Edição [da Bíblia Scofield] de 1909, p. 1230).

Será visto que, na última das citações acima da “Bíblia Scofield”, não apenas o ensinamento de Paulo está posto em contraste com, e feito para aparecer como um superior a, aquele do Senhor Jesus Cristo, mas o último é exposto como aquilo que estabelece um fundamento― não para uma verdadeira vida cristã e caráter como o próprio Senhor declarou, mas― para uma “seita realmente perigosa”. Poderia qualquer coisa ser mais subversiva da verdade vital ou repleta de maiores possibilidades de perigo e perda à família da fé? Não é, portanto, o dever urgente de cada um, que se importa com a honra do Senhor Jesus Cristo e o bem-estar do Seu povo, de clamar contra esse ensinamento novo e destrutivo, e contra a “Bíblia” que contém-no?

Pois quais são os pontos da doutrina de Cristo contidos no Sermão no Monte? Estes são os principais:

Deixar resplandecer a nossa luz diante dos homens para a glória do nosso Pai no céu.

De abster-se do pensamento e palavra raivosa, e do desejo e olhar impuro.

De submeter-se ao ferimento. [Mt. 5:39-40]

De dar, emprestar, e amar os nossos inimigos.

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De devolver bênção pela maldição [bendizei os que vos maldizem], de fazer o bem e orar pelos que nos maltratam.

De ser como o nosso Pai que está no céu.

De não buscar uma reputação de piedade ou esmolas, como os fariseus.

De dar as coisas de Deus o primeiro e maior lugar em nossas orações.

De perdoar sem limites todas as ofensas contra nós mesmos.

De ajuntar tesouros no céu, não na terra.

De servir a Deus e não a Mamon.

De confiar em nosso Pai celestial para as coisas necessárias desta vida, e não estar ansiosos com o dia de amanhã.

De buscar primeiro o Reino de Deus e a Sua justiça.

De abster-se de julgar os nossos irmãos; e, em síntese, fazer aos outros o que queremos que os homens fizessem a nós.

Tal é “a doutrina de Cristo”, a respeito da qual o apóstolo João diz: “o que permanece na doutrina de Cristo, esse tem tanto o PAI como o FILHO” [2 João v. 9] (comparar as palavras do Senhor em João 14:23); e, “Se alguém vem ter convosco, e não traz ESSA DOUTRINA, não o recebais em casa, nem tampouco o saudeis” (2 João v. 9-10). Essa é a “doutrina” a respeito da qual o editor da “Bíblia Scofield” diz que as pessoas que fundamentaram-se nela eram “a seita realmente perigosa” em Corinto; e a respeito da qual ele diz em outra publicação (“Nossa Esperança [Our Hope]”, dezembro, 1919): “O Sermão no Monte é lei, e é elevada a sua potência mais alta, mais mortífera e destrutiva”. Que palavras terríveis são estas? Certamente, os primeiros nove versículos do Sermão, as “Bem-aventuranças”, são bem suficientes para refutar essa declaração falsa e injuriosa, e mostrar que o discurso pertence não à maldição da lei, mas às bênçãos gratuitas do evangelho.

Pedimos especial atenção agora à graça de Deus como maravilhosamente exposta no Sermão no Monte; e depois disso examinaremos as razões que o editor da Bíblia Scofield tem apresentado em apoio da sua declaração de que o Sermão no Monte “não é graça”, mas “lei, e é elevada a sua potência mais alta, mais mortífera e destrutiva”― algo a ser temido e rejeitado.

Primeiro. A qualidade da graça mais pura é vista no Sermão no Monte em que o Filho de Deus está lá trazendo homens pecadores ao conhecimento do Pai, e ao gozo consciente do relacionamento, aos privilégios e responsabilidades dos filhos de Deus. Não apenas isso é graça, mas pode ser dito sem temor de contradição de que a graça não consegue fazer maisi por homens pecadores do que trazê-los para dentro da família de Deus ao nível das crianças.

i Nota do tradutor: a respeito da expressão “não consegue fazer mais”, o autor emprega uma figura de linguagem, ou retórica, chamada lítotes, a fim de transmitir a ideia de que a graça está fazendo o máximo absoluto, como nada mais conseguiria fazer, que poderia fazer como favor ao homem. Frase original: “Not only is this grace, but it may be said without fear of contradiction that grace can do no more for sinful men than to bring them into the family of God on the footing of children”.

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Aquele que, nesse enunciado maravilhoso, traz aqueles que eram por natureza estrangeiros e inimigos de Deus às relações íntimas e santas com Deus o Pai, é precisamente Aquele que tinha vindo oferecer aquele Sacrifício sem o qual tal relacionamento teria sido para sempre uma impossibilidade; sem o qual não haveria nada para os melhores dos homens a não ser morte e sofrimento e o lago de fogo. Assim, todo o discurso supõe que a obra da Redenção foi realizada. Não encontramos nisso qualquer explicação acerca dos meios pelos quais aqueles que foram referidos seriam feitos filhos de Deus; mas tal explicação não é exigida no referimento na forma dada a ela a si mesma como uma parte da Palavra escrita. Nessa forma, a mesma é para aqueles que têm vindo a Cristo, o crucificado e ressuscitado, em resposta ao evangelho, e que já conhecem o fundamento da aceitação deles com Deus. Não somos ditos exatamente quais explicações nesse ponto o Senhor deu em Seu ensinamento oral; mas sabemos que “quando estava a sós com os Seus discípulos, explicava-lhes tudo” (Marcos 4:34).

Segundo. A qualidade da graça divina é também conspicuamente exibida no Sermão no Monte em que aqueles que são lá referidos são feitos os Filhos de Deus sem obras ou mérito da parte deles. Temos aqui o maior contraste possível entre as interações de Deus com os Israelitas no monte Sinai, e as Suas interações com os objetos de Sua graça nesta dispensação. A posição ou relacionamento oferecido aos filhos de Israel do monte Sinai estava explicitamente condicionado na obediência deles. A oferta foi feita nestas palavras:

“Agora, pois, se diligentemente ouvirdes a Minha voz e guardardes a Minha aliança, então sereis a Minha propriedade peculiar dentre todos os povos, porque toda a terra é Minha; vós Me sereis reino de sacerdotes e uma nação santa”.

E portanto:

“Então todo o povo respondeu a uma voz, e disse: Tudo o que o Senhor tem falado, faremos” (Êx. 19:5-8).

Aquela aliança foi, como sabemos, flagrantemente quebrada por todo o povo; e, portanto, tornou-se nula e sem efeito. É inútil, portanto, dizer que Deus estava sob qualquer obrigação de “ofertar” à Israel e a qualquer “reino” a qualquer momento. O Seu propósito para aquele povo, como para todos os homens, deve, a partir da transgressão daquela aliança, ser realizado na base da graça somente.

Mas, em contraste com a aliança condicional que Deus fez no monte Sinai com os filhos de Israel, nenhuma condições são feitas com os filhos de Deus para os quais Cristo dá o Seu ensinamento no Monte; e, se conhecemos as verdades mais elementares a respeito das interações de Deus com os homens, sabemos que isso é a grande diferença distintiva entre lei e graça.1 O Senhor Jesus Cristo, em Seu Sermão no Monte, fala aos “filhos” de Deus, com nenhuma palavra a respeito de qualquer coisa a ser feita por parte deles para trazê-los àquele relacionamento, ou para mantê-los nesse relacionamento. Assim, alguém pode falhar em ver a “graça” como distinguida da “lei” nesse discurso somente ao fechar os seus olhos àquilo que é mais conspicuamente exibido nesse [discurso]. Sabemos que existe apenas uma forma que um homem pode tornar-se um filho de Deus, isto é, mediante o novo nascimento que é o dom da graça a todos os que creem em Jesus Cristo. Sabemos, também, que, embora o Seu próprio povo como uma nação “não O receberam”, todavia, alguns indivíduos receberam Ele sim; e [sabemos] que “a todos quantos O receberam, DEU-lhes o poder (direito ou privilégio)

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de serem feitos filhos de Deus, aos que crêem no Seu nome; que nasceram . . . de Deus” (João 1:11-13). Foi para aqueles que “O receberam”, e para os quais mediante a graça foi dado a serem feitos filhos de Deus, que as instruções do Pai (o Sermão no Monte) foram faladas: e, portanto, aquele enunciado tornou-se, e é, a permanecente fundação-na-Rocha na qual os membros da grande família de Deus devem, um e todos, edificar. Isso é tão claro quanto as palavras podem torna-lo claro. Segue-se que aqueles que, por qualquer motivo e mediante qualquer meio, buscam privar os filhos de Deus do Sermão no Monte, estão atacando contra a Fundação sobre a qual toda a vida deles deve ser edificada. Pode alguma coisa ser mais séria?

Terceiro. A graça é ainda exibida no Sermão no Monte na natureza do motivo ou induzimento oferecido pela prática das coisas mandadas lá. Por exemplo, a nossa luz deve resplandecer nas trevas deste mundo, não para que Deus veja as nossas boas obras e abençoe-nos ao tornar-nos os Seus filhos, mas para que os homens vejam-nas e glorifiquem ao nosso Pai que está no céu, que já tem feito-nos os Seus filhos. Devemos “fazer e ensinar” esses mandamentos, não para que possamos por meio desses entrar no Reino do céu, mas que (tendo sido trazido para dentro do Reino pela graça) possamos ser “chamado grande” lá. Devemos amar os nossos inimigos, abençoar os que nos amaldiçoam, etc., não para ganhar um lugar na família de Deus, mas porque, tendo sido gratuitamente dado aquele lugar de mais alto privilégio, devemos ser (em todo o nosso comportamento) o que Deus tem feito-nos. A lição é precisamente aquilo dado à família de Deus pelo apóstolo Paulo nas palavras: “Sede, pois, seguidores (imitadores) de Deus, como filhos amados; e andai em amor, como também Cristo vos amou” (Ef. 5:1-2).

A graça é vista, pois, na posição de dignidade e glória eterna na qual o Senhor Jesus levanta aqueles a quem essa mensagem de Deus o Pai foi enviada. A graça é vista ainda no fato que a posição de proximidade de Deus, conhecida e desfrutada apenas pelo próprio Filho, é livremente dada aos rebeldes culpados, sem nenhuma obra da parte deles. E a graça é ainda mais vista em que os mandamentos, que o Pai aqui dá aos Seus filhos, concedem oportunidade a eles para ganharem recompensas ricas; enquanto que o fracasso por parte deles, embora isso acarretará sofrimento e perda (como todo o Novo Testamento ensina), não envolverá a perda do relacionamento deles com Deus.

Em vista de toda essa verdade, que possíveis razões pode a inteligência do homem inventar para pôr de lado o Sermão no Monte como “legal [relativo à lei]”, e como não tendo um lugar ou parte própria na dispensação da graça? É porque o Sermão no Monte contém mandamentos? Isso é o que o editor [da Bíblia Scofield] parece defender no artigo do qual tenho citado acima. Mas as epístolas de Paulo estão cheias de “os mandamentos do Senhor”, como todos os que tem lido-as sabem.2 E, certamente, todos nós deveríamos estar atônitos com qualquer pessoa que ousaria afirmar que o Pai não está de acordo com a “graça” ao dar mandamentos aos Seus próprios filhos. Não seria uma desgraça para qualquer pai humano que fracassasse nesse dever? E devemos nós, que somos os filhos de Deus, pela graça somente, recursarmos toda mensagem d’Ele que exige obediência, e que põe diante de nós as consequências da desobediência? Se sim, então não há Escrituras para nós, e nada para fazermos nesta vida a não ser agradar a nós mesmos. É quase inacreditável que qualquer um defenderia tal posição; contudo, temos que tomar conhecimento de que o fato de que o Dr. Scofield, no artigo por último referido, argumenta que o Sermão no Monte não é para nós

Tradução: Nathan Cazé

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porque é “expressado na linguagem de autoridade, ao invés de na língua de conselho bondoso”; e porque “em nenhum lugar há o fraseio relativo ao bom conselho, mas sempre exigência imperativa”. Isso certamente implica que o nosso Pai no céu não é permitido falar aos Seus filhos na “linguagem de autoridade” (embora Ele ordena os pais terrenos a assim mandar os seus filhos e reforçar a obediência com a vara), mas apenas na “linguagem de conselho bondoso” e na expressão de “bom conselho”. Certamente, não há necessidade de discutir tal proposição.

Isso nos traz à passagem mediante a qual o editor, tanto na “Bíblia” dele como nos artigos publicados dele, busca defender a declaração de que “o Sermão no Monte é lei e não graça”. Esta passagem é Mateus 6:12, 14-15, que diz assim:

“E perdoa-nos as nossas dívidas, assim como nós perdoamos aos nossos devedores ... Porque, se perdoardes aos homens as suas ofensas, também vosso Pai celestial vos perdoará a vós; se, porém, não perdoardes aos homens as suas ofensas, também vosso Pai vos não perdoará as vossas ofensas”.

Sobre isso a nota [de rodapé] do editor diz:

“Isto é fundamento relativo a lei”. Cf. Ef. 4:32, que é graça. Sob a lei, o perdão é condicionado a um espírito semelhante em nós. Sob a graça, somos perdoados por amor de Cristo e exortados a perdoar porque temos sido perdoados”.

E no artigo referido acima, ele diz que no Sermão no Monte “Toda bênção é condicional às obras, não fé”.

Já tenho amplamente mostrado que essa última declaração está diretamente contrária à verdade. Temos, portanto, que somente indagar: é Mateus 6:12-15 “fundamento relativo a lei”? E, se sim, todo o Sermão no Monte consequentemente pertence a outra “dispensação”?

A respeito dessas questões, submeto como se segue, abordando-as em ordem reversa:

1. Seja qual for o ponto de vista que possa ser extraído das palavras de Mateus 6:12-15, a principal questão quanto ao lugar “dispensacional” do Sermão no Monte permanece inalterado. Pois tenho mostrado por meio das provas mais claras de que a mensagem é a mensagem do Pai aos Seus próprios filhos. Portanto, se encontrarmos qualquer coisa “legal [relativa à lei]” nessa mensagem, devemos concluir que ela propriamente pertence lá. Para os filhos rejeitem o mandamento de seu Pai porque esse mandamento contém uma cláusula que eles escolhem considerar como “legal [relativo à lei]”, seria uma coisa mais presunçosa.

2. Mantenho, entretanto, que as palavras da passagem em análise não são apenas consistentes com a graça de Deus em fazer pecadores crentes tornarem-se Seus filhos, mas que essas [palavras] tendem a enfatizar fortemente o fato de que o Reino, ao qual o Sermão no Monte pertence, é da graça. Pois está claro que a conspícua característica deste dia da graça é o perdão de pecados, que é pregado no Nome de Jesus Cristo e na base de Seu sacrifício expiatório, a todo o mundo. Assim, todos os que entram no Reino de Deus é um pecador perdoado. Esse alguém tem sido inteiramente e gratuitamente perdoado e justificado de todas as coisas. Portanto, ele é obrigado, e mais propriamente obrigado― visto que o caráter do Reino, dentro do qual a graça de Deus tem trazido ele, imperativamente demanda isso― a

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perdoar os outros as suas “dívidas” ou “ofensas” contra ele mesmo. A passagem não tem nada a ver com os pecados do homem, os quais foram todos perdoados quando ele foi feito um filho de Deus. A passagem refere-se a uma questão bastante diferente, isto é, de dívidas ou ofensas; e é uma coisa verdadeiramente incrível que qualquer um, que considera-se apto a comentar acerca de toda a Bíblia, fracassasse em distinguir entre coisas tão largamente diferentes em sua natureza como o perdão de Deus do pecador arrependido e o perdão do Pai das ofensas de Seus próprios filhos.3

É uma verdade de grande importância prática para cada filho de Deus saber que se ele, que tem recebido pela graça o perdão gratuito de todos os seus pecados, recusar-se a perdoar as “ofensas” dos outros contra ele mesmo (a maior da qual seria algo relativamente insignificante), ele será deixado agora nesta vida presente às consequências de suas próprias “ofensas” (e cada um de nós não sabemos, por experiência, alguma coisa sobre o que isso significa?) com a possibilidade de uma perda futura a mais.

Sinto-me obrigado, além disso, a abordar a objeção mais séria à declaração que “sob a lei do reino ninguém pode esperar [obter] perdão, que, primeiramente, não tem perdoado”. Mesmo na dispensação da lei, Deus não lidou com os homens nessa base. Alguém precisa apenas um pouco de conhecimento da Escritura para estar ciente que Deus sempre e sempre perdoou o pecador penitente mediante confissão e fé somente. NUNCA HOUVE, NEM AGORA, NEM NUNCA HAVERÁ [mais de uma base], MAS APENAS UMA BASE MEDIANTE A QUAL DEUS PERDOA O PECADOR; e somos obrigados a protestar que isso não apenas ataca a verdade fundamental da Redenção, mas também faz desonra profunda ao Senhor Jesus Cristo, dizer que no Reino anunciado e introduzido por Ele próprio ninguém pode ter esperança de receber perdão se não tiver, primeiramente, perdoado. Pois Davi viveu durante a era da lei, contudo, ele é conspicuamente o homem que conheceu por experiência a bem-aventurança daqueles “cujas iniquidades são perdoadas e cujos pecados são cobertos” (Rom. 4:6-7). Os próprios casacos de pele, com os quais Deus, em Sua misericórdia perdoadora, cobriu a nudez do primeiro par de pecadores, deu testemunho à verdade eterna que sem derramamento de sangue não há remissão de pecados.

As palavras de Mateus 6:12 são de valor prático imenso; pois se usarmos a oração-padrão dada pelo Senhor (não como forma, mas como um padrão) orando em nossos aposentos “[orareis] assim”, a cláusula “assim como nós perdoamos aos nossos devedores” nos fará sondar os nossos corações em Sua presença por qualquer pensamento imperdoável e ressentido antes que possamos buscar ou esperar gozar o perdão de nossas próprias ofensas.

Próximo do fim do ministério do nosso Senhor― muito depois do reino ter sido “adiado” de acordo com a teoria do editor― Ele repetiu esta lição, dizendo:

“Por isso, vos digo que tudo o que pedirdes, orando, crede que o recebereis e tê-lo-eis. E, quando estiverdes orando, perdoai, se tendes alguma coisa contra alguém, para que vosso Pai, que está nos céus, vos perdoe as vossas ofensas. Mas, se vós não perdoardes, também vosso Pai, que está nos céus, vos não perdoará as vossas ofensas” (Marcos 11:24-26).

O editor não pode, consistentemente com o próprio ensinamento dele, designar essas palavras do Senhor à categoria dos “ensinamentos do reino” d’Ele, pois essas palavras foram faladas

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apenas alguns dias antes de Sua morte. Assim, a mesma doutrina encontrada no Sermão no Monte não pode, mesmo pela teoria do próprio editor, marcá-las [i.e. as palavras do Senhor] como pertencendo à dispensação da lei. No que, então, a teoria se apoia? Claramente, a mesma está completamente destituída de apoio.

Para resumir: existe uma diferença importante entre os pecados do pecador e as ofensas do crente. O pecador, quando ele vem à Cristo, recebe o perdão de todos os seus pecados através do mérito do sacrifício expiatório de Cristo, e com base na única condição do “arrependimento para com Deus e a fé em nosso Senhor Jesus Cristo”. As ofensas do crente, cometidas depois que ele tem sido perdoado e aceitado como um filho de Deus, são perdoadas através da confissão (1 João 1:9), através da intercessão do Advogado, Jesus Cristo, o Justo, à direita de Deus (1 João 2:2), e com base no mesmo Sacrifício. O crente, no entanto, não pode contar com esse perdão de suas ofensas (mas, do contrário, pode esperar sofrer as consequências delas) se ele recusar-se ou fracassar em perdoar as ofensas dos outros contra ele mesmo. É com essa questão que o ensino do nosso Senhor, que temos examinado neste capítulo, tem a ver.

NOTAS

1. De acordo com Rom. 6:14 e outras Escrituras, estar “sob a lei” significa estar na servidão ou “domínio” do pecado, e, portanto, sujeito à penalidade do pecado; pois a lei não pôde fazer nada com ou para o pecador a não ser consignar-lhe a pena que lhe é devido justamente. Mas “debaixo da graça”, um remédio tem sido providenciado através de Jesus Cristo; e aqueles que estão debaixo da graça pode e deve obedecer aos mandamentos de Deus “de coração” (v. 17).

2. Por exemplo, na epístola aos Romanos, do capítulo 12:1 ao capítulo 15:7, estão os mandamentos do Senhor para aqueles que estão em Seu Reino; e em meio dessas leis está a definição inspirada (já citada) de “o Reino de Deus” (Rom. 14:17).

3. C. H. Spurgeon, comentando a respeito das palavras “assim como nós perdoamos aos nossos devedores”, diz: “Isso é uma exigência razoável, não [ao invés], bendita, a qual é um deleite cumprir”.

CAPÍTULO 12 12. O REINO DE DEUS VINDO COM PODER

TRÊS dos Evangelhos registram uma profecia de Cristo a respeito do Seu Reino, que, por Sua palavra expressa, seria cumprida durante a vida de alguns que ouviram-na. Isto é o registro de Marcos disso:

“Em verdade vos digo que, dos que aqui estão, alguns há que não provarão a morte até que vejam ter chegado com poder o reino de Deus” (Marcos 9:1).

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Mateus registra a mesma predição, mas com uma leve variação de linguagem, sendo o tempo do evento predito declarado assim: “até que vejam o Filho do Homem vindo no Seu Reino” (Mat. 16:28). Em Lucas, diz: “até que vejam o reino de Deus” (Lucas 9:27).

Temos, então, o registro autêntico de qualquer evento ocorrendo dentro daquela geração que responda a essa predição? Havia dois acontecimentos que reivindicam atenção ao passo que buscamos uma resposta a essa pergunta. Ambos esses acontecimentos foram de grande importância no cumprimento dos propósitos revelados, de Deus, concernentes ao Seu Reino, e ambos ocorreram dentro do tempo tão enfaticamente limitado pelas palavras do Senhor.

Esses dois eventos foram: primeiro, a vinda do Espírito Santo no dia de Pentecostes; e, segundo, a destruição de Jerusalém e da nação judaica por parte dos romanos em 70 A.D. Cada um desses eventos pode ser considerado, e sem jamais forçar o significado das palavras, como uma vinda do Reino de Deus. E cada um, ademais, pode ser considerado, à luz da Escritura, como uma cunhagem desse Reino com circunstâncias acompanhantes que respondem à frase “com poder”; circunstâncias tais como as que estavam ausentes durante o ministério terrestre de Cristo.

Pois o derramamento do Espírito Santo foi inquestionavelmente uma vinda desse Reino o qual o apóstolo Paulo posteriormente definiu como “justiça, e paz, e alegria no Espírito Santo” (Rom. 14:17). Lembremos, ademais, em relação à frase “com poder”, que o nosso Senhor, ao falar a Seus discípulos a respeito do então advento, do Espírito Santo, que estava aproximando-se, tinha falado: “Mas recebereis poder” (Atos 1:8). Poder era necessitado e era prometido para a pregação efetiva daquele evangelho por meio do qual aqueles que creem-no são transportados para dentro “do Reino do Filho amado de Deus” (Col. 1:12-13); aquele evangelho que é “o poder de Deus para salvação de todo aquele que crê” (Rom. 1:16).

A destruição desoladora da nação judaica, a sua cidade linda e o seu templo magnificente― catástrofe sem precedentes que foi descrita antecipadamente pelo próprio Cristo (Mat. 24, Marcos 23, Lucas 21)― foi, semelhantemente, uma vinda mais evidente e impressionante do Filho do homem “em poder”. Foi uma vinda em juízo final contra aquela nação; e os detalhes terríveis disso prefiguram o juízo final do mundo.

Infelizmente, a significância desse evento mundialmente abalador é grandemente minimizada no ensino de nossos dias. E minha convicção é que, a menos que alguém veja a destruição de Jerusalém por parte dos Romanos e os eventos concomitantes e consequentes contra ela, na relação verdadeira dissoi a todo o esquema das interações de Deus com a raça humana nas duas divisões, de judeus e gentios, desse esquema, esse [alguém] não conseguirá compreender o propósito geral de profecia bíblica.

Dos dois eventos referidos acima como possíveis cumprimentos da profecia do nosso Senhor, um ocorreu dentro de um ano da época que a profecia foi proferida, enquanto que o outro está muito além no futuro― aproximadamente quarenta anos. Não obstante, alguns dos que estavam lá, notavelmente o apóstolo João, chegaram a “ver” aquela grande obra de “poder” e

i Nota do tradutor: refere-se tanto a “destruição de Jerusalém” quanto aos “eventos concomitantes e consequentes”.

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juízo divino, que Moisés tinha predito (Deut. 28:49-64), e outros semelhantes, dos quais não tinham sido “desde o princípio do mundo” (Mat. 24:21).

Após muita deliberação sobre a questão, minha conclusão é que, se uma escolha deve ser feita entre aqueles dois eventos, é aquele mais posterior quanto à data― isto é, a aniquilação da nação judaica, sendo isso a manifesta tirada deles do Reino de Deus (de acordo com a palavra de Cristo registrada em Mateus 21:43)― que o nosso Senhor tinha em vista quando Ele proferiu a profecia que estamos considerando. Indicarei, no que se segue, as minhas razões principais por pensar assim.

1. As palavras “alguns há, dos que aqui estão, que não provarão a morte” indicam que Ele tinha em contemplação um evento que estava numa distância considerável no futuro relativamente à duração comum da vida humana. A Sua referência à morte de alguns que estavam, naquela ocasião, perto d’Ele, seria dificilmente adequado no que diz respeito a um evento que estava para acontecer dentro do espaço de um ano.

2. Mas uma razão mais forte é encontrada na profecia das Oliveiras de nosso Senhor, que é registrada por cada um dos três escritores-do-Evangelho os quais relatam a profecia proferida em Cesaréia de Filipe. Pois, na profecia, de Cristo, das Oliveiras, a desolação da Judéia, o cerco de Jerusalém, a demolição do Templo, e a dispersão mundial do povo judaico, foram preditas detalhadamente. Especialmente deve-se ser observado que o nosso Senhor fez uso, nessa profecia, de expressões que são marcantemente semelhantes àquelas usadas na profecia anterior. Assim, referindo-se na profecia das Oliveiras à desolação da Judéia e Jerusalém que aproximava-se, Ele disse: “Em verdade vos digo que todas essas coisas hão de vir sobre esta geração” (Mat. 23:36). E, em seguida, segue-se o Seu lamento dorido por Jerusalém, em que ocorre as palavras: “Eis que a vossa casa vos é deixada, a vós, desolada”. Essas correspondências oferecem boa razão para a crença de que as profecias do nosso Senhor, em Jerusalém, eram amplificações da breve predição proferida em Cesaréia de Filipe.

3. Mas ainda há outra razão em apoio ao ponto de vista declarado acima; e essa razão eu considero como conclusiva. Ao predizer aqueles “dias de vingança” vindouros, em que “todas as coisas que foram escritas” fossem “cumpridas” (Lucas 21:23), Cristo deu aos Seus discípulos um sinal por meio do qual eles saberiam que os dias de vingança preditos eram chegados, a fim de que pudessem salvar a si próprios por fuga; o sinal sendo o cercar de Jerusalém com exércitos (v. 20). E, em seguida, a fim de gravar a lição em suas mentes, Ele contou uma parábola a respeito da figueira e todas as árvores, e disse: “Assim também vós, quando virdes acontecer estas coisas, sabei que o Reino de Deus está perto. Em verdade vos digo que não passará esta geração até que todas essas coisas aconteçam” (v. 31-32). Portanto, temos a própria declaração de Cristo no sentido de que a destruição de Jerusalém e a dispersão da nação era uma vinda do Reino de Deus. E isso Ele, de novo, juntou com a afirmação de que a Sua predição seria cumprida antes do passar daquela geração.

Ao estudar os três relatos da profecia, do nosso Senhor, das Oliveiras, o estudante deveria observar que o período designado no relato de Lucas como “os dias de vingança”, em que deveria haver “grande aflição na terra e ira contra este povo”, é o mesmo período que Marcos designa “os dias de aflição, tal qual nunca houve desde o princípio da criação . . . até agora” (Marcos 13:19) e isso é designado, por Mateus, como a “grande tribulação, como nunca houve desde o princípio do mundo até agora” (Mat. 24:21). O contexto das várias passagens torna

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certo que um e o mesmo período de calamidade sem precedentes é referido nas três passagens.

Comparação deve ser feita, também, com a profecia de Daniel: “E haverá um tempo de angústia, qual nunca houve, desde que houve nação até àquele tempo; mas naquele tempo livrar-se-á o Teu povo, todo aquele que for achado escrito no livro” (Dan. 12:1). A grande semelhança entre a linguagem dessa profecia e daquela [linguagem] da profecia, do nosso Senhor, das Oliveiras, dá garantia de que ambas referem-se ao mesmo evento. As palavras do anjo à Daniel referem-se explicitamente à nação judaica (“os filhos do vosso povo”). Aqueles que seriam livrados naquela época de aflições inigualáveis― aqueles “achado escrito no livro”― eram, é claro, os discípulos de Cristo, que receberam a advertência por meio do proferimento do Senhor deles, e fugiram para salvar as suas próprias vidas quando viram o Seu sinal predito. Felizmente para eles, eles não tiveram alguns de nossos expositores modernos de profecia para instruí-los quanto ao significado dessa predição.

E, particularmente, deveria ser observado, como completamente confirmando o que é dito acima abordando ambos o lugar, e também o tempo daquela temporada de aflição e tribulação, nos quais todas as profecias de “ira contra este povo” haviam de ser cumpridas, que a localidade é explicitamente limitada à JUDÉIA (Mat. 24:16), e que o tempo é explicitamente limitado À GERAÇÃO VIVENTE NAQUELA ÉPOCA (v. 34).

A SIGNIFICÂNCIA IMENSA DA DESTRUIÇÃO DE JERUSALÉM

Ao ponderar as Escrituras citadas acima, o leitor será capaz de perceber o significado verdadeiramente imenso acerca da execução dos juízos, de Deus, de longo deferidos, embora frequentemente ameaçados e o derramamento da Sua ira contra aquela nação a qual Ele tinha escolhido para Si mesmo, e com a qual Ele tinha lidado durante um milênio e meio como Ele nunca tinha lidado antes com qualquer outra. Pois isso era a nação que Ele tinha tão maravilhosamente libertada para fora do Egito; a nação a qual Ele tinha dado a Sua santa lei em meio aos terrores do Sinai; a nação que Ele tinha trazido para dentro da terra da promessa, expulsando diante deles as nações maiores e mais poderosas do que eles; a qual Ele tinha enviado os Seus profetas com advertências e com promessas; e a qual, por último, Ele enviou o Seu único Filho. E se alguém apenas relembrar as muitas profecias, começando com Deuteronômio 28:49-68, que apontaram para e foram cumpridas naquele evento estupendo (a destruição de Jerusalém), esse [alguém] certamente reconhecerá alguma coisa acerca do lugar e importância única disso [evento] no esquema das interações de Deus com a humanidade.

Finalmente, temos a própria palavra do nosso Senhor quanto a isso, que aqueles [dias] seriam dias de vingança nos quais todas as coisas que estão escritas sejam cumpridas (Lucas 21:22); e Ele estava, naquela época, falando acerca de um período que viria dentro daquela geração; um período de grande aflição na terra (de Judéia) e de grande ira contra aquele povo. Daí as palavras “Todas as coisas que estão escritas” podem significar nada menos do que as muitas predições dos profetas de Israel concernentes aos juízos que seriam executados contra eles se persistissem em sua desobediência e apostasia.

A isso, também, o Apóstolo Paulo manifestadamente tinha referência quando, escrevendo aos Tessalonicenses, vinte-cinco a trinta anos mais tarde, ele disse acerca dos judeus que eles

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“mataram o Senhor Jesus e os seus próprios profetas, e nos têm perseguido, e não agradam a Deus, e são contrários a todos os homens” [1 Tess. 2:15], por causa de todos os quais “a ira caiu sobre eles até ao fim” (1 Tess. 2:16).

AS DUAS PERGUNTAS DOS DISCÍPULOS

Em vista de tudo o que precede, parece claro que a primeira pergunta a ser feita por parte dos discípulos de seu Mestre (“quando acontecerão essas coisas”) (Mat. 24:3) tinha referência à demolição do templo, do qual Ele tinha acabado de falar (v. 2); e que a outra pergunta (“E qual será o sinal da Tua vinda e do fim dos tempos?”) tinha referência (a) à Sua “vinda” para a destruição do templo, e (b) ao “fim da” então era judaica que estava passando. Pois esse juízo vindouro seria “o dia do Senhor” para aquele povo. Seria um evento tal como os profetas de Israel possam ter bem descritos nos termos mais fortes, e retratado por meio da mais impressionante simbologia profética.

OS TEMPOS DOS GENTIOS E A PLENITUDE DELES

A destruição de Jerusalém marca não somente o fim da nação judaica, mas também o começo de “os tempos dos gentios”. É adequado, portanto, referir-se neste momento a duas expressões que são conhecidas por todos os estudantes de profecia: “Os tempos dos gentios” e “A plenitude dos gentios”. A primeira ocorre numa profecia de Cristo a respeito de a cidade de Jerusalém. A segunda é encontrada numa profecia de Paulo a respeito de o povo judaico.

O nosso Senhor, após ter predito a dispersão mundial dos judeus, disse:

“E Jerusalém será pisada pelos gentios, até que os tempos dos gentios se cumpram” (Lucas 21:24).

E Paulo, após ter estabelecido, sob a figura de uma oliveira, o método da salvação de Deus para ambos os Judeus e Gentios, disse:

“Porque não quero, irmãos, que ignoreis este mistério, para que não presumais de vós mesmos: que o endurecimento veio em parte sobre Israel, até que a plenitude dos gentios haja entrado” (Rom. 11:25).

A característica marcante de cada uma dessas profecias é que a mesma descreve uma condição que duraria, à vista de toda a humanidade, ao longo de toda a era do evangelho. A primeira põe uma marca conspícua e de longo-tempo sobre a cidade de Jerusalém. A outra põe uma marca igualmente conspícua e permanente sobre o povo judaico disperso.

O meu propósito é, no que se segue, mostrar como, no interesse do dispensacionalismo, a significância dessas Escrituras extremamente importantes tem sido mudada e o objetivo para os quais foram dados tem sido, em grande medida, frustrado. Pois essas são profecias acerca do que ocorreria durante esta era presente, e elas são estritamente limitadas a isso [a era presente]; enquanto que elas são comumente tratadas como profecias acerca do que acontecerá após esta era presente ter chegada ao fim. Pois a palavra do nosso Senhor a respeito de Jerusalém é geralmente interpretada como uma predição que, quando os tempos

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dos gentios tiverem terminados, em seguida Jerusalém será repossuída pelos judeus e tornar-se-á a cidade capital de uma nação judaica recuperada. Mas, de fato (e não deve ser necessário salientar isso), a outra passagem não diz nenhuma palavra e não dá nem mesmo uma dica a respeito do que acontecerá à Jerusalém após os tempos dos gentios tiver chegado a um fim.

Semelhantemente, a passagem em Romanos 11 é frequentemente apresentada― não como uma profecia que seria cumprida através desta dispensação-do-evangelho, mas― como uma predição que, após a obra do evangelho ter sido cumprida, então o povo judaico há de ser salvo nacionalmente e por meio de uma salvação especial de caráter terreno, diferente da salvação-do-evangelho. A passagem, entretanto, não apenas não diz nenhuma palavra acerca de uma salvação pós-evangelho para a nação judaica, mas, do contrário, ensina claramente que há apenas uma “salvação comum” (Judas v. 3) para todos os homens, viz, aquela prefigurada pela oliveira dessa passagem.

UM DUPLO TESTEMUNHO À AUTENCIDADE DA PROFECIA BÍBLICA

Que seja observado que o cumprimento dessas profecias demandou a contínua existência de ambas a cidade e o povo, embora separou uma da outra, ao finalzinho da era do evangelho; e isso demandou, também, que a cidade estivesse nas mãos de estrangeiros, e o povo estivesse nas terras dos estrangeiros, durante toda aquela grande extensão de tempo. Aqui, então, está um teste duplo e conclusivo da autoria Divina das Escrituras proféticas. Pois se, no decorrer desses “tempos dos gentios”, ou a cidade ou o povo tivesse deixado de existir, ou se a cidade tivesse vindo às mãos judaicas de novo, ou o povo judaico, como um todo, tivesse mudado a sua atitude característica com respeito a Cristo e o Seu evangelho, as profecias teriam sido falsificadas e todo o Novo Testamento desacreditado. Por outro lado, já que ninguém a não ser Deus poderia ter declarado como suceder-se-ia com a cidade e povo por toda esta longa era, essas profecias, por meio do cumprimento delas, fornecem um testemunho irrepreensível à autoridade Divina delas, e, portanto, à origem Divina do Livro do qual elas são uma parte integral.

UM CUMPRIMENTO CONTÍNUO

O que dá a essas profecias o seu valor insuperável como testemunhas à autoria Divina da Bíblia é o fato de que elas têm o caráter extraordinário de demandar um cumprimento contínuo. Profecias que predizem o acontecimento de um evento específico― como a destruição de Jerusalém― não são de nenhum valor como evidência até que o evento predito ocorra. E, em seguida, o efeito completo é sentido apenas pela geração vivendo na ocasião. Mas essas profecias são de tal natureza como para dar testemunho a todas as gerações sucessivas; e não apenas isso, mas há tais que seu testemunho torna-se mais e mais impressionante ao passo que os séculos prosseguem.

Ademais, o cumprimento permanece proeminentemente diante dos olhos de todo o mudo. Pois Jerusalém é uma cidade conspícua; e, assim, semelhante à raça judaica, eles estão em todos os lugares; e, seja onde estiverem, eles são judeus, e conhecidos como tais.

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Portanto, Deus tem tornado possível por meio dessas duas profecias somente, mesmo se não houvesse nenhuma outra prova disponível, para todos os inquiridores honestos em todos os tempos por toda esta dispensação do evangelho, ter prova convincente da Divina inspiração das Escrituras Sagradas; e, particularmente, da certeza do elemento profético de lá.

“ISTO É JERUSALÉM”

Atenção especial deveria ser dada ao fato de que essas profecias relacionam-se completa e exclusivamente a esta era presente. O nosso Senhor, na profecia das Oliveiras a qual estamos considerando como registrada no Evangelho de Lucas, predisse que haveria “ira contra este povo”, que eles iriam “cair a fio de espada”, e “serão levados cativos para todas as nações”; e, finalmente, que Jerusalém seria “pisada pelos gentios, até que os tempos dos gentios se cumpram”. E lá a Sua predição acaba. Mas, em todas as modernas exposições que já tenho ouvido ou lido, a predição real do nosso Senhor é virtualmente ignorada, e Ele é feito dizer que quando os tempos dos gentios estiverem terminados, então os judeus serão reconstituídos como uma nação, e repossuirão a sua terra antiga, com Jerusalém sendo a cidade capital deles. Portanto, uma profecia, que é limitada a um estado de coisas as quais prevaleceriam durante esta era presente, é convertida numa predição de um suposto estado de coisas após a era tiver terminada.

O que o Senhor tomou sobre Si próprio para predizer nessa profecia é que a tempestade de juízo prestes a cair sobre Jerusalém não apagá-la-ia da existência, como Sodoma e Gomorra foram obliteradas, não obstante que o pecado dela [Jerusalém] estava ligada ao pecado das cidades das planícies (Isa. 1:10, e ver Lucas 10:12). Nem seria ela abandonada completamente e cairia em ruínas como Babilônia e Tiro. Profecia tinha previamente sido declarada a respeito daquelas cidades famosas (cuja grandeza e prosperidade parecia garantir a sua permanência) de que a primeira tornar-se-ia “montões de ruínas”, “morada de dragões”, e “não mais habitada para sempre” (Jer. 50:39; 51:37); e que a última seria varrida completamente e tornar-se-ia como o topo de uma rocha, e um lugar para o estender de redes (Ezeq. 26:4-5; 27:36; 28:19). E assim foi (e é) com aquelas cidades que certa vez eram poderosas e florescentes. Jerusalém, do contrário, embora por seus crimes ela mereceu uma punição mais severa, foi decretada a permanecer intacta, mas com uma marca de retribuição Divina permanecendo sobre ela (pois ela estaria perpetuamente nas mãos de estrangeiros), e, assim, serviria como um monumento conspícuo à verdade da palavra de Deus. Caso as profecias a respeito das cidades mencionadas acima respectivamente tivessem sido os resultados de mera previsão humana, com base nas probabilidades dos vários casos, os seus termos teriam sido revertidos, e a existência mais longa predita acerca das cidades gentílicas.

Quanto ao que cairá contra Jerusalém após os tempos dos gentios estiverem terminados, observo: (1) O Senhor não achou necessário falar disso nessa profecia. Isso é um fato digno de observação; pois, quisera Ele tornar conhecido que os judeus readquiririam a possessão da antiga cidade deles, Ele não teria deixado a passagem como a mesma encontra-se na Bíblia. (2) Outras Escrituras, ademais, revelam claramente que quando a obra do evangelho entre as nações do mundo estiver terminada, o Senhor virá de novo; [e] que Ele irá, em seguida, remover o Seu próprio povo redimido desta terra condenada, e derramará as taças de ira exterminante contra o restante. Ele próprio tem apontado para a destruição da terra nos dias de Noé, e

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àquela [destruição] de Sodoma nos dias de Ló, como sendo as sombras típicas do juízo universal vindouro; e, em assim fazer, Ele estabeleceu ênfase no fato de que o exato dia que Noé entrou na arca “veio o dilúvio e os destruiu a todos”, e “no mesmo dia em que Ló saiu de Sodoma, choveu fogo e enxofre do céu e os destruiu a todos” (Lucas 17:27, 29). É certo, portanto, que quando “os tempos dos gentios” estiverem terminados, não haverá nenhum povo judaico restado na terra.

O VÉU NOS CORAÇÕES DELES

Foi o decreto do Senhor desde os tempos antigos (Isa. 6:9-12; Mat. 13:14) que o povo de Israel, por causa de sua bruta e de longa contínua iniquidade e rebelião, fosse cegado e endurecido à Palavra do Senhor. O apóstolo Paulo refere-se ao estado espiritualmente cegado deles em termos figurativos, dizendo que o véu que Moisés colocou sobre sua [própria] face permanece, agora, sobre o coração deles (2 Cor. 3:14-15). E aqui (Rom. 11), ele não acrescenta nada a isso a não ser o fato de que o estado predito de “cegueira em parte” continuaria “até que a plenitude dos gentios haja entrado” (v. 25). E lá ele deixa o assunto. De novo, entretanto, como no caso já observado, os expositores modernos interpretam a Escritura de tal maneira a mudar o seu significado num sentido material. Pois a minha experiência tem sido que, quando essa passagem é citada, a mesma não é para o propósito de mostrar que a cegueira divinamente imposta acerca do Israel natural continuaria até a obra do evangelho entre os gentios fosse completada; mas com a finalidade de prestar apoio à doutrina de que haverá uma salvação especial para o povo judaico (uma salvação terrena em espécie) após o dia da salvação do evangelho estiver terminada. Mas as próximas palavras do apóstolo (Rom. 11:26) são― não “e então todo o Israel será salvo” (como isso deveria dizer se esse novo ensinamento fosse verdade) mas― “E assim todo o Israel será salvo”. A essa passagem profundamente interessante nós retornaremos num capítulo subsequente.

CAPÍTULO 13 13. ELE DETERMINA UM CERTO DIA

ISSO nos traz a uma questão de grande interesse, a saber: Quando os tempos dos gentios estiverem terminados, o que acontecerá? Virá, em seguida, “o Dia do Senhor”? Cristo aparecerá de repente como um ladrão na noite, como o relâmpago que ilumina desde uma extremidade à outra debaixo do céu? Fechar-se-á, então, a porta da salvação? Serão os mortos ressuscitados e os justos separados dos ímpios? Amanhecerá o dia eterno de glória, virá dos céus a Nova Jerusalém, e aparecerá o novo céu e nova terra? Ou haverá, como é agora comumente ensinado entre os cristãos evangélicos, uma salvação pós-evangelho para a nação judaica, uma salvação em que os gentios também terão uma porção subordinada? Pois é agora ensinado que após esta era presente, da graça de Deus, estiver terminada; após o Evangelho de Jesus Cristo e o poder convencedor e regenerador do Espírito de Deus tiver feito tudo o que eles podem fazer para a salvação de judeus e gentios (como entre os quais está escrito que não há “distinção”); então o nosso Senhor Jesus Cristo aparecerá de novo em

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Pessoa, e será visto por parte de toda a nação judaica (pois essa doutrina coloca o cumprimento da profecia, “os Seus pés estarão sobre o monte das Oliveiras”, dentro da próxima “dispensação”) e toda a nação judaica será convertida pela cena (Zac. 14:4). E após aquela conversão em massa da nação judaica (que, entrementes, será reconstituída na Palestina), aqueles judeus convertidos irão adiante para todo o mundo como missionários aos gentios. (Ver a “Bíblia Scofield”, nota de Zacarias 8:26).

Por essa mesma “autoridade” [Bíblia Scofield], é asseverado que:

“Israel, como uma nação, sempre tem o seu próprio lugar, e há ainda de ter a sua maior exaltação como o povo terreno de Deus” (nota de Rom. 11:1).

E de novo:

“De acordo com os profetas, Israel, re-ajuntado desde todas as nações, restaurado à sua própria terra, e convertido, está ainda por ter a sua maior exaltação e glória terrena” (nota de Rom. 11:26).

A ordem desses acontecimentos futuros alegados, como apresentados nessa nova “Bíblia” é: Primeiro, “A volta do Senhor”; em seguida, “Restauração à terra”; e, então, “Conversão Nacional” (nota de Deut. 30:3).

E não somente há de ter uma salvação consistindo de “exaltação e glória terrena” para a raça judaica, mas toda a terra há de ter um sistema de adoração consistindo de um reestabelecimento dos sacrifícios e outras “sombras” da lei, os quais Cristo (de acordo com a Bíblia de Deus) aboliu mediante o Seu sacrifício na cruz (Heb. 10:1-9). Pois, de acordo com a “Bíblia Scofield”, “Jerusalém ainda há de estar no centro religioso da terra” (título inserido acima de Zacarias 8:20); e, mais adiante, é asseverado que:

“Nos dias quando Jerusalém tem sido feita o centro de adoração da terra, o judeu irá, então, ser o missionário, e para precisamente as nações agora chamadas de ‘cristãs’” (nota de rodapé em Zacarias 8:23).

UMA DOUTRINA RADICAL E REVOLUCIONÁRIA

Aqui está o modernismo com uma vingança. Pense nisso, meus irmãos! Por dezenove séculos tem sido ensinado como uma das verdades cristãs mais incontestáveis: que AGORA é o dia da salvação. Mas aqui está uma “Bíblia” com direitos autorais que diz-nos acerca de um dia vindouro em que todos os habitantes da terra serão salvos e abençoados; um dia em que os triunfos mais gloriosos do Evangelho de Cristo serão vistos desprezivelmente baratos e insignificantes; um dia quando a conversão será numa escala nacional, em massa, e mundial!

Protesto contra essa doutrina, em primeiro lugar, por causa de seu caráter radical e revolucionário; visto que o ensinamento de que há de haver outro dia de salvação é subversivo contra a verdade fundacional ensinada claramente no Novo Testamento.

Mas, além dessa objeção geral, há certas objeções específicas a serem consideradas; entre elas estão as seguintes:

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1. Essa nova doutrina proclama uma salvação diferente em tipo daquela (e de uma qualidade distintamente inferior a) “salvação comum” (“comum”, isto é, a todas as raças e classes de homens no mundo todo) a qual o evangelho de Jesus Cristo oferece a todos os homens em todos os lugares, baseado na condição essencial de arrependimento e fé individual.

2. O Novo Testamento conhece somente uma salvação; e essa salvação é identificada com o evangelho de Cristo; que é explicitamente declarado ser “o poder de Deus para salvação” (Rom. 1:16). E outra Escritura, falando a respeito de Cristo diz: “o qual aboliu a morte, e trouxe à luz a vida e a imortalidade pelo evangelho” (2 Tim. 1:10). E outra vez, o apóstolo escreve aos santos em Corinto acerca de “o evangelho . . . . pelo qual também sois salvos” (1 Cor. 15:1-2). Mas, sem mais citação de textos, afirmo, como o ensinamento indubitável do Novo Testamento, que a “salvação” é de um tipo somente, sem qualquer “acepção de pessoas”; e que a mesma vem somente “mediante o evangelho”. Assim, ao estabelecer uma salvação diferente, à parte do evangelho de Cristo, essa doutrina contradiz a verdade fundamental do Novo Testamento. Aqui, então, está uma questão para a atenção séria de todos os “Fundamentalistas”.

3. A doutrina em questão proclama “uma segunda chance” para alguns que rejeitam a misericórdia de Deus, agora oferecida, através do evangelho. Pois, enquanto que o Novo Testamento, de novo e de novo, agora numa forma de palavras e agora noutra, declara que não há salvação, não há misericórdia, não há esperança, nada a não ser a destruição eterna que faz separação da presença do Senhor, nada exceto a escuridão das trevas para sempre, para aqueles que rejeitam o evangelho, essa doutrina diz, não assim, mas que toda uma geração de judeus que não têm obedecido o evangelho será salva após o termino do dia do evangelho (a uma salvação de qualidade inferior, a estar seguro, mas tal como o coração natural prefere grandemente); e que os gentios também serão, nessa época, salvos através da instrumentalidade daqueles judeus os quais serão convertido à parte do evangelho; e não mediante a fé, mas por meio da vista. Nesse sentido, o dispensacionalismo assemelha-se ao russelismo.

4. Essa doutrina estabelece uma salvação especial (supremacia e domínio terrenos) para os judeus somente. Assim, a mesma edifica, outra vez, aquela “parede de separação que estava no meio” entre os judeus e gentios, desse modo desfazendo a obra da cruz de Cristo, que quebrou aquela parede (Ef. 2:14). Em outras palavras, essa doutrina revitaliza diferenças raciais as quais Deus têm abolido para sempre, e torna-O num “Fazedor de acepção de pessoas” (2 Cor. 5:16; Mat. 12:50; Rom. 3:9, 22-23; 10:12; Atos 15:9; Ef. 2:14).

5. Já tenho indicado que a salvação, dita ser reservada para pessoas de descendência judaica, é mais atrativa ao coração natural do que a salvação oferecida pelo evangelho. Mas deve ser observado, particularmente, que isso é a mesmíssima coisa de que os judeus tinham sidos ensinados, pelos seus líderes cegados, a esperarem do Messias; e era assim porque Ele não cumpriu as profecias de acordo com a interpretação errônea e carnal deles acerca dessas profecias, as quais eles rejeitaram e fizeram-No ser crucificado. Assim, essa doutrina vindica a atitude que os judeus tomaram com relação a Jesus Cristo.

6. Esse novo dispensacionalismo coloca a salvação especial, da qual a mesma proclama, numa era subsequente àquela [era] do evangelho; enquanto que a Escritura não apenas declara enfaticamente que “agora é o dia da salvação”, a qual explicitamente limita a salvação a esta era presente, mas ensina também, impressionantemente, e de várias maneiras, que não haverá

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misericórdia para qualquer pessoa quando o dia do evangelho estiver terminado. Ver Lucas 13:23-27 (onde a questão era “são poucos os que são salvos?”); Lucas 17:26-30 (observando as palavras: “até ao dia”, “no mesmo dia”); 2 Tess. 1:7-9, &c.

7. A nova doutrina não leva em conta a verdade de que os judeus, como todos os outros seres humanos, pertencem ou ao primeiro Adão, ou ao último Adão; estão ou “em Adão” (onde “todos morrem”) ou “em Cristo” (onde “todos são vivificados”). Aqueles judeus que hão de ser salvos mediante essa salvação pós-evangelho, são nem uma coisa nem a outra. (Isso será referido com mais detalhes mais adiante). Eles são indefiníveis. Reconhecidamente, eles não têm parte na primeira ressurreição, senão eles seriam dados corpos glorificados, e serem tomados para estarem com o Senhor. Assim, eles devem ser “carne e sangue”; mas se for assim, então eles não podem ter o Reino; pois a mesma passagem que descreve a ressurreição e a transformação daqueles que estão “em Cristo”, contém esta declaração enfática: “Mas digo isto, irmãos, que carne e sangue não podem herdar o Reino de Deus; nem a corrupção herda a incorrupção” (1 Cor. 15:50).

“AGORA É O DIA DA SALVAÇÃO”

De acordo com o ensinamento do Novo Testamento, salvação é estritamente limitada a esta era do Evangelho. Isso tem sido brevemente afirmado acima; mas isso é de tamanha importância que justifica-se considerar mais adiante. Pois o apelo-do-evangelho deriva a sua urgência da verdade revelada de que há somente um dia de salvação, e que tal é agora.. O que mais poderia ser o significado daquelas palavras da mais intensa seriedade: “eis, agora, o tempo sobremodo oportuno, eis, agora, o dia da salvação” (2 Cor. 6:2)? Poderia essas palavras terem sido escritas se houvesse outro “dia da salvação” para qualquer parte da raça humana? Certamente não.

E, como poderia o apóstolo Pedro ter escrito que a demora aparentemente longa do Senhor em cumprir “a promessa da Sua vinda” fosse porque Ele “não querendo que nenhum pereça, senão que todos cheguem ao arrependimento” (2 Ped. 3:9), se a vinda d’Ele seria seguida por um dia em que conversões hão de ser numa escala em massa e nacional? Se a doutrina moderna de um milênio judaico, cujas bênçãos hão de ser compartilhadas pelos gentios, é a verdade revelada de Deus, então as próprias razões oferecidas para explicar a grande duração desta era presente (prevista por Pedro) seriam razões convincentes acerca do por que a vinda do Senhor fosse apressada.

O apóstolo diz que “a longanimidade de nosso Senhor é salvação”, declaração esta que claramente coloca a “salvação” neste lado da segunda vinda do Senhor. E então ele recorre às epístolas de Paulo como ensinando a mesma coisa (v. 15-16); acrescentando a declaração significante de que há, nessas epístolas, “algumas coisas difíceis de entender, que os ignorantes e instáveis torcem, como também torcem as demais Escrituras, para a própria destruição deles”.

O Espírito Santo parece ter tido, essa torção específica a respeito das palavras de Paulo das quais estamos agora discutindo, em vista quando Ele inspirou a seguinte Escritura:

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“Outra vez, Ele determina um certo dia, Hoje, dizendo por Davi, muito tempo depois, como está dito: Hoje, se ouvirdes a Sua voz, não endureçais o vosso coração” (Heb. 4:7).

Pois aqui o Espírito de Deus usa a palavra “determina”, a qual significa estabelecer a limitação de alguma coisa; e os limites do que Deus tem estabelecido nesse caso é “um certo dia”. Ademais, o contexto deixa claro que o “dia” que Deus tem especialmente escolhido de outros dias é aquele em que oportunidade havia de ser dada aos homens para entrarem no que Ele aqui chama de “meu descanso”, do qual Davi e os outros profetas tinham falado. Esse “descanso” ainda “resta” (assim a passagem nos diz) “para o povo de Deus” (v. 9); e isso torna claro que hoje é o dia para adentrá-lo (v. 11). Esse descanso ainda “resta” conforme a razão, como aqui explicitamente declarada, que “aqueles a quem primeiro foram pregadas as boas-novas não entraram por causa da descrença”; e, portanto, os homens são agora exortados a “esforçarem-se para entrar naquele descanso, para que ninguém caia no mesmo exemplo de descrença”.

Esse “descanso” prometido é o que os judeus erroneamente supuseram ser uma era de riqueza terrena e facilidade e liderança-mundial para eles mesmos. E o erro deles foi fatal. Quão mais culpável, então, é o erro daqueles que agora adotam a mesma interpretação falsa das profecias, e que fazem-na diante das claras Escrituras como o que estamos considerando; que definitivamente limita o tempo para entrar no descanso de Deus agora; dizendo: “Hoje”, e com forte ênfase de repetição.

Sem dúvidas, portanto, essa passagem ensina que não haverá como entrar no descanso de Deus, isto é, não haverá salvação para qualquer um, após esse dia do evangelho ter terminado.

“QUE TIPO DE HOMENS SÃO ESTES?”

Em conexão com essa doutrina moderna (moderna entre os cristãos, isto é) de um milênio judaico futuro, levanta-se uma questão excessivamente desconcertante, a saber: Que tipo de pessoas são aquelas que habitarão a terra durante tempos milenares?

A doutrina “dispensacional” é que os descendentes naturais de Jacó serão reagrupados de volta à Palestina, ainda em impenitência e incredulidade (o sionismo deveria ser o princípio desse movimento); que Cristo virá aos “ares” acima (não sendo visto), ressuscitará crentes mortos, mudará os viventes e levará todos à glória (1 Tess. 4:16-17), assim deixando somente pessoas não salvas na terra; que a “grande tribulação” irá, em seguida, suceder e durará por sete anos (isso sendo a “semana que está faltando” das setenta de Daniel); que, depois disso, o nosso Senhor continuará a Sua descida do céu, virá visivelmente à terra e posicionar-se-á no monte das Oliveiras (que irá, logo a seguir, ser fisicamente dividido em duas partes, &c.); que toda a nação judaica O verá e será instantaneamente convertida de alguma forma (ver exemplos abaixo); que os judeus irão adiante e converterão as nações da terra; que toda a humanidade desfrutará de paz ininterrupta, muita e toda gratificação terrena por mil anos (todos indo para Jerusalém a cada ano para guardar a festa de tabernáculos) durante todo período de tempo os judeus estarão no lugar de liderança no mundo. A partir desse ensinamento (e penso que tenho, de forma justa, afirmado os seus pontos principais como ensinados a mim por homens prudentes na fé) emerge, naturalmente, a pergunta já feita: Que tipo de pessoas esses milenaristas serão? A partir dos termos da própria doutrina, eles serão apenas homens naturais,

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“judeus” e “gentios”. Eles não estão “em Cristo”; pois n’Ele não há nem judeu nem grego. Portanto, eles devem estar “em Adão”, e, assim, sujeitos à morte.

Até onde estou ciente, a literatura copiosa daqueles que propagam essa doutrina, de um milênio judaico, não dão resposta definitiva à pergunta acima. Tenho, entretanto, ultimamente visto, de forma impressa, que os “santos da tribulação” (aqueles que entram no milênio, assim constituindo um vínculo entre esta “dispensação” e a próxima) são “um corpo semi-cristão ou semi-judaico, que serão designados como testemunhas à Deus antes do fim da era presente”. Isso é modernismo, verdadeiramente; pois a noção de um povo que é meio-cristão e meio-judeu sendo chamados para fora como uma testemunha à Deus, é uma novidade surpreendente.

De novo, numa edição recente de um periódico inglês, que especializa-se na doutrina de uma restauração nacional judaica durante o milênio, apareceu uma exposição das palavras de Cristo: “Mas vem a hora e já chegou, em que os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e em verdade” (João 4:23); a respeito desse versículo, o escritor disse:

“Observe, essa declaração deixa espaço para uma mudança de dispensação de volta, de novo, à localidade de Jerusalém nos dias milenares”.

Então, isso [a declaração] deixa, de fato; e com igual verdade pode ter sido dito que a passagem deixa espaço para uma mudança de dispensação ao deserto do Saara.

E o escritor procede a dizer que, naqueles “dias milenares”, a adoração de Deus em espírito e em verdade será abolida em todo o mundo; e o sistema levítico― com o seu templo, altar, sacerdócio, dias das festas, e sacrifícios sangrentos de animais― será restabelecido em Jerusalém e tornar-se-á a religião de todas as nações da terra.

Assim, a doutrina que estamos examinando exige que, durante aqueles tempos milenares felizes, a luz do Evangelho de Jesus Cristo será totalmente tirada da terra. Isso é necessário porque, do contrário, seria impossível interpretar certas profecias veterotestamentárias literalmente, e fazê-las encaixarem-se numa era pós-evangelho.

Mas o nosso expositor citado acima reconheceu que não seria adequado largar a questão lá; então, ele apressa-se a informar aos leitores dele que, embora os milêniomitas não serão cristãos (ele diz que é “um erro” supor que eles serão), os judeus daquele tempo serão de um tipo grandemente melhorado; de que eles serão:

“não mais rebeldes ou idólatras. Eles todos serão religiosos; eles serão reis e sacerdotes aos gentios. . . Em tudo isso há um grande avanço ao passo que refere-se a Israel”. E o dizer dos gentios?

“O mesmo avanço será encontrado com relação aos gentios também. O remanescente dos gentios possuirá a superioridade de Israel, e obedecerão e adorarão o Salvador. Adoração-aos-ídolos cessará. Paz será reforçada”. (Não é isso uma contradição de palavras?) “Eles irão de ano a ano para adorar, em Jerusalém, o Senhor dos exércitos, e guardar a festa dos tabernáculos”.

A Escritura, entretanto, não conhece nada acerca de uma terceira ordem de homens, intermediária entre os filhos não regenerados de Adão e os filhos regenerados de Deus.

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E o que, perguntaríamos, é a agencia que proporcionará essa melhoria maravilhosa nas disposições e caráter dos homens? O que é que cumprirá “o que a lei não pôde fazer?”.

E, finalmente, que o leitor observe a doutrina atrozmente falsa de que miríades de pessoas―nações inteiras, ambos os judeus e gentios― que não têm obedecido ao evangelho de Cristo, ao invés de serem “punidas com destruição eterna para longe presença do Senhor”, hão de ser abençoadas com toda satisfação e deleite carnais por mil anos, inclusive uma religião adequada aos homens na carne, sendo composta de formas e cerimônias e sacrifícios, aqueles “elementos fracos e indigentes”, em que, mesmo quando serviram temporariamente um propósito típico, Deus declarou que Ele “não tinha prazer” (Heb. 10:6).

Mas este tópico acerca da retomada, daqui por diante, das sombras da lei as quais Cristo aboliu mediante a Sua cruz merece uma consideração mais extensa. Portanto, abordo, neste momento, a questão:

SERÃO OS SACRIFÍCIOS SANGRENTOS RETOMADOS DAQUI POR DIANTE?

Que a retomada de sacrifícios sangrentos é uma parta do plano revelado de Deus para um dia futuro é uma característica proeminente do novo “ensino dispensacional”; e, especificamente, é ensinado que os sacrifícios de touros e bodes, que Jesus Cristo aboliu por meio da oferta de Si mesmo como um Sacrifício para o pecado “uma vez por todas”, hão de ser continuados no decorrer de todo os mil anos. É explicado que aqueles sacrifícios de animais hão de ser praticados como um “memorial” da cruz de Cristo!

Assim, na “Bíblia Scofield”, o seguinte ocorre numa nota de Ezequiel 43:19:

“Sem dúvida, essas ofertas serão memoriais, olhando para trás à Cruz; como ofertas sob a velha aliança eram antecipatórias, olhando adiante para a Cruz”.

Mas o que diz a Escritura?

“Mas agora Ele apareceu uma vez por todas no fim dos tempos, para aniquilar o pecado mediante o sacrifício de Si mesmo” (Heb. 9:26).

“Porque é impossível que o sangue de touros e de bodes remova pecados. Por isso, ao entrar no mundo, Ele diz: Sacrifício e oferta não quiseste; antes, um corpo me preparaste; não Te deleitaste com holocaustos e ofertas pelo pecado. Então, Eu disse (no rolo do livro está escrito a Meu respeito): Eis aqui estou, para fazer, ó Deus, a Tua vontade”. E o que era essa vontade de Deus que Ele veio para fazer? Está claramente afirmado na palavra: “Ele tira o primeiro, para estabelecer o segundo” (Heb. 10:4-9).

Na luz dessa Escritura, está claramente por ser visto que o dispensacionalismo novo contradiz a Palavra de Deus com respeito a uma questão de primeira importância, isto é, as consequências do Sacrifício de Cristo. Pois nas últimas passagens citadas está declarado que a vinda de Jesus e a oferta d’Ele de Si mesmo, como um sacrifício, foi para o exato propósito de tirar aquelas matanças de animais “que nunca podem tirar pecados”. Ademais, o arranjo de palavras do versículo citado por último acima, indica que o tirar dos sacrifícios sombrios e fúteis do sistema levítico era necessário para o estabelecimento do Sacrifício de Si próprio como a

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verdadeira oferta-pelo-pecado. E, finalmente, o ensino do contexto inteiro (Heb. 8-10) está para o sentido de que o sistema levítico de sacrifícios tem sido abolido para sempre por meio do único Sacrifício de Jesus Cristo. Portanto, o ensino de uma futura retomada daqueles sacrifícios de touros e bodes, que têm sido abolidos a tal custo, é um erro sério; e isso é suficiente em si mesmo para condenar todo o sistema “dispensacional” do qual isso [os sacrifícios] faz parte.

CAPÍTULO 14 14. A ESPERANÇA DE ISRAEL

MAS alguns perguntarão: O que dizer acerca de todas aquelas promessas para e a respeito do povo de Israel, especialmente as promessas acerca da re-possessão por parte deles, da terra que Deus deu aos seus pais?

A resposta pode ser dada em poucas palavras:

(1) Que a maioria daquelas promessas (se não todas) foram proferidas antes da volta dos judeus desde o cativeiro babilônico, e, muitas delas, inclusive todas tais [promessas] que deveriam ter um cumprimento literal, foram cumpridas naquele evento;

(2) Que as promessas a respeito da possessão da terra de Canaã eram condicionais sobre a fidelidade e obediência por parte do povo de Israel, os quais foram repetidamente advertidos que se os seus corações desviassem-se do Senhor, eles seriam desarraigados da terra (Deut. 4:26; 8:19-20; 30:17-18; Josué 23:13, 16).

(3) Tais das promessas desse tipo, como eram incondicionais, são a herança de o verdadeiro Israel, os filhos espirituais de Abraão (Gal. 3:7, 29); e essas promessas têm o seu cumprimento na verdadeira terra da promessa, que os pais de Israel tinham em vista; pois eles estavam desejando― não a terra de Canaã, ou qualquer outro território terreno, mas― “uma pátria melhor, isto é, a celestial” (Hebreus 11:16).

O que, então, é a verdadeira “Esperança de Israel?”. A essa questão, as Escrituras dão tão clara resposta quanto poderíamos perguntar; e para encontrá-la, não precisamos procurar além da passagem onde essa expressão é encontrada, e o contexto imediato. Pois Paulo, quando levado como um prisioneiro a Roma, pela insistência dos líderes dos judeus em Jerusalém, chamou os principais dos judeus juntos em Roma, e dirigiu-se a eles dizendo:

“Por essa razão pedi para vê-los e conversar com vocês. Por causa da ESPERANÇA DE ISRAEL é que estou preso com esta cadeia” (Atos 28:20).

Estava Paulo, então, preso com cadeias e enviado a Roma, para ser julgado, porque ele proclamou e ensinou um reino terreno para os judeus? Voltando-se para o capítulo 26, onde ele estava respondendo por si próprio diante de Herodes Agripa, encontramos que, enquanto Paulo interpretava as Escrituras, a esperança da promessa de Deus feita aos pais “é a promessa que todas as doze tribos” (verdadeiros israelitas) “ESPERAM QUE SE CUMPRA” foi cumprida na ressurreição de Jesus Cristo dentre os mortos (Atos 26:6-8). E, em prova disso, ele relatou como ele tinha visto o Cristo ressurreto do lado de fora das portas de Damasco, e

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tinha sido ordenado por Ele a pregar o evangelho aos judeus e gentios, “para lhes abrires os olhos e os converteres das trevas para a luz e da potestade de Satanás para Deus”. Resumidamente, ele pregou, como a esperança de Israel, o Reino de Deus aberto por meio da morte e ressurreição de Jesus Cristo aos pecadores crentes e arrependidos, ambos JUDEUS E GENTIOS.

E ademais, quando aqueles líderes dos judeus lá, em Roma, desejaram ouvir o que era a doutrina dele (“o que pensas; porque, quanto a esta seita, notório nos é que em toda a parte se fala contra ela”), um dia foi determinado, e

“vieram em grande número ao encontro de Paulo na sua própria residência; aos quais ele explicava e testificava o Reino de Deus, persuadindo-os a respeito de Jesus, tanto pela lei de Moisés como pelos profetas, desde a manhã até à tarde” (Atos 28:21-23).

Não há incerteza, portanto, com relação ao que Paulo pregou como sendo a esperança de ISRAEL.

Evidentemente, então, os judeus da antiguidade e os dispensacionalistas de hoje estavam (e estão) errados ao atribuírem às profecias veterotestamentárias uma interpretação literalista.

Pois a linguagem dos profetas é figurativa e simbólica. De forma semelhante, quando Jesus mostrou a Nicodemos o verdadeiro caráter de o Reino de Deus, asseverando com a mais forte ênfase que um homem deve necessariamente nascer de novo para entrar nele [no Reino], Ele fez uso de palavras que obviamente eram figuras de linguagem tomadas dos elementos comuns da natureza, água e vento (i.e., fôlego, ou espírito). A Sua linguagem, entretanto, era totalmente incompreensível àquele rabino inteligente, “o mestre de Israel”, que consequentemente manifestou o seu espanto, lá, ao exclamar: “Como pode ser isso?” (João 3:1-9); enquanto que, sendo o mestre de Israel, ele deveria ter compreendido aquelas coisas (v. 10).

Deve ser lembrado que, para ele, e de acordo com a doutrina estabelecida de todos os mestres judaicos daquela época, a coisa mais alta possível no caminho de parentesco era nascer “da linhagem de Israel” (Fil. 3:5); e devemos também lembrar que (para ele) a condição essencial para a admissão [entrada] no Reino de Deus deveria ser um descendente natural de Abraão, Isaque e Jacó. Assim, ele era bastante incapaz de conceber como as profecias e promessas de Deus a respeito desse Reino poderia ser cumprido de outra forma a não ser por meio da restauração nacional dos judeus, e a exaltação deles ao lugar de dominância sobre todo o mundo gentílico.

Assim, semelhantemente, hoje há mestres que insistem numa interpretação (eles chamam-na de literal) naturalística, ou materialista, das profecias relativas ao Reino, Israel, Jerusalém, etc. Eles também “não conseguem ver” como essa profecia, ou aquela, pode ser cumprida a não ser “literalmente”― isto é, por meio do re-ajuntamento do povo judaico disperso, da re-constituição deles numa nação como a da antiguidade, e da re-investidura deles com a qualidade de proprietários da terra de Canaã. Assim, eles fazem a incapacidade deles [próprios] ver as realidades espirituais que correspondem aos tipos materiais e figuras usadas por parte dos profetas, uma regra para a interpretação das profecias.

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Não é necessário, é claro, a uma compreensão da voz geral de profecias e do significado geral da mensagem profética, que alguém conheça o significado de todo símbolo e figura usada pelos profetas. Tudo que é necessário é que a devida atenção seja dada a certas declarações claras do Novo Testamento, e à forma que as profecias do Velho Testamento são interpretadas e aplicadas lá.

Por exemplo, os capítulos 8-10 de Hebreus foram, evidentemente, escritos para tornar conhecido― e principalmente àquele “remanescente” de Israel que tinha encontrado libertação mediante a aceitação de Jesus como o Messias deles― que tudo pertencente à velha aliança (povo, terra, cidade, santuário, sacerdócio, sacrifícios, etc.) era apenas “uma sombra dos benefícios vindouros” (Heb. 10:1). Isso é bastante suficiente para mostrar que aqueles que insistem naquilo que chamam de um cumprimento “literal” das bênçãos prometidas que viriam à “Israel” através de Cristo, têm errado completamente o alvo. Como diz Joseph Butler (Analogy de Butler) ao comentar sobre Hebreus 8:4-5:

“O sacerdócio de Cristo, e o tabernáculo mostrado a Moisés no monte, eram os originais. Acerca do primeiro desses, o sacerdócio levítico era apenas um tipo; e, acerca do último, o tabernáculo feito por Moisés era uma cópia”.

E assim como tudo o mais: a nova aliança tem as realidades eternas (“as originais”) das quais a velha aliança tinha apenas os tipos e sombras temporárias. Isso sendo verdade (e a epístola aos Hebreus faz a verdade disso bastante claro); e isso sendo verdade também que Cristo, mediante a Sua morte e ressurreição, tem abolido todo aquele sistema de sombras, e tem trazido à luz as realidades espirituais e eternas tipificadas dessa forma (Heb. 10:9), segue-se que os propósitos de Deus estão conectados a partir daí com um povo regenerado― “nascido da água e do Espírito”― “uma nação santa”, que pertencem a uma “pátria melhor”; e com “uma casa espiritual”, e uma “Jerusalém que está no alto” (1 Pedro 1:3; 2:5-6, 9; Heb. 12; Gal. 4:26, &c.). Abraão, Isaque e Jacó compreenderam isso (Heb. 11:9).

O NATURAL E O ESPIRITUAL

Mas, pode-se perguntar: Existem profecias que deveriam ser cumpridas aqui na terra, e em conexão com o povo terreno de Israel, a terra deles e a cidade deles? Tais, de fato, existem; e, assim, emerge a pergunta: Como pode-se saber com certeza se uma dada profecia diz respeito ao “Israel” espiritual ou ao [Israel] terreno? E se o cumprimento dessa profecia há de ser encontrado no âmbito espiritual ou no [âmbito] natural?

Mui certamente, há necessidade em muitos casos para o exercício de discernimento, e para a busca de luz a partir do contexto e de outras partes da Escritura. Mas a dificuldade em tais casos não é tão grande como poder-se-ia supor. Pois, à luz de certas passagens no Novo Testamento, é de ser tão claramente visto de que as profecias, como um todo, encaixam-se em duas grandes divisões, da qual a primeira tem o seu cumprimento na esfera de o natural e, a outra, na esfera de o espiritual.

Assim, claramente parece, de acordo com 1 Pedro 1:9-12, que as profecias em geral tinham a ver com esses dois assuntos distintos, a saber (1) “os sofrimentos de Cristo”, e (2) “as glórias (plural) que se seguiriam”. E a passagem também mostra que as profecias a respeito de “os

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sofrimentos” seriam cumpridas em primeiro lugar, e, em seguida, aquelas a respeito de “as glórias”; isso estando em concordância com a mui explícita declaração de 1 Coríntios 15:46: “Mas não é primeiro o espiritual, e sim o natural; depois, o espiritual”.

Ora, é evidente, com base na reflexão, de que as profecias a respeito dos “sofrimentos” de Cristo devem necessariamente ser cumpridas no âmbito do natural. Pois, como diz o apóstolo, “Cristo tem sofrido por nós na carne” (1 Ped. 4:1). Enquanto que, do contrário, as Suas “glórias” estão no âmbito do espiritual e eternal. Temos a Sua própria declaração a esse respeito quando, após a Sua ressurreição, Ele repreendeu dois de Seus discípulos por serem néscios e tardos de coração para crer tudo o que os profetas disseram. E Ele disse:

“Porventura, não convinha que o Cristo sofresse essas coisas e entrasse na Sua glória? E, começando por Moisés e por todos os profetas, Ele expunha-lhes o que a Seu respeito constava em todas as Escrituras” (Lucas 24:25-27).

Assim, é esclarecido que a morte e ressurreição de Jesus Cristo e a vinda do Espírito Santo marcam a linha divisória onde o cumprimento de profecia, geralmente falando (pois há algumas exceções às quais referir-me-ei, presentemente, as quais, entretanto, não afetam a regra), passa do âmbito natural para dentro do espiritual.

Ora, deve-se especialmente ser observado que a era da vinda na carne, do nosso Senhor, era o tempo do encerramento das questões da nação judaica. Essa nação tinha a sua parte predita a exercer em conexão com “os sofrimentos de Cristo”. Pois tem sido distintamente predito que, dentro do período “determinado” de 490 anos desde o fim do cativeiro babilônico, o “Messias, o Príncipe,” viria, ocasião em que essas [70 semanas] iriam “fazer cessar a transgressão” (Dan. 9:24-25). Que isso significou o completamento do pecado nacional deles por meio da rejeição e assassinato do Messias deles, é evidente a partir das próprias palavras de Cristo, dirigidas aos líderes deles quando eles estavam planejando a Sua morte, “Enchei vós, pois, a medida de vossos pais”― os quais tinham perseguido e matado os profetas― “para que sobre vós caia todo o sangue justo, que foi derramado sobre a terra” etc. (Mat. 23:31-36).

Em seguida, seguiu-se, imediatamente, a Sua traição e crucificação, e a rejeição por parte deles do evangelho pregado com o Espírito Santo enviado do céu. O pecado nacional deles culminou no apedrejamento de Estevão, que marcou a terminação do período “medido” de setenta semanas de anos. Pois a morte de Cristo ocorreu, como predito “na metade da” septuagésima semana (9:27). Desde aquela época permaneceu-se, de todas as profecias relacionadas ao Israel natural, somente aquelas predizendo os juízos de Deus que cairiam contra eles, e, especificamente, a destruição de Jerusalém e do templo, e a exterminação deles como uma nação, e a dispersão mundial dos sobreviventes de lá. Isso foi distintamente predito por Moisés (Deut. 28:49-64); e, para o mesmo efeito, é a profecia de Cristo: “E cairão a fio de espada e serão levados cativos para todas as nações” (Lucas 21:24). Pois a última palavra de profecia concernente àquele povo, como uma nação, foi cumprida na ocasião da destruição de Jerusalém pelos exércitos Romanos.

Existe uma profecia marcante disso a partir lábios de Cristo em Mateus 22:7 (uma profecia que é bastante geralmente ignorada, embora seja imensamente importante). Lá, numa parábola profética, o nosso Senhor predisse como os judeus tratariam aqueles enviado a eles com o evangelho, e então disse:

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“E o rei, tendo notícias disso, encolerizou-se, e, enviando os seus exércitos, destruiu aqueles homicidas, e incendiou a sua cidade”.

Essa parábola foi proferida aos principais dos sacerdotes, Fariseus, e anciãos do povo (Mat. 21:23, 45; 22:1); e, no decorrer daquele mesmo discurso, Cristo disse-lhes claramente: “vos será tirado o Reino de Deus, e será dado a um povo que dê os seus frutos” (21:43). Essa nova “nação” veio a existir no dia de Pentecostes; e segue-se de tudo isso (e de todas as outras escrituras que podem ser aduzidas) que todas as promessas de bênçãos ainda a serem cumpridas pertencem àquela “nação santa”, àquele “povo peculiar” (1 Pedro 2:9). Pois embora houvesse ainda um milhão de promessas de bênçãos a serem cumpridas, e embora todas elas fossem designadas aos “judeus”, cada uma delas pertenceriam ao verdadeiro “Israel de Deus”.

A partir do exposto, será visto que não precisa haver dificuldade em determinar se o cumprimento de uma dada profecia deve ser buscado no lado físico das coisas (o “natural”) ou no lado espiritual; não obstante, pode existir muita dificuldade ao interpretar os detalhes da profecia.410:

SALVAÇÃO EM SIÃO PARA ISRAEL

É fácil, por exemplo, com base nos princípios de interpretação de profecias, afirmados acima, a entender uma predição tal como a seguinte:

“Eu estabelecerei a salvação em Sião, e em Israel a Minha glória”.

Essa é a palavra de Deus através de Seu profeta Isaías (Isa. 46:13).

Três perguntas podem adequadamente ser feitas com relação a essa breve, mas vastamente compreensiva promessa:

(1) O que é essa “salvação”?

(2) Onde fica “Sião”?

(3) Quem são “Israel”?

(I) O QUE É SALVAÇÃO?

A palavra salvação é muito abrangente. A mesma abrange muito mais do que somos capazes de conceber; pois a mesma inclui todas as bênçãos, alegrias e deleites que Deus tem preparado para o Seu povo, tanto aqui quanto futuramente. Todas as promessas e propósitos de Deus, sejam o que for, são realizadas em e através de Jesus Cristo (2 Cor. 1:20); e é mui significante que a primeira referência no Novo Testamento quanto à salvação é encontrada em conexão com o registro do nascimento do Salvação, e com o Nome que Ele carregaria em Sua humanidade: “Você deverá dar-Lhe o nome de JESUS, porque Ele salvará o Seu povo dos seus pecados” (Mat. 1:21).

Isso (o perdão dos pecados) é, portanto, a primeira bênção da grande salvação de Deus. Isso tem o lugar de proeminência entre as “promessas melhores” da Nova Aliança (Heb. 8:6, 10-

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12), das quais Jesus é “o Mediador”; e isso estava proeminentemente em vista no Seu nascimento.

Também está registrado que, antes de Seu nascimento, Zacarias, que ficou cheio do Espírito Santo, profetizou a respeito d’Ele, dizendo: “Bendito seja o Senhor, Deus de Israel, porque tem visitado e redimido o Seu povo; e tem levantado um chifre de salvação para nós na casa de Davi, Seu servo”. E Zacarias prossegue a declarar que isso era o cumprimento do que Deus tinha falado por meio da boca de Seus profetas desde o princípio, a saber, “para nos salvar dos nossos inimigos e da mão de todos os que nos odeiam” (Lucas 1:68-71).

Isso, que seja observado, era uma profecia; pois o registro declara acerca de Zacarias que, em assim falar, “ele profetizou” (v. 67). Ou seja, estando “cheio do Espírito Santo” ele falou da salvação de Deus para o Seu povo como se a morte e ressurreição de Cristo já tivesse ocorrido, e como se a redenção já fosse um fato consumado. Suas palavras foram: “Deus . . . tem visitado e redimido o Seu povo; e tem levantado um chifre de salvação para nós”. Pois é a maneira costumeira dos profetas de Deus a falar de eventos ainda no futuro como tendo já ocorridos. Pois os profetas, em suas visões, veem os eventos totalmente desconectados da sequência de outros eventos ao quais encontram-se relacionados no decorrer do tempo. É extremamente importante manter isso em mente quando estiver estudando profecias.

Para o mesmo efeito é a profecia de Simeão no próximo capítulo, o qual falou a Deus acerca do menino Jesus como “Tua salvação, a qual Tu preparaste perante a face de todos os povos: luz para iluminar as nações e para a glória do Teu povo Israel” (Lucas 2:28-32).

E, quanto a isso, concordam as palavras de Paulo, que, falando numa sinagoga judaica (após a morte e ressurreição de Cristo) referiu-se a Davi e disse: “Da descendência desse homem tem Deus, conforme a Sua promessa, levantado um Salvador para Israel, JESUS” (Atos 13:22-23). E além disso, na mesma ocasião ele disse: “E nós vos anunciamos as boas novas (o evangelho): que a promessa que foi feita aos pais, Deus a cumpriu a nós, seus filhos, ressuscitando a Jesus” (22, 32-32).

As passagens anteriores, e há muitas como elas, dão uma ideia acerca do que se quer dizer, nas escrituras proféticas, por “salvação”; pois mostram que salvação do evangelho é o que foi pretendido. Ademais, as mesmas tornam claro que o tempo da salvação prometida para Israel é agora, e não em alguma era futura. E para confirmação mais adiante, cito as palavras de Pedro e dos outros apóstolos, proferidas ao sumo sacerdote e às autoridades do templo em Jerusalém: “O Deus de nossos pais ressuscitou a Jesus, ao qual vós matastes, pendurando-O num madeiro. Deus, com a Sua destra, O exaltou a Príncipe e Salvador, para dar a Israel o arrependimento e a remissão de pecados” (Atos 5:30-31).

(II) ONDE FICA “SIÃO”?

Isaías também proferiu uma profecia surpreendentemente linda a respeito dos dias de Cristo, a qual começa [assim]: “O deserto e o lugar solitário se alegrarão; e o deserto exultará e florescerá como a rosa” (Isa. 35:1), e a qual contém a promessa explícita “Ele virá, e vos salvará” (v. 4). O nosso próprio Senhor determinou o tempo do cumprimento dessa profecia específica ao usar as palavras da mesma em Sua mensagem de asseguração ao Seu predecessor abatido

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(Mat. 11:1-5). Nessa passagem, o profeta prediz um “caminho de santidade”, o qual havia de ser tão claramente revelado que “os caminhantes, até mesmo os tolos, não errarão” com relação a isso; e, com relação a isso, diz: “os remidos andarão por ele. E os resgatados do Senhor voltarão (a Ele) e virão a Sião” (v. 8-10).

As escrituras neotestamentárias tornam claro o sentido em que “os resgatados do Senhor voltarão a Ele e virão a Sião”. Pois o Espírito Santo fala àqueles que olham para Jesus como o Autor e Consumador de sua fé, e aos quais Deus possui como filhos d’Ele, dizendo: “Ora, vocês não chegaram ao monte que se podia tocar, e que queimava com fogo”― monte Sinai― “Mas vocês chegaram ao monte Sião . . . e a Jesus” (Heb. 12:1-24).

Pois, resumidamente, Sião é onde o Senhor Jesus está; e a salvação de Deus está lá porque Ele está lá; e, portanto, aqueles que vieram a Ele vêm a Sião. Assim, temos o cumprimento do que Davi ansiava quando ele disse: “Oxalá, que a salvação de Israel viesse de Sião” (Sl. 14:7, 53:6).

O apóstolo Pedro de forma semelhante claramente localiza para nós o Sião da profecia; pois ele diz que aqueles que vêm a Jesus Cristo, ressurreto dentre os mortos, tornam-se pedras viventes naquela “casa espiritual” que Deus está agora construindo [com base] em Jesus Cristo; e que isso é o cumprimento da profecia de Isaías que começa [assim]: “Eis que ponho em Sião uma principal pedra angular” etc. (1 Ped. 2:4-7, citando Isa. 28:16).

Paulo também torna claro que o “Sião”, do qual Isaías profetizou, é uma localidade celestial. Pois ele também cita as palavras: “Eis que ponho em Sião”, como sendo cumprido nesta era presente (Rom. 9:33).

(III) QUEM SÃO “ISRAEL”?

À luz das Escrituras citadas anteriormente, estar por ser visto claramente que o Deus de Jacó, ao providenciar a Sua grande salvação a um preço infinito, ao colocá-lo em Sião, e ao chamar “todo Israel” (Atos 2:36) para vir “ao monte Sião e à cidade do Deus vivo, a Jerusalém celestial” (Heb. 12:22), tem grandemente cumprido, e numa maneira e medida muito além de qualquer coisa que a mente do homem poderia ter concebido, todas as Suas promessas graciosas relativas à Israel.

“Mas nem todos eles têm obedecido ao evangelho” (Rom. 10:16). Nem todos eles têm respondido ao chamado, de Deus, ao arrependimento e fé em Jesus Cristo. Verdade o suficiente. E isso é precisamente o que foi predito por parte de Isaías, cujas palavras com esse sentido são citadas por Paulo em Romanos 9:27, a saber, que somente um pequeno remanescente dos descendentes naturais de Jacó obteriam a salvação de Deus. Assim, o apóstolo diz: “O que Israel buscava não o alcançou; mas o remanescente o alcançou, e os outros foram cegados” (Rom. 11:7). Aqui está uma declaração simples de o que tinha sido prometido a Israel tinha sido obtido nos dias de Paulo por parte do remanescente, isto é, a parte crente do povo; enquanto que a massa da nação não alcançou por causa da cegueira de seus corações. Ademais, o contexto torna claro, sem dúvida, que o que o apóstolo está referindo-se é salvação do evangelho (10:1-3, 9-13). Portanto, o que Deus tinha prometido especialmente a Israel e o que os judeus crentes (Paulo entre eles) estavam recebendo naqueles

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dias era salvação do evangelho. Mas, a menos que pareceria haver uma discrepância entre a promessa e o cumprimento, em que apenas uma pequena parte da nação estava sendo salva, Paulo está esforçando-se para explica que nem todos os descentes naturais de Jacó foram abrangidos no “Israel” da profecia; porque “nem todos os que são de Israel são israelitas” (Rom. 9:6). Como ele já tinha declarado num capítulo anterior: “Não é judeu o que o é exteriormente . . . Mas é judeu o que o é interiormente” (2:28-29). E ademais, como afirmado no Capítulo 4:11-16, os filhos de Abraão, como Deus considera-os, são aqueles que têm a fé de Abraão, quer fossem judeus ou gentios por meio do nascimento natural deles. E essa verdade é desdobrada em detalhe em Gálatas, Capítulo 3 e 4, onde, dirigindo-se aos crentes gentílicos, o apóstolo diz: “E, se vocês são de Cristo, então vocês são descendência de Abraão, e herdeiros conforme a promessa” (Gal. 3:29)― isto é, herdeiro da salvação em seu sentido abrangente.

ISRAEL NÃO O ALCANÇOU: MAS A ELEIÇÃO O ALCANÇOU

O versículo acima (Rom. 11:7) desfaz toda a incerteza a respeito de como Deus cumpre as Suas promessas; então, vamos analisar mais um pouco esse versículo:

“Pois quê? O que Israel buscava não o alcançou; mas os eleitos o alcançaram, e os outros foram cegados”.

O que Israel estava buscando era, é claro, o cumprimento das promessas prodigiosas de bênção e glória para o Seu povo; todas as quais foram resumidas na frase atual: “O Reino de Deus”. Aqui, então, está a declaração dupla: (1) que Israel não tinha (até aquele tempo) alcançado o Reino, declaração esta, se estivesse sozinha, deixaria a possibilidade de eles alcançarem-no no futuro; e (2) que a eleição o tinha alcançado, a qual não deixa nenhuma das promessas não cumpridas de Deus para “Israel segundo a carne”. A “eleição”, isto é, como Paulo cuidadosamente explica no contexto, o “remanescente” crente de Israel (o “a todos quantos O receberam” de João 1:12) com gentios crentes “enxertados”, como representado pela “boa oliveira” (Rom. 11:24), são o Israel verdadeiro; e Deus tinha eles em vista o tempo todo como os herdeiros do Seu Reino (1 Cor. 6:9-10; 15:50; Ef. 5:5).

A NAÇÃO JUSTA HERDA AS PROMESSAS

Os rabinos judaicos compreenderam a partir de Isaías 26:2, e dessa forma eles ensinavam, que as promessas de Deus eram para “a nação justa, que guarda a verdade”. Mas eles tinham por certo que o Israel natural era aquela “nação justa”; e era da essência da doutrina deles que a lei mosaica tinha sido dada como o meio suficiente por tornar Israel justo. Mas a verdade contrária, pela qual Paulo poderosamente pleiteou e que despertou a animosidade furiosa deles contra ele, era que a justiça que Deus exigiu como o pré-requisito por herdar as Suas promessas era― não a justiça da lei, mas― a justiça da fé; assim como está escrito: “Abraão creu em Deus, e ISSO lhe foi imputado como justiça” (Rom. 4:3).

E, assim, “Israel, que buscava a lei da justiça, não chegou à lei da justiça. Por quê? Porque não a buscavam pela fé” (Rom. 9:30-32). Eles erraram tudo; mas, ao errarem, eles cumpriram a Palavra de Deus: “pois tropeçaram na pedra de tropeço; como está escrito: Eis que Eu ponho

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em Sião uma pedra de tropeço, e uma rocha de escândalo; E todo aquele que crer n’Ele não será confundido” (Rom. 9:33, citando Isa. 28:16).

O QUE ENTÃO? TEM DEUS REJEITADO O SEU POVO?

O próprio apóstolo faz essa pergunta, e responde-a. A resposta é um NÃO enfático. Mas, não contradiz, essa resposta, a interpretação do apóstolo a respeito da “alegoria” das duas esposas e dois filhos de Abraão, a saber, que a escrava e o filho dela fossem “lançados fora”, e que “o filho da escrava” (Israel natural) “jamais será herdeiro com o filho da mulher-livre” (Israel espiritual)? De nenhuma forma.

A explicação simples é que o “povo” de Deus são aqueles que Ele de antemão conheceu, em outras palavras, o remanescente crente; e aqueles Ele não tem “lançado fora”. O restante― a massa descrente― não são o Seu povo, e NUNCA FORAM. Pois embora esses [massa descrente] fossem “de Israel” mediante descendência natural, eles não eram “Israel”; nome este que propriamente pertenceu apenas à descendência espiritual de Abraão. “Deus não rejeitou o seu povo, o qual Ele de antemão conheceu” [Rom. 11:2]; e com relação àqueles “que Ele de antemão conheceu”, Paulo já tinha dito (Rom. 8:28-30) que eles são “aqueles que O amam, dos que foram chamados de acordo com o Seu propósito”.

A partir do exposto segue-se que, de todas as promessas ainda não cumpridas de Deus, sejam qual e quantas forem que sejam, nada permanece para o Israel natural. Todas são para os verdadeiros filhos de Abraão; até mesmo para aqueles que são “da fé de Abraão, o qual é pai de todos nós” (Rom. 4:16).

RELATIVO AO SIONISMO

Ao concluirmos este capítulo sobre a Esperança de Israel, é apropriado fazer uma referência breve ao movimento político recente conhecido como sionismo, o qual tem como o seu objetivo o fazer da Palestina uma pátria para os judeus. Relativo a esse movimento, uma grande quantidade de desinformação tem sido disseminada durante os últimos vinte anos no interesse do dispensacionalismo. Pois os escritores e palestrantes dispensacionalistas têm pintado palavras-vívidasi maravilhosas as quais retratam as multidões de judeus ditas estarem migrando para a pátria deles; a fertilidade milagrosamente renovada do solo; o retorno da chuva temporã e serôdia etc. etc.; e tem sido feito aparentar que a re-constituição do Estado judaico e a reconstrução do Templo fossem questões do amanhã e do dia depois desse. Todos esses supostos acontecimentos foram apresentados aos leitores e ouvintes ávidos como um cumprimento maravilhoso de profecia realizando-se diante de nossos próprios olhos, e como dando garantia de que o tempo do fim tinha vindo.

Mas os fatos sóbrios são que o sionismo tem sido um fracasso miserável quase desde o princípio; e que, no período de seu maior sucesso, o volume de imigrantes constituiu apenas

i Nota do tradutor: o autor utilizou a expressão “word-pictures”, a qual é definida pelo Oxford English Dictionary como “uma descrição vívida por escrito” que “apresenta o objeto à mente como uma imagem”. Ou seja, a descrição de um objeto é escrita de tal maneira que conseguimos mentalizar imagens a partir da mesma.

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um riacho gotejante, e eles eram do tipo mais indesejável. O movimento alcançou o seu auge em 1926; e desde aquela época até a presente, o sionismo tem sido palpavelmente um empreendimento moribundo. Uma revista confiável, Current History [História Atual] (Abril, 1927) deu, a partir de “um relato oficial recente sobre condições comerciais”, uma estimativa da população da Palestina para 30 de abril de 1926; por meio da qual parece que, após todos os esforços do sionismo e da influência da Declaração de Balfour por dez anos, e a ajuda de outras causas contribuintes (e.g. perseguições russas), o número total de judeus em toda a Palestina era apenas 139.645; e eles foram ultrapassados em número, pelos muçulmanos, por mais de três por um. Toda a população era apenas 752.268; e o artigo declara que “O país está subpovoado e subcultivado”; também que: “A estação de 1925 foi ruim, agricolamente devido à seca”; que várias condições “levaram a uma falta de capital e uma depressão a qual continuou ao longo de 1926”; e que “a balança comercial foi nitidamente adversa”.

Relatos subsequentes mostram que as condições não têm melhorado; que o estado dos judeus na Palestina é miserável ao extremo, e que a atitude da grande massa dos judeus por todo o mundo com relação ao projeto sionista é uma atitude de apatia e indiferença total.

CAPÍTULO 15 15. ASSIM TODO O ISRAEL SERÁ SALVO

EM meus comentários a respeito das palavras “até que a plenitude dos gentios haja entrado” (Rom. 11:25), tenho salientado que, não obstante que a passagem em que essas palavras ocorrem seja claramente uma profecia sobre o estado em que o povo judaico existiria por toda esta era presente, e que a mesma não diz nada sobre o estado deles depois disso, é agora comumente interpretado como prevendo que, numa “dispensação” futura, toda a nação há de ser curada de sua cegueira espiritual. As próximas palavras da passagem são estas:

“E assim todo o Israel será salvo, como está escrito: De Sião virá o Libertador, e desviará de Jacó as impiedades. Pois esta é a Minha aliança com eles, quando Eu tirar os seus pecados.

Quanto ao evangelho, eles são inimigos por causa de vós; mas quanto à eleição, amados por causa dos pais” (Rom. 11:26-28).

Essa passagem de forma semelhante tem sido muito maltratada no interesse do novo dispensacionalismo. E, assim como a passagem anterior tem sido transmutada de uma profecia estritamente limitada a esta era para uma [profecia] inteiramente relativa a uma era futura, assim essa passagem também é tirada corporalmente para fora da era onde o Espírito de Deus a tem colocada, e é transportada para uma era futura, era esta que existe somente na imaginação dos homens. Pois a passagem é geralmente interpretada precisamente como se dissesse: “E então todo o Israel será salvo”, ao invés de “E assim todo o Israel será salvo”.

De fato, tudo o que é necessário para a correção desse erro “dispensacional” gigantesco é, primeiramente, observar a significância daquela pequena palavra “assim”, e, em seguida, asseverar o seu significado a partir do contexto, o que é facilmente feito.

Tradução: Nathan Cazé

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O advérbio “assim” responde a pergunta “Como?”. O advérbio não diz nada em resposta à pergunta “Quando?”. Mas a minha experiência tem sido que, sempre que Romanos 11:26 é citado pelos dispensacionalistas, o mesmo é apresentado como prova de que toda a raça judaica, reconstituída em uma nação terrena, há de ser salva numa “dispensação” futura. Na verdade, entretanto, a passagem ensina o exato oposto; isto é, de que a frase “todo o Israel” significa, não toda a raça judaica de uma era futura, mas todo o corpo dos remidos desta era do evangelho. A palavra “assim” ocorre na parte concludente da passagem e, portanto, necessariamente refere-se para trás aos versículos precedentes, onde o apóstolo, após explicar quem são aqueles que constituem o verdadeiro “Israel” de Deus, diz detalhadamente, e ilustra por meio da figura da “boa oliveira”, precisamente como o Israel de Deus havia de “ser salvo”. Ele, lá, descreve de antemão precisamente o que Deus tem feito desde aquele dia a este [dia de hoje]; e quando ele termina a sua descrição, e a tem ilustrado com clareza maravilhosa por meio da figura da oliveira, ele traz a questão a uma conclusão ao dizer: “E assim”― na maneira que ele estava descrevendo― “todo o Israel será salvo”. E ele acrescenta que o salvar de “todo o Israel”, daquela maneira, cumpriria certas profecias veterotestamentárias, as quais ele cita.

Se, portanto, nós simplesmente asseverarmos a partir dos versículos precedentes (como pode ser feito com pouca dificuldade e com certeza) quem são o “todo o Israel” do propósito de Deus, e como eles haveriam de ser “salvos”, devemos também asseverar, no processo, quando eles haveriam de ser salvos.

QUEM SÃO O “TODO O ISRAEL” DE ROM. 11:26?

O “todo o Israel” de Rom. 11:26 é todo o corpo do povo redimido de Deus. O mesmo é composto de “a eleição” (que, como temos visto, tem “alcançado” o que o Israel natural, como um todo, “não o alcançou”) com o acréscimo a isso de os crentes dentre os gentios. Pois o propósito principal dessa passagem (Rom. 9-11) e também o propósito do capítulo 4, e semelhantemente de Gálatas (capítulos 3 e 4), é tornar conhecido que o “Israel” verdadeiro, os “filhos de Abraão” verdadeiros, os quais herdam as promessas de Deus, não são a descendência natural, mas a descendência espiritual dele.

Paulo prova a sua doutrina, e ao mesmo tempo exibe a grande diferença entre a descendência natural de Abraão e a sua [descendência] espiritual, ao citar o fato histórico de que “Abraão teve DOIS filhos” (Gal. 4:22); e com base nos registros veterotestamentários a respeito das coisas diferentes que sucederam a Ismael e Isaque, respectivamente, Paulo deduz a grande diferença, nos propósitos de Deus, entre a massa descrente do povo israelita (correspondendo ao filho da escrava) e o “remanescente” crente (correspondendo ao filho da mulher-livre). Pois essas coisas, o apóstolo diz-nos, “são alegóricas”, o significado da qual ele prossegue a explicar (Gal. 4:21-31).

O filho mais velho de Abraão, Ismael, representa o Israel natural, os quais são “nascidos segundo a carne”. Ismael teve o lugar de primogênito na casa de Abraão por muitos anos antes de Isaque, que corresponde ao período do Sinai ao Pentecostes―isto é, a era da velha aliança―, Ismael era o herdeiro aparente i de tudo o que Abraão tinha. Ademais, mesmo após i Nota do tradutor: o autor utilizou a expressão “heir apparent” que significa “Um herdeiro cujo direito não pode ser posto de lado pelo nascimento de outro herdeiro” (Oxford English Dictionary).

Tradução: Nathan Cazé

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Isaque ter aparecido na cena, Ismael continuou por um tempo em ocupação dos arredores, e tirou proveito de sua posição para perseguir o herdeiro verdadeiro. O período quando Ismael e Isaque estavam ambos sob um telhado e o primeiro ainda tinha o status de um filho e herdeiro de Abraão, corresponde ao tempo desde Pentecostes à destruição de Jerusalém. Pois durante aquele período, o Israel natural, “o filho da escrava”, ainda ocupava a terra e cidade santa, e “perseguiu” o Israel verdadeiro (Gal. 4:29; 1 Tess. 2:15).

Mas aquela era da sobreposição das “duas alianças” foi de curta duração. Pois “o que diz a Escritura? Lança fora a escrava e o filho dela, porque o filho da escrava jamais será herdeiro com o filho da mulher-livre” (Gal. 4:30). E o próximo versículo dá-nos a aplicação do incidente: “E, assim, irmãos, não somos filhos da escrava, mas da livre”.

O significado das palavras “jamais será herdeiro” está livre de toda incerteza. Essas palavras significam que as promessas de Deus a Abraão são todas para a descendência espiritual dele. E isso, ademais, é precisamente o que o apóstolo já tinha dito em linguagem simples: “Sabei, pois, que os que são da fé são filhos de Abraão” (3:7). “E, se sois de Cristo, então sois descendência de Abraão, e herdeiros conforme a promessa” (3:29). A mesma verdade é claramente ensinada em Romanos 4:13-16.

Indo agora para Romanos 9-11, é o ensino claro dessa passagem (1) que o verdadeiro “Israel” de Deus, a nação a respeito da qual é dito “E assim todo o Israel será salvo”, é o corpo inteiro dos redimidos do Senhor: e (2) que, esse corpo é composto do “remanescente” crente do Israel natural (o “remanescente segundo a eleição da graça”, cap. 11:5) com o acréscimo a isso de os gentios crentes. Esses dois elementos, tão diversos e antagônicos por natureza, são incorporados numa unidade espiritual, “a unidade do Espírito” (Ef. 2:12-18, 4:3). E isso é conforme aquele “mistério” do propósito eterno de Deus, o qual não foi claramente revelado nos séculos passados, mas agora é feito completamente conhecido (Ef. 3:4-6). Esse “mistério” é o que é graficamente ilustrado pela oliveira de Romanos 11. E a respeito da salvação do Israel natural numa era futura, tão longe de ensinar essa doutrina, a passagem que estamos estudando foi escrita com o propósito de refutá-la. Isso aparecerá muito claramente no que segue-se.

Essa seção da epístola começa com a declaração de um fato que causou, ao apóstolo, grande tristeza e constante angústia em seu coração, a saber, que “nem todos os que são de Israel são israelitas” (9:6). Observe aqui a frase “todos os que são de Israel” a respeito da qual estamos agora examinando. E observe ainda mais que o que nos é dito aqui é, não o que essa [frase] inclui, mas o que essa [frase] não inclui. O “todos os que são de Israel”, dessa passagem, não abrange todos os que são israelitas. Paulo está aqui falando de seus “parentes segundo a carne, os quais são israelitas” (v. 3-4). E o que causou-lhe tal angústia aguda mental era o fato, revelado a ele pelo Espírito de Deus, que nem todos eles, mas de fato somente alguns deles, seriam incluídos no “todos os que são de Israel” dos propósitos de Deus. É simplesmente impossível que Paul poderia ter escrito essas palavras de tristeza dolorosa; é impossível, digo eu, que ele poderia ter desejado, para si próprio, ser “anátema de Cristo” por amor de seus “parentes segundo a carne” se ele tivesse crido e estivesse prestes a declarar a doutrina agora frequentemente atribuída a ele, isto é, que todos os israelitas no mundo seriam salvos na segunda vinda de Cristo― um evento que os cristãos daquela época consideravam como iminente. Essa doutrina, que era a exata pedra angular do judaísmo daquela época, Paulo tinha

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rejeitado; e era, ademais, uma parte importante de seu ministério expor a falsidade dela [a doutrina].

Os próximos dois versículos (Rom. 9:7-8) tornam a questão mais clara ainda. Lá, lemos:

“Nem por serem descendência de Abraão são todos filhos; mas: ‘em Isaque será chamada a tua descendência’. Isto é, os que são filhos da carne não são filhos de Deus; mas os filhos da promessa são contados como descendência”.

Isso não exige nenhuma explicação; pois isso é a própria explicação do Espírito. Precisamos apenas observar que a razão por que a verdade aqui declarada causou no apóstolo tal angústia aguda era que isso tão rigidamente exclui, da salvação de Deus, todos os descendentes naturais de Abraão exceto os poucos que eram da fé de Abraão (Rom. 4:13-16), isto é, aqueles que creram no evangelho.

O apóstolo então prossegue a tornar conhecido que tinha sido o plano e propósito de Deus, desde o princípio, salvar― não todos os descendentes naturais de Abraão, mas― somente os que Ele escolhesse. E aqui temos a doutrina da “eleição” (Rom. 9:10-26) que toma o seu nome do fato de que Deus faz uma “eleição” ou escolha, dentre judeus e gentios, daqueles que Ele salvará e terá eternamente como o Seu próprio povo. Esse princípio da escolha soberana de Deus é ilustrada pelo caso de Esaú e Jacó (v. 10-13), onde a Sua escolha foi feita antes que eles nascessem.

Nos últimos versículos do capítulo 9 (27-33), Paulo retoma a questão que estava causando-lhe tal angústia aguda, isto é, como Isaías tinha profetizado: “Ainda que o número dos filhos de Israel seja como a areia do mar, o remanescente (apenas) é que será salvo”. Esse remanescente é a parte judaica da “eleição”; e, assim, temos uma luz clara sobre o versículo 26 do capítulo 11; pois as palavras “o remanescente é que será salvo”, explicam as palavras “todo o Israel será salvo”.

No capítulo 10, o apóstolo, após expressar o desejo de seu coração e sua oração a Deus por Israel “para que eles possam ser salvos”, prossegue a mostrar que ninguém pode “ser salvo” exceto ao crer no evangelho (“a palavra da fé que pregamos”, v. 8); e que, com respeito a essa questão vital, “não há diferença entre judeu e grego. Porque todo aquele que invocar o nome do Senhor será salvo”. E o capítulo termina com uma forte notificação de que a nação israelita, como um todo, não seria salva; a palavra de Jeová àquela nação sendo: “Todo o dia estendi as Minhas mãos a um povo desobediente e rebelde” (v. 21).

Atenção especial deveria ser dada à primeira parte do capítulo 11. Essa [parte] mostra que a rejeição de Israel como uma nação, por parte de Deus, não justifica a conclusão de que Deus tem rejeitado o Seu povo. Pois, como já temos visto, a parte da nação de Deus, isto é, a eleição, Ele não rejeitou, e nunca rejeitará. Portanto, ao conceder à “eleição” o que tinha sido prometido a “Israel”, Deus estava cumprindo as Suas promessas estritamente em conformidade com a verdadeira intenção delas. O resultado é que “O que Israel buscava não o alcançou; mas os eleitos o alcançaram, e os outros foram cegados” (11:7).

Visto, portanto, que “a eleição”, ao crer no evangelho de Cristo, tem alcançado (e certamente nunca será privado de) aquilo que Deus tinha prometido a “Israel”, é claro que “o remanescente segundo a eleição da graça”, com o acréscimo dos crentes dentre os gentios, é o “Israel” das

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Escrituras proféticas. De fato, é vidente, com base num estudo imparcial de toda a passagem, que o propósito principal da mesma é tornar conhecido esse exato fato.

E esse propósito permanece, à luz mais clara, na figura da oliveira, pela qual o apóstolo, no final da passagem, ilustra a verdade que ele estivera expondo. Essa oliveira representa “o Israel de Deus”, “a eleição”, o “único corpo” dos redimidos. Nem todos os que são de Israel estão nele [em Israel]. Do contrário, muitos dos ramos naturais, “pela sua incredulidade, foram quebrados” (v. 20). E, por outro lado, muitos gentios crentes estão incluídos; esses sendo os ramos da “oliveira que é brava por natureza”, ramos estes que têm sido “enxertados, contrário a natureza, numa boa oliveira”. Isso é o cumprimento de todos os propósitos e promessas de Deus, o resultado final de todas as Suas interações, em graça, com ambos judeus e gentios.

E agora, ao buscar uma resposta à pergunta “Quem são o todo o Israel que hão de ser salvos?”, temos encontrado também a resposta à outra pergunta. Como eles serão salvos? Pois, como temos visto, a passagem ensina, na forma mais simples, que eles hão de ser salvos ao crerem em Jesus Cristo. E em assim ensinar, a passagem simplesmente afirma a verdade fundamental do Evangelho, isto é, que não há nenhuma outra forma de salvação; pois “Aquele que crê no Filho tem a vida eterna; mas aquele que não crê no Filho não verá a vida, mas a ira de Deus sobre ele permanece” (João 3:36). Os ramos naturais da oliveira foram quebrados “por causa da incredulidade”, e qualquer um desses que estão salvos, deve ser salvo mediante a fé pessoal e individual; pois não há outra maneira.

Ademais, ao dizer que “Deus é capaz de enxertá-los outra vez”, e que Ele assim fará “se eles não permanecerem na incredulidade” (Rom. 11:23), a passagem dá testemunho à verdade de que não há outra salvação para eles a não ser aquilo que a oliveira representa. Esse versículo por si só proíbe a ideia de que há, ou possa ter, uma salvação nacional para a raça judaica em alguma era futura. Deus, em Sua grande paciência e longanimidade (2 Ped. 3:9, 15), ainda mantém-lhes aberto a porta da salvação, para que os Israelitas de forma individual, mediante a fé pessoal em Jesus Cristo, possam entrar e ser salvos. Mas quando Ele se levantar e fechar essa porta, então aqueles que começarem a busca-Lo para serem salvos, escutarão Ele dizer: “Eu não vos conheço; apartai-vos de mim, vós todos os que praticais a iniqüidade”, e foi aos judeus que Ele disse isso (Lucas 13:25, 27).

Ademais, a palavra “Assim”, em Romanos 11:26, significando na maneira descrita acima e ilustrada por meio da figura da oliveira, claramente responde à pergunta Como todo o Israel há de ser salvo. Eles serão “todos salvos” precisamente “ASSIM”, e não de outra maneira.

E, finalmente, temos encontrado também, no que tem sido estabelecido acima, a resposta à pergunta “Quando eles serão salvos?”. Pois, visto que todo o Israel será salvo assim― isto é, por meio de “a palavra da fé” que os apóstolos pregaram, então mui certamente eles devem ser salvos antes de este dia de salvação-do-evangelho chegar ao fim. E isso é claramente declarado em outras Escrituras, como tem sido mostrado acima.

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CAPÍTULO 16 16. TRANSPORTADOS PARA O REINO DO FILHO

HÁ muito tempo tem sido a minha convicção de que a fraqueza dos dias de hoje do povo de Deus, as desordens e divisões internas deles, e o fracasso total do testemunho coletivo deles ao mundo, são principalmente devidos ao fato de que eles não são instruídos e estabelecidos na grande verdade declarada nos primeiros versículos de Colossenses, isto é, que quando Deus recebeu aqueles que creram “na palavra da verdade do evangelho” (v. 5), Ele os libertou “da potestade das trevas” (um reino) e os transportou “para o Reino do Seu Filho amado” (v. 13).

Isso é verdade-do-evangelho fundamental; e cabe a todos os “Fundamentalistas” a observarem isso.

É a verdade que dá glória ao Filho exaltado de Deus, “o Rei, eterno, imortal, invisível” (1 Tim. 1:17). É a verdade que assegura ao próprio povo quanto a sua segurança perfeita. É a verdade que foi destinada a levar convicção a todo os homens de que Jesus Cristo é verdadeiramente Aquele enviado de Deus (João 17:21[, 23]). Portanto, nada é mais urgentemente necessário no momento presente de que essa verdade básica, agora tão geralmente negligenciada, desse a issoi, no ministério dos servos de Cristo, algo como a proeminência dada a elaii nas Escrituras neotestamentárias.

O REINO, NÃO A IGREJA, A BASE DA UNIDADE

O que é geralmente enfatizado por parte de professores ortodoxos no tempo presente é que aqueles que são salvos através da fé em Jesus Cristo são de imediato incluídos na Igreja; a qual é o corpo de Cristo, e é também o templo espiritual agora sendo edificado “para habitação de Deus no Espírito” (Ef. 1:22-23; e 2:22). Isso é verdade de fato, e verdade de valor superlativo. Mas isso não pertence em tal associação íntima com o evangelho como o assunto que estamos considerando. Pois as Escrituras conectam o Evangelho diretamente com o Reino ao invés de com a Igreja. A mensagem que conspicuamente marcou o princípio desta era, a qual é especialmente caracterizada pelo perdão de pecados (a era da Nova Aliança), era “a Palavra do Reino” (Mat. 13:19), a qual João o Batista tinha preparado o caminho por meio do seu “batismo de arrependimento para remissão de pecados” (Lucas 3:3). E Jesus foi ungido Rei e foi enviado a Israel “para pregar o evangelho aos pobres”; e Ele próprio disse, quando o povo rogou-Lhe para não apartar-Se deles: “É necessário que Eu pregue o Reino de Deus noutras cidades também, porque para isso Eu sou enviado” (Lucas 4:18, 43).

Ademais, a pregação do Reino de Deus era a principal atividade dos apóstolos e evangelistas, como pode ser visto ao consultar o registro, dado a nós, do ministério de Paulo (Atos 13:22-23, 32-34; 17:7; 19:8; 20:25; 28:23, 31; Rom. 14:17; 1 Cor 4:20; 15:50; Col. 1:12- 13; 2 Tim. 2:8 &c. &c.). De fato, esse apóstolo explicitamente diz que o evangelho é pregado para “a

i Nota do tradutor: provavelmente refere-se à “grande verdade” do primeiro parágrafo deste capítulo. ii Nota do tradutor: provavelmente refere-se à “verdade básica”.

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obediência da fé” (Rom. 1:5, marg. e 16:26); e, ademais, que o objetivo principal de seu próprio ministério era “para fazer obedientes os gentios” (15:18). Aqueles que creram no evangelho foram ditos a terem se tornado “obedientes à fé” (Atos 6:7), a terem “obedecido de coração” (Rom. 6:17). E, por outro lado, aqueles que estão condenados à “eterna destruição, longe da face do Senhor”, são os que “não obedecem ao evangelho” (2 Tess. 1:7-9). A palavra obediência expressa um relação-de-reino. Isso é o estado do coração daqueles que confessam a Jesus Cristo como Senhor, que ninguém pode fazer “senão pelo Espírito Santo” (1 Cor. 12:3).

Ora, é quase necessário para observarmos que, enquanto o Reino― isto é, a relação de os redimidos do Senhor ao Rei Ungido de Deus― era o tema proeminente da pregação e ensino do próprio Senhor e de Seus apóstolos, o assunto da Igreja (isto é, no sentido abrangente e eternal dessa palavra, não no sentido local) não foi desenvolvido até a última parte da vida de Paulo; até, de fato, que o seu ministério ativo terminou-se. Pois foi durante o aprisionamento dele, em Roma, que ele escreveu a epístola aos Efésios, em que essa grande verdade é revelada. Antes disso, temos quanto ao assunto da Igreja (nesse sentido todo-abrangente) apenas a declaração breve e inexplicada de Cristo: “sobre esta pedra Eu edificarei a Minha Igreja, e as portas do inferno não prevalecerão contra ela” (Mat. 16:18).

A conclusão principal propriamente a ser extraída a partir dos fatos brevemente estabelecidos acima é que o assunto do Reino de Deus é da mesma essência do evangelho de Cristo, e é de importância imediata e vital para toda a humanidade, tanto para os que estão dentro e os que estão de fora; enquanto que o assunto da Igreja (como a casa espiritual de Deus agora sendo edificada) é de interesse somente para os que já têm sido transportados para o Reino; e para esses, isso não têm significância direta e prática sobre as suas vidas aqui embaixo como a tem a verdade relativa ao Reino. Pois a Igreja (nesse sentido abrangente, pois não estamos falando, de nenhuma forma, a respeito das igrejas locais) pertence à eternidade ao invés de ao tempo (Ef. 5:27; Ap. 21:23); pois ela [Igreja] está incompleta, estando agora em processo de formação. Enquanto o Reino pertence ao presente; pois Cristo está reinando agora. Assim, se essa verdade imensamente prática recebesse o seu devido lugar na pregação e ensino dos ministros de Cristo, a mesma tenderia a unificar o povo dividido de Deus.

SALVAÇÃO, UMA MUDANÇA DE SUJEIÇÃO

Por meio de Colossenses 1:12-13 nos é dado a conhecer que a mudança completa ocorre na sujeição do homem, isto é, em suas relações governamentais ou políticas com os “principados e potestades” (v. 16), quando ele crer em Jesus Cristo através da “palavra da verdade do evangelho, que” (diz o apóstolo) “já chegou a vós, como também está em todo o mundo” (v. 5-6). É o próprio “Pai” que faz essa mudança de relacionamento; e a mudança inclui dois atos de poder soberano e total: primeiro, Ele nos livra, ou liberta da “potestade”― isto é, do reinar ou domínio― “das trevas” (ao qual todos os homens estão, por natureza, em sujeição); e, segundo, Ele transporta aqueles que Ele tem assim libertado de sua sujeição natural para dentro do Reino de Seu Filho amado― isto é, Ele transporta-os como se fosse corporalmente através das fronteiras, de outra forma intransponíveis, do domínio do pecado e morte, e coloca-os de forma segura e protegida no “Reino de Seu Filho amado”.

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É possível exagerar quando fala-se da imensa mudança que Deus tem suscitado no relacionamento de o reino, ou sujeição de alguém que tem recebido Jesus Cristo como Seu Salvador e Senhor? Certamente não. E seria bom lembrarmos, com relação a isso, de que a devoção leal à pessoa de uma soberania, e amor pelo país do nascimento de alguém, são sentimentos que, quando a oportunidade de expressá-los é concedida, faz até mesmo as almas tímidas serem corajosas como os leões, e impeli-as à obras e sacrifícios do heroísmo mais sublime. Mas onde, será perguntado, estão os heróis da fé em nossos dias? Minha resposta é que o material está aqui assim como estava nos dias dos apóstolos, e que o que está faltando é aquele evangelho que foi pregado por parte deles “com o Espírito Santo enviado do céu”― o Evangelho do Reino.

“PRESENTE VERDADE” (2 Pedro 1:12)

Isso, digo eu, é verdade de importância imediata e prática; e porque, não apenas isso está conectado de perto com a nossa salvação pessoal, mas isso tem a ver com a honra do nosso Salvador, Senhor e Rei, Jesus Cristo, o qual é “o Autor de eterna salvação para todos os que Lhe obedecem” (Heb. 5:9).

A Escritura torna claro que o grande objetivo da redenção de Cristo é a recuperação do homem para fora daquele estado de desobediência ao qual toda a raça caiu por meio da transgressão de Adão (“pela desobediência de um só homem”, Rom. 5:19), e a sua restauração a um estado de obediência. Aquele estado de desobediência e separação de Deus é mencionado nas Escrituras como um reino, ou “domínio”― “o domínio do pecado e morte”, “a potestade das trevas”, “o poder de Satanás”―; e o estado de obediência ou sujeição a Deus, ao qual aqueles que creem no evangelho são trazidos por meio da porta do novo nascimento (João 3:5; 1 Ped. 1:23), é também um reino― o Reino de Deus.

A base da “reconciliação” do homem a Deus (pois por natureza somos todos “inimigos” d’Ele) foi estabelecida na “morte de Seu Filho” (Rom. 5:10); e por meio do “evangelho de Deus concernente ao Seu Filho”, a bendita verdade da reconciliação é proclamada ao mundo todo (2 Cor. 5:18-21); e todos os homens são ordenados a retornarem à obediência, ou em outras palavras, a entrarem no Reino de Deus. Isso significa, portanto, que estamos salvos; pois salvação significa estar sob a proteção do Rei de Deus.

A OBEDIÊNCIA DA FÉ

Referência tem sido feita acima às Escrituras as quais declaram que o evangelho é pregado para “obediência da fé”; e agora somente resta a salientar que a obediência da fé é uma coisa muito diferente da obediência legal [relativo à lei]. A diferença principal é que o tipo específico de obediência que o evangelho exige (e que o mesmo também traz à tona) é livre e voluntário, a obediência espontânea do coração. ESSA OBEDIÊNCIA DE CORAÇÃO É A EXATA ESSÊNCIA DA FÉ SALVÍFICA. Na verdade, fé salvífica e obediência de coração são a mesma coisa. Pois “obedecer” e “crer” são apenas traduções variáveis em Inglês da mesma palavra grega. Assim, de forma semelhante, “incredulidade” e “desobediência” são traduções diferentes da mesma palavra no texto original. Obediência “de coração” (Rom. 6:17) é o que distingue a

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fé da mera ortodoxia, isto é, da mera crença de opiniões corretas e o conceder de uma mera concordância intelectual às declarações da Palavra de Deus. Pois fé verdadeira não é um credo, ou uma questão de opinião, por mais que seja correto e ortodoxo, mas uma coisa do coração e fé e obras; manifestando a si mesma em “obras da fé”, isto é, atos de obediência espontânea à Palavra de Deus. Assim, está escrito que “Pela fé Noé, divinamente avisado . . . preparou uma arca para salvação de sua casa”; que “Pela fé . . . Abraão obedeceu”; “Pela fé Moisés celebrou a páscoa e a aspersão do sangue”; “Pela fé” os filhos de Israel “atravessaram o mar Vermelho como por terra seca” (Heb. 11:7-8, 28-29). Por meio desses casos, e por meio de muitos outros, Deus tem claramente mostrado que fé verdadeira é uma coisa viva, ativa e energética; a sua característica mais distintiva é que ela age espontaneamente― sem coerção ou a restrição de dores e penalidade pela desobediência― e conformidade estrita com a Palavra de Deus; rendendo obediência imediata e inquestionável aos Seus mandamentos, mesmo quando os mesmos correm contra a sabedoria humana e contra os desejos do coração natural. “Dos tais é o Reino dos céus”.

Irmãos, é “este evangelho, DO REINO” que será “pregado no mundo inteiro, em testemunho a todas as nações, e então virá o fim” (Mat. 24:14). Pode a pregação de qualquer outro evangelho realizar os propósitos de Deus? Impossível. Não, podemos, e devemos, colocá-lo [pregá-lo] ainda mais forçosamente; pois lemos acerca de alguns que estavam “passando tão depressa daquele que vos chamou à graça de Cristo para outro evangelho, o qual não é outro” (Gál. 1:6-7). Pois qualquer outro evangelho a não ser aquele que chama os homens “à graça de Cristo” não é um “evangelho” de nenhuma forma. E o evangelho que chama os homens à graça de Cristo é aquilo que chama-os ao Reino do Filho amado de Deus. Pois testificar “o evangelho da graça de Deus” e “pregar o Reino de Deus” são a mesma coisa idêntica (Atos 20:24-25).

O FIM