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O evangelho do Cristo redivivo (ROMANCE) Gustavo Gollo Capa: Aline Montesino Fávaro Editora Virtual

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O evangelho do Cristoredivivo

(ROMANCE)

Gustavo Gollo

Capa: Aline Montesino Fávaro

Editora Virtual

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O evangelho do Cristo redivivo

Em um Rio de Janeiro futurista, pós-olimpíadas, policiais, milicianos e bandidos se digladiam em uma atmosfera violenta e cruel, em uma guerra sem fim pelo poder das ruas.

Nesse panorama sujo, surge a igreja do Cristo redivivo, uma seita que crucifica um Cristo anualmente para nos salvar.

Ele veio para tirar os pecados do mundo; Ele está no meio de nós.

Esse é o Seu evangelho.

Gustavo Gollo

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José Carlos, ou JC como era chamado, permanecia ansioso ante a expectativa do resultado da escolha do Cristo; aos trinta e três anos, chegava à final do concurso pela terceira vez consecutiva, sabia que seria a última. Agora fazia planos. Evitava conjeturar não ser o escolhido, situação que o obrigaria a dar novos rumos a sua vida, não sabia quais. Um sentimento de tristeza intensa e apreensão quase desesperadora se apossavam de sua alma assim que considerava essa hipótese, impossibilitando-o pensar com clareza, e traçar planos minimamente aceitáveis após tal derrota. Contrastando com essa possibilidade havia o sonho: ser o escolhido.

Já havia perdido a conta da quantidade de vezes em que se candidatara a Cristo, sonho de infância, repetidamente reacendido desde a adolescência, tendo havido, desde os treze de idade, apenas um ano em que não se candidatara; não o fez por uma infantilidade, uma birra, por não ter sido escolhido no ano anterior, mas se arrependeu. Desde então, passou a viver sob a meta de se tornar o Cristo, o Salvador, e toda a sua vida se voltou para esta finalidade única, de maneira que agora chegava aos trinta e três sem qualquer outra expectativa.

À sua frente o comovente espetáculo se desenrolava esplendorosamente ante os olhares atentos da multidão emocionada. Caminhava solitário em meio ao mar de gente, empurrado pelo povo. Assistia à crucificação do Cristo com as emoções eclipsadas pela apreensão relativa à escolha do novo Salvador. Pouca atenção prestava ao espetáculo, ou à multidão em torno, embora houvesse aguçado sua percepção ao extremo nos parcos momentos em que teve a sorte de se encontrar próximo o suficiente do Cristo para contemplar-lhe as feições, como em uma espécie de deformação profissional a guiar seus olhares independentemente de qualquer decisão consciente, conduzidos apenas pela força do hábito.

Havia visto inúmeras fotos do Cristo, e já lhe tinha estudado profundamente as expressões corporais e faciais, movimentos e gestos. Também conhecia em detalhes o seu sorriso, suas inflexões verbais, tonalidades... sabia imitá-lo com perfeição, e até mais que isso, acreditava conseguir igualar, e até superar a elegância de seus gestos e a veracidade de suas ações. Mesmo assim, convinha vê-lo ao vivo, sem retoques fotográficos ou qualquer outro truque gráfico. Era importante ver o seu suor, sua impressão na multidão, sua aura. Assim, quando se aproximou do Cristo atentou para cada detalhe de seu corpo, de sua expressão. Viu sua musculatura delineada sob a pele, seu porte atlético, apesar do cansaço por ter carregado a cruz, seus cabelos suados agitados ao vento em desalinho. Olhou em seus olhos e percebeu mais júbilo que piedade ou medo, fato que o inquietou. Uma constatação, no entanto, teve um efeito fortemente tranquilizador sobre si: eram ambos indiscutivelmente parecidos: a mesma altura, o mesmo porte, a mesma cor, em suma o mesmo tipo, havendo até um ou outro traço fisionômico assemelhado. Sabia que a semelhança teria um peso favorável na escolha do próximo Cristo; conviria haver uma continuidade entre ambos.

Em cada lado do Cristo, um homem estropiado pendia de uma cruz. Difícil adivinhar-lhe as feições disformes, bastante alteradas pela pancadaria da turba. Suas cabeças pendiam inertes, com as faces voltadas para baixo. Já não tinham os sentidos, se acaso ainda vivessem. Suas cruzes, em segundo plano, eram menores que a do

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Cristo, em destaque, e plantadas em um nível mais baixo, além de mais discretamente iluminadas que a dele. Estavam ali apenas para ressaltar a grandiosidade do Salvador, e escassos olhares se dirigiam a elas.

Uma mosca deixou a narina de um dos crucificados, evidenciando sua morte. Fato análogo já lhe havia causado repulsa em anos anteriores, não no ladrão, mas esvoaçando e penetrando no Cristo. Inseto pestilento e sacrílego; havia tentado em vão arquitetar algum plano para evitar tão sutil imundície. Planejou passar inseticida em torno das narinas, mas constatou que a boca incontrolavelmente aberta era entrada muito mais convidativa para elas. Pensou em dar instruções para que lhe vedassem os orifícios faciais, após a morte, com algodão embebido em pesticida, mas considerou a alternativa excessivamente artificial. Lembrava-se com clareza ainda, e com um misto de ironia e repulsa, do Cristo dândi, de anos anteriores, cujos cabelos volumosos e repletos de mechas coloridas e luminosas, após todo o suplício, mantinham o aspecto de haver acabado de sair do cabeleireiro.

Teve pena dos homens secundando o Cristo, aos seus lados; linchados pela turba, punidos com rigor desmedido por crime tão leve. Veio-lhe à mente, uma vez mais, a reminiscência muito antiga, a pergunta infantil, ainda nas aulas de catecismo: e se ninguém roubar?

A encenação pressupunha a presença de dois ladrões crucificados ao lado do Cristo. Já a pergunta ingênua presumia a necessidade do roubo para qualificar um ladrão. A truculência da pena sugeria a impropriedade do furto em tais circunstâncias: que louco arriscaria morrer linchado pelo povaréu, achacado pela multidão como castigo para tão leve delito? Por outro lado, que forças poderiam inibir hábitos já firmemente enraizados? Fosse como fosse, dezenas de ladrões eram flagrados e justiçados todos os anos durante as festividades, havendo dificuldade apenas em encontrá-los ainda com vida. Mandamento inolvidável durante os festejos era: não corra! Na falta de um ladrão, o primeiro a correr se incriminava. Quanto às denúncias verbais, eram frequentemente rebatidas por acusação recíproca, não sendo rara a tentativa de fuga do delator, incapaz de sustentar tão vasta quantidade de olhares inquisitivos e acusadores. À fuga, seguiam-se inexoravelmente a captura, a condenação e o martírio do infeliz, sem que qualquer direito à defesa fosse ao menos aventado. Havia duas cruzes ao lado do Cristo, e alguém tinha que ocupá-las.

O potente sistema de som, magistralmente camuflado, iniciava os vibrantes acordes de Jerusalem, prenunciando o ápice da cerimônia. A versão abusiva, e ainda mais alucinada que a original, musicada sobre o poema do pintor e poeta britânico William Blake soava exalando fervor místico. O som do órgão cedia lugar à voz do cantor, que iniciava amena e ponderada:

Teriam esses pés, em tempos antigos, caminhado sobre os verdes morros do Rio de Janeiro?

E ainda que mantivesse certa suavidade na estrofe seguinte, era saudada entusiásticamente pela multidão à beira do delírio:

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E teria o Sagrado Cordeiro de Deus sido visto nas aprazíveis pastagens cariocas?

A frase profética! A história registrava que o profeta J.C. de Deus teria sobrevivido a uma incursão punitiva de um caveirão, tanque blindado da polícia carioca, a um morro do Rio de Janeiro. Na mesma operação, doze homens foram mortos; nenhum sobrevivente ferido, como aliás era norma de ação do batalhão especial da polícia. J.C. de Deus teria sido alvo de intensa fuzilaria, juntamente com outros seis homens, todos eles crivados por dezenas de balas, ao som da mesma canção que soava no sistema sonoro naquele momento. Quando o caveirão deixou o local, repetindo a mesma música em seus auto-falantes, J.C. de Deus saiu de baixo da pilha de cádaveres banhado em sangue da cabeça aos pés, mas ileso. Miraculosamente, nenhuma das centenas de balas disparadas sobre os infelizes deitados no chão o atingira sequer de raspão. Sua irrupção repentina de sob os mortos, assustou os políciais ali remanescentes que, embora acostumados à sangueira mais bizarra e aos massacres mais atrozes, apavoraram-se com a figura ensandecida e ensanguentada a correr e a gritar.

Enquanto os policiais, enlevados pela pientíssima canção, fuzilavam os favelados, e ainda sob a mortualha, J.C. de Deus teria tido a visão do Cristo redivivo, do Cristo ressucitado para salvar o mundo uma vez mais. Era a pedra fundamental da Igreja do Cristo Redivivo.

E o Divino Semblante, teria brilhado sobre nossas colinas ensolaradas?

As sucessivas perguntas formuladas na canção eram respondidas com gritos desvairados do povo, que ecoava também as expressões centrais de cada frase: “Divino Semblante” replicava a multidão entre gritos descontrolados.

E foi a Terra Santa erguida aqui, em meio a estes negros moinhos satânicos?

“Moinhos satânicos” repetia o povo, enquanto tentava encontrar algum alvo que se encaixasse na descrição. As expressões nos rostos anônimos se alteravam drasticamente, refletindo a piedade do divino semblante, para em seguida mascarar-se com o satanismo dos moinhos aventados. Em seguida, a voz do cantor quase se descontrolava para exigir em brados roucos e fervorosos:

Tragam meu arco de ouro brilhante!Tragam minhas flechas do desejo!Tragam minha lança: Oh sombras, revelem-se!Tragam minha Carruagem de Fogo!

Embalado pelos versos enfáticos, o cantor era pura paixão, enquanto o órgão e o restante da harmonia musical complexa ganhavam volume como se evoluíssem de si mesmas. A sonoridade adquiria corpo e tensão, enquanto as palavras eram pronunciadas alucinada e fervorosamente:

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Não cessarei os embates mentais;Nem minha espada descansará em minha mãoAté que tenhamos erigido a Terra SantaNas verdejantes e agradáveis terras cariocas.

O fervor febril com que a última estrofe era cantada revelava uma comoção profunda. Contam que ao término da canção, durante as gravações no estúdio, o cantor teria tido uma síncope, da qual teria emergido profundamente tocado por revelações místicas atingidas durante o delírio.

As vibrações musicais ricas e complexas prosseguiam após o término das palavras enfáticas do cantor, findando repentinamente, deixando no ar um silêncio quase contundente. A luminosidade que inundava tudo ao redor da multidão também se extinguia abruptamente, restando apenas um intenso foco sobre o Cristo na cruz. Ouviu-se um “oh” pronunciado pela multidão extática, dissolvido rapidamente em um silêncio profundo, pio e tenso. A cena era obvimente o prenúncio de algo grandioso.

– PAI!

Era a voz do Cristo ecoando por toda a área através da aparelhagem de som oculta. O som cheio e rico alcançava os ouvidos de todos. Embora a presença do Cristo não chegasse a ser imponente, como a de outros anteriores, sua voz era convincente: clara, cristalina, mas, sobretudo, sumamente encantadora. Pronunciava as palavras com um sotaque irreconhecível, certamente construído com base em fonemas de diversos ramos linguísticos. O “p”, em especial, era pronunciado com muita energia, explosivamente, criando um efeito pesado e contundente; dava à palavra “pai” uma força inaudita, muito mais ainda aos ouvidos dos que podiam contemplá-lo a erguer a face para os céus, entre os braços abertos pregados à cruz, de onde o sangue jorrava em profusão. A inserção dos cravos nos punhos era feita com perícia para fazer o líquido escorrer abundantemente, enquanto as mãos eram posicionadas em altura superior à dos braços, de modo a derramar o sangue através deles sobre todo o corpo, de maneira espetacular.

A prece do Cristo dirigia-se ao todo poderoso; correspondia a um pedido de perdão pelos imensos pecados cometidos por toda a humanidade, impotentes e reles mortais, ignorantes de suas próprias ações e destino. O pedido comovente do moribundo endereçava-se aos céus, mas era a multidão que o ouvia inebriada e muda.

– PAI!

Uma vez mais, ouviu-se o brado enfático do Sagrado Cordeiro de Deus, do Homem imolado perante a multidão extasiada. Novos pedidos de desculpas à humanidade, implorados em um tom ainda mais contundente. As palavras pareciam ecoar nas nuvens que se fechavam sobre as cabeças da multidão.

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Após um suspense proporcionado por nova pausa, pela terceira vez soou o brado:

– PAI!

Então ouviu-se um forte estrondo, como o arrastar de pesadíssimas ferragens, para, imediatamente, entreabrirem-se as nuvens em uma manifestação miraculosa incontestável! Enquanto a multidão se ajoelhava piedosamente, milhares de pessoas dentre elas desmaiavam em meio a gritos alucinados, apavorados, apaixonados! Indescritível o conjunto de sensações manifestando-se simultaneamente na multidão a mirar os céus extasiada.

O brado do Cristo redivivo ainda reverberava, quando as nuvens se abriram desvelando algo indescritível entre elas. Algo gigantesco, que não podia ser mirado. Algo intensamente sentido, mas indefinível. A presença permanecia imensa entre as nuvens abertas, quase certamente apoiava-se nelas, e mesmo assim não podia ser fixada, não permitia que olhos a captassem, apenas a sugerissem. O ser imenso estava lá, todos os olhos assim o garantiam, e mesmo assim nenhum deles era capaz de perceber-lhe a forma, nem tampouco a cor, ou qualquer das características que compõem os seres que conhecemos e que usualmente contemplamos com nossos olhos. A figura imensa se manifestava indiscutivelmente sobre as milhões de cabeças reunidas, mas não se permitia mirar com nitidez, evitava o foco da visão da multidão, permanecendo inerte às vistas de todos.

A voz do Cristo ganhou um tom mais cálido, uma vez ciente de que as preces eram ouvidas. Implorou novamente que perdoasse os homens: “eles não sabem o que fazem”.

Difícil interpretar o ribombar de trovões que se seguiu aos apelos, mas tanto eles, quanto os raios advindos simultaneamente eram apavorantes; explodiam pelos céus em cores nunca vistas, riscando mensagens cósmicas indecifráveis por toda a abóbada celeste, até cessarem subitamente deixando um céu estrelado e límpido.

As últimas palavras do Cristo trouxeram os olhares da multidão novamente para si. Os que estavam ajoelhados, quase todos, se ergueram em uma ola imensa e expontânea. As luzes voltaram a se concentrar sobre Ele, quando o pelotão de centuriões o cercou e, às vistas de todos, cravou a lança no peito do Senhor crucificado, arrancando-lhe um último grito lancinante, seguido rapidamente pelo suspiro final.

* * *

Instantaneamente, JC lembrou que o resultado da escolha estaria sendo divulgado logo após a morte do Cristo, trazendo-lhe de volta toda a ansiedade que os momentos finais do espetáculo haviam desanuviado. Erguendo a cabeça acima da multidão, tentou encontrar algum atalho que lhe permitisse, de algum modo, contorná-la, mas percebeu que os centuriões, após uma pausa durante os momentos cruciais, voltavam a tanger o povo.

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Sempre em grupos de três, e normalmente ladeados por paisanos, os centuriões, garantiam o fluxo contínuo da multidão. Embora armados com pistolas, eram desencorajados a usar as armas de fogo contra a turba, mas não poupavam o uso da espada, com a qual tangiam o povaréu como se fossem bois, golpeando-lhes o lombo com a face da lâmina quando assim julgavam necessário, guardando o fio para eventuais justiçamentos, decorrentes, normalmente, de discórdias relativas ao uso anterior do instrumento. Assim sendo, não convinha a ninguém aproximar-se deles, sendo bastante sensato se afastar o mais possível, após uma aproximação imprudente ou forçada.

Conhecia de cor todas as etapas do espetáculo, e, vasculhando ao longe, notou um acesso ao posto de saúde entre a estação seguinte, onde ocorreria o enforcamento do Judas, e o ponto em que se situava. Desagradava-lhe aquela parte da encenação; o pobre Judas, quase sempre um homossexual amedrontado, era escolhido entre a multidão e coagido a participar da encenação enforcando-se. Nada ganharia com ela, exceto o opróbrio e o direito de evitar cair nas mãos da plebe irada.

Se JC tivesse estado indeciso quanto a seu destino momentâneo, a consideração acima seria suficiente para levá-lo até o atalho antes da última estação. Mas a apreensão quanto ao resultado da escolha do Cristo já era suficiente para guiá-lo até a saída. Caminhou buscando se situar mais à direita do fluxo, se aproveitando de sua altura avantajada para se manter fixo em seu alvo. Chegando à altura do posto médico, deixou o caminho principal e se embrenhou em sua direção, de lá direcionaria seu caminho para a saída, tomando o cuidado de cruzar a multidão apenas com uma margem enorme para chegar ao outro lado. Sabia ser impossível contrariar o fluxo, ou mesmo evitá-lo. Cada quilômetro seria arrastadamente percorrido.

Pouco antes de chegar à saída, quando já se encontrava em adensamento leve o suficiente para permitir determinar a velocidade do passo, ouviu o soar de metralhas. A quantidade de disparos o levou a concluir se tratar da execução de traficantes, palavra utilizada para descrever a população marginal aniquilada por policiais na região.

Enquanto o coração se apressava, apertou o passo em busca do resultado da escolha do novo Cristo, a ser divulgado na tenda maior, na saída do imenso palco ao ar livre.

Assim que adentrou a tenda foi interpelado por um desconhecido:– Sr JC?– Sou eu...– Poderia me acompanhar, por favor? A abordagem era auspiciosa; nos dois

anos anteriores, quando também tinha sido finalista e entrado ali pelo mesmo motivo, tinha tido alguma dificuldade para conseguir obter o resultado, tendo passado certo agastamento por isso. Desta vez o surpreendia o fato de ter sido reconhecido. Antes de ter cruzado todo o espaço da tenda já caminhava como o Cristo. Foi conduzido a uma ante-sala bem decorada onde lhe pediram que aguardasse.

O senhor que o recebeu com uma deferência incomum, comunicou-lhe o que naquele momento já imaginava: tinha sido o escolhido. Como último requisito restava apenas a confirmação. Foi-lhe explicado que sua escolha tinha sido baseada

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em testes exaustivos, e que não cabia mais nenhuma dúvida quanto à sua aptidão, sendo necessária, no entanto, a sua confirmação.

Apesar dos cabelos brancos e da pele desgastada pelos anos, o senhor olhava para o Cristo com a mesma expressão com que, várias décadas atrás, teria mirado o próprio pai, enquanto perguntava se JC confirmava o seu desejo de se tornar o Cristo, e morrer na cruz como Salvador. Depois de breve pausa meditativa JC respondeu com expressão altiva e voz empostada que confirmava o seu desejo, já tantas vezes expresso, de ser o Cristo e de morrer na cruz pela salvação dos homens, transformando o olhar filial de seu interlocutor em um verdadeiro manancial de devoção. Em seguida, sob o testemunho de seis devotos, jurou morrer na cruz pelos homens, em um ritual já previamente ensaiado por ele. Agora JC era o Cristo.

Recebeu instruções para resguardar sigilo sobre a escolha. Nos dias seguintes adotaria a máxima: “em time que está ganhando não se mexe”, de modo a manter basicamente a mesma rotina que vinha seguindo nas últimas semanas, evitando com isso também a suspeita de que algo em sua vida houvesse mudado. No terceiro dia, o domingo, ressuscitaria como Cristo.

* * *

No dia seguinte, sábado de aleluia, o Cristo acordou radiante, antes de clarear o dia já estava desperto. Consultou o relógio e se permitiu levantar. Achou que o tempo passava vagarosamente, embora estivesse a usufruir cada momento. Levantou e colocou água para ferver; durante a espera da fervura fazia uns agachamentos e subidas nas pontas dos pés. Coou o café, e enquanto o tomava, com umas gotas de adoçante, executou uns alongamentos para costas e pernas.

Barbeado e lavado, encaminhou-se à academia de ginástica. Era a sua rotina diária, mas estava especialmente alegre e bem disposto naquela manhã. Sempre sorridente, costumava irradiar alegria mesmo em dias comuns, mas nesse dia venturoso o contentamento parecia se lhe derramar.

Antes de sair para a academia de ginástica lembrou-se de tomar uma gota de vitamina, o que talvez lhe adicionasse algum vigor; seu efeito psicológico, no entanto, certamente seria considerável; iria se sentir especialmente forte naquela manhã.

Ao sair do prédio em que morava, percebeu que ainda estava escuro, cedo demais para entrar na academia, certamente. Decidiu encaminhar-se para a praia, bem perto, e estender a caminhada por lá para gastar o tempo e iniciar algum aquecimento. Andou só mais um quarteirão pela praia, e ao consultar o relógio de rua, constatou que já era hora. Voltou, e em dois minutos adentrou a academia naquele início de manhã ainda escuro, com o ar de jovialidade contrastando com a sonolência dos presentes.

Como de hábito, pedalou durante cinco minutos para aquecer os músculos, e se encaminhou em seguida para o aparelho no qual iniciava sua série mais pesada de exercícios musculares. Acrescentou mais uma anilha de peso à quantidade que usava normalmente no primeiro exercício, conforme planejara na cama, antes de dormir,. Apesar desse aumento, exercitou-se com facilidade, levando-o a acreditar que

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conseguiria majorar o peso em todos os exercícios seguintes nos quais isso ainda fosse possível; em alguns deles já utilizava o limite máximo do aparelho, nesses, tencionava aumentar o número de repetições. O ânimo adicional conseguido após ter sido escolhido Cristo, dava-lhe forças para superar a si mesmo nas atividades musculares que costumava executar diariamente.

Terminadas as três séries longas de quinze repetições cada, dirigiu-se ao aparelho seguinte, e foi com imenso prazer que notou a facilidade com que erguia os pesos; sentia uma vitalidade exuberante que parecia não caber dentro dele! Aproveitou o embalo para executar cada movimento com precisão extrema, embora tivesse tido certa dificuldade em controlar a ânsia de apressar a movimentação.

Os exercícios transcorreram com rapidez e com um vigor até então inaudito que o espantou e o alegrou ainda mais. Tendo feito ainda uns alongamentos finais, deixou a academia de ginástica, quase aos pulos, sentindo-se com a força de um super-herói imbatível. Deslocou-se rapidamente até sua casa, onde vestiu o calção de banho e saiu imediatamente para a praia. A sensação de vigor extremo que sentia o levou a atropelar seus próprios planos; chegando à areia, retirou a blusa e iniciou imediatamente uma corrida de ida e volta por toda a extensão da praia.

Tendo terminado a corrida de oito quilômetros, percebeu que lhe faltava algo. Costumava fazer esse mesmo percurso todos os dias, mas normalmente corria só uma parte dele, durante a restante caminhava, aproveitando o momento para pensar em todas as coisas e, especialmente, planejar os eventos do dia. Apesar de certa exiguidade de tempo, considerou necessário estender um pouco a caminhada, acreditava que as idéias lhe vinham mais claras e fáceis durante essas jornadas pela areia. Precisava planejar sua vida, tinha ainda um ano inteiro pela frente, mas considerou que, os dias seguintes teriam uma importância especial: era imperioso se preocupar com o presente, uma vez que sua vida se encontrava radicalmente instável. Nunca tinha imaginado viver tanto, tinha sempre tido a certeza de que seria escolhido Cristo, e, portanto, imolado, e nem mesmo supunha que tal fato só viesse a acontecer tão tardiamente, na idade que considerava limite, razão pela qual não havia se preparado para um futuro considerado inexistente.

Naquele momento, suas finanças, se encontravam em um grau de precariedade, sendo nítido que precisaria de um apoio financeiro para chegar à paixão em plenas condições. Deveria aproveitar a caminhada para fazer os cálculos de suas necessidades econômicas. Era premente avaliar suas parcas posses, restos de uma herança já antiga, suas necessidades, e encaminhar um pedido à direção da igreja para o financiamento de tais encargos. Não haveria nisso nenhum esbanjamento, mas apenas a constatação das despesas com comida e habitação, principalmente, acrescidas de outras, como livros, roupas, transporte, além da mensalidade da academia de ginástica, assim como vitaminas e complementos alimentares convenientes para um atleta em atividade. Considerou a elaboração de uma lista completa de despesas, incluindo e discriminando telefone, despesas com papéis e computadores, eventuais despesas médicas, e outras igualmente pouco previsíveis, mas a constatação da imprevisibilidade de várias delas o levou a conjeturar que o melhor seria fazer a avaliação de uma renda que provavelmente viesse a ser satisfatória, acrescentasse a ela uns vinte por cento, como margem de erro para não

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precisar ficar repetindo os pedidos em virtude de eventualidades fortuitas, e redigisse uma solicitação formal a ser encaminhada à direção da igreja o mais rápido possível, preferencialmente ainda naquela tarde, quando no seu primeiro encontro como Cristo com os chefes supremos da organização. Anotou mentalmente a necessidade de, ao chegar em casa, avaliar seus gastos com precisão, lavrar o pedido acrescido das razões que o justificassem, e tê-lo pronto com antecedência, de modo a ainda poder reconsiderá-lo e corrigi-lo até o final da tarde.

Tendo tomado essa decisão, que de fato o aliviava de preocupação gravíssima que já lhe incomodava intensamente havia meses, quando considerava a eventualidade de não vir a ser o escolhido, passou a tratar mentalmente de questões mais amenas. Lembrou-se de seus passarinhos encantados, quase esquecidos ultimamente, embora prontos para a execução do vídeo já tão claramente planejado e delineado.

Possuía em casa, já havia algum tempo, três gaiolas contendo cinco passarinhos; um casal deles em cada uma das grandes, e mais um, jovem solteiro, em outra gaiola. Tinha acostumado a soltá-los e pegá-los novamente, encantados que eram, e pretendia aproveitar esse dom para filmá-los de maneiras que poderiam ser descritas como muito íntimas, revelando detalhes do comportamento das pequenas aves, desconhecidos até por ornitólogos. Além disso, tinha a capacidade de “dirigi-los” com precisão, definindo seus locais de pouso, os momentos de vôo, e até induzindo-os a cantar e dançar em frente às câmeras, na tentativa de seduzir a fêmea.

Considerou que a tranquilidade financeira lhe proporcionaria a calma perdida necessária para a execução das filmagens, e que o destino dos passarinhos também deveria ser decidido o mais rápido possível. Pretendia filmá-los voando pelas matas do forte do exército situado no canto da praia, onde posteriormente os deixaria viver em liberdade total, tendo o cuidado de alimentá-los e lhes prover abrigo aceitável enquanto estivessem se readaptando à vida livre.

Durante a caminhada pelas areias encontrou um peixe morto, com as vísceras expostas. Ao olhar para o cadáver repugnante não pode deixar de avaliar-lhe as entranhas, atividade que considerou odiosa. Desde muito tenra idade, tinha se preparado para ser o Cristo, e estudado diversas disciplinas que supostamente o levariam a ser o escolhido, como inúmeras artes divinatórias, entre elas a necromancia, que agora lhe repugnava vivamente. Apesar de tal repulsa, uma espécie de deformação profissional guiava seus olhares, impedindo evitar que lesse as informações expressas nas entranhas expostas do bicho. Imediatamente, viu-se obrigado a voltar o rosto para o lado oposto, numa manifestação de desgosto a certos ensinamentos passados, angariados ainda na infância, em idade na qual não podia julgar sobre os valores morais do que lhe fosse apresentado. Preferiu voltar o olhar para os pássaros marinhos que perscrutavam a costa elegantemente em busca de peixes e analisar-lhes o vôo.

Deixou seu olhar acompanhar um atobá que planava lentamente contra o vento, quase parado no ar, quando seus olhos foram puxados por uma cabeça humana entre as ondas, quase abaixo do pássaro. Continuou caminhando com o olhar fixo na pessoa jogada pelas ondas. Avaliava seus movimentos enquanto se aproximava da altura em que a pessoa se encontrava, suspeitando fortemente que estivesse em

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dificuldades. Notou que a maré estava enchendo, o que reduzia francamente o perigo de afogamento, embora as ondas estivessem se erguendo até altura considerável. Adentrou as águas e se aproximou da pessoa, uma moça, que o olhou de modo quase desesperado, permitindo, em seu cansaço, que uma onda explodisse sobre si.

Aproveitando o repuxo das águas que voltavam da areia para o oceano, mergulhou e nadou com possantes braçadas em direção à moça, alcançando-a na arrebentação, no mesmo instante em que uma grande onda os atingia a ambos. Segurou o braço da moça com firmeza, e ao som de um “vamos” imperioso, puxou-a vigorosamente em direção à areia, utilizando o braço livre como remo, e os pés para corrida enérgica, assim que puderam tocar o fundo. O resgate foi simples e imediato. A maré enchendo traria qualquer coisa para a areia, o que reduzia muitíssimo o perigo de afogamento. Mesmo assim, a sucessão de ondas altas fazia com que o banhista temeroso, já embrulhado por seguidas vagas, permanecesse impedido de cruzar de volta a arrebentação. Isso poderia levá-lo à exaustão, fazendo-o beber tão enorme quantidade de água que acabava passando muitíssimo maus pedaços antes de chegar à areia, podendo mesmo sucumbir, coisa não rara naquela praia, como em tantas outras.

Caminhou puxando a moça até carregá-la para onde as águas não chegavam aos joelhos, quando ela pediu que a largasse, sentindo-se segura com os pés no chão, e respirando ar e não água, mas exausta. Estacou ainda sem ter chegado à areia, mostrando sinais óbvios de fadiga, reclinando e erguendo o corpo em movimentos sucessivos, e tentando formular palavras de agradecimento. JC permanecia preocupado com a possibilidade de que uma onda mais forte ainda os pudesse abarcar ali, e manteve os olhos no mar, mas assim que notou os sinais da rápida recuperação tornou os olhos para a moça.

Encontrava-se em completo desalinho, com os cabelos escorrendo sobre o rosto como os de uma bruxa, de um modo tal, que as moças nunca permitem serem vistas por homens. Mais desalinhadas ainda apresentavam-se suas roupas: o pequeno soutien cobria apenas parcialmente um dos seios, enquanto o outro jazia completamente exposto. Eram belíssimos.

JC viu-se enfeitiçado não apenas pelos seios aparentes, mas pelo corpo escultural da moça, e após alguns desses instantes que duraram eternidades, apesar de rapidíssimos, como por mágica, perdeu sua respiração no mesmo instante em que a jovem recuperava a dela, ajeitando cabelos e roupa, revelando um rosto tão belo quanto o corpo. Encantado com a beleza da moça esperou que ela se recuperasse por completo, e acompanhou-a até onde deixara seus pertences, na areia mais alta, bem perto do posto salva-vidas, aparentemente abandonado naquele momento.

Conversaram muito brevemente. Não trocaram mais que nomes. Madeleine parecia se sentir profundamente envergonhada com o acontecido, dificultando estabelecer o contato buscado com avidez por JC, que se despediu encantadíssimo, e intensamente tocado com a visão da moça.

Voltando às proximidades de casa, deu mais um mergulho, ainda sob o encantamento da jovem recém conhecida, não conseguia pensar em outra coisa. Refrescado pela água, voltou para casa.

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* * *

Chegando em casa, JC foi aprontar seu almoço imediatamente. Preparou uma variação de tabule, adicionando muita soja, aveia e linhaça ao trigo, além de queijo; a musculação garantia-lhe um apetite voraz e uma ânsia intensa por proteína, além do desejo por carboidratos, oriundo principalmente da corrida. Preparada a refeição, tomou um banho frio, e vestido apenas de um short de pijama, serviu-se e foi devorar uma enorme quantidade da comida já preparada, acompanhada por um suco de frutas batidas no liquidificador.

Enquanto almoçava, ligou a televisão e procurou o canal que transmitia a paixão. A Rediviva, o canal da igreja, tinha uma programação eminentemente religiosa, entremeada por uma ampla variedade de programas dos mais diversos gêneros, e por um espectro de propagandas tão diversificadas quanto o de qualquer outra emissora comercial.

O canal transmitia ao vivo, todos os anos, e com exclusividade, a representação da paixão do Cristo redivivo, sendo esse o ponto alto de sua programação, seu programa de maior audiência. Para o ano seguinte, havia negociações com outra emissora, mais antiga e de maior prestígio, para um acordo de seção recíproca dos direitos de transmissão da paixão e do carnaval, os dois maiores acontecimentos cobertos pela televisão brasileira. A Rediviva cederia a exclusividade de seus direitos de transmissão do espetáculo religioso, e em troca, iria poder transmitir, juntamente com a outra emissora, o carnaval. De fato tais negociações já haviam sido tentadas outras vezes, sendo do interesse de ambas as redes. Apesar disso, não conseguiam chegar a acordo sobre questões contratuais significativas. A popularidade crescente da paixão, não só no Brasil, mas em todo o mundo, tendia a apressar a efetuação do contrato de transmissão conjunta.

A paixão não estava sendo encenada naquele instante, mas JC sabia que os melhores momentos da véspera passariam no jornal do almoço de todos os canais com grande destaque. Sua própria atuação, ao ressuscitar, no domingo à noite, apareceria em rede nacional no programa de maior audiência da televisão. Conforme esperado, o canal da igreja apresentava um especial com o compacto do espetáculo da véspera. Devido às múltiplas repetições, aos comentários, câmaras lentas e outros artifícios inseridos na cobertura da representação teatral, o “compacto” tinha uma duração quase duas vezes maior que a do evento original, sem contar as propagandas.

Excetuando o café com adoçante ao acordar, fazia apenas duas refeições diárias, a principal no almoço, e um lanche repleto de frutas variadas à noitinha, de modo que tinha que suprir a enorme necessidade de alimento gerada pelos exercícios pesados, em duas grandes porções. Em decorrência disso, a quantidade de salada ingerida no almoço era espantosa.

Satisfeito o apetite, deitou-se e dormiu por quase uma hora, como fazia todos os dias. Acreditava revigorar-se com o sono e estar pronto até mesmo para uma nova seção de musculação. De fato, no início da noite ainda costumava fazer mais exercícios, aeróbicos, ou de alongamento, dependendo do dia da semana, permitindo-se ainda fazer alguma complementação às séries de musculação que executava pela

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manhã. Naquela tarde, no entanto, tinha encontro com a direção da igreja, e excepcionalmente, não executaria a ginástica noturna.

Ao acordar, conforme o planejado, começou a redigir suas convicções acerca da igreja, das ações e do significado do Cristo redivivo, e questões éticas e morais relativas ao tema. Explicou a necessidade de um Cristo ressuscitado e imolado anualmente, em virtude da imensa quantidade de pecados perpetrados a todo o momento. Depois de esboçar as principais idéias defendidas no ensaio, recuperou um texto escrito tempos antes, uma abordagem rápida e pessoal sobre a história do Brasil, com ênfase em sua cidade, o Rio de Janeiro. Tendo relido o texto com satisfação e corrigido uns pontos marginais, encaminhou o texto para a publicação pela editora da igreja. Nos dias que se seguiriam, aproveitaria sua celebridade recém adquirida para divulgar inúmeras idéias defendidas havia muitos anos.

* * *

História do Brasil e da cidade do Rio de Janeiro

Em algum tempo muito antigo, estimado entre cinquenta mil, e quinze mil anos, chegaram ao Brasil os antepassados de nossos índios. Tinha-se como certo que eles teriam saído da Ásia, atravessado o estreito de Bering durante uma glaciação, cruzado a América do Norte e a Central, chegando posteriormente à América do Sul através de longuíssima e demorada jornada. Achados recentes no Piauí sugerem uma ocupação muito mais antiga que a pleiteada na marcha descrita acima, sendo provável também que os antepassados de nossos índios tenham chegado aqui através de sucessivas levas. Fato é que se estabeleceram por toda a América do Sul, povoando todo o nosso país. Da história desses povos pouco se sabe, mas reconhecem-se variadas etnias, correspondentes a variados ramos linguísticos, corroborando a idéia de sucessivas invasões.

No final do século XV, Portugal e Espanha, já supondo a existência de terras por estas bandas, e planejando explorá-las, celebraram o acordo de Tordesilhas, que repartia as terras de cá. Além de certa linha, definida pelo tratado, todas as terras seriam espanholas, antes dela, portuguesas. Não sei o que pensaram ingleses, franceses, holandeses e outros sobre o referido tratado, mas penso que seu significado corresponde a uma aliança: até tal linha eu não me meto, depois dela não se mete você, e ambos nos havemos com todos os outros. Também suspeito que exploradores espanhóis já houvessem rondado a região e garantido a inexistência de quantidades de terra significativas por aqui, deixando para Portugal apenas eventuais ilhotas que viessem a ser descobertas: enganaram-se.

Como é sabido, poucos anos após a grande descoberta de Colombo, Cabral aportou em terras anteriores à linha de Tordesilhas, era o início do massacre.

Havia já algum tempo, europeus vinham se especializando em massacrar, aviltar, espoliar, e, enfim, submeter outros povos a seus propósitos bestiais. Vinham exercitando todas essas atividades internamente havia séculos, embora mergulhados em uma miséria avassaladora. Após uma relativa recuperação econômica, trataram de espraiar sua brutalidade pelas redondezas, invadindo sucessivamente o Oriente

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Médio, a costa da África e o norte da Ásia. Quando os portugueses fundearam nas costas do que hoje chamamos Bahia, já estavam habituados a cometer as chacinas eufemisticamente intituladas “conquistas”.

Os nativos tiveram imensas dificuldades de se opor aos vilões devido a duas circunstâncias fundamentais, ambas decorrentes do fato de viverem em pequenas comunidades: habitando cidades populosas, os europeus estavam sujeitos, havia séculos, a sucessivas pestes que os devastavam. Estas pestes dizimaram as primeiras populações locais a entrar em contato com os alienígenas. Além disso, eram incapazes de juntar e manter grandes exércitos, não possuindo a logística para isso, o que os obrigou ao combate de guerrilha, no que não tiveram um insucesso absoluto, já que, durante séculos, conseguiram impedir que os estrangeiros se fixassem em terras interiores, deixando-os quase que exclusivamente no litoral. Apesar desse modesto sucesso, acabaram por ser dizimados extensamente.

Mas o propósito dos portugueses não era o massacre pelo massacre, o que desejavam era enriquecer, fosse de que modo fosse, não se importando minimamente com as populações que eventualmente encontrassem: só eles agiam em nome de Deus.

As descobertas de novas terras e de estranhas culturas levavam à Europa uma enorme quantidade de modismos, tornava-se chique temperar as comidas com especiarias vindas das índias, ou fumar, como os índios daqui, e em todas as cortes desejava-se com avidez conhecer e usufruir dos novos hábitos. É provável que a predominância de monarquias favorecesse enormemente as futilidades.

Um dos produtos exóticos em moda era o açúcar, derivado da cana, uma cultura tropical que não poderia ser cultivada na Europa, onde alcançava altos preços. Certas dificuldades no transporte de especiarias das índias, especialmente devidas à pirataria britânica, sugeriram a fabricação do produto por aqui.

* * *

O Cristo permaneceu escrevendo sua “História do Brasil” até o final da tarde, quando se admirou com o adiantado da hora. Vestiu suas roupas surradas, e partiu apressadamente para a sede da igreja.

A catedral era mais imponente por dentro que por fora. Entrava-se diretamente em um grande salão, cuja extensão avantajada ficava diminuída pela altura imensa. À primeira vista, dava quase a impressão de um espaço comum, apenas relativamente grande; era quase sempre a percepção da movimentação de pessoas diminutas ao fundo que acentuava a sensação de estranheza.

Além do teto gigantesco, as portas imensas e o vasto espaço vazio na entrada, sugeriam aos olhos o apequenamento de todas as coisas, de modo que as pessoas circulando ao fundo, em segundo plano, ficavam reduzidas ao tamanho de insetos. Uma sensação peculiar se apossava dos que ali entravam pela primeira vez, acentuada na tendência de negar humanidade às pessoinhas contempladas ao longe, e mais assemelhadas a bichinhos. Tal efeito decorria principalmente dos imensos arcos dispostos nas paredes. Assemelhando-se a portas, iludiam os olhos, insinuando-lhes

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dimensões insignificantes aos que se aproximavam, sugestão corroborada ainda pela altura imensa do teto.

Era impossível se perder em espaço tão aberto, mas a amplidão imensa acarretava um sentimento de desamparo. Nenhuma mobília ornamentava a entrada do átrio, cujo chão era decorado de maneira a sugerir caminhos. JC escolheu o caminho do meio, que parecia levar a lugar nenhum, embora constituísse a trilha principal, e após alguns passos, ergueu os olhos para mirar o imenso cristal no topo da sala, filtrando a luz do sol e dissipando-a por todo o ambiente.

Caminhando sempre em frente, atingiu o centro do salão, marcado por uma enorme espiral por onde umas poucas pessoas caminhavam com ar contrito. Contornou-a e continuou na direção oposta à de onde vinha. Ainda bem próximo ao centro, estacou e se voltou para a entrada às suas costas, surpreendendo-se com a amplidão do ambiente e com as distorções ópticas experimentadas ali. Retomou o caminho que vinha fazendo, até que as pessoas que se encontravam próximas à parede oposta começaram a ganhar contornos e dimensões inequivocamente humanas. Pode então avaliar as dimensões dos arcos gigantescos, assemelhados a portas, e que pareciam reduzir as pessoas nas proximidades a uma estatura minúscula, menor ainda que a de uma criança, fazendo-as parecer pequeninos bonecos, animados.

Também os quadros, ou afrescos, eram imensos, retratando, usualmente em cores gritantes, algumas das cenas mais alegóricas da bíblia. Uma imensa torre, certamente Babel, chamava a atenção pela semelhança com o exterior da catedral, ao seu lado, Jonas singrava os mares capitaneando uma baleia; batalhas sangrentas se alternavam com cenas do paraíso, enquanto o criador soprava a vida a um boneco de barro em suas mãos. Os terrores do apocalipse se desenrolavam ao lado dos magníficos jardins do Éden, numa barafunda de imagens, histórias, sensações e cores, mas quase sempre expostas numa turbulência altamente energética na qual, embora o colorido berrante desse um tom mais carnavalesco que artístico, acabava por constituir uma decoração surpreendentemente equilibrada, apesar dos excessos, tanto da temática, quanto das tintas, quando observadas nas proximidades. Observado de uma distância adequada, aquele mundo descomunal ganhava até certa sobriedade, e um sentimento inequívoco de aproximação com o sobrenatural.

No altar central ocorria uma cerimônia de casamento bastante concorrida. Os palcos laterais se encontravam praticamente vazios exceto dois deles, onde alguma cerimônia parecia ter acontecido, ou estar prestes a ocorrer. Os palcos se deslocavam lenta e silenciosamente para se apresentarem na melhor posição na hora certa.

Passou rente à platéia central, de onde pode apreciar tanto a cerimônia, quanto os convidados. Prosseguiu caminhando até chegar ao ponto diametralmente oposto ao que havia entrado, onde pegaria o elevador central. Ao chegar nas imediações da imensa parede circular, conseguiu perceber os pequenos pontos luminosos que constituíam as telas artísticas acima. Não poderia tê-lo notado sem o conhecimento prévio do fato. Sabia também, sem o conseguir notar, que as imagens se moviam sutilmente, de uma maneira tão leve que nunca podia ser fixada pelo observador, e que só era notada subliminarmente, criando um efeito mágico, uma sensação de

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movimento em uma tela de pintura, que de fato acontecia, e dava às figuras um aspecto hiper-realista, mais real, de certo modo, que a própria realidade representada.

À primeira vista, todo o prédio parecia constituir exclusivamente o único salão gigantesco, mas as paredes do imenso ambiente formavam uma enorme espiral por onde se podia subir até o ápice da estrutura, havendo inclusive, no alto, uma abertura para um belíssimo terraço. O corredor espiralado quilométrico que margeava toda a estrutura, até o topo, ligava um vasto conjunto de salas, e era ligado por várias escadas, de modo que, embora fosse possível atingir o cimo do prédio percorrendo as sucessivas voltas do longo corredor, podia-se abreviar o caminho tomando alguma das escadas, havendo também elevadores capazes de facilitar ainda mais o percurso.

Um elevador imenso aguardava passageiros com as portas abertas. Era ainda mais alto que espaçoso, gerando novamente a sensação de apequenamento causada pelas dimensões do átrio. JC parecia uma criança adentrando o elevador de teto imenso que o levou ao terceiro andar. Sabia que os andares se superpunham uns aos outros sem interrupções; percorriam-se todos eles pelo imenso corredor lateral, cuja inclinação imperceptível era suficiente para voltar acima da própria cabeça após um giro completo pelo prédio descomunal, de modo que a numeração dos andares era, de certa forma, arbitrária. Mesmo assim, desceu no andar indicado pelo número da sala cujo endereço procurava, encontrando-a rapidamente. Chegava na hora exata em que havia marcado. Entrou e foi recebido por uma belíssima secretária que prontamente comunicou sua chegada a seu superior.

O chefe de cerimoniais veio recebê-lo imediatamente, apresentando-se a si mesmo, e cumprimentando-o com o ar amistoso que teria um velho conhecido, deixando-o extremamente à vontade. Também o impressionou a ponto de o deixar admirando a capacidade que algumas pessoas têm de transformar, mesmo as situações mais incomuns, em fatos naturais, dissipando toda a carga inibidora que os contatos pessoais tendem a exercer sobre os mais tímidos e introvertidos. Congratulou o Cristo pela recente escolha, consultou o relógio, e o guiou pelo longo corredor, onde o apresentou a vários líderes da igreja. Em seguida chegaram a um elevador quase camuflado, e de dimensões usuais, contrastantes com quase todas as estruturas em torno. Subiram até um andar bem elevado, saindo em um corredor deserto, cuja curvatura era muito mais acentuada que a do anterior, fazendo relembrar a forma cônica do prédio vista de fora. Mais luxuoso que o anterior, era ladeado por paredes sutilmente luminosas e nenhuma outra luz capaz de ferir os olhos; uma das paredes era ornamentada por belas esculturas e pinturas, a outra ostentava quadros com as figuras mais proeminentes da igreja. Adentraram uma sala onde uma secretária lindíssima comunicou que o concílio os aguardava; levantando-se, abriu a porta para a qual o mestre de cerimônias já se dirigia.

Os sete membros do Santo Concílio Canônico os aguardavam sentados a uma grande mesa elevada à beira da ampla janela. Todos eles se levantaram para cumprimentar o Cristo. A elevação da mesa parecia agigantar aquelas figuras, impressão que não se sustentava após um surpreendente aperto de mão, suficiente para explicitar a reduzida estatura de todos os indivíduos do grupo. Excetuando um deles, de altura média, todos os outros podiam ser considerados baixos, sendo alguns

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deles, de fato, muito baixinhos, o que contrastava com a altura avantajada do Cristo, bastante acima da média.

Um dos mais baixinhos tomou a dianteira aproximando-se do grandalhão com os braços abertos, indicando a intenção de um abraço, e parecendo à distância uma criancinha a implorar o colo do pai. Ostentava a expressão benevolente de quem recebe um familiar retornando ao seio da família. Apresentou-se como professor Francisco, esperando sorridente pelo reconhecimento que não tardou, tendo chegado com um espanto indisfarçável, decorrente mais da estatura do homem, que da surpresa por encontrá-lo, acrescida ainda de uma carga emocional considerável, revivida após tanto tempo.

Não tinha sido preciso ao professor revelar mais que o nome e o sorriso, para evocar lembranças esquecidas havia muito. Tinha dirigido a escola onde fizera seus primeiros estudos, ministrando-lhe também as primeiras noções de catecismo; entre tantas professoras, tinha sido o seu primeiro professor, e por muito tempo, o único. Era considerado um diretor sisudo e zangado, a própria identificação da autoridade, razão pela qual assumira no imaginário da criança que era o Cristo então, a estatura de um gigante extremamente imponente.

As lembranças de tempos tão remotos, aliadas às emoções infantis descobertas e expostas tão abruptamente, tiveram certo efeito puerilizador sobre o homenzarrão surpreso, que não se furtou medir-se com o nanico, atitude que obviamente não deixou de ser notada, evocando tanto o espichamento ainda maior do corpo do baixinho, quanto a troca do sorriso afável por uma grave expressão de rosto, que o relembrou ainda mais vivamente o temível diretor de épocas passadas. A nova impressão foi também percebida imediatamente, acarretando risos desanuviadores de quaisquer embaraços por ambas as partes, selados por um abraço afetuoso que revelava antigos sentimentos de afeição, sobrepujados agora pela admiração ao discípulo

Ao término do longo abraço, o mais baixinho do grupo se destacou dos demais, perguntando ao Cristo se reconheceria o professor Vítor. Dessa vez o Cristo escondeu sua surpresa imensa com a estatura do mestre que então se apresentava, evitando medir-se com o homem cuja altura mal sobrepujava a de seu estômago. Tinha sido seu professor ali pela época de sua puberdade, tendo sempre acreditado que sua estatura advinha de sua autoridade, bastante marcada, diga-se de passagem. Naquele momento, se admirava muito mais de sua altura minúscula, que do fato surpreendente de reconhecê-lo entre os dignitários da igreja.

Havia ainda entre os sete, o padre que o acompanhara desde a primeira comunhão. Nunca tinha tido uma relação mais pessoal com o homem, visto como uma espécie de ser celestial. Para a criança que agora se transformara no Cristo, os que usavam batinas ou outros hábitos tinham, com toda a certeza, uma origem divina; haviam de morar, todos eles, entre nuvens, ou em outras paragens celestiais, coabitando com anjos e santos, de modo que o padre Antônio, não tinha tido para ele uma identidade pessoal propriamente dita, sendo apenas uma espécie de emissário divino a fazer a ponte entra céus e terra. Assim sendo, lembrava-se de seu nome, e, surpreendentemente, de sua voz grave, o que nitidamente o envaideceu ao ouvir a

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confissão, mas lhe disse não se recordar de seu rosto, como era esperado pelo padre, que mais se admirou com as lembranças do Cristo que com a falta delas.

Com um ar de consternação, o padre iniciou conversa bastante pessoal.– Lembro muito de sua mãe, que Deus a tenha. A mãe do Cristo havia falecido uns anos antes, ainda nova, vítima de uma das

doenças da época.– Estou percebendo nesse momento, o quanto me surpreende a clareza com que

a primeira recordação que tenho de sua mãe ainda me vem à mente, o que anotarei hoje mesmo para fortalecer seu processo de canonização; sabe que isso está em andamento, não? O Cristo assentiu com um gesto da cabeça, permitindo que o padre prosseguisse: – Estas coisas são demoradas, mas acredito que a justiça será feita e que ela será logo santificada, corrigindo uma lacuna deixada desde o seu falecimento.

– Como me vem clara a lembrança de sua mãe desolada com o bebê no colo. Você estava em maus lençóis, só pele e osso, com uma cor meio esverdeada, a pele sem plasticidade. Quando o vi achei que já tivesse batido as botas e que sua mãe o queria ressuscitar, mero desespero. Ela se lamentou, estava muito triste e abatida, e me contou uma história de doença que eu nem fiz questão de ouvir, tamanha a certeza de que, na eventualidade de ainda estar vivo, você não passaria daquele dia. Não se movia e jazia derramado nos braços da mãe, feiínho e raquítico. Estava desenganado pelos médicos, tinha feito todos os tratamentos sem responder a nenhum, só lhe restava aguardar a morte. Mas para sua mãe, restou ainda uma última tentativa: vir à igreja e fazer uma promessa.

– Eu havia me convertido recentemente ao Cristo Redivido – prosseguiu o padre –, originalmente tive formação católica, e cheguei a exercer o sacerdócio na igreja romana. Éramos uma seita pequena, então, apenas uns poucos seguidores, e todos aqui na cidade. Sempre me espanta perceber o quanto crescemos nesses anos.

– Como último recurso, sua mãe tinha trazido o bebê em busca de um milagre. Aspergi-lhes um pouco de água, benzi ambos, e em seguida os encaminhei à sala do cristal, esse mesmo que agora energiza a nossa igreja lá do alto, nosso primeiro tesouro. A mulher então orou e meditou sob os raios miraculosos da pedra sagrada. Quando a encontrei, horas depois, ao me encaminhar para fechar o templo, sua mãe já ostentava um semblante muito mais ameno. Relatou ter percebido uma luz morna, sentido um toque sobre a cabeça, e em seguida um enorme alívio, a retirada de um imenso peso sobre todo o seu ser, invadido imediatamente por uma leveza comovente, sentindo também que novo sopro de vida revivificava seu bebê. Deu-lhe de mamar imersa em otimismo e alegria.

– Ouvi, consternado, a história que sua mãe me contava, acreditando ser um dos tantos sinais ilusórios que nos chegam em momentos de dor, apenas para evitar que percamos nossas últimas forças. Mas então ela me mostrou o bebê, que horas antes me parecera morto. Tinha adquirido uma coloração muito mais viva sob o cristal, e sua pele já não mostrava o aspecto inorgânico que me impressionara anteriormente. Não é necessária a formação médica, nem experiência para se notar coisa tão evidente. Tinha restado apenas uma mísera centelha de vida na criança dormindo no colo da mãe. Enquanto contemplava o bebê revigorado, lembro agora,

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nitidamente, que por uns instantes ele abriu os olhos e me fitou com esses mesmos olhos impressionantemente azuis que agora revejo.

– Sua mãe só voltou uma semana depois, e não a reconheci imediatamente, estava radiante. Comunicou que sua recuperação tinha sido impressionante, demonstrando sinais de cura já na manhã seguinte, estando plenamente recuperado uma semana depois, tendo ganhado peso e toda a energia perdida. Disse saber que tal graça tinha sido alcançada por milagre, e que teria que retribuir tão imensa benção da maneira que combinara em suas preces. Também disse que gostaria de se converter à igreja, pedindo instruções para isso. Desde então, e até o fim de seus dias, permaneceu devota fiel da igreja, cumpridora de todos os seus deveres e obrigações, sendo esta a razão por que você foi criado no seio da igreja.

– De minha parte vejo mais um milagre se incorporando nesta história, ao rememorar tão nitidamente todos esses fatos. Posso atestar agora, asseverou em tom enfático, que o que acabo de relatar são visões, tão vívidas quanto as do futuro, reveladas pelos profetas As visões que acabam de me iluminar, embora relativas ao passado, a mim parecem ter caráter tão excelso quanto profecias, podendo com elas atestar a modificação miraculosa ocorrida na criança em tão breve tempo.

O padre estava visivelmente emocionado, e parecia mesmo descrever visões; fechava os olhos e parecia perscrutar uma tela de cinema em sua mente. Em seguida, relembrou uma parte da história da igreja, de seus primórdios, quando tudo era difícil em meio a uma pobreza abrangente e aparentemente insuperável.

– Naquela época, todos os nossos fiéis, que eram muito poucos, eram também paupérrimos. Sustentavam-nos com as contribuições precárias que espremiam das migalhas que recebiam. Sua mãe foi a primeira pessoa de posses a compartilhar os bancos de nossa igreja. Foi também, por muito tempo, quem a manteve, não apenas com as contribuições mensais a que qualquer fiel consciente se compromete, mas comparecendo nos momentos mais delicados em que as vicissitudes nos impõem os maiores desafios. Era nesses momentos que sua mãe revelava sua imensa generosidade, tendo sido, mais de uma vez, uma das principais responsáveis por evitar a ruína da igreja, antes de sua consolidação.

O colóquio se estendeu demasiadamente, obrigando os outros membros a se apresentarem rapidamente, para em seguida retornarem, todos, à grande mesa redonda que ocupavam antes da chegada do Cristo. Conversaram sobre a última crucificação, elogiaram a presença do novo Cristo, e lhe ofereceram um ordenado, – foi essa a expressão que usaram –, muito superior ao que havia planejado pedir, fazendo-o considerar a hipótese de sugerir uma redução da quantia, eximindo-se do excesso de que não precisaria. Depois de titubear, mais em virtude de certa timidez, acabou considerando que a redundância não seria prejudicial, podendo talvez até vir a ser necessária, após o aumento de suas necessidades em decorrência da ampliação de suas possibilidades, o que por sua vez o desgostou. Mesmo assim calou-se e aceitou a generosa quantia que lhe fora oferecida.

Posteriormente a discussões sobre as temáticas momentaneamente mais polêmicas na igreja, necessárias para traçar o perfil do Cristo, e de outras tantas recordações trazidas à baila pelos já conhecidos, a reunião se encerrou, tendo acarretado sentimentos amistosos, e as melhores impressões em todos os presentes.

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O concílio concluía haver encontrado um Cristo mais adequado que o que haviam sonhado. Também o Cristo se despediu satisfeitíssimo e retornou a sua casa entre inúmeros planos e sonhos.

* * *

História do Brasil e da cidade do Rio de Janeiro – Comentários do Cristo

Escravidão

Um outro modismo vigente na época, este verdadeiramente execrável, consistia na escravidão de seres humanos. A coisa funcionava basicamente assim: um bando de facínoras adentrava as regiões habitadas por homens negros, com o intuito de sequestrar alguns deles. Encontrando-os, capturavam os que lhes aprouvessem, não se importando em dizimar qualquer um que tentasse se opor a tão brutal atividade. Não tenho ideia dos preços atingidos por tal mercadoria, mas apostaria que as crianças, muito mais maleáveis e dóceis que os adultos, atingissem preço consideravelmente mais alto. Também não tenho dúvidas de que as mulheres belas também tivessem seu preço fartamente aumentado.

Depois de sequestradas, essas pessoas eram agrilhoadas e aglutinadas em currais humanos, à espera de um navio que os trouxesse para o novo mundo – a maioria vinha para cá –, em seguida eram jogadas em porões imundos, onde permaneciam durante a penosa viagem da África até aqui. Podemos imaginar uma enorme quantidade de pessoas moralmente abatidas pela condição de sequestradas, machucadas pelos grilhões, e pela luta durante a captura, tratadas como um bando de animais, comendo restos de comida, sem condições de higiene, jogadas em um ambiente escuro, fétido e ameaçador, sem nenhuma noção de seu destino.

Em tais condições, um número considerável de pessoas morria logo no início da viagem nauseante, e quando seus corpos fétidos eram retirados do ambiente, liberavam espaço para os remanescentes, de modo que alguns deles acabavam chegando ao destino. Mas em que condições. Em meio às fezes e vômitos de mortos e vivos. Desanimados, doentes.

Ao chegar ao novo mundo, tendo sido tratados como animais por toda a mórbida viagem, eram então expostos aos compradores, a população brasileira.

Dessa maneira, os animais vilipendiavam suas vítimas, fazendo-os passar por bestas a serem vendidas como qualquer outro gado.

Miscigenação

Talvez tais descrições apavorassem a população européia, talvez houvesse outras ainda piores, fato é que apenas homens se dispunham a sair da Europa para desbravar o novo mundo, raríssimas mulheres se prestavam a tal. Desse modo, uma massa de homens europeus, vivia em meio a índios e africanos. O resultado não poderia ter sido outro que não a miscigenação entre os povos; essa é a origem da população brasileira.

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Capital

Salvador, cidade próxima de onde haviam desembarcado os descobridores da terra, era a capital da colônia, o que significava que parasitava as capitais das províncias, por sua vez parasitas dos municípios, que parasitavam os cidadãos, que parasitavam os escravos. Salvador, por seu turno, era parasitada por Portugal.

Tal sistema de parasitismo vigia na Eurásia havia tempos, e também em partes da África, e era altamente contagioso. Posto em contato com uma população livre, rapidamente se alastrava por ela, o que sucedeu também por aqui.

Como já foi expresso anteriormente, os índios não possuíam sistema de parasitismo análogo, e em consequência, não conseguiam se aglutinar em grandes grupos, de modo que suas pequenas aglomerações, meras famílias, eram incapazes de fazer frente às forças da espoliação européia.

Salvador, a capital designada pela metrópole, encarregava-se assim de coordenar e sorver toda a arrecadação financeira, fruto desses variados tipos de parasitismo.

* * *

No domingo, o Cristo acordou novamente cedíssimo, extremamente bem disposto para cumprir sua rotina de exercícios e outras, conforme vinha planejando. Chegou bem cedo à academia de ginástica, assim que ela abria as portas, e executou com vigor e rapidez sua longa série de exercícios, acrescidas de peso, como na véspera, completando assim um aumento de carga em todo o seu treinamento de força, exceto naqueles em que já se encontrava no máximo. Alternava, em dias subsequentes, duas séries distintas com nove exercícios cada, cobrindo todos os grupos musculares. Sentia-se exuberantemente forte, e se exercitava com firmeza e disposição. Ao final, tendo feito o breve alongamento usual, terminou sua prática física alguns minutos antes do planejado, o que o satisfez. Mesmo assim, se encaminhou com rapidez para casa, com o intuito de trocar de roupa e chegar o mais cedo possível na praia.

Assim foi feito, e chegando à areia iniciou sua caminhada diária. Logo no início uma bolacha d’água foi jogada a seus pés pelas ondas; lembrou ter havido uma época, em sua infância, em que elas eram extremamente comuns, mas raríssimas agora. Mesmo assim, não chegou a parar para olhá-la, prosseguiu refletindo sobre as modificações ocorridas no mundo. Em nenhuma época tinha sido tão clara a impermanência de todas as coisas; em outros tempos teria sido difícil se convencer de tal fenômeno.

Chegou rapidamente ao ponto da praia onde planejava iniciar a corrida. Dali, foi até o final da praia e voltou correndo ao mesmo local, chegando bastante esbaforido devido ao forte embalo final

Continuou a caminhada de volta em ritmo lento. A corrida tinha o efeito de levantar ainda mais o seu astral, acarretando uma sensação de exuberância, um entusiasmo ainda maior que o anterior, que surpreendia por caber em um único corpo,

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enquanto a caminhada proporcionava as condições ideais para planejar sua nova vida, seus últimos dias.

Considerou estar com uma rotina básica mais que satisfatória, bastante desejável, e que deveria sofrer apenas pequenos ajustes, estimulados pela melhoria de suas condições financeiras conseguidas nas vésperas. Sua alegria desmedida consentia certo acréscimo nos treinos, sabia que tal estado mental permitiria a consecução de uma intensidade de exercícios que seus músculos não aguentariam em circunstâncias usuais. Notava que o excesso de peso utilizado durante os exercícios na véspera, não tinha acarretado nenhuma dor muscular, nenhum incômodo físico e que, ao contrário, sentia como se todo o seu corpo tivesse sido lubrificado.

Planejou manter as marcas conseguidas nos dois últimos dias na academia, e aumentar a intensidade dos exercícios aeróbicos.

Tinha conseguido chegar ao dia da ressuscitação extremamente magro, conforme planejara, no limite mínimo de gordura aceitável, propiciando uma verossimilhança à condição: parece bastante plausível que, após a morte, deva-se retornar magro, demonstrando certo abatimento. O plano consistia ainda em, após ressuscitar como Cristo, esculpir o corpo com o uso dos exercícios e de anabolizantes. Sabia que tais substâncias, além de propiciar diretamente um acréscimo de massa muscular, permitiriam o aumento na intensidade dos exercícios, acrescentando assim ainda mais músculos ao seu corpo.

Esperava que essa combinação modelasse seu talhe quase à perfeição, tomando apenas o cuidado de manter-se extremamente magro e seco, evitando o encorpamento excessivo que acarreta também a ocultação do desenho da musculatura. Pretendia chegar à apresentação derradeira, em um ano, no máximo de exuberância que seu corpo permitisse. Também considerou que, tendo planejado tomar anabolizantes, conviria imensamente fazer uma avaliação médica prévia, além dos exames necessários para evitar os riscos inerentes à medicação.

Tendo concluído o planejamento relativo ao uso das substâncias anabolizantes, e sonhado com os resultados obtidos, deu mentalmente por encerrado o assunto, tratando imediatamente de buscar algum outro. Seus olhos percorriam a praia alegremente, fitava as ondas e a luminosidade intensa da manhã. Veio-lhe à mente a lembrança da Mama.

Carol era sua grande amiga. Tendo sido eleita Mama recentemente, ou “Papa mulher” da igreja católica, JC tinha perdido as esperanças reais de encontrá-la pessoalmente. Morando no Vaticano, não havia nem como sonhar em um encontro. Agora, todavia, com o ordenado prometido pela igreja, poderia ir até lá, mais uma alegria a se somar a outras tantas. Os dias que lhe restavam, fruídos com enorme consciência, prometiam inúmeros momentos de felicidade. Sabia não dever revelar a ninguém sua condição de Cristo até a ressuscitação, e só por essa razão não corria para lhe telefonar contando, mas assim que obtivesse as condições financeiras iria encontrá-la.

JC continuava sua longa caminhada por toda a praia, retornando à altura de sua rua. Como de costume, mergulhou e nadou alguns metros, nesse dia com mais vigor que usualmente, mas saiu logo da água, apreensivo que estava com o espetáculo que a esta altura já se desenrolava. Dirigiu-se para casa, e foi direto para o banho.

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Em seguida, preparou um almoço rápido, embora ainda fosse muito cedo. Comeu apenas uma salada acompanhada de um suco de frutas, pretendia se apresentar bem magro. Depois dormiu somente uns minutos, e despertou com alegria e ansiedade. Vestiu-se, e foi direto para o local do espetáculo, apesar de ainda ser cedo.

Foi recebido pelo assessor do diretor de cena, que o conhecia bem e confiava em sua atuação. Ambos sabiam estar bem preparado para o espetáculo, conhecendo de cor todas as passagens, já ensaiadas durante tantos anos, mesmo assim se dirigiram ao palco onde as marcações estavam preparadas e repassaram as cenas uma vez mais. Depois se encaminhou ao maquiador. Precisava ser uma continuação do Cristo anterior, tendo estudado e repetido seus gestos e trejeitos à exaustão. Usaria os mesmos apliques no cabelo, a mesma maquiagem, o mesmo tom de voz; imitaria seu porte e maneiras, convenceria a multidão de ser o Cristo redivivo.

A transformação demorou muito mais que o esperado, mas atingiu um resultado inacreditável. Durante a preparação, ator e maquiador assistiam à representação derradeira do Cristo, reviam as cenas sob múltiplos ângulos, ouviam suas palavras. Ao término, interpretou seu papel com precisão: JC era o Cristo redivivo! Maquiadores, cabeleireiros e demais profissionais ao redor, embora acostumados com representações magistrais, admiraram-se com a semelhança completa, de rosto voz e gestos, e mesmo cônscios da farsa ali ensaiada, surpreenderam-se com tão enorme similaridade. Uma breve representação improvisada pelo Cristo resultou em aplausos entusiásticos.

Antes da apresentação fizeram ainda um último ensaio com os outros atores, depois restou apenas a tensão da espera.

* * *

Chegava a hora: Maria, Madalena e Salomé dirigiram-se à sepultura do Cristo carregando perfumes.

Madalena: Quem vai tirar a pedra?Em resposta houve um tremor intenso no palco. O efeito de terremoto era dos

mais delicados, constituído basicamente por duas ações: primeiro deixavam-se cair dois monolitos imensos do alto do morro. Havia grande risco nessa operação, pois embora o alvo para a queda dos rochedos estivesse previamente isolado e preparado para amortecer a queda, impedindo que alguma delas rolasse ou espargisse pedregulhos, ou mesmo muita poeira ao redor, havia sempre a possibilidade de as rochas se partirem devido ao choque, alvejando a multidão com estilhaços letais. A onda de choque causada pela avalanche podia ser sentida pelos pés dos circunstantes, provocando a sensação de terremoto, o que podia até mesmo disseminar o pânico pela multidão; era necessária uma instrução prévia para que o pessoal de apoio contivesse a aglomeração, evitando uma correria desenfreada.

A outra ação consistia em um chacoalhamento do palco onde as três mulheres se situavam, ocorrida logo em seguida ao estrondo causado pelo lançamento das rochas, o que chamava a atenção da platéia para o movimento, contribuindo para

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acentuar a sensação de desequilíbrio, tendendo a acentuar o princípio de pânico induzido pelo estrondo.

As mulheres se equilibraram segurando as jarras de perfumes. A iluminação do palco se estendeu até a porta da gruta:

Madalena: Oh, a pedra foi retirada!As mulheres se aproximaram da entrada da gruta onde jaziam uns panos de

linho, seu interior se iluminou revelando um jovem vestido de branco ali sentado. As mulheres se assustaram, mas a voz dulcíssima e tranquilizadora do rapaz ecoou pelos auto-falantes entremeados pela multidão:

Jovem: não fiquem assustadas, estão procurando Jesus de Nazaré que foi crucificado? Ele ressuscitou, não está aqui! Vão contar aos outros.

As mulheres correram assustadas, mas alegres para dar a notícia aos discípulos. Um dos corredores demarcados pelas cordas se encontrava parcialmente invadido, dificultando o percurso das moças. Auxiliadas pela segurança do evento, elas alcançaram o palco onde os onze seguidores estavam reunidos, e deram a notícia a eles, que não acreditaram no que ouviram, permanecendo entristecidos.

As cenas se desenvolveram, com uma conversa lúgubre entre eles. A iluminação intensa ressaltava os atores no palco elevado, contrastando fortemente o cenário com a multidão circunstante, atribuindo-lhes uma aura mística, reforçada pelo gestual teatral dos apóstolos e pelo som encorpado das palavras que reverberavam para o público. Luzes e sons estavam perfeitos, ambos artificialmente intensos, drasticamente teatrais, adicionando uma vigorosa dramaticidade à representação, um hiper-realismo ao mesmo tempo radiante e sobrenatural.

Repentinamente o Cristo surgiu à frente dos discípulos. A multidão manifesta um “oh” sonoro e prolongado:

Cristo: Alegrem-se! (Os apóstolos ajoelham-se). A paz esteja com vocês. Ficaram espantados, amedrontados. Por que vocês estão perturbados, e por que o coração de vocês está cheio de dúvidas? Vejam minhas mãos e pés, sou eu mesmo. Toquem-me e vejam: um espírito não tem carne e ossos, e como podem ver eu os tenho (enquanto mostrava-se aos discípulos atônitos). Vocês têm alguma coisa para comer? (Ofereceram-lhe peixe e ele comeu).

A voz do Cristo retumbava plena e cheia por entre a multidão. Os efeitos de encorpamento da voz, obtidos através de múltiplas reverberações sintetizadas pela aparelhagem sonora, já acrescidos parcialmente às vozes de Madeleine e dos discípulos, eram agora superpostos às palavras do Cristo em toda a sua intensidade. Também a iluminação sobre ele atribuía-lhe uma aura sobrenatural

Cristo: É preciso que se cumpra tudo o que está escrito a meu respeito na lei de Moisés, dos profetas, e nos salmos. Assim está escrito: o Messias sofrerá e ressuscitará dos mortos no terceiro dia, e no seu nome serão anunciados o perdão e a conversão, e o perdão dos pecados a todas as nações, e vocês são testemunhas disso. Vão pelo mundo e anunciem a boa notícia para toda a humanidade.

Cristo: Toda a autoridade foi dada a mim no céu e sobre a terra. Portanto, vão e façam com que todos os povos se tornem meus discípulos, batizando-os em nome do Pai, e do Filho e do Espírito Santo, e ensinando-os a observar tudo o que ensinei. Eis

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que estarei com vocês todos os dias até o fim do mundo. Assim como o Pai me enviou, eu envio vocês. (Soprando sobre eles), recebam o Espírito Santo.

Cristo: (braços abertos, olhando para o alto em atitude devota) Pai! (A pronúncia sonora, com o “p” explosivo característico do Cristo Redivivo ecoou pelo espaço ao redor, era a senha para o início da subida)

Cristo: Subo para junto do meu pai que é pai de vocês, do meu Deus que é o Deus de vocês.

Depois de falar com os discípulos, o Cristo elevou-se ao céu com expressão e pose etéreas, e os cabelos e roupas ondulando ao vento. A subida era o ponto alto da representação, roubando uma sonora interjeição da multidão boquiaberta que se ajoelhava pasma diante da cena. A sonorização do espetáculo era então complementada pelos rumores e farfalhos da platéia que se ajoelhava extasiada a contemplar o Cristo subindo ao céu, erguido por uma corda quase invisível, iluminado por uma luz que abandonava o palco e que o focava exclusivamente, reduzindo-se conforme a altura, intensificando a impressão de distância causada pela subida, até desaparecer na escuridão das alturas. A multidão imensa era testemunha: o Cristo tinha subido ao céu!

* * *

A rede de televisão da igreja era responsável pela transmissão direta do evento para todo o país, e para alguns outros, era também responsável pela execução e distribuição do vídeo “Cristo Redivivo” editado todos os anos e vendido no mundo inteiro, cujas vendas já ameaçavam superar as do registro do carnaval. Um entrevistador da rede já o aguardava na chegada ao prédio dos camarins, descendo pelo terraço onde dava a primeira entrevista como Cristo, ao vivo, em rede nacional, e sob a ventania estrepitosa de um helicóptero. Com o semblante radiante e a fisionomia de um vencedor, tentava em vão recompor a figura do Cristo construída no palco, sob o sopro das hélices e a luz chapada das câmeras. Respondeu às poucas perguntas vazias feitas pelo apresentador de TV, que teve o bom senso de não molestá-lo demoradamente, permitindo-lhe tempo para se recompor antes da entrevista coletiva marcada para meia hora mais tarde.

O Cristo foi levado aos camarins onde reencontrou os outros atores, e retirou a maquiagem feita com o propósito principal de assemelhá-lo ao crucificado. Agora era de fato o Cristo, não meramente eleito, mas já consagrado. Toda a imprensa o esperava. Era o centro absoluto das atenções, todos os outros, meros coadjuvantes. Durante a apresentação, tinha se preocupado imensamente com a continuidade, em se assemelhar ao Cristo crucificado às vésperas, o que lhe parecia agora não importar à maioria, mesmo assim, era esse o principal enfoque dos elogios dos outros atores, embora não fosse o dos meios de comunicação. Estes enalteciam a comovente subida ao céu, o apogeu da representação, além de sua voz, dulcíssima, mas profunda e marcante. Também elogiavam o porte do Cristo, que teria retornado mais magro de entre os mortos e, no entanto, mais forte e imponente que antes. Insistiam que o Cristo teria roubado inúmeros suspiros das jovens, tornando-se desde já o Cristo mais atraente. Mais tarde, cauteloso e sábio que era, tentou encontrar as críticas à sua

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pessoa; temia herdar as de seu antecessor, devido à necessidade de representá-lo, mas tinha cuidado de abrandar as facetas usualmente criticadas do outro. Notou com satisfação que as críticas recentes que encontrou eram dirigidas fundamentalmente ao espetáculo como um todo, ou à própria igreja, poucas delas tinham como alvo sua pessoa, ou mesmo a representação, e essas tinham como foco sua sensualidade, o que o surpreendeu. Suspeitou e temeu ser lembrado como o Cristo sensual, embora o rótulo em certa medida também o envaidecesse.

A entrevista coletiva foi um grande sucesso. Ao contrário de seus antecessores, quase todos figuras decorativas extremamente ignorantes, o novo Cristo era intelectualmente muitíssimo preparado, respondendo as perguntas com correção e sabedoria, demonstrando não só cultura, mas ponderação, e até um senso de humor sumamente perspicaz, notado apenas por uma pequena minoria. Ao ser inquirido pelos periódicos e televisões estrangeiras, tratou de responder na própria língua do entrevistador, demonstrando um domínio muito natural sobre as principais línguas europeias, fato que as televisões locais enfatizaram repetindo até as náuseas suas respostas em italiano, francês e inglês, incompreensíveis para a imensa maioria dos assistentes locais, e supostamente atestadoras de sua enorme cultura, como se o domínio de línguas estrangeiras constituísse a mais profunda manifestação de conhecimentos que um homem pudesse exibir.

Embora arriscasse ser considerado pedante ao se pronunciar em línguas estrangeiras, o Cristo caiu nas graças das emissoras de televisão, e, consequentemente, do público. Também teria preferido, sinceramente, ser lembrado como o Cristo sábio, ou até mesmo o pedante, mas após a coletiva as televisões já o definiam como o Cristo sensual.

Naquela noite, dormiu profundamente, imerso em grande satisfação. Acordou ainda de madrugada, mas já revigorado, enérgico. Tinha a sensação de estar se fortalecendo a cada dia. Chegou bem cedo na academia, no mesmo instante em que ela abria suas portas. Foi cumprimentado efusivamente pelos funcionários, instrutores, e pelos poucos usuários da academia que àquela hora já se encontravam no local. Durante as pausas entre os exercícios, outros colegas de ginástica o abordaram com entusiasmo, tendo tirado fotos com quase todos os presentes. Apesar das interrupções, exercitou-se com afinco, com uma determinação maior que a costumeira, embora a mesma dos últimos dias, desde sua eleição. Terminou rapidamente sua série de exercícios, seguida pelo breve alongamento, e voltou em casa para trocar de roupa. Durante a curta jornada até em casa foi cumprimentado diversas vezes pela vizinhança, as mesmas pessoas com quem cruzava em branco todos os dias.

Vestiu o calção de banho rapidamente e se encaminhou para a praia, com um entusiasmo maior que o usual. Pretendia correr mais que o habitual; percorria diariamente toda a praia de quatro quilômetros de extensão, mas normalmente corria apenas durante um quarto da distância, caminhando o restante; algumas vezes corria a metade dela, e só raramente corria por todos os oito quilômetros de ida e vinda, do início ao fim da praia, naquele dia, extremamente disposto como estava, planejou a corrida mais longa, por toda a extensão da praia.

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Embora ainda fosse cedo, os circunstantes já o paravam para cumprimentos durante o breve caminho até a areia, continuando a fazê-lo na beira d’água, sua pista de corrida e caminhada. Não estava acostumado àquele assédio, mais incômodo que lisonjeiro, e se já planejava a longa corrida, iniciou-a logo, já nos primeiros metros. Foi saudado inúmeras vezes pelos passantes, não apenas pelos que assim o faziam todas as manhãs, mas por muitos outros, tanto os nunca vistos, quanto pelos caminhantes assíduos vistos todos os dias, embora sem trocas nem de olhares.

Vários dos frequentadores se interpunham à sua frente, obstaculizando a corrida, o que o chateava e o levava a contornar o interpelante, percebendo que a corrida ajudava duplamente nessa ação: por facilitar a movimentação, e por justificar a evasão. Estava surpreso com a intensidade do assédio. Já esperava algum, mas imaginava que ele só se manifestaria mais tarde, quando houvesse mais gente na praia. Percebeu que tamanha perseguição lhe seria imensamente incômoda, e após correr por toda a praia, decidiu caminhar por ela um pouco mais, na esperança de dissipar desde já a novidade, e se tornar uma celebridade corriqueira. Havia na vizinhança várias pessoas famosas que agiam desse modo, dissipando assim a ânsia, ou fosse lá o que movesse as pessoas a interpelá-lo tão peremptoriamente.

O sol iluminava a praia intensamente, chamando os cariocas para a praia, e embora relativamente pouca gente caminhasse pela areia, naquela manhã de segunda-feira após feriado prolongado, a aglomeração que se formou ao seu redor depois de uma parada concedida devido ao apelo de passantes, foi excessivamente sufocante.

Tendo parado para conversar com interpelantes, outros foram se somando aos primeiros, sobrepondo apelos e conversas uns sobre os outros, gerando um diálogo multifacetado incompreensível, recortado por palavras gritadas apressadamente e eventuais empurrões. Embora a altura o favorecesse, permitindo um certo distanciamento por manter a cabeça erguida sobre a pequena multidão ao redor, reduzindo a sensação de sufocação, a falta de mobilidade e até o contato físico eventual que já se impunha inescapável, garantiam um sentimento de profundo desagrado, e uma ânsia por se livrar do bando barulhento.

O problema seguinte consistiu em descobrir como contornar tudo aquilo, e se livrar da pequena multidão que o assediava. Não sabia, e provavelmente nem conviesse, ser grosso o suficiente para dar um grito, espantando os circunstantes e abrindo espaço para a fuga. De fato, viria a aprender depois: o necessário em tais momentos era um comando imperativo, firme, mas não brutal, não humilhante, apenas claro e decidido. O resultado do desconhecimento foi uma espécie de fuga, de derrota, entre reiterados pedidos de licença e desculpas. Vendo-se livre, tratou de apertar o passo na direção de casa, evitando na medida do possível a aproximação com outras pessoas. Decidiu comprar óculos escuros e outros acessórios capazes de compor um disfarce.

A popularidade excessiva não só o desagradava, mas o inquietava francamente. Estava aturdido com o acontecido, preocupado com a possibilidade de que aquilo se repetisse constantemente. Durante o banho, recuperou a tranquilidade suficiente para começar a escrever suas reflexões religiosas. Pretendia esclarecer o papel do Cristo redivivo, e o de sua igreja. Começou com uma espécie de tratado histórico sobre o

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tema, que talvez viesse, posteriormente, complementar suas considerações históricas mais gerais.

* * *

História do Brasil e da cidade do Rio de Janeiro, parte III – Invasão Francesa

Ocorre que tal sistema de parasitismo (instituído pelos europeus) é altamente competitivo, de modo que, com muita frequência, dois ou mais parasitas se engalfinhavam no intuito de abocanhar partes do repasto um do outro. Num desses momentos, a França se encontrava especialmente fortalecida, e se achou no direito, portanto, de tomar Portugal, com intuitos parasitários. Sem meios efetivos para se contrapor aos exércitos franceses, o rei de Portugal, juntamente com o enxame de parasitas que sempre lhe acompanhavam, fugiu para o Brasil.

Até então, a colônia era mantida em isolamento quase completo com o restante do mundo, sendo-lhe permitido apenas o contato com Portugal. Além disso, era conservada também em profunda ignorância, havendo nessas terras raríssimas escolas de alfabetização, e nenhum centro de formação superior.

Nesse contexto de ignorância, alienação e selvageria, patrocinado pela realeza, chega ao Brasil a corte de Portugal, obviamente com destino a sua região mais rica e desenvolvida: a capital, Salvador.

Chegando lá, os europeus se depararam com a população mestiça, fruto da descendência dos homens vindos de sua terra, com mulheres índias, e outras trazidas de África.

Difícil condená-los por isso, somos todos naturalmente muito conservadores e nos espantamos com acontecimentos estranhos, e situações às quais não estamos acostumados. Fato foi que, quando os europeus se depararam com aquela população de pele escura, cabelos enrolados e feições diversas das deles próprios, foram tomados por um sobressalto contundente; ficaram chocados com o que viram, incapazes e desgostosos de tratar com aquela população que eles próprios haviam engendrado. Talvez tenham notado que aquilo era fruto de suas próprias ações, o que pouco importou, trataram de descartar o que consideravam uma verdadeira monstruosidade.

O caminho mais fácil para se desvencilhar da população mestiça foi se afastar dela. Mudaram-se imediatamente para uma área praticamente desabitada, muitos quilômetros distante dali, estabelecendo neste sítio desalentado a capital do país.

Determinou-se o translado da capital do reino para o Rio de Janeiro.

* * *

A igreja do Cristo redivivo se pautava fundamentalmente pela completa contraditoriedade, sendo difícil encontrar preceito religioso que não fosse tanto asseverado, quanto negado por alguma de suas ordens, como eram chamados os pequenos grupos de igrejas pautados nos mesmos princípios. Tais ordens, constituídas muitas vezes por uma única igreja, frequentemente duas ou três, e

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raramente mais que isso, tinham amplos poderes para determinar suas crenças e rituais, compartilhando entre elas apenas a fé no Cristo Redivivo, além da obrigação de repassar parte dos valores arrecadados dos fiéis para a direção central. A autoridade eclesiástica não exigia nenhuma outra obrigação das unidades autônimas, exceto o repasse de verba, razão pela qual as mais diversas crenças se congregavam sob o mesmo nome, unificadas pela mesma seita, embora defendendo ideais francamente antagônicos, e asseverando crenças fortemente opostas.

Algumas vertentes da igreja se caracterizavam pela mais ampla tolerância, não apenas a qualquer fé religiosa, mas também a hábitos e costumes incomuns, e mal vistos por amplas maiorias. Outras, no entanto, e em franca oposição às primeiras, eram caracterizadas pela mais profunda intolerância a qualquer preceito que não fosse exatamente o postulado pela própria seita.

Poderia ser dito que, de um modo geral, a implicância, mais que a intolerância, era a norma entre as ordens, provavelmente em decorrência do fato de o próprio crescimento da igreja ter ocorrido sob a égide da provocação, o que parecia ter sido herdado, ou talvez copiado, de alguma seita protestante previamente existente, embora a ascendência mais plausível da igreja fosse a católica, origem, aliás, da grande maioria de seus seguidores, não desconsiderando um vasto número deles advindos dos vários credos protestantes e seitas umbandistas.

A dinâmica usual de consolidação de uma ordem era a seguinte: frequentemente, uma igreja recém instalada em algum ponto da cidade, necessitando angariar fiéis, começava a provocar alguma das seitas instituídas nas redondezas. A querela entre as crenças costumava agitar os fiéis de ambas, de um modo tal que, depois de algum tempo, alguns dos seguidores da fé atacada acabavam por aderir aos implicantes. Nesse momento, vinham também os querelantes de outras seitas, já previamente envolvidos em embates com os implicados. Reunidos, engordavam, assim, o novo rebanho. O sucesso desse método, associado a uma das grandes máximas da igreja: “não se mexe em time que está ganhando”, garantia que a implicância continuaria a ser uma das características delineadoras do perfil da igreja.

Havia certa confusão entre a implicância exercida pela igreja e a intolerância, característica de tantas outras. A intolerância costumava se manifestar atacando preceitos execrados, tendo como alvo qualquer defensor do princípio, ou ação, em mira. A implicância, no entanto, costumava enfocar um dado grupo, e só ele, fundamentalmente, como se fosse uma espécie de implicância pessoal transposta para o universo das igrejas. Era possível, e até mesmo provável, que uma dada igreja implicasse com outra que tivesse, exatamente, o mesmo perfil que ela, aliando-se para isso a outra extremamente diversa, e até antagônica a si própria, apenas com o intuito de roubar-lhe os fiéis. Vale ressaltar que entre as ordens da própria igreja, reinava uma tolerância surpreendentemente forte, o que permitia a heterogeneidade idealizada pelos criadores da igreja, e responsável por seu crescimento tão rápido.

O crescimento explosivo da igreja não podia deixar de acarretar consequências drásticas, entre elas a derrocada da igreja católica. É fato que essa instituição milenar já vinha sendo abalada, no mundo inteiro, por sucessivas acusações de crimes. Vários deles, muito contundentes, contra os costumes, perpetrados por padres contra fiéis, especialmente crianças. Sucessivas indenizações vultosas estipuladas pelo poder

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judiciário de vários países vinham deixando os católicos à beira da bancarrota, tendo explodido no mundo inteiro o movimento separatista dos padres, que se excluíam da Igreja católica, levando com eles, a título de indenização, o próprio prédio da igreja onde exerciam o clericato. O desmoronamento iminente da igreja católica sugeria a muitos padres que tomassem o mesmo rumo, conquistando assim um patrimônio que os impediria cair em completa penúria. De posse dos imponentes prédios de igreja, os sacerdotes podiam continuar a exercer sua atividade profissional. A adesão ao Cristo Redivivo parecia então, para muitos, a opção mais natural, dada a tolerância da seita para com questões doutrinais, e o apelo propagandístico da grande encenação anual de páscoa. Chegando à igreja, já de posse de prédios e fiéis, os ex-católicos eram muitíssimo bem recebidos, qualquer que tenha sido o grau de querela existente anteriormente à adesão. As pendengas judiciárias propostas pela igreja católica, decorrentes das queixas pela expropriação de seus imóveis, prometiam se estender ao longo de décadas, especialmente sob a influência poderosa do Cristo Redivivo. Desse modo, o espaço deixado pela implosão da igreja católica vinha sendo imediatamente ocupado pela igreja do Cristo Redivivo, que engolia também as dissidências de outras seitas menores.

A origem diversa das várias ordens garantia-lhes uma heterogeneidade notável. Ordens constituídas por padres católicos mantinham usualmente as feições católicas em todas as instâncias. Assim, tanto o prédio da igreja, quanto seus rituais e cultos, podiam seguir à risca as tradicionais recomendações romanas, não surpreendendo que o mesmo ocorresse com os fiéis; normalmente instituíam umas poucas alterações, como uma maior atenção ao dízimo. Já as constituídas por protestantes, costumavam herdar suas táticas belicosas, sua implicância, mantendo quase imutáveis suas feições anteriores, sendo normalmente indiferenciáveis de suas seitas originárias.

Surpreendentes, de fato, eram as ordens originadas de seitas umbandistas. Mantinham normalmente um terreiro povoado pela mesma diversidade sacerdotal que compõe os cultos afro-brasileiros, as mesmas nomenclaturas, e os mesmos rituais. Muitos consideravam inspirador e alvissareiro o modo amistoso como conviviam as ordens de origem umbandista com as de proveniência protestante.

Outro “grupo” bastante presente no seio da igreja era constituído por ordens em cujos rituais consumiam-se drogas alucinógenas. Tais ordens costumavam ser mais circunspectas que outras, instaladas frequentemente em locais periféricos e bucólicos, evitavam a publicidade excessiva. Constituíam normalmente grupos muito discretos que, quando reunidos com outras ordens tendiam a se camuflar entre elas. Sofriam com enorme frequência a acusação de serem centros de consumo de drogas, o que não negavam, rebatendo a acusação com a crença de que seus elixires sagrados constituíam uma ponte entre os fiéis e o Criador.

Seguramente, a possibilidade de consumo de drogas especiais, e de altíssima qualidade, era o principal atrativo para uma grande parte de seus seguidores, mesmo assim, os eclesiásticos asseguravam que, embora atraídos a princípio pelos prazeres lisérgicos, acabavam, por este caminho, encontrando o Cristo.

Aliás, a tolerância radical com que as religiões são tratadas, a permissividade aplicada às diversas tradições religiosas, era o que permitia a existência de um credo no qual, anualmente, pelo menos quatro homens eram assassinados publicamente:

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dois ladrões punidos exemplar e drasticamente, um traidor induzido ao suicídio, ou melhor, compelido a isso, sob a ameaça cruel de linchamento da turba ensandecida, além do Cristo. É fato que, nos primórdios da seita, antes de sua popularização e reconhecimento oficial como religião, tinha havido fortíssimas perseguições, inclusive a prisão de diversas lideranças que momentaneamente ocupavam altos cargos no concílio central da igreja. As prisões geraram mártires vivos, que gritavam por si e pelos crucificados, sendo ouvidos diligentemente pela multidão, sempre atenta às bizarrices insólitas. A publicidade obtida com tais prisões, ressaltando também a imolação do Cristo, e a execração do Judas, garantiu o crescimento explosivo da igreja em seus primeiros anos, facilitada pelo esboroamento simultâneo da igreja católica.

É provável que tal origem tenha seduzido a parte da cidade comprometida com o crime, população considerável, quase sempre de origem humilde, e fortemente susceptível aos apelos divinos. Embora o credo tenha se alastrado por todos os setores da sociedade carioca, por todas as classes sócio-econômicas, sua origem inegável, e quase sempre ostentada com orgulho, foram as camadas mais baixas: muitos de seus primeiros fiéis se converteram no interior de uma penitenciária. Não eram poucos os que tinham um passado inconfessável.

Esta era, em linhas gerais, a história da igreja, que o Cristo pretendia descrever em detalhes, antes de tratar do papel do Cristo Redivivo, da ressurreição e imolação anual do filho de Deus.

Se sua concepção histórica da igreja era plausível e bastante ortodoxa, correspondendo fundamentalmente à ideia comum do povo sobre a igreja, a que se repete nos jornais, seu entendimento sobre o Cristo era sumamente pessoal, heterodoxo, e confuso, provavelmente repleto de contradições. Mesmo assim, ou, talvez, por isso mesmo, sentia uma forte necessidade de se expressar, de se manifestar sobre o papel do Cristo, esclarecendo aos milhões de expectadores os mistérios profundos subjacentes a todas as ações transcorridas durante o espetáculo de imolação.

O próprio ritual de crucificação, foco central de toda a igreja, ponto de união de todas as suas ordens, era tratado tanto como um cerimonial religioso, quanto como um espetáculo, o que não era uma das peculiaridades da visão do Cristo sobre o fenômeno, mas a forma usual como era visto pelo público e elaborado pelos seus criadores. Aliás, os responsáveis pelos espetáculos eram quase todos oriundos do meio teatral, sendo muito raras e bastante indesejáveis as ingerências de membros do concílio central na encenação.

Talvez as contradições estivessem necessariamente presentes na ideia de um Cristo, e era isso mesmo o que o Cristo Redivivo advogava. Já os católicos admitiam uma santíssima trindade, uma trindade que era ao mesmo tempo una, incluindo um pai que era ao mesmo tempo seu próprio filho, e um filho que era seu próprio Pai. Dessa contradição fundamental brotavam outras tantas, e justificavam a morte do filho, sua imolação em honra a seu Pai, Ele próprio.

Da mesma maneira, postulava que o Cristo redivivo, renascido e imolado a cada ano, era ao mesmo tempo um e múltiplo. Era, fundamentalmente, o mesmo

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Cristo, ressuscitado para sofrer, para ofertar a sua vida seguidamente pela salvação contínua dos homens.

Cabe dizer que as interpretações do espetáculo eram, no mínimo, tantas, quantas eram as ordens, e raramente muito mais superficiais que a intuída por JC, o Cristo, que, por hora, se esforçava em malabarismos mentais e retóricos para convencer aos outros e a si mesmo, que ele era todos os Cristos anteriores, incluindo o original, sendo ainda todos os Cristos futuros, somando entre eles os já nascidos e ainda não consagrados.

Não repetirei aqui todos os esforços intelectuais do Cristo em esclarecer sucessivas contradições cada vez mais intricadas, emboladas em um novelo de ideias abstrusas, cujo fio a mim parece impossível ser seguido. Trata-se, a meu ver, de um imenso labirinto mental com múltiplas entradas e, provavelmente, nenhuma saída. De qualquer forma, suas concepções eram fervorosas e sinceras, chegando talvez às raias do fanatismo. Mesmo assim, demonstrava inteligência, cultura, e um vasto labor, ao tratar de tão espinhosas questões filosofo-teológicas.

Tendo escrito mais longamente do que o planejado, ainda sob o embalo decorrente do entusiasmo, o Cristo almoçou e cochilou, como de costume.

Quando acordou foi verificar a correspondência, encontrando uma quantidade excessiva dela. A imensa maioria constituía apenas lixo, o que o desagradou. Era preocupante receber entulho demasiado, poderia perder coisa importante ao se descartar daquilo tudo. Em meio à bagulhada recebida, encontrou correspondência da Mama. Ela o congratulava pela escolha, mas não conseguia evitar um tom fundamentalmente triste.

Eram amigos havia muito tempo, razão pela qual ela conhecia bem a igreja do Cristo Redivivo, sabendo, portanto, que os dias de JC estavam contados. Ao mesmo tempo, também sabia que aquele era o grande sonho da vida de seu amigo que se realizava, o que a deixava em uma situação paradoxal: por um lado feliz pela realização de desejo tão antigo e tão batalhado, e por outro, penalizada pela morte iminente do mesmo.

Um tom de tristeza permeava toda a comunicação, mesmo as passagens em que a Mama o congratulava. Suspeitava que a missiva houvesse sido escrita em meio a lágrimas, o que também o entristeceu. No entanto, escreveu resposta extremamente alegre, descrevendo sua imensa felicidade por se ver escolhido, e a satisfação enorme ao representar a ressurreição. Desculpou-se por não tê-la avisado sobre sua escolha imediatamente ao fato, já que forçado a assim proceder, como ela sabia, tendo sido quase uma tortura não poder ter lhe contado imediatamente, sobre a realização de um fato tão presente em tantas de suas conversas. O entusiasmo derramado nas numerosas linhas que escrevia vigorosamente se estendeu até a sugestão de ir a Roma visitá-la. Suas palavras irradiavam o imenso prazer que sentiria ao reencontrá-la.

Havia entre a correspondência, muitas outras congratulações, a maioria de desconhecidos, ou, ao menos, pessoas inidentificáveis. Passou os olhos em todas elas e respondeu as que conseguia identificar. Gastou mais tempo do que pretendia nessa tarefa, retomando em seguida a escrita de suas reflexões sobre o Cristo Redivivo, mas reparou que lhe faltava pouco tempo para o início de sua atividade de alongamento na academia de ginástica, voltaria lá pela segunda vez no dia. Apesar do pouco tempo,

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conseguiu escrever um longo trecho antes de se vestir para os exercícios, o que o satisfez. Naqueles dias tudo estava dando certo.

* * *

História do Brasil e da cidade do Rio de Janeiro, parte IV - Rio de Janeiro

Durante os anos seguintes à chegada do rei, a cidade ganhou um alento nunca visto nessas paragens. Note que a nova capital crescia livre de parasitas, estando ela, ao contrário, a parasitar o restante do país. Além disso, juntamente com os parasitas, vieram também, de Portugal, algumas pessoas muito mais qualificadas para muitíssimas funções que todas as anteriormente existentes na colônia. Dessa forma, a capital cresceu e se fortaleceu enormemente em curto período, ao mesmo tempo em que novas liberalidades eram permitidas na terra, como o contato com outros países, e a possibilidade de prolongamento dos estudos dos cidadãos.

Paradoxalmente, embora a transferência da capital tenha sido engendrada para evitar o contato com mestiços, o crescimento da cidade exigiu a presença maciça de descendentes de africanos, a mão de obra disponível na época: não era suposto que europeus ou índios executassem as funções destinadas a escravos, de modo que, assim como Salvador, o Rio de Janeiro povoou-se de uma enorme massa de negros, embora esses novos escravos recém sequestrados de suas terras, não se mesclassem com a população como os mestiços baianos, mantendo a aparência animalesca imposta pelas bestas que os subjugavam.

O comércio florescente de seres humanos gerou uma classe média muito respeitada no Brasil. Eram aqueles que mandavam sequestrar homens mulheres e crianças em África para animalizá-los e venderem-nos como gado por aqui. Em muitos locais do Brasil, os descendentes desse senhores ainda hoje se orgulham da nobreza de suas linhagens, alardeando a antiguidade de sua permanência no país, a riqueza de seus antepassados, mas omitindo, quase invariavelmente, a origem de tais distinções: nunca encontrei um desses digníssimos filhos de nossas oligarquias que declarasse descender de traficantes de escravos, profissão altamente rendosa na época, e muitíssimo dignificante aos olhos de seus contemporâneos.

Geografia da cidade

A capital foi situada no interior da Baía de Guanabara, uma cumbuca que podia ser facilmente protegida de invasões marítimas, perpetradas especialmente pelos ingleses, tradicionais piratas, espoliadores das costas de todo o planeta. Os súditos da rainha costumavam pilhar qualquer coisa de valor que estivessem ao alcance de suas mãos, fossem riquezas ou mulheres, de modo que as povoações litorâneas por todo o planeta tinham que se manter guardadas por poderosas fortalezas, ou se esconder a alguns quilômetros da costa. Na nova capital, a opção híbrida foi fortalecer as portas da baía e erigir a cidade em seu interior.

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Uma vez estabelecida a nova rotina na vida de JC, os dias se sucederam sempre do mesmo modo, começando com exercícios na academia pela manhã bem cedo, seguidos de uma corrida pela praia, excluída a caminhada devido às interpelações dos frequentadores. A maior parte de seu tempo pela manhã, no entanto, ficava reservada para a escrita de suas ideias e propostas sobre o papel da igreja e do Cristo Redivivo e outras que sempre lhe surgiam à mente.

Sentia muitíssimo a falta de suas caminhadas diárias, não só pelo prazer que da própria atividade, mas também pelo papel inspirador que ela lhe causava. Suas ideias costumavam jorrar durante as caminhadas, mas quase secavam sem elas, sendo, por vezes, necessário, munido de roupas de passeio, óculos escuros, e outros pequenos disfarces, caminhar pela orla até conseguir elaborar argumentos convincentes em defesa de suas proposições.

Sua grande amiga, a Mama, havia correspondido no entusiasmo por sua visita a Roma. Embora o catolicismo definhasse, a mama ainda herdava quase toda a pompa de outrora, dos tempos em que os romanos comandavam toda a Europa e além. Sua influência continuava grande, especialmente após o revigoramento feminino conseguido com a eleição da Mama, depois de uma sequência de Papas desastrosos e impopulares, cujas ações despropositadas eram noticiadas no mundo inteiro.

Um encontro de pessoa tão eminente com o Cristo não passaria despercebido, seria motivo de especulações e rumores. Era claro que ambos teriam que se pronunciar afirmando o caráter pessoal da reunião, o que reduziria, mas não eliminaria as conjecturas mais diversas, como a fusão das duas igrejas, ou a incorporação do espetáculo da paixão de Cristo à liturgia romana.

Apesar de considerações sobre as especulações mundiais acerca do encontro, a Mama dava mostras de grande satisfação pela ida de JC a Roma, mas pedia muita habilidade, especialmente durante entrevistas aos meios de comunicação, que certamente se apresentariam repletas de arapucas relativas ao encontro. A Mama sabia que, assim como ela, o Cristo estava preparado para lidar com tais artimanhas, mas também reconhecia a enorme destreza com que alguns entrevistadores maquinavam e manipulavam suas perguntas, tendo ela própria, mais de uma vez, sido incapaz de desarticular sugestões maliciosamente incorporadas às perguntas.

Respaldado financeiramente por sua igreja, o Cristo planejou uma ida rapidíssima a Roma. Sabia que todos os seus passos seriam seguidos pelos meios de comunicação, que qualquer deslize ou excentricidade sua seria notícia no mundo inteiro, assim, a despeito de uma imensa curiosidade por toda a Europa, região que desconhecia, preferiu se comportar o mais discretamente possível, planejando uma viagem curta e o mais privada que conseguisse, esforçando-se para minimizar o tempo passado em lugares públicos. Com isto em mente, planejou a viagem e comprou passagens, tendo se sentido obrigado também a comprar roupas para a ocasião.

Enquanto planejava a viagem a Roma o Cristo decidiu filmar seus passarinhos encantados. Sua vida estava chegando ao fim, e se sentia na obrigação de por termo a todos os seus projetos já iniciados. Com o “salário” recebido, JC comprou câmeras filmadoras, e entrou em contato com a direção do forte do Leme, próximo a sua casa,

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e que controlava uma enorme área florestada nos morros ao redor obtendo a permissão para as filmagens em área militar. Também chamou seu amigo Lauro para auxiliá-lo. Assim, meio de improviso, tendo escrito um roteiro muito aberto, muito pouco determinado, iniciou a filmagem dos pássaros.

Como era esperado os atores não decepcionaram. Vendo-se em liberdade, os pequenos pássaros cantavam e dançavam alegremente. Tendo colocado umas flores vistosas pelas árvores, uma orquídea aqui, uma bromélia ali, JC controlava seus passarinhos encantados, fazendo-os esvoaçar de uma a outra flor posta no cenário aberto. Os belos canários voavam ao redor e retornavam para junto das câmeras, enquanto JC imaginava a cena que cada gravação representaria. Mais de uma vez os belos pássaros, sentindo a liberdade e a proximidade da companheira, arrepiaram-se ampla e incrivelmente, transformando-se quase em uma bola de penas coloridas, imediatamente antes de erguer a calda e a cabeça para iniciar o canto e a dança de perseguição da fêmea, vibrando as asas entreabertas durante a dança emotiva.

Encantada, a fêmea quase se derretia contemplando exibição tão delicada e exuberante dedicada a ela, mas invariavelmente acabava por agredir o macho ousado que acabava por se atrever a uma intimidade maior que a permitida, a um encurtamento da distância maior que os limites da prudência. Mesmo ciente da determinação da fêmea em evitar o contato com o dançarino, o macho enlevado sempre desembocava a sua dança indo de encontro à fêmea, para ser recebido com aspereza por ela. Apenas uma vez uma das canárias se agachou, convidando o macho excitadíssimo a pousar sobre ela, mas arrependendo-se do convite imediatamente antes do pouso de seu parceiro sobre ela, talvez em lembrança da inexistência de um ninho.

Foram poucos dias de filmagem que valeram uma bela história fictícia de um passarinho heróico. Depois do término das filmagens, JC despediu-se de seus pássaros e os libertou na área semi-deserta do forte.Viveriam ali, em liberdade, o resto de seus dias.

* * *

Já havia anos que não se encontrava pessoalmente com sua grande amiga, agora Mama. Na verdade, não a via desde antes de sua aclamação como Mama, o que, de certo modo, a havia transformado em outra pessoa; agora trajava sempre a “fantasia” medieval, estando sujeita, em tempo integral, aos protocolos da igreja católica, imposição pesadíssima. Preferia poder se encontrar com sua velha amiga, aquela com quem tinha intimidade, mas sabia que teria que se contentar em se encontrar com a Mama. Aliás, tinha sido ela quem havia enfatizado esse ponto, acentuando o fato de ser ele agora uma personagem central em outra igreja, um ícone religioso ainda mais popular que ela mesma, embora sem o peso da tradição milenar.

Mas a viagem não estava livre de impedimentos nem para o Cristo, cuja assessoria de imprensa tinha explicitado o caráter pessoal da visita, deixando claro não haver nenhuma tentativa de aproximação com a igreja católica. Aliás, quanto a isso, o Cristo ainda recebeu uma pressão adicional para que sua viagem não tivesse

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nem ao menos uma conotação turística, evitando assim qualquer boato sobre aproximações com Roma, tornando a viagem o mais discreta possível.

O encontro ocorreu em um amplo salão do vaticano, onde a mama o recebeu com um abraço caloroso, às vistas de dois sacerdotes que se mantinham ocupados em um dos cantos do ambiente. Sentaram-se por certo tempo, mas por sugestão da Mama percorreram algumas belíssimas galerias, ornamentadas por telas artísticas primorosas a contracenar com a arquitetura antiga e rebuscada, repleta de ornamentos, de simbolismo e de história.

A mama alternava as comunicações pessoais com os relatos e descrições dos artefatos e dos locais por onde passavam. A relação de ambos tinha sido sempre entremeada por, digamos, peculiaridades culturais, uma vez que ambos compartilhavam tanto os interesses artísticos quanto os históricos, e de uma forma geral por todas as particularidades usualmente referidas como interesses culturais. As observações de ambos sobre o que viam, remetiam frequentemente a conversas do passado, a objetos e fatos presentes na memória compartilhada por ambos.

Todo o ambiente criava uma atmosfera solene e mística, o tipo de coisa que costumava deslumbrar o Cristo. Apesar disso, e da felicidade do reencontro, algo incomodava o homem, Em meio às excursões entre um salão e outro, ele se queixou explicitamente à Mama. Os dois voltaram a se sentar e ela tentou esclarecer o sentimento dele.

– JC, há muito peso em tudo isso em que estamos imersos. Não é possível desconsiderar a situação em que ambos agora nos encontramos. Vejo que você ainda não digeriu todos os acontecimentos recentes, ainda não percebeu a intensidade das forças ao nosso redor, nos guiando e tolhendo, não assimilou por completo a enorme influência que tudo isso causa em nossas vidas. Não somos seres isolados do mundo, e a sensação usual de liberdade decorre apenas de uma comparação. Era só por comparação com as pessoas ao redor que nos supúnhamos livres, embora tivéssemos sido sempre tão tolhidos quanto agora, mas de uma forma normal. Presentemente, fica óbvia a influência do todo em nossas vidas, não por ser maior que antes, acredito, mas simplesmente pelo fato dela se ter alterado. Acabamos sempre por nos acostumar com aquilo que não muda.

Talvez o Cristo compreendesse e concordasse com as palavras da Mama, talvez até já o tivesse sentido, mas lhe era penoso aceitar um fato que tão avassaladoramente desmoronava seus ideais de liberdade e de construção do indivíduo. A Mama prosseguiu:

– Há poucos dias que você foi entronizado Cristo, ainda resiste às forças que inexoravelmente o controlaram e o controlam, mas se nega a admiti-las. Nós ainda somos os mesmos, eu sou a mesma Carol de sempre, você é meu JC, mas nunca estaremos livres, nunca mais teremos a crença ingênua de que somos nós que decidimos e guiamos nossas vidas. Os caminhos não são dados por nós, só as escolhas, embora ainda sejamos nós que escolhemos.

As declarações da Mama eram meio incompreensíveis, meio inaceitáveis e ainda incômodas, e tudo isso o fazia suspeitar que ela estava certa. Notou que sentia um forte incômodo, aliado a uma grande felicidade, desde que se tornara o Cristo, mas sem conseguir identificar a origem da sensação inusitada. Talvez a Mama tivesse

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razão, e o que sentia era só a mudança nos ventos, a ausência da pressão que o empurrava para um lado, e o surgimento de outra, levando-o em nova direção.

Em meio à conversa, o Cristo mergulhou em considerações sobre si mesmo, sobre a liberdade, sobre a situação das pessoas no mundo, causando uma espécie de preocupação à Mama que o conhecia bem e sabia que ele precisaria equacionar todos os fatos, racionalizá-los, verbalizá-los, e só então digeri-los. Por hora, aquela nova ideia permaneceria como um incômodo, roubando toda a atenção do homem. Desse ponto em diante a conversa prosseguiu vazia, constituída de umas poucas palavras quase sem conteúdo. O Cristo ainda expôs seus planos de escrever suas concepções sobre a história, sobre a nova era e a individualidade do homem, além de considerações sobre os fundamentos do direito, embora confessando não saber se esse último tópico já havia amadurecido, se já se encontrava pronto em sua mente a ponto de poder ser expresso com clareza.

A Mama se enternecia ouvindo as mesmas alusões de outros tempos. Era com ela que o intelectual discutia suas intuições incipientes, os esboços de ideias que eventualmente acabavam ganhando corpo, como aquelas que ele mais uma vez citava. A mulher rememorava os inúmeros momentos em que haviam discutido as mesmas idéias, cada vez mais encorpadas e elaboradas, alegrava-se em ver a disposição de torná-las escritas. Apesar disso, a conversa ficou oca, especialmente para o Cristo que não conseguia tirar de sua mente as novas informações adquiridas, culpando a Mama por se deixar dissolver pelo poder, pelas forças conservadoras das pressões sociais, embora sentisse um tempero adolescente ao equacionar a situação nesses termos.

Ainda se levantaram umas vezes para percorrer riquíssimas galerias repletas de quadros, muitos deles bastante conhecidos do grande público e tantas vezes observados pelo Cristo em reproduções. Mas a mente do homem estava conectada às novas informações, e o restante da entrevista transcorreu em um clima de irrealidade, como se o homem houvesse se tornado um zumbi, fazendo a Mama recordar outras tantas ocasiões análogas do passado, lançando mais emotividade ao encontro por parte dela.

Ao se despedirem a Mama, se congratulava por ter conseguido evitar o tema da imolação, da morte do Cristo. Mesmo assim não conseguiu evitar as lágrimas durante o longo e apertado abraço final, quando comentou, enquanto não o largava, que em um ano não mais poderia abraçá-lo daquele modo. O Cristo respondeu de uma maneira teatral que a enterneceu uma vez mais ao fazê-la lembrar suas antigas representações, quando era tudo brincadeira. Tentou impedir a manifestação da tristeza que a invadiu fortemente ao considerar que seu grande amigo se encaminhava para a morte.

No dia seguinte, JC retornou ao Rio, tendo provavelmente exagerado ao manter o foco de sua visita exclusivamente ao encontro com sua grande amiga.

* * *

História do Brasil e da cidade do Rio de Janeiro, parte V– A origem das favelas

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A “justiça” de hoje, nominalmente pressupõe que todos são iguais perante a lei. A da época, muito provavelmente ainda mais injusta que a nossa, reconhecia vários tipos de pessoas, com grandes diferenças entre escravos e libertos, passando também pelas diferenças raciais, e pela nobreza recém advinda de além-mar.

Um dos pressupostos básicos da justiça consistia em considerar os escravos culpados. Não importava qual a querela, eram culpados e mereciam punição para aprenderem o seu lugar e se manterem nos eixos. Não era de admirar que muitos deles se rebelassem e, apavorados por ameaças de torturas desumanas, fugissem de suas senzalas, – como eram chamados os currais onde viviam, – e se embrenhassem no mato, onde tentavam sobreviver precariamente. Com os poucos materiais disponíveis, construíam abrigos camuflados entre as árvores dos morros cariocas, poupadas da serra devido à inclinação do terreno. Desse modo surgiram inicialmente vários quilombos, que foram crescendo na mesma proporção em que a cidade.

O restante da população tolerava essas aglomerações marginais por facilitar a presença de uma mão de obra temporária e barata disponível nas redondezas. Desde essa época, os favelados vagam pela cidade em busca de um biscate, uma ocupação qualquer que lhes renda algum trocado com o que se alimentar. Ficam disponíveis como engraxates, empregados domésticos, sexuais, e de serviços gerais temporários, não sendo necessário para seus empregadores despender mais que o necessário com a sua alimentação durante o ofício.

Com o passar do tempo, as favelas, hoje chamadas eufemisticamente “comunidades”, tornaram-se aglomerações bastante populosas, embora sem as mínimas condições sanitárias e, de uma forma geral, de cidadania. Hoje residem lá os chamados “traficantes”, executados sumariamente pela polícia numa guerra antiga e sem trégua. São os descendentes dos escravos, herdeiros ainda hoje a mesma culpa de seus antepassados, a de terem sido tratados como animais por nobilíssimas bestas humanas.

* * *

Era mais uma manhã como todas as outras e, como de hábito, JC foi se exercitar na academia bem cedo. Executou seus exercícios musculares com a disposição costumeira, mas ao final de sua série, percebeu, ao quase se esbarrarem, a presença da bela moça que o olhava com atenção. Foi necessário um segundo para reconhecê-la, como era mesmo seu nome... ah, Madeleine, a moça que salvara do afogamento. Como era bonita, percebia agora, quando não estava mais descomposta e desgrenhada, a tossir seguidamente. Ela o olhava com certa alegria, reconhecera-o, certamente.

– Madeleine, como vai você? – Ah, achei que não me reconheceria, respondeu a moça com sotaque francês.

– E ainda lembra meu nome? Disse com surpresa e entusiasmo. Os dois conversaram por um minuto ou pouco mais, até que JC se encaminhou para a área destinada aos exercícios de alongamento realizados ao término dos de musculação. Iniciava sua série final, quando a moça adentrou o recinto, atou pesos aos tornozelos, e se deitou em um colchonete, passando a se exercitar vigorosamente.

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Quando JC terminou de alongar o braço direito, a jovem finalizava sua série energética, e permanecia deitada com o peito arfante. JC a observava à sua frente, mais especificamente contemplava o tórax da moça que se expandia e contraía alternadamente, ameaçando revelar os belos seios ali guardados. É provável que o olhar de JC tenha se fixado no corpo da jovem por mais tempo, e com mais veemência que o pudor recomendasse. Também é provável que as dilatações e contrações do corpo da jovem tivessem se intensificado com o ardor com que o homem a observava, mas enquanto ela enrubescia, seu tórax insistia em arfar intensamente, capturando toda a atenção de JC.

Foi ela quem interrompeu o idílio reiniciando a série de exercícios, fazendo JC retornar também a sua série, mas dessa vez com os olhos fixos na moça. Ao término da nova série, os mesmos movimentos causaram o mesmo encantamento em JC, e o mesmo rubor se repetiu, enquanto a jovem voltava a arfar da mesma maneira sensual.

A jovem efetuou um vasto repertório de exercícios, acompanhada pelo olhar de um JC arrebatado e extático, a repetir sucessivamente os mesmos exercícios de sua curta série. Ao finalizar seus exercícios, enquanto se dirigiam ao bebedouro, iniciaram uma conversa. Logo ela se referiu à praia, sugerindo ao homem o gancho óbvio: o convite para irem até lá, que ela aceitou imediatamente. Sem perda de tempo, foram ambos para suas próprias casas, vestir roupas de banho.

JC caminhou exultante para casa, vestindo-se apressadamente e se dirigindo para o local combinado. Ela também não se demorou, também tinha pressa em estar com ele. Não se preocupou em se embelezar excessivamente, vestindo apenas o biquíni, um vestidinho de praia sobre ele, e se observando e retocando apenas muito moderadamente ao espelho. Foi para a praia à brasileira, sem maquiagem e já pronta para o banho.

Apesar da presteza com que a moça se vestiu, JC não conseguia deixar de sentir que ela se demorava enormemente, vendo-se compelido a ir e vir pela areia em um caminhar desnecessário e ansioso. Quando a viu despontar ao longe, no entanto, toda a sua apreensão se evolou, e uma alegria intensa o invadiu por inteiro. Encaminhou-se para ela decididamente.

JC comentou que costumava caminhar por toda a praia, e a convidou a seguir com ele. Ela avaliou a longa distância e respondeu que talvez não conseguisse chegar tão longe, fazendo-o retrucar que a extensão parecia maior à vista que aos pés, mas que eles poderiam andar até onde ela achasse conveniente, retornando quando ela assim preferisse. Então, lado a lado, os dois iniciaram a jornada com uma alegria transbordante e quase infantil.

Caminharam até o final da praia de Copacabana, depois voltaram até seu início, retornando então ao ponto de partida. A conversa não se fixava em nenhum assunto, mas se mantinha pulando de um para outro, sem nunca perder a animação nem o fio. Conversaram ainda uns minutos após a chegada, quando JC a convidou a entrar na água. Madeleine respondeu que, desde o dia do quase afogamento estava mais cautelosa, amedrontada, e preferia não entrar, sugerindo que ele mergulhasse sozinho. Ele considerou que tal medo era exagerado, que o mar estava relativamente tranquilo e que seria um bom momento para perder o medo e aprender uns truques para evitar tribulações análogas às que haviam originado o encontro de ambos.

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Começou explicando que o momento era bom para adentrar o mar, já que a maré estava enchendo. Explicou que a maré enchia e esvaziava sucessivamente, o que podia ser notado pelas marcas das ondas na areia e pela altura das águas. Informou que, ao esvaziar, as águas levavam tudo para o mar, de modo que havia certa dificuldade em deixá-las durante a vazante. Quando enchia, ao contrário, as ondas traziam de volta para a areia tudo o que tinham engolido anteriormente, assim, como naquele momento o mar estava enchendo, poderiam mergulhar sem medo, em caso de qualquer problema, bastaria se deixar levar pelas ondas e elas os trariam de volta às areias. A moça aquiesceu obediente, avaliando que em companhia de seu salvador, nada poderia temer: – se jurar me proteger eu me entrego a você. E adentraram alegremente as águas.

Ele precisou ensiná-la a furar as ondas, mostrando o seu próprio modo de prender a respiração, pronunciando um suave hm contínuo, para evitar que a força das vagas lhe impingisse água nos pulmões; depois sugeriu que mergulhasse bem fundo ao furar as ondas altas, de modo a escapar de sua força, de seu turbilhão. Também lhe mostrou como utilizar o impulso das ondas para levá-la de volta à beira d’água pegando um jacaré, ou seja, deslizando na onda até a parte rasa, mas se arrependeu de deixá-la só, retornando impetuosamente em potentes braçadas para a proximidade da jovem, logo após uma breve exibição da façanha.

Estiveram na água por um tempo considerável, aprendendo os mistérios do mar e de sobrevivência naquele local, usufruindo o prazer de todas aquelas descobertas, e de sobrepujar os perigos com conhecimento e perícia. Voltaram mesmo sem perceber a passagem do tempo, deleitando-se ambos com a imagem um do outro.

Durante a volta, quando eram trazidos por uma onda, seus corpos se tocaram muito intimamente, trazendo forte embaraço para JC que tentava se desvencilhar do corpo da moça, trazido pelas ondas para bem junto do dele.O movimento das águas os comprimindo e os esfregou um no outro. Quando conseguiu se libertar daquela união inesperada o homem estava aturdido, acabrunhado pelo rápido entrelaçar de corpos que alegrou a moça ainda mais que os ensinamentos marinhos. Deixaram a água entre os risos de Madeleine, e o olhar atônito de JC.

Deitaram-se na areia, com o corpo voltado para o céu, sobre um único pano trazido e estendido pela moça, mantendo uma proximidade altamente reativa. A conversa permanecia inflamada, cheia, exuberante, quando JC virou seu corpo de lado de modo a encarar a moça mais detalhadamente e enfatizar seu ponto, no que foi seguido por ela.

Quando ela se virou para ele, ocorreu que a distância muito exígua em que ambos se mantinham, deitados sobre o mesmo pano, permitiu que JC descobrisse uma estranha imagem refletida na íris da moça, levando-o a se aproximar ainda mais de seus olhos, até perceber que o reflexo que via era sua própria figura sendo engolida pelas pupilas expressivas que se dilatavam ante sua aproximação, englobando sua imagem refletida e acomodando-a em seu interior.

Havia uma enorme magia naquele olhar que encantava o homem capturado pela beleza e pelo desenrolar surpreendente dos acontecimentos minimalistas que se passavam no olho da moça, como em uma tela que se expandia abarcando todo o campo visual. Tanto a beleza, quanto a surpresa da ocorrência puxavam JC para uma

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proximidade ainda maior, até seu lábios se tocarem fazendo a boca da mulher se acomodar à dele introduzindo nela a sua língua, fazendo-o corresponder com a dele os movimentos que ela lhe impunha. Ao mesmo tempo a imagem crescia, se expandia, e ele acompanhava com nitidez o seu próprio reflexo adentrando a jovem, se encaixando nela, capturado em um cômodo escuro emoldurado pelo azul brilhante da íris de Madeleine. Seus olhos brilhavam e pulsavam intensamente quando JC sentiu o corpo da mulher encostar-se ao seu, fazendo-o estremecer sob uma enorme convulsão de sentimentos que o confundiam e o atordoavam obrigando-o a evitá-los, contrapostos a outros igualmente intensos que o compeliam a se aproximar mais e mais, a mergulhar na jovem como em um mar convidativo, a penetrá-la pelos olhos, pelo corpo, comprimir-se a ela, acariciá-la, beijá-la.

Desnecessário dizer que, aos trinta e três anos, o Cristo nunca havia nem ao menos beijado uma mulher. Foi exatamente o que ele disse em seguida, quando recobrou alguma parte de seu eu, ainda atônito, e sob uma confusão extraordinária de sentidos, amplificada pela respiração descompassada, cujo descontrole o afligia e o desorientava ainda mais. Em resposta à confissão, Madeleine segurou sua cabeça com uma das mãos, puxou seu corpo para ainda mais junto de si, e o beijou apaixonadamente, enquanto se comprimia sobre ele pressionando e friccionando o seu corpo no dele com uma sensualidade deliciosa.

Um Cristo atônito e irrequieto emergiu daquele contato surpreendente. Tinha-se preparado durante toda a sua existência para dar a vida pelos semelhantes, mas nunca se preparara para contingência tão extraordinária.

* * *

Embora o tempo estivesse passando de uma maneira desordenada, sem que o Cristo conseguisse percebê-lo, a ardência e vermelhidão que o sol impunha em seu braço e ombro, o obrigaram a deixar a praia, ainda desorientado. Madeleine se prontificou a acompanhá-lo até sua casa, o que parecia estranho, incomum, desconcertante, mas a confusão em que sua mente se encontrava não permitia que ele tomasse qualquer decisão, aquiescendo apenas. Caminharam uma centena de metros até chegar ao edifício em que morava, lavaram os pés na torneira do térreo, como ele fazia automaticamente sempre que chegava da praia, e subiram.

Ainda confuso, ele sugeriu que ela tomasse banho primeiro, mas entrou no boxe junto com ela para ensiná-la a ligar o aquecedor. Estando ambos em trajes de banho no interior do boxe, Madeleine, sem se preocupar com o aquecedor, fechou a porta, abriu a torneira, e desamarrou o sutiã, revelando o que ainda restava mostrar de seu belíssimo corpo. Apatetado, extasiado, confuso, agitado, sob o efeito extremo de uma pulsão erótica que não conseguia canalizar adequadamente, permaneceu embasbacado e inerte, fitando-a com olhar ao mesmo tempo ávido e desalentado. A moça se deixou observar por uns momentos, e antes que o olhar perscrutador do homem em sua frente a intimidasse, ela o abraçou, esfregando os seios deliciosos em seu corpo, retirando a calcinha, e desnudando-se por completo.

JC contemplou-a extasiado daquele ângulo inaudito em que a via, de cima para baixo, percebendo sua cabeça e ombro sobre uma bundinha carnuda e protuberante

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sobressaindo-se na imagem. Sua atenção, estimulada ao extremo, não conseguia se definir entre as sensações visuais e as tácteis, oferecidas tanto por suas mãos percorrendo as costas lisas de Madeleine, quanto pelo corpo, ávido por sugar o dela, abraçada carinhosa e sensualmente a si. Deixou que ela sacasse seu calção até a altura do joelho, quando terminou a retirada com o pé.

Estando ambos completamente nus, ela o puxou para sob a água morna, onde permaneceram abraçados, usufruindo o corpo e as carícias um do outro. Em seguida, ela o ensaboou, acariciando-o sob o contato intenso de todo o corpo. Entregou-lhe o sabonete, enquanto ainda o esfregava com a intensidade de uma carícia sensual, e não foi necessário comandar que lhe esfregasse a ela também. Permaneceram nessas carícias intensas por um longo breve tempo que não tem duração. JC com a respiração desconexa e completamente descompassada, aturdido pela deliciosa sensação de uma intensidade muito superior a qualquer coisa que pudesse ser assimilada, ainda que toda a sua atenção tentasse se dirigir com avidez a cada ponto de seu corpo inundado pelos estímulos sensoriais surpreendentes e inauditos.

Tendo terminado de se ensaboar, se enxaguaram e Madeleine se aconchegou a seu corpo de uma maneira calma e sinuosa, acalentando-se em um ritmo delicioso que o compeliu a apertá-la com intensidade para si. Puxava-a para bem junto de si, desordenadamente, sob o jugo de uma respiração completamente desconexa.

A mulher, então, puxou a toalha de sobre a parede de vidro do boxe, e enxugou o corpo de ambos com certa rapidez e sem grande esmero. Interrompeu carinhosamente a tentativa do homem de comprimi-la sobre si para guiar-lhe até a cama, onde ela o empurrou para se deitar sobre ele, beijando-o, abraçando-o e acariciando-o intensamente. Ele permaneceu ávido, extasiado, perplexo e abobalhado enquanto Madeleine se acomodava em seu corpo revelando um conjunto de sensações deslumbrantes e arrebatadoras. Ela o guiava em meio ao turbilhão avassalador de emoções que se sucediam no vai e vem dos corpos, do mesmo modo que, momentos antes, ele a conduzia pelas idas e vindas das ondas do mar.

Nenhuma descrição prévia o tinha feito suspeitar da intensidade de tudo o que sentia naqueles momentos gloriosos em que a imensidão de estímulos impedia a compreensão, confundia e enlevava, roubando o juízo, a razão, os receios, pudores, freios, e todas as possíveis restrições que viessem a impedir o livre fluxo de sensações e sentimentos.

Quando a paixão e a vontade de se comprimir sobre Madeleine e mergulhar nela se extinguiram, JC permaneceu confuso tentando entender a explosão ocorrida, procurando se situar em uma nova realidade, muito mais densa e saborosa que a conhecida anteriormente. Embora sentisse que sua tônica, seu intuito principal, consistisse em compreender o que se passava ao redor, foi tomado por uma ânsia intensa de recomeçar tudo aquilo, dessa vez iniciando ele as ações, e se posicionando com avidez sobre o corpo da mulher que o recebia novamente.

O prazer que sentia, despojado da curiosidade inicial que roubava sua atenção para elementos periféricos, revelou-se ainda mais intenso, embora a mesma respiração descompassada logo se assomasse dele novamente, controlando seu ritmo e induzindo seus movimentos sôfregos e compassados, sequioso em busca de algo desconhecido, tomado por uma avidez inexplicável.

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Como que embriagado por sua própria ânsia, inebriado pela sofreguidão que se lhe apossava, no auge de seus movimentos ritmados foi tomado por um delírio luminoso que o transportou a confins repletos de estrelas, a vôos de candura extrema em companhia de Madeleine, mergulhando nela, englobando-a, misturando-se a ela. Mergulhava também em todas as coisas, provando de cada uma, sendo cada uma delas, abarcando-as, até a explosão atemporal de luzes e sensações, quando JC retornou ao mundo, perplexo, e se sentindo completamente mudado. Mais que isso: em meio à intensa alegria que o inundava, JC percebeu com nitidez e clareza que todo o mundo ao redor se encontrava alterado!

Os acontecimentos, cada vez mais intensos, desnorteavam JC, faziam-no sentir uma criança em meio à descoberta fascinante. Permanecia assombrado, extasiado com o deslumbramento extraordinário. Após mais uns momentos de deleite mental em que rememorava os eventos imediatos, revivendo-os mentalmente com enorme alegria, foi assaltado por mais uma onda lúbrica que o compeliu a retomar todo o ritual novamente. Mantiveram-se assim por um longo tempo, alternando estados de sofreguidão compulsiva, com outros de contemplação, reflexão e deslumbramento, todos imersos em uma alegria esfuziante.

* * *

Em certo momento, Madeleine comentou que estava com fome, e perguntou se havia comida em casa. O homem respondeu não ter nenhuma pronta, havendo, no entanto, todos os ingredientes para prepararem um belo almoço. Com esse objetivo em mente, levantaram-se, já pensando em que prato fazer. A caminho da cozinha, JC se surpreendeu com a escuridão que o obrigou a acender a luz, fazendo-o imaginar, perplexo, o que teria originado tamanho negrume. Permanecia atônito quando revelou o fato a Madeleine que saía do banheiro:

– Percebeu como está escuro?, o que terá acontecido?– Anoiteceu, respondeu a moça, displicentemente.– Pois é, que será isso?, um eclipse? Como eu poderia desconhecer um fato

desse?, que estará acontecendo?A moça o olhou surpresa, quase pasmada, mas lembrou que aquele era um dia

especial. Riu:– Já anoiteceu, que horas você imagina que são?– Saímos da academia direto para a praia, depois viemos para cá. Bem, acho

que enrolamos um pouco – comentou sarcástico –, mas ainda deve ser hora do almoço... duas horas, no máximo.

Madeleine riu novamente percebendo o grau de aturdimento de JC.– Já é noite. São umas oito horas.Olharam no relógio, já eram oito e trinta e cinco, o que ampliava o grau de

confusão e estupefação de JC. Como poderia estar tão atordoado?– Que coisa estranha, nem almoçamos. Nem lembro quando foi a última vez

que deixei de almoçar. Mas ao pensar que algo estranho estava ocorrendo, riu, e retomou a aura de felicidade e estupefação em que estava imerso.

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De uma maneira bastante drástica, a fome que parecia ter sido adiada durante todo o dia, se aplacou intensa sobre ambos. Aceitou a ajuda que Madeleine lhe ofereceu para preparar a comida. Decidiram fazer apenas uns legumes refogados com molho de soja, o prato mais rápido que conseguiram imaginar com o ingredientes que encontraram.

A fome foi, não apenas tempero maravilhoso, mas também uma gulosa conselheira da quantidade produzida. Ambos comeram fartamente, a tal ponto que JC não conseguia disfarçar sua voracidade. Depois de deglutir a espantosa quantidade de alimento que haviam preparado para dois, ainda complementaram a refeição com as frutas variadas e saborosas que nunca faltavam naquela casa. Após o repasto, JC sentiu reavivar o impulso de acariciar e beijar Madeleine, carregando-a no colo para a cama novamente.

Nesse dia, houve apenas um momento em que a mente de JC vagou, como frequentemente o fazia, por abstrações complexas e alheias ao cotidiano imediato. Por uns instantes em que Madeleine esteve fora do quarto, ele sentou-se ao computador, e ainda abalado pelas novas sensações que não podia compreender, iniciou um tratado filosófico acerca do absurdo de todas as representações possíveis sobre o mundo, ideias esboçadas, mas nunca concluídas. O escrito dizia:

Tratado filosófico

O mundo é completamente caótico e desconexo, de modo que as ordenações que tentamos lhes impingir são todas, necessária e igualmente, arbitrárias e absurdas, revelando-se apenas a si mesmas, a despeito da vã tentativa de se imporem, à totalidade das coisas. A única “ordenação” do mundo que lhe faria alguma justiça, que lhe poderia verdadeiramente representar em alguma extensão, e de fato em toda ela, seria a concepção global do todo, sua percepção holística, por inteiro, mas tal representação se encontra, obviamente, muito além de qualquer noção que poderíamos vir a ter, nos sendo de todo inacessível. De fato, a única concepção de mundo não absurda, seria, ela mesma, o próprio mundo, por inteiro, essa mesma totalidade absolutamente caótica, desconexa e inatingível. Assim, o mundo não nos é acessível, sendo o absurdo das ordenações arbitrárias o único a que podemos aspirar.

Permaneceu sentado em frente à máquina apenas enquanto a moça se ausentava do quarto. Ao retornar, ela leu com ele seu esboço hermético, e discutiram brevemente o texto, quando ele se referiu seguidamente às suas experiências recentes. Mas, encantado como estava por Madeleine, logo voltou a falar em seus olhos, e a tentar arquitetar um plano poético para mergulhar dentro deles.

Pelos dias subsequentes, permaneceram diuturnamente nessa mesma rotina: ambos grudados um ao outro, completamente alheios ao tempo, alternando carícias, refeições, e momentos de sono, sem se preocupar com o mundo ao redor que, quase certamente, continuava a transcorrer como sempre, com os dias e noites se sucedendo em uma ordem a que os dois permaneciam alheios.

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* * *

Desde o primeiro contato com as ideias abstratas de JC, Madeleine se interessou vivamente por elas, e o estimulou a escrevê-las. Ele comentou que, desde quando eleito Cristo, vinha escrevendo regularmente, disciplinadamente, listando para ela um conjunto de temas a que costumava aludir, esboçando rapidamente as teses que defendia. A moça se surpreendeu com aquela faceta intelectual de JC, talvez por esperar que o belo homem de corpo esculpido por exercícios sistemáticos e pesados devesse ser um néscio, como se os músculos fossem adquiridos através de alguma modificação da massa encefálica. Mais que surpresa, ela ficou realmente encantada com os dotes intelectuais que descobria no homem que, a seus olhos, o adornavam ainda mais que o corpo – ao menos ela tentava se convencer disso. O olhar com que ela acompanhava suas explanações abstratas o envaidecia e o estimulava francamente a prosseguir ainda mais entusiasticamente em seus escritos.

Tendo encontrado sobre a escrivaninha o seu pequeno tratado sobre história recém publicado, Madeleine pôs-se a lê-lo.

* * *

História do Brasil e da cidade do Rio de Janeiro, parte VI – Independência

Com a derrocada do exército francês, cessando a ameaça a Portugal, o rei regressa a seu país, retornando a relação de parasitismo original, e deixando seu filho no trono local.

Poucos anos depois, instigado pelas oligarquias daqui, o príncipe de Portugal proclama a independência do Brasil, retornando em seguida a Portugal para governá-lo, deixando o Brasil para seu filho, uma criança.

Guerra do Paraguai

Contam que um ditador malvado teria assumido o governo do Paraguai. Indignados com tal fato, Argentina, Brasil e Uruguai formaram uma coalizão para massacrar brutalmente a população paraguaia. Ao final da hecatombe, virtualmente todos os homens do país tinham sido exterminados, não sendo poupados nem ao menos os recém nascidos do sexo masculino. Este genocídio assinala o surgimento do glorioso exército brasileiro.

Abolição

Ao final do século XIX, proscreve-se a escravidão, correspondendo a uma redução significativa nas relações de opressão: os castigos físicos passam a ser vistos como exageros, o tráfico de pessoas torna-se ilegal, havendo também uma redução nas diferenças sociais em decorrência da abolição da classe mais desgraçada, a dos escravos. Em contrapartida os patrões se eximem do ônus da aposentadoria dos

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empregados, dívida, de fato, ínfima, devido à mortandade precoce das criaturas mal-tratadas.

Imigração

Em continuidade ao plano de recomeçar o Brasil, livrando-o dos mestiços, inicia-se uma campanha de imigração de europeus, e posteriormente asiáticos, para o país. Os novos imigrantes chegam recebendo enormes vantagens sobre a população mestiça, usufruindo de diversas regalias vedadas aos escuros.

* * *

A relação entre JC e Madeleine se iniciou intensa, absorvente, e assim se conservou. Nos primeiros dias em que mergulharam um no outro, permaneceram alheios a tudo o mais, vivendo apenas da visão um do outro, do desejo de se fundirem em um só, de se diluírem um no outro, enquanto compartilhavam a casa de JC– um pedaço do quarto, mais especificamente. Foi com naturalidade, e sem determinação explícita, planejamento, ou decisão, que Madeleine ficou morando com o Cristo.

Nos primeiros dias, teve que ir à casa de sua mãe, onde estava morando provisoriamente, pegar umas roupas. Logo, trouxe uma mochila com várias delas, o que já era quase sua mudança. Tinha retornado ao Brasil para trabalhar com a mãe, ajudá-la na tarefa de guia de turismo, mas permanecia indecisa quanto a seu destino, quanto à sua fixação no país e seus próprios rumos, irresoluta até sobre seu local de morada. O encontro com o Cristo rapidamente esclareceu todas as suas dúvidas, iluminando nitidamente os seus desejos, apontando sua fortuna. Assim como o homem extasiado pela bela jovem que lhe revelava prazeres maiores que os que havia algum dia sonhado, ela se encantava com o intelectual admirável e surpreendente que descobria ainda mais interessante a cada dia.

Os dois parecia se sugar, ávidos um do outro que estavam. Permaneciam um enorme tempo juntos, a se olhar, a se tocar, a se descobrir. Namoravam quase integralmente. Durante as pausas, Madeleine perguntava e ouvia sobre as várias ideias que o Cristo expunha com domínio e paixão, e o estimulava a escrevê-las. Também se comprazia em ler o que ele já havia escrito, comentar, perguntar. Admirava-se com a criatividade do homem, com seus múltiplos interesses, sua cultura generalizada, seus pontos de vista pessoais, próprios, originais. Nunca havia encontrado alguém com um conhecimento tão variado, capaz de explicar em palavras simples, tão vasto conjunto de ideias inéditas. Achava improvável que qualquer de seus professores nas universidades francesas, as pessoas mais cultas que conhecera até então, fosse capaz de defender tantos pontos tão originais, e o fazendo ainda em um linguajar simples, tornando as ideias compreensíveis a qualquer ouvinte inteligente e atento.

Estimulado pela admiração de Madeleine, e por seu constante encorajamento à escrita, utilizava o pouco tempo que restava daquele namoro absorvente, para transpor as ideias de sua mente para o computador. Mesmo isso, era feito ao lado da moça, interrompendo-se sucessivamente para contemplá-la semi-extasiado. Também

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intercalava a construção de poemas com seus escritos teóricos, e apesar de tantos outros atrativos, seu estado de espírito enlevado, beirando a fascinação, permitia que seus dedos percorressem o teclado com rapidez, enquanto sua mente fluía livremente, sem percalços, de modo que poucos minutos lhe eram suficientes para levantar da cama, sentar-se ao computador, e despejar torrencialmente e em uma ordem impecável, as variadas ideias que já vinha elaborando havia anos, sem nunca ter se animado a escrever.

Agora a rotina de JC se comprimia, e as longas horas de namoro, mais importantes e mais absorventes que tudo o mais, se sobrepunham a todas outras, de modo que os exercícios físicos tiveram que ser compactados, executados com certa pressa, tendo sido forçados a ligeira alteração. A nova série de exercícios musculares se compunha de longas repetições de movimentos com uma carga relativamente leve. Já as caminhadas diárias pela praia, agora sempre acompanhadas por Madeleine, tornaram-se mais rápidas e ligeiramente encurtadas. Nesses momentos, alternavam as conversas sobre os amores e as estrelas, com as proposições teóricas que o Cristo transporia para o computador assim que chegasse em casa. Rapidamente ele construiu uma nova rotina, mais cheia que a anterior, não menos impositiva.

* * *

A profecia lurúntu

Dentre os raros escritos do Cristo divulgados em épocas anteriores, um deles acabou ganhando destaque logo após sua eleição, mas, nas mãos de criaturas ávidas de sensacionalismo, teve consequências funestas que muito desgostaram seu autor; tratava-se de uma de suas profecias.

O vaticínio, na verdade, correspondia a um argumento racional, como, aliás, costumavam ser seus escritos proféticos, e baseavam-se em duas premissas extremamente simples:

1) O homem contemporâneo desconhece muita coisa sobre o mundo.

2) Grandes alterações tendem a provocar grandes eventos.

O raciocínio correspondia ao seguinte: as consequências do aquecimento global, um fenômeno imenso, tão amplo quanto poderoso, devem ser gigantescas. Como desconhecemos as possíveis implicações de tal tipo de acontecimento, é provável que decorrências gravíssimas e inimaginadas advenham do fenômeno.

Como ilustração, o Cristo discorreu brevemente sobre um povo que nunca tivesse ouvido falar em tufões, ventos giratórios poderosíssimos concentrados em uma região bastante restrita. Aos olhos desse povo, os furacões seriam, não apenas imprevisíveis, como absolutamente inimagináveis. Nenhum sábio de tal povo, por maior que fossem seus conhecimentos, poderia deduzir a possibilidade de formação de um evento tão bizarro quanto um ciclone.

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Com base nessa analogia, o Cristo postulou o advento do efeito lurúntu, uma consequência estranha e inimaginável decorrente de um evento poderoso como o aquecimento global. Lurúntu, segundo ele, seria apenas um nome para algo desconhecido e terrível, algo destruidor, mas ao mesmo tempo incognoscível, inesperado. Era a previsão do imprevisível!

Durante anos a profecia permaneceu esquecida, como se dormisse um sono profundo. Mas a notoriedade recém adquirida de JC trouxe à baila o antigo presságio, e sob uma roupagem aterradora. Após breves reaparecimentos em revistas sensacionalistas de pequena circulação, um documentário de um requinte tão grande quanto irresponsável, tratou de dar cores tenebrosas à profecia.

Em uma superprodução televisiva repleta de efeitos visuais inéditos e criativos, e entre sons horripilantes parecendo advir das mais assustadoras fitas de terror, a profecia lurúntu foi apresentada ao grande público.

Nenhum outro resultado poderia decorrer da composição apresentada, que uma onda de apreensão, uma disseminação de sentimentos aterrorizantes sem precedentes.

O suposto documentário, elaborado por uma rede de televisão bastante conceituada, diga-se de passagem, apresentava os principais ingredientes do terror: um clima ameaçador pouco compreensível, e a escassez de informações, embalados em uma roupagem sonora envolvente, entre vozes tenebrosas e ameaças latentes.

A premissa básica da profecia, de que o fenômeno teria que ser, por definição, desconhecido, não só permitiu, mas quase obrigou o documentarista a compor o clássico roteiro de terror, onde a ameaça, ainda que presente e iminente, permanece latente por todo o tempo. Talvez os produtores da obra tenham sido envolvidos exatamente por esse clima, ou talvez, desde o início já o tenham buscado, de qualquer modo, todos os tipos imortalizados na cinematografia de terror acabaram sendo aventados em nome do desconhecido, havendo a sugestão de infestações de vampiros, invasões de extraterrestres, bruxas, e demais seres macabros, todos eles decorrendo de uma ou outra maneira do aquecimento do planeta, em um pandemônio que pareceria cômico, não fosse a forma intensa e contundente com que seus executores conseguiram dar vida à própria imaginação.

As imagens bizarramente realistas acabaram gerando um medo irracional por todo o planeta, atribuindo um significado assustador à palavra lurúntu, e associando-a ao eu criador, o Cristo, e a aspectos de religiosidade, que ainda lhe amplificavam a carga de terror.

Desgostoso com a repercussão de sua ideia, só restou ao Cristo denunciar o caráter sensacionalista e chocante do episódio, tentando, em vão, chamar a atenção para mais essa consequência nefasta do aquecimento global, esse efeito avassalador tão prenunciado, tão criticado, mas tão pouco combatido. A passagem resultou em um certo amadurecimento de JC, o autor da ideia, que sentiu na carne a impotência diante do desenrolar de fatos decorrentes de suas próprias ações.

* * *

História do Brasil e da cidade do Rio de Janeiro, parte VI – Final

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República

Duas décadas depois da assunção da criança ao trono, as oligarquias locais se rebelaram contra ele: instaurou-se a república. A população brasileira crescia vertiginosamente.

Fronteiras

Após um conluio com os ingleses, o Brasil resolveu todas as suas questões de fronteira, ampliando enormemente seu território que passou a se estender muito além da linha de Tordesilhas, pelo interior da América do Sul. Todas as contendas resultaram em vitória da posição brasileira, exceto a disputa com a própria Inglaterra. Deve ser louvado o fato de que tais acordos encerraram qualquer pendência subsequente, exceto o roubo do Acre.

Com a difusão dos automóveis, o preço da borracha elevou-se enormemente, estimulando a cobiça de muitos. Alguns deles invadiram e roubaram as terras hoje chamadas Acre, com o intuito de abocanhar as rendas advindas da exploração da borracha.

Segunda guerra

Em meio aos conflitos internacionais generalizados intitulados “segunda guerra mundial”, um navio mercante brasileiro foi bombardeado por um submarino invisível. Surgiram boatos de que o submarino fosse americano, forçando o Brasil a se definir em relação ao conflito. Assumiu-se que o submarino era alemão, levando o Brasil a retaliar os agressores invadindo a Itália, que nada tinha a ver com a história.

Pouco antes da guerra, um ditador popular havia assumido o poder. Após a guerra restaura-se a república (considerando-se que um ditador vitalício é um monarca, declaradamente, ou não).

Ditadura militar

Em meio à guerra fria, no cenário mundial, por toda a América do Sul, militares são instados pelas forças norte-americanas a instaurar ditaduras rotativas com tendências anticomunistas explícitas. Não deixa de surpreender que, no Brasil, os ditadores tenham cumprido as determinações e se alternado no poder por mais de duas décadas. Em outros países, conforme esperado, os ditadores trataram de tentar a sua própria perpetuação no poder. A independência usualmente almejada pelos ditadores deve ter influenciado na mudança dos planos. Aliado a isso, as torturas desumanas em moda nos países assolados pelas ditaduras militares, causava asco entre as pessoas civilizadas de todo o planeta. Tais fatores, entre tantos outros, acarretaram mudanças nos ventos vindos do norte, que passaram a determinar a volta às democracias.

Retorno à normalidade

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O declínio do império americano, e seu comprometimento em massacres generalizados no oriente médio, permitiram uma independência relativa de vários países da América do Sul, notadamente Brasil e Venezuela, que experimentaram forte desenvolvimento e redução na miséria de seu povo. Uma característica desses tempos foi uma espécie de retorno ao Brasil original, iniciando finalmente uma recuperação das regiões deserdadas pelo rei de Portugal e de suas populações mestiças. A população brasileira atingiu sua população máxima, começando a declinar devido à redução drástica na taxa de fertilidade das mulheres, conseguida através do aumento de renda dos miseráveis.

Tal é, em resumo, a descrição dos fatos principais que delinearam os perfis e conformaram os destinos do povo brasileiro.

* * *

Excetuando um projeto de um veículo assemelhado a um helicóptero simplificado que idealizara muitos anos antes, todas as ideias originais que tivera, e das quais conseguia lembrar – supunha haver esquecido a maior parte delas, o que não o incomodava – eram fundamentalmente abstratas. Isso decorria, certamente, de sua própria natureza etérea e contemplativa, e de sua vivência anterior sempre imersa em questionamentos de natureza científica ou filosófica, e francamente alheio às mazelas correntes do dia a dia.

Uma de suas ideias mais prezadas, no entanto, não dizia respeito a elucubrações abstratas, mas concernia a um aspecto que, em princípio, era do tipo daquelas que poderiam alterar completamente sua vida diária: tratava-se da idealização de um centro de pesquisas e debates. Há inúmeros destes por todo o mundo, a originalidade de sua ideia consistia em atrair a um local esquecido, algumas das maiores mentes do planeta.

Em linhas gerais, seu plano era de uma simplicidade extraordinária: sabia ser difícil atrair os grandes pensadores para qualquer lugar fora dos grandes centros onde se encontravam estabelecidos e consagrados. Também considerava praticamente impossível atrair mentes tão brilhantes para algum deserto intelectual. Assim, necessitava criar um atrativo prévio, para com ele fomentar um núcleo originário, e fazê-lo crescer, fermentado por condições perfeitas e pela aglutinação de espíritos brilhantes angariados em todos os pontos do globo.

A estratégia idealizada por JC consistiu então em buscar uma paisagem belíssima, em local de clima agradabilíssimo, e nele plantar o mais belo jardim já visto, para, nesse novo Éden, erigir uma habitação assemelhada a um hotel maravilhoso onde qualquer pessoa adoraria passar ao menos algumas semanas. Ao lado desse atrator quase turístico, recheado de piscinas, áreas de lazer, campos esportivos, e todo o suporte que um hotel de luxo proporcionaria, se encravaria o centro de pesquisas propriamente dito, reunindo mentes selecionadas entre as mais brilhantes do mundo, e comandando uma universidade de primeira linha, com poucos alunos muitíssimo selecionados, uma forte ênfase em cursos de pós graduação, e um

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enfoque na produção integrada de cultura, conforme os cânones supostos para a nova era, também idealizada por JC.

Ao lado de tal centro, localizado em uma praia paradisíaca do extremo sul da Bahia, próxima ao ponto onde Cabral teria aportado no ano de mil e quinhentos, se constituiria também uma escola de artes, com ênfase na música e na dança, aproveitando uma inclinação local para esses aspectos, sem esquecer a produção teatral, literária, cinematográfica e visual, e contemplando também as reflexões sobre esses temas. Desse modo, JC idealizava um centro científico-filosófico-artístico multidisciplinar altamente integrado entre si. Tudo isso imerso em um belíssimo jardim incrustado em praia paradisíaca.

Imaginava, é claro, lindos prédios adornando à paisagem deslumbrante. Também propunha a priorização de bicicletas como meio de transporte, permitindo apenas a circulação de veículos automotores elétricos, e sob condições bastante restritivas.

JC gostava de sonhar com tal projeto, que ele dizia não poder vir a usufruir. Mesmo assim, se comprazia em imaginar um futuro além de sua existência, onde sua idealização, seu sonho, funcionaria como um germe da nova era.

* * *

As festas de fim de ano tinham sido maravilhosas para o casal. Madeleine se sentia satisfeita e orgulhosa ao lado do homem que inesperadamente havia encontrado tão distante de seu próprio mundo. JC, cuja vida tinha girado sempre em torno de um mundo abstrato, entre ideias e conceitos, começava a descobrir o mundo ao redor, com o auxílio de sua amada.

Além disso, a consciência da proximidade com a morte impunha a JC uma espécie de concentração que o induzia a usufruir todos os momentos de sua vida com uma intensidade espantosa. Agia como o doente desenganado, cuja morte não tardará, embora esbanjando a mais exuberante saúde de atleta.

Logo nos primeiros dias do ano recebeu um convite para uma reunião com a diretoria da igreja. Foi ao encontro esperando tratar de alguma questão relativa ao espetáculo, ou de discussões acerca da burocracia da igreja. O conteúdo da reunião, no entanto, o surpreendeu completamente: tratava-se de um convite para desfilar em uma escola de samba no carnaval.

Ao receber o convite o Cristo fez mais de uma expressão de incompreensão, para em seguida dar uma risada sonora inesperada, e aparentemente fora de propósito, gerando um certo constrangimento entre uns membros do grupo, mas recebida com satisfação por outros. A gargalhada inusitada foi estranha o suficiente para fazer o Cristo se desculpar por ela, embora tenha sido recebida com alegria por alguns dos diretores, que viram nela uma demonstração de espírito carnavalesco.

Embora disparatada, a risada serviu para quebrar completamente qualquer gelo que houvesse entre os presentes, introduzindo um clima de camaradagem bastante propício ao tema. Os membros da igreja, então, passaram a expor uma questão na qual a igreja estava profundamente imersa.

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Conforme o Cristo certamente já sabia, a maior fonte de renda da igreja vinha da encenação da paixão. Embora a renda direta com a venda de ingressos fosse bem grande, era superada, já havia alguns anos, pelas transmissões televisivas, especialmente após a internacionalização do espetáculo, e da transmissão ao vivo para quase todo o mundo. Certamente sabia também que o espetáculo já vinha, havia anos, rivalizando em popularidade com o carnaval, e ganhando uma admiração crescente no mundo inteiro. Também era provável que soubesse que a grande rede de televisão brasileira, detentora havia décadas dos direitos exclusivos de transmissão do carnaval carioca, tinha enorme interesse em transmitir a paixão. Eles então o comunicavam o que estaria estampado em todos os jornais no dia seguinte: que acabavam de firmar contrato para a transmissão conjunta, pelas duas redes, de ambos os espetáculos.

Em vista disso o Cristo os congratulou, recebendo um enorme elogio em resposta, na forma de um reconhecimento de que a sua própria popularidade de Cristo intelectual “se preferimos nos referir a essa, em detrimento da de Cristo sensual” –, disse um dos membros do concílio com satisfação –, teria tido um peso considerável na barganha.

Os diretores da igreja se referiram ainda a um outro ponto, certamente já de conhecimento do Cristo: uma das escolas de samba tinha como tema, naquele ano, exatamente o Cristo redivivo. Comentaram também que a igreja se encontrava em contato com a escola, dando-lhe total apoio para que fizesse um carnaval maravilhoso, e colocando-se a sua inteira disposição.

Em vista disso, os membros da diretoria da igreja lhe faziam um apelo pessoal, mais em nome da amizade e admiração que lhes tinham, que a qualquer outra condição, que figurasse na festa de carnaval. Propunham-lhe, em suma, que participasse da festa como destaque da escola. Haveria, é claro, um lugar para sua esposa, como se referiram a Madeleine, caso ela desejasse.

O clima de camaradagem reinante na reunião, os tons elogiosos da conversa, o espírito alegre que permeava a cúpula da igreja, além da confiança que JC sentia naquelas pessoas, tudo conspirou para que o Cristo se alegrasse com a ideia, que correspondia ao tipo de coisa mundana que ele tinha menosprezado por toda a vida pregressa, mas pela qual ele vinha almejando no último ano.

Embora lisonjeado e satisfeito com o convite, preferiu não dar a resposta imediatamente, mas pensar com mais calma no assunto e responder o mais breve possível.

A reunião não durou muito mais, e ao final dela quase não havia dúvidas de que JC aceitaria o convite. Ele, de qualquer forma, achava melhor apresentar a questão a Madeleine antes de definir resposta.

* * *

A festa de carnaval foi maravilhosa. JC estava acostumado à rotina dos ensaios teatrais, de modo que os poucos ensaios realizados, sempre em clima de divertimento, tinham sido agradabilíssimos, assim como a apresentação final, na qual ele aparecia com uma espécie de bata muito branca, que lembraria mais a vestimenta de um pai de

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santo que a de qualquer cristo conhecido, não fosse a roupa extremamente curta e sensual, deixando à mostra peito, ombros, coxas e o abdômen seco e musculoso do atleta que era. Uma auréola luminosa muito brilhante o destacava maravilhosamente no alto do carro de maior destaque da escola.

Também teve a sorte de que o samba escolhido fosse um dos mais belos de toda a história da escola, mas não foi por acaso que as fantasias e outras alegorias tivessem recebido os maiores elogios por parte de todos os conhecedores do carnaval, já que ambas as redes de televisão se envolveram, bastante tendenciosamente, na execução do desfile, dando uma ampla assessoria a todas as etapas da elaboração do desfile, além de uma torcida também bastante explícita, que induzia fortemente os espectadores a engrossar o coro de torcedores da escola. A vitória do Cristo naquele carnaval já era contada como certa no meio do desfile, gerando um clima ainda mais festivo e contagiante, alegrando todos os componentes da escola que desfilavam pela avenida cantando e dançando alegremente com a convicção campeões.

A coreografia do Cristo, muitíssimo elogiada pela emotividade despertada, consistia em subir no cimo de uma cruz incrustada no alto de um imenso carro, e ali, com braços e pernas grudados à cruz, e destacado pelas fortes luzes contra o fundo negro do céu noturno, se contorcer de uma forma desesperada, como se estivesse sendo eletrocutado.

Após cada encenação da crucificação, o Cristo soltava-se da cruz para dançar, pular, beijar e se confraternizar com Madeleine, que estava belíssima, estonteante, sensualíssima e elegantemente maquiada, embora vestindo um vestido impecavelmente branco e muito simples, mas que lhe caía no corpo revelando as formas magníficas, esculpidas diariamente na academia de ginástica.

JC só desgrudava da moça para reencenar a seção de espasmos frenéticos sobre a cruz, arrancando uma imensa quantidade de suspiros das mulheres presentes ao espetáculo, sob o olhar atento de Madeleine que se divertia imensamente não só com a atuação de JC, à qual se referia como “a barata doidona”, mas com a completa falta de sentido com que tudo ao redor lhe parecia. Também agradava à moça que a festa caricaturasse a igreja rediviva e seu espetáculo macabro.

A atuação do casal foi um dos pontos altos de toda a festa, consolidando o carisma de JC, e lançando no cenário nacional uma das mais belas celebridades, Madeleine, a deslumbrante esposa do Cristo.

* * *

Aderson

Difícil definir Aderson Lima, melhor tentar situá-lo. Cresceu sonhando ser policial. Odiava bandidos; tinha-lhes um ódio profundo entranhado em todo o seu corpo, em todo o seu ser. Teve certa dificuldade para terminar os estudos, mas conseguiu, com o auxílio de um amigo que lhe devia um grande favor, terminar o ensino regular. Apesar do favor devido, o amigo ainda pediu um troco, quantia módica, é bem verdade, para fazer as provas se passando por Aderson, empreitada de algum risco, aliás, podendo sujar a ficha do jovem.

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Terminados os estudos, partiu em busca de seu sonho: entrar para a polícia e combater o crime. Preparou-se com entusiasmo para as provas de admissão na polícia, mas depois da terceira tentativa frustrada, teve sua confiança abalada, não tanto pela quantidade de fracassos, mas pela distância que ficava dos classificados, pois, por mais que se preparasse, sua pontuação ficava sempre mito longe da obtida por aqueles que passavam no exame. A derrota provisória, no entanto, não o abateu. Esforçando-se ainda mais em busca do sonho de sua vida, e de uma maneira inconfessável, adquiriu uma quantidade considerável de dinheiro, com a qual molhou a mão dos inspetores das provas de admissão para a polícia, e contratou seu amigo para executar o teste. Foi um dos últimos colocados, mas conseguiu o ingresso para a academia de polícia, em um dos dias de maior felicidade em sua vida. Sabia que tinha nascido para combater o crime, e se sentia um vencedor.

Não teve grande dificuldade na academia, apesar da escolaridade duvidosa. Seu empenho, sua determinação, e mais que tudo, sua coragem, angariaram-lhe desde o início certa fama entre os colegas, e logo, entre seus professores, que viram nessas qualidades uma farta compensação para suas deficiências em sala de aula. Pela primeira vez, terminava um curso com distinção, qualificando-se como bom atirador, atleta, disciplinado, e, sobretudo, intrépido.

* * *

Era uma manhã comum como qualquer outra, e o casal saiu cedo, as mãos dadas, em direção à academia bem perto de casa. Concentraram-se nos exercícios de musculação, nos quais ele a ajudava com sua experiência. Executaram suas séries, e fizeram um breve alongamento para finalizar. Depois, como de costume, tornaram à casa e se aprontaram rapidamente para a praia, onde caminharam, como faziam diariamente, até o final de Copacabana. Quando retornavam, Madeleine encontrou sua amiga Charlotte, de Paris como ela, e também recém fixada no Rio. Charlotte quase não falava o português, de modo que as duas conversaram apenas entre elas, tendo uns breves pedaços da conversa sido traduzidos por Madeleine para JC, que mergulhava em seus próprios planos e abstrações.

Quando já se encontravam no Leme, de volta ao início da praia, Madeleine, que havia permanecido entre os dois durante a caminhada, transladou-se para a esquerda, deixando o Cristo entre ambas, e sua amiga francesa mais próxima do mar. Já estavam bem próximos da montanha que adentra o mar e inicia a praia, quando pressentiram algo estranho. Foi o Cristo quem atentou para o acontecimento inusitado, um silvo surpreendente e um baque na areia, já perto de onde as ondas vinham lambê-la.

O movimento na areia chamou imediatamente a atenção do Cristo, cuja curiosidade o levou a inspecionar aquilo. Abaixando-se, retirou da areia, ainda quente, um pequeno projétil. Era o tipo de coisa que, naquela cidade, costumava ser chamada “bala perdida”. Olhando na direção da rua, era possível ver entre os prédios, as construções precárias e sem reboco encravadas no morro.

Retornaram daquele mesmo ponto. Estavam perto de casa, o homem guarnecendo o flanco atacado, dando cobertura às moças, apesar de supor que a bala

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perdida, na verdade, tivesse sido endereçada a si próprio. Ficou tentando se lembrar se algum dos Cristos anteriores tinha sido vítima de atentado, perguntava-se também, se algum de seus escritos poderia ter incomodado tão fortemente alguma das forças nefastas que brigavam pelo controle da cidade, a ponto de lhes induzir a cometer tal ato. No entanto, a iminência de sua morte parecia tornar absurdas todas aquelas possibilidades. A alternativa de ter sido mesmo uma bala perdida, no entanto, o satisfazia menos ainda.

* * *

Aderson 2

Ao ingressar na tropa, Aderson buscou logo entrar em ação. Seus parceiros sentiam enorme firmeza todas as vezes em que atuava, apresentando-se com imenso moral, abordando os marginais com atitude. Suas maneiras faziam os parceiros se sentirem confiantes e seguros, o que logo chamou a atenção. Em pouco tempo, participava das operações mais complexas e mais arriscadas de toda a polícia, tendo agido com destemor e bravura desde o primeiro momento. Aliás, podia ser dito muito mais que isso: agia com entusiasmo; era com imensa alegria que subia o morro carregando o armamento pesado atrás do caveirão, disparando seu rifle automático com um verdadeiro arrebatamento: era o seu momento de glória.

Caveirão era o nome com que era conhecido o veículo blindado da polícia. Os caveirões ostentavam enormes caveiras apavorantes em suas laterais, o símbolo do batalhão de polícia, utilizando essa imagem, assim como o som dos auto-falantes, para intimidar a população dos morros, um povo difícil de impressionar, estando acostumado com a verdadeira guerra que se travava ali havia décadas. “Vim buscar a sua alma”, ecoava em som alto e metálico dos alto-falantes do veículo a subir as ladeiras lentamente. O terror e os fantasmas do morro tinham a face de um caveirão.

A blindagem do veículo protegia mais de uma dezena de policiais fortemente armados em seu interior, e também dava suporte aos que o seguiam a pé. Aderson gostava de se expor, sentia enorme prazer no risco, e apreciava muitíssimo a exibição, de modo que preferia subir o morro a pé, ao lado do caveirão, ou, melhor ainda, na garupa de uma moto, quando gostava de atirar a esmo com uma das mãos, à maneira dos mocinhos do cinema. Na verdade, suas atuações passaram logo a ser excessivas, chegando mesmo a ser constrangedoras. Ainda era lembrada, anos após o evento, a incursão ao morro, da qual resultou a morte de dezoito traficantes, quinze deles com tiros pelas costas, onze com tiro na nuca. De fato, ele próprio, assim como outros tantos policiais participantes da limpeza, referia-se ao episódio com uma sensação de vitória, de dever cumprido, e até de júbilo, mas sabia que não era de bom tom elogiar aquela operação em público. Aliás, tal ação, apesar do enorme sucesso, deveria ser mantida na maior discrição possível, tendo sido sempre de bom alvitre guardar o silêncio sobre toda a ocorrência.

Comunicado do consulado francês

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No dia seguinte, Madeleine recebeu um telefonema de sua mãe comunicando um pedido para que entrasse em contato com o consulado francês urgentemente, e que o fizesse por telefone, repassando-lhe o número para o qual deveria ligar.

O secretário do cônsul precisou de uma enorme destreza para lhe transmitir uma informação que, na verdade, deveria ser passada pessoalmente, mas, paradoxalmente, era importante que fosse recebida em local seguro. Em seguida, comentou ter ouvido sobre a bala perdida encontrada ao seu lado, questionando-a sobre a veracidade do fato, e incitando-a a relatar o episódio. Tendo ouvido o relato, o secretário, fez muitos rodeios, e circunlóquios sobre a violência local, e a insegurança generalizada reinante na cidade, e após uma conversa que parecia se estender muito mais que o necessário, comunicou, no momento adequado, e com muito tato, que circulava um boato de que haveria um plano para assassiná-la.

Madeleine quis saber mais sobre o assunto, quem poderia pretender assassiná-la e por que razão. O secretário respondeu que, de acordo com o boato, o Cristo teria se apaixonado por ela, o que, muito provavelmente, o induziria a mudar de ideia quanto à sua auto-imolação. Essa desconfiança teria levado alguns de seus seguidores a tentar cortar o mal pela raiz, eliminado-a, e extinguindo, desse modo, a causa do problema, trazendo-o à normalidade, reconduzindo-o dessa maneira aos caminhos de Deus.

A estranha conversa se estendeu por muitos aspectos, tanto da ameaça, quanto da forma com que ela tinha sido descoberta. Em um primeiro momento, a informação obtida através de Charlote sobre a bala perdida descoberta na praia, tinha levado o cônsul a contatar a polícia, uma vez que as praias eram tidas como zonas seguras, livres daquele tipo de ameaça, constituindo, por conseguinte, um dos locais turísticos recomendados pelo consulado como regiões seguras. A notícia da bala colocava a praia do Leme sob suspeita de insegurança, o que deveria ser confirmado pela polícia. Os policiais, no entanto, não confirmaram a periculosidade daquela praia, mas comunicaram ter conhecimento de um plano amplo para eliminar a francesa.

Tendo preparado a moça para a notícia, o secretário então justificou a suspeita, e enfatizou o fato de aquilo não ser uma mera especulação, nem apenas uma tênue desconfiança, mas uma informação advinda de fonte segura. Também informou que, apesar de gravíssimo, aquilo não era motivo para pânico, embora algumas providências devessem ser tomadas. Sugeriu que ela retornasse à França, ou, ao menos, deixasse a cidade, sugestões que a desagradaram fortemente negando-se peremptoriamente a fazê-lo. Recomendou então que ela se expusesse o mínimo possível, permanecendo em locais seguros, evitando sair de casa, e de maneira nenhuma penetrasse em regiões de alta periculosidade.

Terminada a ligação, Madeleine expôs o problema a JC, que não só acreditou na ameaça, como se sentiu esclarecido acerca da justificativa da bala perdida que o incomodava bastante. Foi a vez então de JC acionar seus contatos com a direção da igreja, informando-se através dela que, de fato, parecia haver, por parte de umas poucas ordens, pequenas, pobres e isoladas, a determinação de matar a moça, pressentida por elas como ameaça ao ritual máximo da igreja.

A conversa se estendeu por um longo tempo. O que o Cristo acusava a igreja de traição por omitir informação tão importante. Insistia que a descoberta da

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deliberação do assassinato de sua namorada tinha que ter-lhe sido informada imediatamente. A direção da igreja, posta na defensiva, se justificou minimizando o perigo da ameaça, dizendo estar surpresa ao reconhecer que a tentativa de assassinato tivesse efetivamente sido posta em prática.

Apesar de muitíssimo constrangido, o diretor da igreja garantiu que, até onde ele sabia, a referida deliberação adivinha apenas de determinadas ordens, que ele listou e descreveu claramente, de modo que o Cristo, conhecedor da igreja e de suas seitas, acreditou conseguir avaliar com boa precisão a intensidade da ameaça. Concluiu das descrições, que as seitas envolvidas com o atentado eram todas ligadas ao tráfico, o que o tranquilizou. Temeria mais se fossem ligadas às milícias;ainda mais apavorante seria a possibilidade de que houvesse apoio policial na investida. Mas, considerando que se tratava de bandidos, sentiu-se aliviado, já que permanecia integralmente em território proibido a eles, que muito dificilmente se aventuravam a penetrar armados na zona sul, terra desconhecida e inóspita para os traficantes de fora da zona, já que os bandidos locais, supostamente, não estariam alinhados a eles.

A conclusão do Cristo, na verdade, era muitíssimo temerária, mas ele sabia que não poderia viver fora da cidade. Com a aproximação da páscoa, os ensaios da paixão ficavam cada vez mais frequentes, além das palestras e outras aparições públicas a que se prontificara, acabando por se comprometer a elas. Ao mesmo tempo, não cogitava viver longe da amada nos poucos dias que lhe restavam.

Talvez tenham sido essas as considerações que levaram o JC a menosprezar a ameaça. De qualquer forma, se a descrição que a diretoria da igreja tinha feito fosse correta, e se a decisão se restringisse às ordens referidas na conversa, JC saberia como despistá-los, bastando para isso evitar as áreas ao redor dos núcleos constituídos pelas pequenas igrejas periféricas. Além disso, o diretor se comprometeu a pressionar as ordens insubordinadas, embora sublinhando o fato de que, em última análise, todas elas eram independentes, como o Cristo bem o sabia. De qualquer forma, seria péssimo para a imagem da igreja, ter seu nome associado à morte de uma bela moça, notícia que circularia o mundo, o que garantia a JC serem mesmo aquelas as intenções do diretor.

Nem sempre é fácil imaginar as verdadeiras paixões, os impulsos que realmente movem os seres humanos, especialmente quando eles não seguem a linha recomendada pela razão, mas tanto JC quanto Madeleine, após um breve susto inicial, acabaram por, praticamente, desconsiderar a ameaça, apenas alterando sua rotina, modificando-a, de modo a torná-la menos previsível, alternando os horários antes fixos, e evitando passar pelo ponto da praia, próximo da montanha de pedra, e à vista da favela, onde haviam sido alvejados.

Havia certo tempo que uma consideração de aparência politicamente correta recomendava que a palavra “favela” fosse substituída pelo eufemismo “comunidade”. Aparentemente, a recomendação teve efeitos linguísticos na cidade, dando-lhe uma aparência misantrópica pelo despotismo e desdém com que as “comunidades” passaram a ser tratadas. Mas alguns setores da sociedade, ou, mais especificamente da imprensa, pareciam ver nessa maneira de mascaramento de um fato, sua solução.

As favelas constituíam um problema gravíssimo cuja solução deveria se iniciar garantindo-lhe condições sanitárias e outras, representando o rosto bom do estado. No

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entanto, elas só se deparavam com seu lado malvado, recebendo do poder público, fundamentalmente, apenas recriminações, pancadas, e balas, retribuindo no mesmo tom. Um grande número de pessoas parecia considerar que a solução do problema deveria ser alcançada com a dizimação da favela, incluindo seus milhões de habitantes. Assim, a proposta de solucionar o problema vendando os olhos de quem o via, com a troca de seu nome, parecia constituir uma solução benevolente.

Passados poucos dias, o casal apaixonado pareceu esquecer qualquer ameaça vinda de fora, mergulhando-se ainda mais profundamente um no outro. Recolhiam-se em casa a maior parte do tempo, imersos em um namoro intenso, sedento. Alheavam-se a tudo o mais, de maneira que o único efeito causado pela ameaça externa foi aproximá-los ainda mais intensamente.

Foi em meio ao clima inicialmente gerado pelo atentado que, pela primeira vez, Madeleine, pediu ao Cristo que abdicasse de seu destino. O homem a contemplou com mais suavidade que o fazia normalmente para responder que aquilo ele não poderia fazer, que estava além de sua decisão. Na primeira vez que respondeu ao apelo apaixonado de Madeleine demonstrou uma espécie de convicção automática. Tinha se preparado desde criança para responder a tal apelo, tendo treinado uma profusão de respostas para as inúmeras variações de perguntas sobre o mesmo ponto, durante as representações do papel de Cristo que fazia desde a infância, o seu jogo favorito na época.

Aderson 3

Como todos os outros policiais, Aderson sabia que havia um certo número esperado de óbitos, para cada operação de subida no morro recebida com hostilidades por parte de traficantes. A inexistência de mortos após uma conflagração desse tipo seria encarada como sinal de fraqueza, como uma vitória dos traficantes, e por isso abominada, execrada; em caso de um tal fracasso iminente, os policiais se desdobravam para conseguir um resultado positivo, como um gol marcado durante os acréscimos. Um morto após conflagração já configurava uma vitória. Convém ressaltar que os policiais só atiravam para matar, não podiam se arriscar a deixar vítimas recheadas de ódio em busca de vingança, por essa mesma razão, nunca faziam prisioneiros durante uma conflagração.

Três mortes de traficantes, em consequência de combates, pareciam já um bom número, cinco, ainda melhor, mas oito, certamente, já seriam consideradas um excesso, enquanto mais de uma dezena de óbitos, a menos que houvesse alguma justificativa clara e explícita para o fato, como o falecimento de um policial em ação, seriam consideradas uma chacina, e gerariam comentários maldosos, podendo até acarretar investigações externas e enxerimentos de defensores de direitos humanos, tidos por Aderson como cidadãos altamente desinformados, verdadeiros alienados que nunca subiram um morro, não tendo, portanto, a menor ideia das coisas que ali se passam.

Era notável que a palavra “assassinato” nunca fosse usada naquele tipo de crime, aliás, nem “crime”. Crimes e assassinatos eram atos de criminosos, não da polícia. Quando a polícia matava, o fazia no cumprimento do dever, contingências da

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função. Eventualmente, eram necessárias até umas execuções, disso todos sabiam, mas eram execuções, nem crimes, nem assassinatos. Era preciso deixar isso claro, para que certas coisas não viessem nunca a ser confundidas. Aliás, apesar de algumas hipocrisias, – pensava Aderson –, como as dos que se diziam defensores dos direitos humanos, todos sabiam quem era bandido e quem não era. Ninguém tinha a menor dúvida de que bandido era bandido desde que nascia, e era fácil reconhecer um deles, bastando olhar para a cara, ou ver onde tinha nascido e crescido. Essa convicção, absolutamente clara na mente do policial, não permitia que ele compreendesse a razão de não eliminarem logo as crianças do morro desde tenra idade, seria muito mais fácil e eficaz. Não conseguia entender a necessidade de esperá-las crescer e empunhar uma arma, para só então executá-las, embora seguisse à risca a ordem de poupar crianças, e de ainda se comprazer com o fato de poder pegá-las já crescidas, de modo que se resignava à ordem, com a satisfação do caçador que espera sua presa adquirir o tamanho suficiente para lhe valer como troféu.

Momento

Os dias que se seguiram, ou melhor, os tempos, foram marcados por uma intensidade impressionante, mas facilmente explicáveis. Todos nós vivemos nossas vidas sob a égide do costume. Acostumamo-nos a todas as coisas, das mais esperadas até as mais estranhas imagináveis. Acostumamo-nos à dor, à aflição, à tristeza, à chateação, a virtualmente qualquer adversidade, não importa o quão desagradável e aflitiva ela seja, acostumamo-nos a tudo o que se repita constante e incessantemente. Mas se isso ocorre até com o mais penoso infortúnio, acontece com muito mais facilidade com as coisas que não nos agridem, e mais ainda com as que nos agradam. Desse modo, quase tudo ao nosso redor, quase todo o nosso cotidiano nos parece fruto de um contínuo, de modo que quase não damos atenção à imensidão de coisas maravilhosas que nos rodeiam.

Todos sabemos que cada momento é único, que todos eles passam, mas que nenhum instante nunca voltará, que nunca tornaremos a contemplar as mesmas nuvens que adornaram o céu, nem a sentir a mesma brisa que nos acariciou a pele, nem a ver as mesmas águas que já desceram o rio. Todos temos perfeita clareza de que cada um dos inúmeros momentos que compõem a nossa vida constituem um milagre absurdamente complexo, improvável. Também sabemos que cada objeto em torno de nós, cada pedacinho do mundo, corresponde a um pequeno milagre de exuberância fascinante: se observado com suficiente atenção, até mesmo o mais reles grão de areia revelará uma complexidade inaudita, uma estrutura surpreendente oriunda de forças inda mais inconcebíveis, esculpido por uma estonteante e improvável sucessão de eventos, todos eles também únicos.

Assim, uma simples passada de olhos mais atenta ao nosso redor, desvenda um espetáculo fascinante a qualquer mente disposta a considerá-lo. No entanto, nossa propensão intrínseca e absurda a banalizar o mundo faz com que o maravilhoso espetáculo em torno seja despojado de quase todo o seu brilho, tornando-se o mundinho insosso e tedioso de nosso cotidiano.

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Os que passam por uma grave ameaça, no entanto, parecem ter seus olhos reabertos por certo tempo. Mais desconcertante ainda é a experiência por que passam os que são informados da iminência da própria morte, esses, em especial, costumam desvendar seus olhos, e usufruir os momentos que lhes restam com uma intensa avidez. Para esses, cada um dos escassos momentos que ainda lhe restam se torna precioso. Desta maneira surpreendente, os que se conscientizam da morte iminente viram o jogo, e acabam vivendo os seus preciosos momentos muito mais intensamente que o homem comum, que devora os seus maquinal e levianamente, sem usufruir seus sabores, sem discernir seus matizes nem sentir-lhes a textura.

O mesmo ocorreu com o Cristo, a despeito de sua saúde esplendorosa, por ter plena consciência de sua morte iminente, devido a sua entrega completa. Conhecendo não apenas a data, mas todo o roteiro de sua morte próxima vivia cada momento com a mais extrema avidez, sugando sofregamente cada átimo de tempo, sorvendo vorazmente cada instante, enquanto ainda sentia o calor de seu corpo e as batidas intensas de seu coração.

Sujeito às intensas variações de humor, necessariamente produzidas por esse contato íntimo com o mundo, acabava vivenciando também um enorme espectro de emoções diárias. Algumas das mais estranhas sensações, envoltas sempre em uma espécie de roupagem paradoxal, eram a que lhe acometiam sempre que Madeleine lhe pedia para abdicar de seus votos, e fugir com ela para algum canto remoto do planeta.

Foi apenas quando instado a considerar a possibilidade de fuga, que o Cristo delineou sua expectativa quanto ao desenrolar dos fatos posteriores a sua eventual deserção. Explicou que, nesse caso, seria caçado até a morte por uma multidão de seguidores da seita. Considerou que uma ação assim, tão vil, corresponderia ao milagre às avessas, de se transmutar de Cristo em Judas. Não lhe vinha à mente nenhum outro caminho, nenhuma outra possibilidade que não a consecução do destino para o qual havia nascido. Para ele, morrer na cruz tinha se tornado algo tão natural em sua sina, quanto o despertar matinal após uma boa noite de sono. Madeleine não chegava a ser insistente nesse ponto, talvez por não conseguir perceber no Cristo nenhuma fraqueza, nenhuma brecha por onde pudesse incutir-lhe alguma hesitação quanto a seu destino.

Aderson 4

Durante o período relativamente curto em que serviu no batalhão especial, Aderson executou inúmeros atos de bravura, vários deles reconhecidos não apenas pelos colegas, mas por toda a corporação, e até mesmo fora dela, quando no recebimento das várias condecorações a que fez jus. Muito lembrada era sua atuação em uma operação filmada, em que a área parecia limpa o suficiente para que uma equipe de televisão se instalasse no interior do caveirão e de lá filmasse toda a ação. A transmissão ao vivo, no entanto, revigorou as forças dos bandidos, insuflando-lhes novos ânimos. O local, palco de recentes e intensos conflitos, parecia previamente esterilizado, quando, a exemplo dos filmes de suspense, os bandidos vencidos e mortos retornam à cena. Nesse caso os facínoras em questão, obviamente, não estavam mortos, e ao retornar provaram não estar vencidos, reencenando uma batalha

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renhida, na qual o blindado se viu cercado e isolado pelos malfeitores fortissimamente armados e dispostos a massacrar as forças policiais.

Diante das câmeras Aderson demonstrou todo o seu arrojo e coragem, enfrentando os criminosos com o apoio apenas parcial de um carro de combate prenhe de parafernália televisiva. Mostrando uma valentia inaudita, o policial confrontou os bandidos fortemente armados, e os abateu um a um, sob o foco das câmeras e com uma intrepidez sem precedentes. O episódio angariou-lhe fama internacional, transformando-o por certo tempo em um dos símbolos da corporação policial em todo o país. Essa notoriedade talvez tenha lhe custado caro, gerando invejas intensas por todos os lados.

Gravidez

O casal prosseguia alheio ao mundo, os dois cada vez mais imersos um no outro. JC mantinha um ritmo de escrita cada vez mais intenso, interrompido apenas pelo namoro persistente e por exercícios físicos. Além dessa rotina, havia apenas os ensaios, usualmente só um por semana. Madeleine permanecia resguardada, evitando a exposição, saindo pouquíssimo às ruas, como medida de segurança.

Passado o carnaval, a contagem regressiva se intensificara. Quando eleito, o martírio em um ano parecia relativamente distante, embora soubesse que, apesar dessa aparência, chegaria com muito mais rapidez que o imaginado. E assim foi. Com muita frequência JC se espantava com a data, com a velocidade com que o tempo se esvaía. Há algo de paradoxal na natureza do tempo, de maneira que, quando esticamos os momentos, o tempo parece comprimido. É assim nas ocasiões tediosas, constituídas sempre por longos momentos que nunca passam, mas que em conjunto, compõem um período aparentemente mais curto do que a data sugere. De modo inverso, os momentos de intensa alegria passam voando, e, no entanto, constituem períodos que nos parecem dilatados, surpreendentemente maiores do que a data nos permite aceitar.

O ano tinha voado, especialmente depois de JC encontrar Madeleine. Gostaria de permanecer junto dela até o final dos tempos, de modo que qualquer período teria sido curto. Mas uns poucos meses representavam quase nada, e sua ânsia de estar perto dela continuava intensa. O homem apaixonado permanecia desejando sugá-la intensamente, se fundir-se com ela tornando-se apenas um. Ela continuava guiando sua vida: era a sua luz.

Um dia Madeleine precisou ir ao médico, mas tranquilizou o Cristo: era coisa de mulher, nada extraordinário. Marcaram com um motorista de táxi conhecido e frequentador do ponto ao lado, para que os pegassem em determinada hora, e se dirigiram, pela orla da praia, a um médico em Copacabana, sendo encaminhados por ele, após consulta, a um laboratório próximo para exame. Todas as precauções com a localização e itinerário da ida ao consultório decorriam de preocupações com a segurança de Madeleine após o atentado.

No dia seguinte, JC foi buscar o resultado do exame, que Madeleine abriu e, alternando sorrisos de alegria e feições de apreensão, comunicou que estava grávida.

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Os sentimentos de JC também foram intensos e conflitantes. De imediato, foi invadido por um fortíssimo orgulho e uma felicidade enorme, que refletindo as feições apreensivas da mulher também se tornaram ânsia e preocupação, logo superadas por nova onda de felicidade sucedida por outra de inquietude. Por uns longos momentos, as sensações de alegria e apreensão se sucederam e mesclaram, embora o contentamento fosse ganhando terreno em meio aos abraços, até que os dois se uniram em uma atmosfera de felicidade inebriante que perdurou mais que uns poucos momentos.

Sem nenhuma dúvida a notícia os alegrara, incendiara ainda mais a paixão recíproca dos dois amantes. Foi um dia de intensa alegria, de sorrisos, abraços e sonhos. Mas uma ponta de preocupação aguilhoava Madeleine, e despontava em alguns breves momentos: o bebê não deveria nascer sem pai.

Os dias que se seguiram foram regidos pela novidade. Madeleine parecia um pouco mudada, envolta em uma aura quase beatífica. JC se mostrava jubilante, ostentando um orgulho transbordante, uma felicidade imensa e exuberante que não podia ser contida, derramando de seu sorriso constante.

Havia, é claro, a apreensão com as ameaças a Madeleine, agora assumindo uma gravidade ainda maior. Mas essa inquietação vinha apenas a se somar às outras, naturais e causadas pelo desconhecimento, pela responsabilidade de ter que cuidar de uma mulher grávida. Uma preocupação, no entanto, se sobrepôs a outras, a de impedir que a notícia se espalhasse: nenhuma pessoa foi comunicada do fato.

Aderson 5

Por vezes, excesso de zelo de Aderson acabava acarretando-lhe problemas desnecessários. Tal foi o caso da furadeira, muito comentado no mundo inteiro. Era uma manhã ensolarada comum, quando o batalhão percorria as ruas da cidade de maneira usual, em um grupo fortemente armado, munido de coletes defensivos, e preparado para enfrentar escaramuças inesperadas. Tudo transcorria na mais perfeita normalidade quando um idiota resolveu fazer uma gracinha enquanto executava consertos em sua residência: do alto de sua casa de dois andares, apontou uma furadeira para o grupo de policiais que caminhava pela rua logo abaixo, assustando os policiais, obrigando-os a se abrigar do possível fogo inimigo. Mas a troça lhe custaria caro. Os policiais não estavam lá para brincadeira, e iriam mostrar que não aceitariam nenhum tipo de zombaria. Ato contínuo à dispersão e abrigo do grupo, os policiais automaticamente se prepararam para combate. Foi Aderson quem tomou a posição mais ofensiva, na mesma altura do suspeito, na casa em frente. O homem ainda se virou de costas e começou a furar a parede, provavelmente para se mostrar inofensivo e deixar absolutamente claro o que já era sabido: o objeto que empunhava não era uma arma. Mas a questão não era aquela, era preciso mostrar que com policiais não se brinca, era imperioso impor a autoridade, demonstrar quem manda, quem está no poder. Aderson mirou na nuca do elemento parado apenas uns metros em sua frente, não poderia errar.

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O fato foi noticiado no mundo inteiro, o policial teria confundido a furadeira com uma arma e em seguida executado o cidadão em sua própria casa. Toda a corporação saiu em defesa do zeloso policial. Os porta-vozes da corporação trataram de exibir fotografias de furadeiras comparando-as com armas de formato similar, justificando a morte do cidadão em decorrência de um ligeiro equívoco, causado inexoravelmente pela semelhança entre os dois objetos. Poucos meses depois, quando a ocorrência já havia cansado os meios de comunicação e já não era mais notícia, Aderson se sentia muito seguro com o apoio recebido por toda a corporação, que prontamente impedira até que os tradicionais enxeridos defensores de direitos humanos viessem lhe criar problemas. Assim que o fato caiu no esquecimento, o inquérito policial sobre o evento foi arquivado e Aderson saiu, mais uma vez, fortalecido de um episódio notório e polêmico.

Em defesa de Aderson deve ser dito que ele, poucas vezes, executou inocentes – como se houvesse inocentes naqueles lugares imundos –, diria. Mas apesar de acreditar que ninguém por ali deixasse de ter culpa, tinha consciência da necessidade de cumprir o dever e se sujeitar à autoridade, cujas ordens eram explícitas: só poderiam ser abatidos os criminosos que pegassem em arma. Tirando uns dois ou três, dos quais lembrava que as famílias tinham criado caso fazendo um estardalhaço incrível, inclusive na televisão, talvez não houvesse executado nenhum homem desprotegido, desconsiderando, é claro, os atingidos por bala perdida, – mas isso é coisa da qual ninguém tem controle, e quem fica na rua durante tiroteio quer mesmo arranjar sarna para se coçar – pensava. Nem mesmo o pivete morto em um tiroteio e causador de grande alarido nos jornais era verdadeiramente inocente, como ficou visto. Em um primeiro momento, tinha sido noticiada a morte de uma criança de cinco anos, levando todos a acreditar que se tratasse de um inocente. Apurações posteriores, no entanto, revelaram que a criança, apesar de franzina, tinha já oito anos, e, de fato, conforme o relato do autor do disparo, portava com ela um revólver para entregar a um traficante sem munição.

Mas houve o caso fatídico da família do juiz, um infortúnio lastimável. Era uma noite tranquila, trabalho rotineiro em uma blitz, uma horinha extra, apenas para ganhar um dinheiro a mais. Um motorista afoito tentou escapar da ação policial e evadir o local fazendo o retorno, em uma exibição inequívoca de direção perigosa. Devia ser carro roubado, – embora houvesse muito otário que pudesse tentar burlar a determinação policial, apenas devido a irregularidades na documentação, ou em algum item de segurança do veículo, como um pneu careca. – De qualquer forma, era de conhecimento público que a autoridade tinha que ser respeitada, o que estava acima de qualquer outra norma, e a tentativa de fuga do local tinha que ser interpretada como uma quebra de autoridade e instantaneamente punida.

Aderson tinha plena convicção de estar cumprindo o seu dever, rigorosamente, quando alvejou seguidamente o automóvel que tentava evadir o local, burlando as diretrizes policiais. Quando o carro parou, o motorista permanecia apavorado em seu interior pedindo clemência para si e sua família, mulher e filha, ambas atingidas pelos disparos policiais. No boletim de ocorrência os policiais alegaram ter havido troca de tiros entre eles e os traficantes, resultando no alvejamento do veículo surpreendido na linha de fogo dos bandidos, e metralhados por eles. Para supremo azar de Aderson, o

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motorista do veículo era juiz de direito, de modo que seu depoimento sobre a ocorrência, negando a existência da troca de tiros inventada pelos policiais, e enfatizando a determinação evidente dos policiais em fuzilar seu carro e ocupantes, sobrepujou a versão dos homens da lei, devido aos mesmos cânones de autoridade defendidos a ferro e fogo, tanto por Aderson, quanto por toda a corporação policial. Esse erro gravíssimo não pode ser abonado nem por todos os atos de heroísmo previamente efetuados pelo policial, que foi sumária e rapidamente expulso da corporação.

Mais uma nota de reconhecimento em respeito ao caráter de Aderson: nunca se queixou! Sobre o caso, comentava simplesmente – bobeou, dançou. Dizia que todos sabiam disso, e que ninguém estava acima dessa máxima. Então, bobeou, deu azar, dançou. Normal. Mesmo assim ficara muito descontente, tinha imenso prazer em ser um policial, nunca teve outro sonho.

Aeroporto

Quando JC acordou, ao som do canto dos pássaros, enquanto o sol apenas insinuava sua presença no céu ainda escuro, descobriu perplexo que já era o dia de sua morte. Levantou o corpo, como se devido a um susto, respirou fundo, considerou os acontecimentos, a situação, meditou brevemente e, mais tranquilo após essa última ação, levantou-se. Notou que Madeleine não estava na cama. Encontrou-a no outro quarto; ela chorava.

A cena o comoveu profundamente. O choro de Madeleine, sua tristeza, o levava quase ao desespero, causando-lhe uma aflição intensa. Sentou-se ao seu lado, abraçou-a comovido, um abraço intenso ao mesmo tempo sentido e protetor. Entristecia-se, no mínimo, tanto quanto ela. Perguntou-lhe o que havia.

Madeleine iniciou uma fala desconexa que acentuou o pranto ainda mais. Lágrimas jorraram profusamente entre uma fala truncada e soluços, aumentando a aflição do homem, que a aconchegava fortemente ao seu corpo, de um modo quase desesperado. As sucessivas tentativas de explicação da moça, todas elas desarticuladas e incompreensíveis, acabavam se transformando em um pranto incontido que o emocionava profundamente, como se o choro lhe encravasse uma cunha no peito. Após longos momentos de angústia a moça iniciou o que poderia ser descrito como uma fala compreensível, mas completamente sem nexo, que o afligia ainda mais. Sua fala podia ser compreendida, mas não revelava a razão da tristeza, aumentando o caráter misterioso da cena.

Só após um longo sofrimento, JC compreendeu o motivo de tamanha angústia; Madeleine chorava a morte iminente de seu homem, de seu amor. Também se sentia desprotegida e temerosa.

A revelação se abateu sobre o Cristo de um modo singularmente contundente. Estava preparado para justificar suas ações, suas crenças, seu destino. Estava pronto para rebater argumentos, mas nunca se preparara para confrontar o choro da amada. Aquelas lágrimas, e mais ainda os grunhidos agudos que fazia entre os soluços subsequentes, causavam-lhe emoções intensamente aflitivas, uma dor imensa, uma

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compaixão maior que ele mesmo. O Cristo sofria com Madeleine até que as lágrimas também lhe escorreram pelas faces.

A conversa entre ambos assumiu um tom intenso, solene. – JC, você não pode morrer agora, não pode me deixar. – Eu não tenho escolha, não posso voltar atrás agora.– Não faria isso por mim? Vai querer continuar nessa loucura?– Eu faria qualquer coisa para ver você feliz, mas minha morte está

predestinada.– Você não pode morrer, não pode me abandonar, se me amasse nunca faria

isso.– Eu te amo, Madeleine, mas esse é o meu destino.– Destino? Isso é só loucura! Como pode simplesmente decidir morrer, se

deixar matar? Você vai morrer JC, e em nome de uma loucura. Isso é uma insanidade!

Não havia nada de novo no argumento, milhares de artigos haviam sido escritos ao longo dos anos criticando o absurdo da seita, sua insânia extremada. Inúmeras conversas versando sobre o tema concluíam o mesmo. De fato, não era necessária nenhuma argúcia para se perceber o absurdo de uma morte consentida. Os seguidores da igreja eram confrontados cotidianamente com palavras análogas, muitas delas bem mais elaboradas que aquelas. Além disso, JC era um dos intelectuais da seita, um de seus porta-vozes mais bem preparados para justificar todos as ações ritualísticas do sacrifício capital. Mesmo assim, talvez por fraquejar em face da morte iminente, talvez devido às lágrimas e soluços cortantes de Madeleine, naquele momento o Cristo hesitou.

Era a primeira vez que Madeleine percebia alguma hesitação nos olhos do Cristo ao tratar da questão, o que a encheu de esperança levando-a a questioná-lo intensamente.

– Então você está vendo a loucura finalmente? Percebe agora o absurdo de ir lá morrer? Vamos acabar imediatamente com essa insanidade, vamos viver nossas vidas. Não se deixe enganar por aqueles loucos, é só você quem vai morrer.

JC deu uma balançada como se o chão tremesse naquele momento, levou as mãos à testa, e com o rosto contrito comentou em tom baixo.

– Madeleine, é mesmo, que loucura. Eu ia entregar a minha vida, ia morrer simplesmente, acabar tudo.

– Ia, é o que você ia fazer. Ia entregar sua vida, ia fazer essa loucura!JC estava agora imerso em si mesmo, mergulhado em seus pensamentos,

enquanto Madeleine ganhava ânimo, adquiria vida. Seus olhos antes chorosos agora rejubilavam.

– Ainda temos tempo, JC, temos que fugir imediatamente desses loucos, temos que ir embora. Vamos logo para a França, vamos viajar agora mesmo!

JC permanecia mirando o chão com o olhar cabisbaixo. Sentia-se como se estivesse acordando de um sonho, despertando de uma loucura. Mas não sentia ânimo para se mexer, para atentar a nenhuma outra coisa que não fosse a sua loucura, o sonho alucinado no qual estivera mergulhado por tanto tempo. Madeleine não só iniciou os planos de fuga, mas começou a pô-los em prática. Foi fazer as malas.

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Aderson 6

Mesmo desligado das forças policiais, a corporação não virou as costas a Aderson. Era de conhecimento público que as contingências lhe tinham sido desfavoráveis, maus ventos, embora fosse um homem de imenso valor, a ser reconhecido e apoiado. Assim, conquanto o destino o tivesse afastado oficialmente da polícia, seus companheiros de farda não o abandonaram, e rapidamente encontrou guarida em ocupação similar, tornando-se um miliciano.

Imediatamente se sentiu em casa no novo ofício, embora não conseguisse manter o mesmo garbo de antes, quando na corporação. Mas sua fama de destemido se espalhava por vários bairros, de modo que seu porte imponente, e sua postura intimidante, proporcionaram, desde o início, um alto posto na milícia, onde foi acolhido com enorme respeito, e até admiração, fazendo-o sentir como se tivesse encontrado uma nova família.

Quando de seu surgimento, as milícias haviam sido saudadas com entusiasmo, tanto pela população quanto pelos órgãos governamentais e principalmente pela imprensa e, a princípio, de fato, ativeram-se fundamentalmente ao seu papel de defesa da população desprotegida em áreas pouco assistidas pelo governo. Davam sumiço nos bandidos que logo desapareciam da região sob sua proteção. Assim, sob os aplausos dos cidadãos, do poder público e dos meios de comunicação, elas cresceram e se multiplicaram, angariando prestígio e poder.

Mas as milícias não se restringiram à defesa do cidadão, ao papel de polícia, também estenderam sua atuação, primeiramente, a outros deveres não cumpridos pelo estado, como o reparo emergencial de situações e ocorrências prementes, como as de árvores ameaçando cair sobre as casas, ou encostas em via de desabamento.

O comércio, em especial, se valia desses serviços de utilidade, assim como de outros verdadeiramente inconfessáveis. Tudo isso elevou o conceito das milícias entre a população, permitindo que elas se diversificassem para funções tradicionais do comércio, como a de distribuição de gás na região. Em seguida, as milícias descobriram um enorme filão na distribuição de sinais de televisão a cabo, reduzindo o lucro das empresas distribuidoras, enfurecendo com isso não só as empresas lesadas, mas também os meios de comunicação, que passaram então a revelar seus excessos, e expô-las como associações criminosas.

Do ponto de vista dos milicianos, a pirataria de sinais de vídeo não constituía verdadeiramente uma infração, tratando-se apenas de uma malandragem sem consequências, mas bastante rentável. A população também não via nisso nenhuma atitude criminosa, e até se regozijava com o fato de adquirir o sinal de cabo por preços relativamente módicos. Mas as companhias distribuidoras de sinais não se compadeciam de nada disso, e denunciavam o ato das milícias como criminoso. As milícias tinham o apoio explícito da polícia, de modo que a princípio as queixas e deblaterações das companhias distribuidoras permaneceram inócuas, mas quando a gritaria extrapolou para a televisão, o barulho não pode mais deixar de ser ouvido.

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A essa altura as milícias já estavam francamente comprometidas com a receita advinda dos sinais piratas, sendo impossível para elas se privar desse recurso, de modo que, apesar da simpatia e do franco apoio dado pelas forças policiais, acabaram proscritas. Muita coisa podia ser perdoada, mas a propriedade era sagrada. Podia-se fazer vista grossa sobre o extermínio dos meliantes das redondezas, mas a apropriação do lucro das empresas de distribuição de sinais de televisão a cabo não podia ficar impune.

Com o tempo algumas milícias trataram de se adequar à nova realidade abdicando do monopólio da televisão a cabo em sua área, e assumindo um papel mais discreto até na proteção da região; essas foram toleradas. Outras, no entanto, continuaram a exercer o papel do estado cada vez mais fortemente, e a enriquecer, principalmente, com as transmissões de sinais. Essas foram logo proscritas e, em seguida, perseguidas quase do mesmo modo como eram caçados os bandidos perigosos das favelas.

* * *

JC continuava atônito e quase sem ação, ensimesmado. Permanecia mergulhado em sua vida pregressa, em suas antigas crenças, encaradas agora como um imenso absurdo injustificado. Tentava compreender como tinha podido passar a vida inteira arquitetando a própria morte, direcionando todos os seus esforços para entregar a própria vida a uns lunáticos aproveitadores. Sentia-se enganado, como se tivesse sido vítima de um golpe.

– Acorda JC, precisamos fazer alguma coisa imediatamente, acorda!– É verdade, temos que fazer algo urgentemente, o que sugere?– Vamos viajar agora, vamos para a França.– Acha que eles não estão me vigiando? acha que me deixarão viajar?– Que você acha?– Há milhões de seguidores da igreja por aí, as chances de não cruzarmos com

nenhum são ínfimas. Eles logo saberão dos meus planos, e não permitirão que eu viaje, menos ainda agora, na hora da imolação. Já estão vivendo o clima da paixão.

– De qualquer forma temos que tentar, tem alguma idéia melhor?– Acho que o aeroporto é o caminho mais difícil, o mais vigiado, sem dúvida.

De qualquer forma podemos ir lá, se estivermos sendo monitorados, e eu duvido que não estejamos, você viaja sozinha. Eu fico aqui, e depois me viro, vou ter que dar algum jeito.

– Eu não vou deixar você. Está pretendendo prosseguir com a loucura estando longe de mim? Perguntou gravemente olhando-o nos olhos.

JC mergulhou novamente no estado de circunspecção, até que Madeleine o sacudiu energicamente.

– Acorda homem, e me responde? Está pensando em continuar nessa loucura?– Não, estou vendo tudo como uma grande loucura mesmo, só me espanto

como pude ter embarcado nisso.

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– Mas agora não é hora para tentar entender nada, agora é hora de agir. Ação. Vamos logo para o aeroporto, viajamos, e depois que estivermos salvos, longe desses maníacos, tentamos compreender o que passou.

– Não vai ser assim tão fácil, eles não permitirão. Mas você viaja, eu fico e tento me virar, penso em algum modo de despistar os caras, vou encontrar algum. Mas, por enquanto, não estou conseguindo ver nenhuma possibilidade razoável de fuga. De qualquer forma, sozinho terei mais agilidade, é muito mais fácil perseguir dois do que um.

– Eu ainda acho que você continua delirando, compramos as passagens e saímos do país o mais rápido possível, longe daqui estaremos salvos, e então seguimos para a França.

– Não será tão fácil, verá. Não deixarão que eu viaje. Ambos corremos riscos. Se houver indícios da perseguição, você viaja e eu me viro depois. Prometo te encontrar. Vou estar muito mais tranquilo sabendo que você está a salvo longe daqui. Para que tantas malas?

– Estamos indo para a França, outro país, e não sei quando poderemos voltar.– Eu nunca poderei voltar, mas não precisa levar tantas coisas, especialmente

as minhas, eu realmente não acredito que eles me deixem ir. De qualquer forma, não podemos chamar a atenção. Se eu descer com malas a notícia se espalha pelo mundo inteiro em minutos. Vamos levar só uma mala pequena. Devemos sugerir que só você viajará. Se não houver impedimento embarco também.

– Então a mala já está pronta, vamos nos arrumar e sair logo. – Não seria melhor conferir tudo antes pela rede?– Não, vamos indo logo que estou muito ansiosa, pelo caminho fazemos isso.Trocaram de roupa e telefonaram ao ponto local para chamar um táxi.

Aderson 7 * * *

O ofício era simples e Aderson o conhecia bem: botar moral. Tratava-se simplesmente de demonstrar a autoridade; a zona era pacífica, o domínio dos milicianos reconhecido, de modo que ninguém ousava nem mesmo furtar na região. Aliás, já havia um tempo que os marginais evitavam a área, os que não o fizeram tinham acabado mal. Havia tempos, portanto, que o território estava limpo, de modo que só muito eventualmente era necessário, de fato, entrar em ação, situação tediosa para o ex-policial cioso.

Nos primeiros meses, sentia uma espécie de aflição, uma vontade imensa de voltar à ação, de retornar ao morro de arma na mão atrás do caveirão, caçando os traficantes. A sensação lembrava a de um viciado em síndrome de abstinência, mas se intensificava a medida em que o tempo passava, e seu cotidiano permanecia monótono, apartando uma briga aqui, dando uns croques em uma rapaziada baderneira ali, mas nada que estimulasse de verdade.

Foi a necessidade de entrar em ação, assim como a de ganhar um dinheiro a mais, que levou Aderson a fazer uns extras com a polícia. De início, apenas blitz de trânsito; tendo entrado em contato com seus antigos colegas, era escalado,

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usualmente durante os fins de semana, para averiguar a documentação e outras irregularidades nos veículos da rua. Adorou voltar a vestir o uniforme policial!

Aproveitava o momento para “farejar” e identificar suspeitos, torcendo sempre para ter que entrar em ação. O propósito dessas operações de motivação pessoal era fundamentalmente o de complementar a renda dos participantes da ação, recebendo um agrado em retribuição à vista grossa para com as irregularidades encontradas. Eventualmente alguns veículos eram regularmente apreendidos e levados ao depósito, não sendo rara a desocupação e fuga do motorista, nesse caso, fortemente suspeito de furto. Tais situações proporcionavam uma oportunidade muito especial de se apropriar de um veículo de primeira, bastando apenas umas conversas com as pessoas certas para “esquentar” temporariamente o veículo, liberando-o provisória e informalmente para o uso de pessoa autorizada. A participação, tanto na operação, quanto nos despojos, atestava um reconhecimento explícito de sua reputação na tropa.

Como forma de pagamento, para sua própria exultação, tornava a participar das operações de combate nos morros: estava de volta à ação!

* * *

Durante a ida para o aeroporto, JC e Aderson trocaram poucas palavras, evitavam falar sobre a viagem e assuntos correlatos por estarem sendo ouvidos pelo motorista, de modo que ambos mergulharam em suas próprias preocupações, tecendo os planos para o futuro imediato. JC não acreditava que fossem permitir sua viagem, disse não ter dúvidas de que os da igreja usariam qualquer meio para isso. Tinha a forte convicção de que seriam violentos. Combinaram entrar e comprar as passagens, mas, caso houvesse suspeitas, como ele imaginava, comprar uma só, assim ela, ao menos, estaria fora de perigo, enquanto ele ganharia agilidade para a fuga.

Madeleine telefonou para Charlote que estava incumbida de encontrar os melhores itinerários para a ida à França, para onde não havia nenhum vôo direto naquele dia. Fez algumas sugestões de roteiro, Madeleine conjeturou uma ida a Montevidéu, onde esperaria por JC, para dali prosseguir até o destino final, mas preferiu ir a Lima, seguindo de lá sozinha para Paris, deixando JC livre para escolher seu próprio trajeto, além de não instigar suspeitas de que o estivesse esperando.

Entraram no aeroporto lotado. Carregava uma mala de dimensões medianas que não indicava a extensão da viagem, mas sugeria a ida de apenas um deles. Pediram informações sobre a localização do atendimento da companhia que fazia o vôo para Lima. A fila do check in era imensa, demorariam horas ali, certamente. Mesmo assim arriscaram o guichê de compra de passagem, talvez não necessitassem passar pela fila gigantesca. A da compra era muito menor, apenas umas quatro pessoas aguardando.

Logo atrás deles, chegaram dois homens muito fortes, dois tipos carrancudos e pesados. JC já esperava algo do gênero, mesmo assim gelou ao perceber as presenças ameaçadoras atrás de si. Madeleine também estava atenta, mas perdeu um pouco da confiança ao notar os dois, tinha esperança de que as coisas fossem mais fáceis e não houvesse nenhum impedimento, imaginando que as preocupações de JC constituíssem apenas uma espécie de exaltação paranóica. A cara fechada dos dois

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indivíduos atrás deles era muito mais que um mal presságio, a intranquilidade da moça se acentuou.

Os dois homens acompanhavam a fila colados ao casal. Movimentavam-se dura e pesadamente, balançando o corpo por inteiro, oscilando os ombros como imensos pêndulos rígidos. O casal trocava olhares sem dizer palavras, também se apertavam as mãos. Só se dirigiram verbalmente um ao outro imediatamente antes de serem atendidos. Contrária aos hábitos do casal, Madeleine perguntou em francês:

– Un ticket seulment? – Oui, respondeu JC sem hesitação e com uma expressão de resignação.Foi Madeleine quem se dirigiu ao atendente e comprou apenas uma passagem

para Lima. Não precisaria passar no check in, e a chamada para o vôo já havia sido iniciada. Seguiram até o portão de embarque, onde se abraçaram longamente. JC pediu que ela entrasse logo, queria tentar ganhar tempo. Já sabiam que deveriam interromper as comunicações enquanto ele permanecesse no Brasil; se encontrariam na França. Despediram-se entre lágrimas da moça. Quando ela entrou na zona de embarque JC sentiu um certo alívio, ao menos ela estava fora de perigo.

JC optou por retornar de ônibus para casa, onde idealizaria algum plano.

Aderson 8 * * *

Quando retornou aos morros, Aderson o fez em grande estilo, anunciando a todos que estava de volta: entrou no morro atirando, metralhando o ar com uma longa rajada! Também explodiu uma granada para comemorar, e alardear seu retorno; era bem conhecido no morro! Caminhava à frente de todos e do caveirão, escoltado pelo grupo logo atrás. Nesses momentos, desanuviava o clima de tensão usualmente reinante, com algo que se assemelhava a um sorriso, e que demonstrava nitidamente a satisfação exuberante e contagiosa que sentia quando em ação. Sua presença fazia bem ao grupo, levantava o moral da tropa.

Subiu o morro com gana, com ânsia de encontrar o maior número possível de delinquentes, de persegui-los, de exterminá-los, de fazê-los pagar por tudo o que deviam. Deparou-se apenas com uns poucos elementos a tentar resistir ao seu ímpeto, ao seu arroubo alucinado. Depois de uma farta troca de tiros, perseguiu temerariamente e executou três marginais que se lhe opunham, embora tivesse levado uma carga dolorosa no peito. O colete o livrara da morte, mas não da dor.

Pendurou os três corpos em ganchos externos no caveirão, e mesmo ferido, fez questão de circular por todo o morro ostentando os macabros troféus. Sentia-se em dia de glória, o suficiente para quase se transformar em poeta, e bradar repetidamente pelos alto-falantes estridentes do blindado, ornamentado bizarramente pelos três corpos ensanguentados expostos em suas paredes: hoje eu quero corpo e alma! Emendava ainda outras quadrinhas não tão espirituosas, mas feitas de improviso, sob a alegria da volta ao seu palco de ação.

Como o que não mata fortalece, embora ferido, Aderson conseguiu, em apenas uma operação policial, reavivar toda a memória sobre seus feitos passados;

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conquistando assim um lugar na escala das operações seguintes sempre que o desejasse.

Dessa maneira, Aderson foi passando o seu tempo: uns tabefes nas esquinas para não perder o costume, umas operações de trânsito para equilibrar a renda, e umas participações em combate efetivo para se manter em alerta, de modo que, embora fora dos quadros oficiais da polícia, conseguia manter a mesma renda, os mesmos carros, e a mesma reputação que antes: estava satisfeito.

* * *

Enquanto esperava o ônibus, uma algazarra se iniciou a uns cinquenta metros de onde estava. Motoristas de táxi se enfrentavam e se espancavam aos olhos de um policial que parecia controlar e dirigir o tumulto. Atento, JC permanecia em pé na direção exata de uma das entradas do aeroporto, não ia se deixar ficar espremido em alguma ratoeira. Observou as pessoas ao seu redor, classificando alguns deles como suspeitos. Mantinha-se em uma posição de relativa liberdade, evitando especialmente a aproximação dos que parecessem mais fortes e capazes de detê-lo. Os rumores de que se tratava apenas de uma briga entre os motoristas o tranquilizou: supostamente um motorista de fora teria ousado pegar passageiros no aeroporto, infração cuja pena era o espancamento até a perda de sentidos.

Quando o homem caiu inerte, recebeu mais alguns chutes e foi deixado pelo grupo de espancadores, talvez desgostosos de que a ação tivesse sido demasiadamente rápida daquela vez. O policial seguiu com o grupo. O fim do tumulto tranquilizou JC, servindo também para que avaliasse seu grau de paranóia; sob tamanha pressão, tenderia a pensar que todas as ocorrências ao redor teriam como alvo a sua própria pessoa. Tinha que tentar manter a exata noção do quanto isso era verdade, e tentar discernir a presença de pessoas atentas a ele. Continuava identificando suspeitos entre os que esperavam o transporte.

Quando o ônibus chegou, entrou e se sentou à janela, na terceira cadeira da fila atrás do motorista. Manteve o rosto voltado para fora sem perceber a movimentação dos passageiros que entravam naquele que era o ponto inicial da viagem, até que alguém se sentou ao seu lado. Era um homem moreno, forte e de óculos escuros. Considerou-o suspeito. Arrependeu-se de ter sentado à janela, mas se alegrou com o fato de estar aprendendo. Percebeu que teria que antecipar suas ações, que deveria ter planejado anteriormente sentar na cadeira ao corredor, onde não perderia mobilidade. Não se preocupou, de fato, com a ameaça constituída pelo homem ao seu lado, pretendia ir para casa e não temia nenhum impedimento a isso. Começou a planejar sua fuga.

Dois suspeitos desceram com ele, perto da praia, logo depois da saída do túnel, no ponto mais próximo de sua casa. Um deles era o homem que sentara ao seu lado, o outro estava logo em frente. Ambos fortes e pesados. Não perdeu tempo avaliando-os, tentou demonstrar que não os notava, ainda não havia revelado suas intenções e precisava manter a surpresa. Os homens o acompanharam até o portão de seu edifício, de onde os encararam ameaçadoramente.

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JC entrou abalado no edifício, aquilo tinha sido um recado muito claro para que não tentasse nada, estava sob vigilância. Ao chegar em casa, deitou na cama e tentou reconstruir algum dos planos esboçados durante a vinda do aeroporto, mas a imagem dos rostos ameaçadores o assombrava, afastando sua tranquilidade e impedindo o planejamento da fuga. Tentava em vão se concentrar na consecução de um plano, mas não conseguia afastar a cena do olhar assustador com que os dois homens lhe encararam. Conseguia pensar em Madeleine, o que lhe dava motivação e serenidade, mas ao retornar o foco ao seu plano de fuga perturbava-se, desnorteava-se outra vez, perdendo a concentração seguidamente.

Olhou o relógio que marcava uma hora inverossímil. Foi conferir no computador, mas ele mostrava a mesma hora; o tempo parecia estar voando, estava em casa há quase duas horas e não conseguia sair do zero, não articulava o menor esboço de planejamento. Havia excluído o aeroporto, eliminara também, pelos mesmos motivos, a saída pela rodoviária. Pensou em pegar um táxi e ir direto para alguma cidade próxima, de onde se afastaria ainda mais, mas considerou que isso chamaria atenção. Optou por pegar o metrô e ir se distanciando aos poucos. Colocou uma muda de roupa em uma mochila e saiu atabalhoadamente sem ter elaborado, de fato, nenhum plano. Iria ao sabor do momento.

Andou até o ponto onde ficavam estacionadas as bicicletas de aluguel, pegou uma delas e seguiu rapidamente pela praia até a altura do metrô, de onde desceu até a estação, seguindo pela contramão. Conferiu que ninguém o seguia: não teria sido possível tê-lo feito a pé, nem de carro, e nenhuma bicicleta circulava atrás de si quando chegou ao destino. Satisfeito com isso, comprou o bilhete e desceu as escadas rolantes apressadamente, ainda teve a sorte de chegar à plataforma no mesmo instante em que o trem. Parecia estar dando tudo certo, extremamente improvável que alguém tivesse conseguido segui-lo. Aproveitou o momento de tranquilidade para colocar uns óculos escuros e alterar o penteado, constituindo assim um disfarce relativamente eficaz.

JC vivia como um caranguejo na praia, e muito raramente se aventurava pelo interior da cidade, que desconhecia. Tinha apenas umas informações sobre o nome dos bairros da localidade onde morava, uma vaga noção de suas distâncias, mas nenhum conhecimento sobre suas localizações, não era capaz de traçar um mapa da cidade, e nem ao menos de reconhecer as posições dos bairros em um mapa que lhe fosse apresentado. Tirando a orla da praia, JC desconhecia a cidade quase por completo.

Isso se devia a duas causas básicas: sua completa falta de senso de direção, que sempre o deixava perdido onde quer que estivesse, e ao reduzido número de vezes que se aventurara a ir à “cidade”, como chamava o imenso local que se iniciava após o túnel, uns duzentos metros distante do mar. Nas poucas vezes em que se embrenhara na cidade, no entanto, tinha optado, quase sempre, por fazê-lo utilizando o metrô. Entrava na estação subterrânea, pegava um veículo que parecia não fazer curvas, e saía em outra, em algum ponto desconhecido da cidade, do qual não tinha a menor ideia da localização.

* * *

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O metrô era controlado havia décadas por uma mega milícia. Nenhum dos sucessivos governos, mais ou menos corruptos, ousava confrontar seu poder, desconsiderando-se o fato de que a maioria dos governantes tratava de abocanhar alguma parte de seus lucros, e de eventualmente utilizar seus tentáculos. A linha um conectava a zona sul da cidade, mais rica, ao centro, e consistia em uma bela fachada. Na linha dois o pau comia.

Havia ainda outras linhas menores, construídas para as olimpíadas e cuja relevância veio a se manifestar após as restrições mundiais impostas aos veículos movidos a combustíveis fósseis, mas era a linha dois a de maior movimento, com inúmeros trens abarrotados circulando freneticamente.

Enquanto as outras linhas proviam um serviço aceitável, apesar de oferecer cadeiras apenas para uma pequena minoria, os trens da linha dois espremiam uma multidão impensável em seus interiores, e os mantinham comprimidos e imóveis em uma atmosfera sufocante e quase sem ventilação, além de entregues às vicissitudes do tempo: as temperaturas internas dos vagões entupidos de gente durante os dias quentes de verão atingiam patamares desumanos enquanto os trens percorriam as vias expostas ao sol escaldante.

Embora os passageiros reclamassem tanto da superlotação quanto da falta de refrigeração, o descontentamento dos usuários se dirigia precipuamente aos constantes defeitos mecânicos que forçavam as máquinas a parar, frequentemente sob o sol, com as janelas invariavelmente lacradas, e sem que as portas se abrissem para permitir a circulação de ar.

Pacientíssimo, o povo permanecia durante longos minutos aguardando a solução do problema, embora as panes mais demoradas, cujas durações eram medidas em horas, acabassem por acarretar o puxamento da alavanca de segurança, abrindo imediatamente todas as portas da composição, e acarretando o desligamento do suporte de energia para o trem, com o intuito de evitar a eletrocução dos passageiros ao caminhar pelas linhas em direção às estações, ou a qualquer destino que julgassem proveitoso.

Se a paralisação de um dos trens já ocasionava a parada de todos os demais, o desligamento da energia provocava abertura das portas de todos os trens, despejando uma multidão a pé circulando pelas linhas, de modo que tais eventualidades suspendiam o funcionamento de todo o sistema durante várias horas.

Mas não havia consenso em considerar o tratamento dentro dos trens o ponto mais aviltante do serviço. Para uma vasta parte da população, especialmente os jovens, a pior face do sistema metroviário se manifestava no interior das estações sempre lotadas, e se materializava na pele dos vigilantes metroviários, paramentados com negras vestimentas protetoras cobrindo-os da cabeça aos pés, e ornamentados por um muitíssimo vistoso cassetete negro e imenso.

Aderson 9 * * *

A vida de Aderson não consistia apenas em seu ofício, embora ele se dedicasse a isso de corpo e alma, e por muito mais tempo que o necessário. Sua outra grande

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paixão era o futebol, ou melhor, o flamengo. Começou cedo a acompanhar os jogos pelo rádio, ou pela televisão, quando eram transmitidos, não perdendo nunca a oportunidade de estar presente no estádio quando possível. Durante a juventude, ingressou em uma das muitas torcidas organizadas que lotavam os estádios antes de sua proibição, e participava semanalmente de todas as brigas cavadas pela torcida.

A proscrição das torcidas organizadas, e seu banimento de todos os estádios brasileiros, ocorreu poucos meses antes do ingresso de Aderson na polícia, o que foi uma sorte para ele, fatalmente acabaria sendo autuado durante os arrastões maciços efetuados pelos homens da lei, tendo sido flagrado apenas uma vez, mas sem consequências que lhe tivessem dificultado o ingresso na polícia. Após sua entrada na força policial, viu-se forçado a abdicar desse prazer, abandonando a torcida e tendo que ir assistir aos jogos solitariamente, o que não lhe estimulava, embora usualmente se apresentasse como voluntário para o patrulhamento ao redor do estádio, quando se deleitava em enfiar a borracha nas torcidas adversárias.

Aderson não se envergonhava de seu passado como torcedor, e confessava sem qualquer pudor sua antiga participação numa das torcidas mais notórias pelo uso de métodos violentos, mas justificava:

– Eu participava de torcida, nunca neguei. Mas, no meu tempo, não era essa balbúrdia, esse desrespeito que é hoje. No meu tempo o pau comia, mas só entre a gente, não tinha esse vandalismo de agora, esse desrespeito com a propriedade. Hoje, começa uma briguinha, já vão logo virando automóvel, tocando fogo em veículo, uma anarquia completa; tem mesmo é que meter a borracha nessa gente, arrebentar os caras, até aprenderem que a propriedade é sagrada!

A proibição das torcidas organizadas acabou levando-as a migrar para a igreja do Cristo. O véu de religiosidade que passou a encobrir a torcida atribuiu-lhe respeitabilidade, e, principalmente, lhe permitia compartilhar a mesma ininputabilidade conferida às igrejas e seitas religiosas.

A descentralização e heterogeneidade da Igreja do Cristo Redivivo, e especialmente sua imensa tolerância para com qualquer tendência que viessem a ter suas facções, tornaram-na perfeita para o englobamento das torcidas, que se introduziram na seita com o título de Templários, ou Cavaleiros de Cristo, com o propósito expresso de defendê-lo, não se sabia do quê. Apesar dessa finalidade explícita, os templários comportavam-se quase exatamente como os membros das torcidas organizadas sempre o fizeram, embora, deve ser dito, de fato orassem antes dos jogos de seu time, muitos deles em atitudes fervorosas, mergulhando em êxtase místico, enquanto imploravam pela vitória de seu time; tal religiosidade era inegável, diga-se de passagem.

Pouco tempo antes de sua incorporação na polícia, Aderson se filiara à igreja, juntamente com quase toda a torcida da qual participava, e que se transformava assim em uma seita religiosa, e não mais uma organização proscrita. Havia apenas um ligeiro ônus, na forma de uma remuneração à direção da igreja, estipêndio francamente compensado pela imunidade relativa adquirida com a incorporação à igreja. Deve ser ressaltado que a referida imunidade se impunha muito marcadamente aos eventos ocorridos no interior dos templos, ou durante os rituais religiosos estritamente reconhecidos como tais, e não propiciavam um salvo-conduto para que

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os membros do grupo saíssem pelas ruas praticando vandalismos. Mesmo assim, a alegação de pertencer à seita, e o uso do uniforme de templário, davam uma boa proteção legal a todos os seus membros, no mínimo, atenuando quaisquer sanções que viessem a ser aplicadas aos seus partidários.

De qualquer forma, uma vez templário, sempre templário, rezava o dito, e embora Aderson tivesse deixado há tempos de frequentar a igreja, mantinha com ela certos vínculos bem claros, como o uso das saudações secretas sempre atualizadas. Assim, não apenas se considerava um Cavaleiro de Cristo, mas era reconhecido por eles como um dos seus.

* * *

Parada para baldeação, ali deveria pegar a linha dois. A mente de JC fervilhava com as inúmeras descrições ouvidas. Havia naquilo um toque de aventura que quase o fazia esquecer o seu perigo pessoal iminente. Colocou sua mochila no peito, de maneira a protegê-la e vigiá-la. Percebeu a estação apenas um pouco mais cheia que as com que estava acostumado, mas enchendo. Uma composição lotada chegou em sentido contrário, libertando uma multidão esbaforida e aliviada que se dispersou rapidamente. Logo em seguida um trem quase vazio parou abrindo as portas para a entrada da multidão.

Cavalheirescamente, JC cedeu espaço à massa que se empenhava em entrar rapidamente e conquistar os melhores lugares. Achou-os meio selvagens e excessivamente impacientes, mas imputou a ânsia que percebia naquele povo à brutalização oriunda de um cotidiano rude e humilhante. Foi o último a subir, permanecendo próximo à porta.

O vagão já poderia ser considerado lotado, embora ainda houvesse espaço entre os passageiros. Na estação seguinte isso foi alterado, e todos permaneceram colados, corpo a corpo. JC sentiu-se recompensado por sua escolha, por permanecer junto à porta e um pouco menos embrenhado entre tantos corpos do que estaria em outro local.

Entre uma estação e outra JC tentava reorganizar seus planos. Embora desconhecesse quase por completo a geografia da cidade, ou talvez por isso mesmo, JC imaginou que a viagem o levaria cada vez mais para os limites da cidade, de onde partiria para alguma cidade próxima, para dali se afastar ainda mais. Não tinha em mente nenhum roteiro previamente definido, e nem propriamente um destino, embora quisesse chegar à capital de algum outro estado para, de lá, traçar algum rumo para sair do país. Embora injustificado, um plano tão absurdo era, de certa maneira, explicado pelas circunstâncias que haviam levado JC a se embrenhar em área desconhecida. Também tinha contribuído para a escolha o completo desconhecimento de geografia urbana: pressupunha ser mais fácil sair da cidade pelas suas beiradas, sem se dar conta de que o modo de fazê-lo passa necessariamente por uma das vias de saída da cidade, todas elas estradas com intenso fluxo de veículos.

Ao chegar à estação seguinte, JC viu-se obrigado novamente a voltar sua atenção ao redor. Pelas vidraças do trem, percebeu que ela estava lotada. JC tentava adivinhar o que sucederia em seguida, se o trem abriria as portas para a subida de

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mais passageiros, e nesse caso, se a maioria tentaria entrar. Enquanto imaginava o que aconteceria, um número surpreendente de indivíduos invadiu o trem abrindo espaço entre empurrões e cotoveladas.

Há momentos em que a vantagem da altura se manifesta com muita nitidez. Em meio àquele aperto, os muito baixinhos viam-se compelidos a esfregar as faces entre os peitos e costas dos vizinhos, constrangidos à paisagem monótona de um único corpo imóvel à sua frente. Já os mais altos conseguem não apenas uma vista mais ampla e variável, mas até a possibilidade de respirar com mais liberdade. O cidadão à frente de JC queixou-se asperamente da mochila em seu rosto, e a forçou para trás, levando-o a retirar a mochila em meio a um contorcionismo, e posicioná-la junto às pernas.

Contemplando o interior do trem por sobre as cabeças da multidão, JC considerou o vagão completamente abarrotado, imaginando impossível a entrada de mais gente naquele interior repleto, mas quando as portas se abriram na estação subsequente, a multidão que aguardava lá fora se comprimiu penetrando o ambiente decididamente, sem titubear, sem sombra de indecisão.

Ao apito do trem, a porta se fechou mordendo o calcanhar de JC que pedia licença aos vizinhos e tentava se posicionar um pouco mais internamente. A porta tornou a se abrir, mas após novo apito, sua posição era ainda mais externa que anteriormente. Ao se fechar novamente aporta prendeu sua perna, na altura do joelho.

Quando a porta se abriu novamente, um vigilante já se apresentava ameaçadoramente. Foram os olhares e tremores dos passageiros em torno que levaram JC a considerar o homem que se dirigia decididamente até ele empunhando o cassetete. Deu-lhe uma cutucada dolorosa na panturrilha. O recuo atemorizado dos circunstantes permitiu que o Cristo atônito adentrasse o vagão o suficiente para permitir o fechamento da porta, que ocorreu imediatamente. Todos os olhares se dirigiram a ele, que tentava em vão massagear a perna dolorida e entender o que havia acontecido.

A tensão de JC, baseada inicialmente em sua provável perseguição, estava agora toda ela direcionada à situação mais iminente. Uma sensação ameaçadora e opressiva se impunha devido à multidão em torno de si, ao desconhecimento do ambiente ao redor, de suas normas de conduta, e de seus personagens. Sentia-se um estrangeiro em terra inóspita.

Ao chegar à estação seguinte, JC continuava perplexo com o ocorrido na anterior, e manquitolava tentando manter o apoio apenas na perna sã.

Quando a multidão penetrou o vagão já abarrotado, a pressão forçou-o para fora, impedindo o fechamento da porta. Dessa vez dois vigilantes já pareciam alertados e determinados a impedir tal insubordinação. Também JC estava mais alerta, o suficiente para se virar de frente e tentar se defender dos golpes. Um dos vigilantes ergueu o cacete e desferiu um golpe de alto a baixo, na linha da porta, mas no ar, enquanto milagrosamente um espaço se abria permitindo a ele penetrar por inteiro no vagão. A porta se fechou para seu profundo alívio, e após um suspiro revelador desse fato, tentou compreender o súbito aparecimento de espaço em tão exíguo ambiente.

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Esforçava-se em vão para compreender a situação ao seu redor, quando percebeu a presença de dois homens extremamente fortes ombreando-o de ambos os lados. Sentiu que seus ombros poderosos o comprimiam para o interior do vagão. Apesar de sua forma física extraordinária, e de seus músculos hipertrofiados, sentia a potência inequívoca dos dois ao seu lado, o que o deixava ainda mais perplexo. Seu atordoamento devido às ocorrências do dia, aliado à tensão momentânea porque passava, impedia JC de fazer uma apreciação minimamente sensata da situação em torno de si. Convencido de ter despistado quaisquer possíveis seguidores, e confiante no disfarce constituído por uns óculos escuros e uma modificação no penteado, não lhe vinham à mente as ameaças individuais a que estava sujeito, mas apenas as decorrentes do local onde se encontrava.

Na parada seguinte, enquanto mais gente se enfiava no trem completamente lotado, os dois homens permaneciam ao seu lado, comprimindo-o para dentro com os ombros, e encarando com um misto de placidez e desafio os vigilantes que pareciam não ousar enfrentá-los. Com enorme curiosidade analisou-os da cabeça aos pés: trajavam camisas escuras com o símbolo do flamengo, calça com tarja vermelha e preta, e um pequeno detalhe de ouro incrustado no calcanhar dos sapatos: templários!

Aquilo significava que havia sido reconhecido. Sentiu-se imediatamente derrotado. Ao mesmo tempo uma intensa sensação de abatimento o percorreu da cabeça aos pés, aliviando toda a tensão que sentia.

* * *

Os templários constituíam um contingente considerável da igreja do Cristo redivivo; originalmente advinham das torcidas organizadas de futebol, e aparentemente, como tantas outras instituições de caráter duvidoso, tinham ingressado na igreja para revestirem-se de certa respeitabilidade, e, principalmente, adquirir a imunidade inerente às religiões.

Os primeiros templários, a exemplo da ordem medieval, compuseram a sagrada ordem da cruz de malta, um braço religioso de uma torcida vascaína. Reuniam-se em grandes aglomerações antes dos jogos do Vasco, quando rezavam fervorosamente pela vitória do time, entre bandeiras agitadas e cervejas. Dali partiam em grupos ameaçadores para os estádios, imersos em um enorme fervor religioso, e dispostos a derramar o próprio sangue pelo seu time.

O sucesso imenso da agremiação gerou, quase imediatamente, a ordem rubro-negra, a mais querida e mais populosa corporação esportivo religiosa do Rio de Janeiro, superada em números, posteriormente, por uma congregação paulista análoga.

A gigantesca ordem rubro-negra, oriunda da falange rubro-negra, tradicional torcida organizada do flamengo, originou inúmeras dissidências, embora continuasse a ser a mais numerosa da cidade.

Havia certa analogia entre a ordem templária católica e seus homônimos da igreja do Cristo redivivo. Ambas funcionavam como tropa de choque da igreja, ainda que informalmente, e de uma maneira fundamentalmente descentralizada.

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Devido às inúmeras conturbações causadas pelos torcedores antes e depois dos jogos, a direção da igreja se viu obrigada, reiteradas vezes, a renegar as ordens esportivas, atribuindo-lhes diretrizes próprias e alheias à da igreja. Em outras tantas circunstâncias, no entanto, sem perder de vista o numeroso contingente de seguidores representados pelas agremiações, acolhiam as irmandades no seio da igreja, como filhos pródigos que retornassem eterna e sucessivamente.

Os dois homens ladeando JC escoltavam-no e protegiam-no como a um talismã. Ele tentou se lembrar o significado das iniciais C R C V, estampadas na camisa de seus protetores: Cristo redivivo, comando vermelho. Devia ser isso, indicando que pertenciam à falange rubro-negra, uma facção repetidamente proscrita e ressuscitada.

A história registrava que o comando vermelho, uma grande organização criminosa, teria surgido do contato de grupos guerrilheiros com prisioneiros comuns no interior dos presídios durante a ditadura. Os guerrilheiros altamente organizados, intelectualizados e politizados, teriam passado às camadas mais excluídas da sociedade, os princípios de organização, além de ideais igualitaristas, o que teria sido o embrião de uma organização complexa, perpassando vastas extensões dos tecidos mais desviantes da sociedade. Posteriormente, uma série de televisão teria elevado os líderes da organização a um status de celebridades, e atribuído a ela um glamour especial, consolidando inclusive o romantismo da história de sua origem.

A organização transpunha os limites da criminalidade e se derramava por todo o quotidiano de seus partícipes, por toda a sua vida social, incluindo, obviamente, a paixão pelo futebol. Sucessivos conflitos sangrentos proscreveram a torcida, que ressurgiu sucessivamente ao longo das décadas.

Quando a porta do vagão se abriu novamente, quatro vigilantes observaram seu interior com atenção, mas mantendo certa distância respeitosa. Os falangistas rubro-negros permaneciam impávidos ao lado de JC, com a fisionomia impassível ainda mais acentuada por amplos óculos escuros.

Os olhares dos vigilantes haviam perscrutado várias regiões do vagão, atiçando a curiosidade de JC sobre aqueles pontos. Quando a porta se fechou tratou de analisar os alvos dos milicianos, encontrando imediatamente dois vascaínos, cavaleiros da cruz de malta.

Apesar de pertencerem todos à mesma igreja, e de se alto proclamarem, todos eles, cavaleiros de Cristo, os templários herdavam exatamente as mesmas rivalidades que as torcidas organizadas, de modo que a proximidade de rubro-negros e cruz-maltinos costumava ser extremamente explosiva, o suficiente para merecer uma atenção especialíssima dos seguranças profissionais por onde quer que passassem. Assim, foi com enorme surpresa que JC constatou a presença de um grupo de gaviões da fiel no canto oposto, ostentando também as armas da ordem.

Aquilo era extremamente inusitado. Não estava acompanhando o campeonato, mas se a presença de gaviões da fiel sugeria a estada do Corinthians na cidade, o horário matutino não corroborava a hipótese de jogo.

Havia anos que as facções templárias não tentavam nenhum acordo entre elas. Todas as tentativas anteriores tinham resultado em conflitos e tumultos maiores que os que haviam gerado a tentativa de entendimento. JC tentava imaginar que eventos

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extraordinários teriam levado as organizações rivais ao aparente armistício e possível colaboração entre si. Rememorou o jargão bíblico: o leão e o cordeiro se sentarão lado a lado, e imaginou se o gavião e o periquito, o galo e a raposa, e tantos outros inimigos viscerais estariam para fazer o mesmo. A tentativa parecia absurdamente inflamável.

A situação o deixou numa espécie de transe. Sentia-se vencido junto aos templários ao seu lado, não conseguiria fugir de tais algozes. No entanto, os dois, assim como os outros ao redor, apenas o protegiam, ainda não haviam se dirigido verbalmente a ele, nem o tratado ameaçadoramente, apenas o escoltavam. Em meio à confusão mental em que estava imerso, decidiu repentinamente ser a hora de descer, o que lhe pareceu naquele instante a primeira decisão acertada durante todo o dia.

Um grupo de vigilantes milicianos se aglutinava em meio a um clarão que atraía os olhares da multidão comprimida na plataforma do metrô. Os para-militares posicionavam-se ameaçadoramente no caminho entre o vagão e a escada rolante. JC desceu do trem sem oposição, mas ainda escoltado pelos dois rubro-negros ao seu lado. Outros mais se juntaram às suas costas em uma formação militar. A tensão do momento comunicou-se aos passageiros que aguardavam o trem, e contagiou JC de uma maneira drástica, na forma de uma sensação de potência que se comunicava pela coluna e membros fazendo-o erigir e enrijecer o corpo, arrepiando-lhe também a nuca e os braços. Cruz-maltinos e gaviões da fiel compunham blocos separados à esquerda e à direita do grupo central, e um pouco atrasados, formando um arranjo heterogêneo inusitado.

Tomado pela tensão, e relembrando os treinamentos executados durante a infância, JC marchou em uníssono com o grupo, executando o mesmo passo desafiador, e os mesmos movimentos marciais de braço e cabeça que os restantes faziam.

Talvez sua adesão tenha sido inesperada e por essa razão estimulado o grupo, fato foi que, após os primeiros passos, o pelotão começou a entoar seu grito de guerra, terminado com a rima: ... quem manda nessa coisa é a torcida do urubu! acompanhado com movimentos aguerridos do braço direito dos membros do grupo rubro-negro, executados em uníssono.

Pareceu um milagre que o jargão entoado não causasse um conflito imediato entre as facções rivais, mas os soldados de Cristo continuavam estranhamente unidos.

Frente a tal poderio, os vigilantes viram-se compelidos a abrir espaço para o grupo desafiador, enquanto permaneciam perplexos a contemplar a heterogeneidade do grupo. A escolta se manteve em formação até a saída da galeria do metrô, embora JC mantivesse a crença firme de que continuava observado. A preocupação gerada pela suposição de estar sendo seguido e vigiado superava em muito a gratidão sentida pela proteção recebida no metrô.

Seguiu o fluxo da multidão que deixava a estação com o intuito de se misturar a ela e iludir algum provável perseguidor, mas depois de umas três quadras, desceu por uma rua transversal quase deserta para ter certeza de que ninguém o seguia. Ao deixar a multidão acelerou o passo e dobrou algumas esquinas até se sentir seguro e aliviado pela ausência de perseguidores atrás de si.

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Prosseguiu em seu caminho, tentando compreender e absorver os fatos recentes, que percebia como uma espécie de delírio. Sentia ter estado detido minutos antes, mas agora via-se completamente livre novamente. Caminhou a esmo pelas ruas desconhecidas, triplamente desorientado: pela paisagem estranha, pelas ameaças das quais tentava escapar, e pela recente capitulação e subsequente libertação completamente inexplicável.

Continuou andando para lugar nenhum, imerso apenas em si mesmo, tentando compreender os estranhos percalços pelos quais passava naquele momento. Todo ele era incompreensão.

* * *

JC não tinha a menor idéia de onde se encontrava, mas continuava a andar a esmo. Planejava seguir em frente, e torcia para estar se afastando do centro. As construções ao redor não lhe diziam nada, umas iguais à outras, todas elas pobres. Nenhum marco havia para lhe indicar alguma possível familiaridade. Nenhuma montanha para orientar a direção, tinha que se contentar com sua própria capacidade de orientação, quase inexistente.

Embora desorientado, sem rumo, bastava pensar em Madeleine para sentir a serenidade retornar. Apesar da necessidade premente de resolver sua situação, de planejar sensatamente algum roteiro para tentar se por a salvo de perigos iminentes aos quais sabia estar sujeito, sua natureza sonhadora permitia que quase toda a sua tensão se aliviasse apenas se lembrando de sua amada. Encontrava-se absurdamente perdido em um local desconhecido do qual não sabia sair, de onde não conseguia traçar nenhum rumo, e apesar da necessidade urgente de se distanciar, de se colocar a salvo, fora do alcance dos membros da igreja, sonhava com Madeleine em seus braços e assim se comprazia, mesmo estando perdido e ameaçado.

Embrenhou-se pelas ruas menos movimentadas, sem nenhum fluxo de veículos e com pouquíssimas pessoas caminhando através delas. Após longos períodos imerso em devaneios com a amada, eventualmente alguma coisa lhe chamava a atenção. Normalmente uma pichação nas paredes atraía seu olhar introduzindo algum interesse na paisagem monótona de casas descoradas; vinha encontrando muitas réplicas das tradicionais: Cristo é o Senhor. Só Cristo salva. Ele está entre nós.

Costumava se envaidecer com algumas dessas, que no passado tinham tido o efeito de induzi-lo a uma espécie de transe místico, nesse momento, no entanto, elas soavam vazias e enigmáticas. Ficava tentando compreender o sentido da frase simples, sem que nada lhe viesse à mente. Uma delas chamou sua atenção especialmente: Ele está entre nós. Teria sido descoberto? Tinha lido a frase dezenas de vezes por todos os lugares, não podia se referir à sua presença no local, mesmo assim o deixava atento, e o fazia girar a cabeça em busca de alguém que o estivesse seguindo. Quando via pessoas caminhando atrás de si, andava paralelamente por alguma rua lateral até a quadra seguinte, onde retomava a direção original. Nessas horas sentia a falta de Madeleine, gostaria de poder contatá-la e sondar suas opiniões acerca de tudo o que via ao redor.

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JC estava encontrando dificuldade em permanecer em linha reta, embora o tentasse, devido às curvas e irregularidades do terreno. Apesar disso, acreditava manter um certo direcionamento. Arrependia-se de não ter trazido relógio, tinha um em casa, que nunca usava e não sabia onde estava, provavelmente sem bateria. Mesmo assim deveria tê-lo procurado, um relógio lhe auxiliaria, não tinha a menor idéia da hora, nem do tempo em que estava caminhando.

Dava um jeito de olhar para trás com certa frequência, e desviar do caminho sempre que algum transeunte levantasse alguma suspeita. Uma dupla, em especial, lhe chamou a atenção e o fez mudar de rota seguidamente. Eram dois homens fortes caminhando lado a lado, à distância, o perfil que temia. Tendo efetuado a primeira curva, esperava que os dois permanecessem na mesma rua pela qual caminhavam, de modo que quando dobraram a esquina e o seguiram, seu coração se acelerou, jogando-o novamente em um alto estado de tensão que voltava a se repetir naquele dia.

Quando JC percebeu os dois homens ainda o seguindo após a segunda curva, cogitou a possibilidade de enfrentá-los, mas considerou que ambos tinham tido, provavelmente, um treinamento policial e prática naquele tipo de situação, sendo difícil levar a melhor sobre eles em uma luta.

Após dobrar a terceira esquina apertou o passo e planejou correr caso os homens continuassem a segui-lo. Virou uma quarta esquina antes que qualquer pessoa surgisse atrás de si pelo mesmo caminho, e manteve o passo bem acelerado.

Todos os eventos naquele dia pareciam-lhe incompreensíveis, por que a dupla teria feito aquele caminho improvável, seguindo-o por duas esquinas diferentes? Mas se o seguiam, por que o teriam deixado despistar tão facilmente? Manteve o passo acelerado por certo tempo, até se sentir mais seguro, abrandando a sensação de estar sendo seguido. Tendo relaxado um pouco, foi impossível não tornar a pensar em Madeleine, sonhava com ela novamente em seus braços.

Voltou a observar a paisagem quando um mesmo trio de pichações se repetiu, chamando sua atenção. Tinha perscrutado o trio anterior, idêntico nas palavras, escrito com a mesma letra e em pintura recente, ainda não desbotada. Outras pixações apareciam sob diversos graus de desgaste, desde as novas, até aquelas que mal podiam ser discernidas devido à deterioração do tempo.

Percebeu os detalhes do portão de ferro carcomido logo em seguida às palavras no muro. Era o mesmo portão, muito antigo e oriundo de um passado pomposo, que havia analisado anteriormente. Tinha andado em círculos, e estava, seguramente, bem perto da estação de metrô onde descera.

Pensou em chamar um táxi. Agora se arrependia de não ter feito isso antes. Poderia ter ido de táxi até uma cidade próxima, quanto mais longe, mais seguro estaria. Considerou que havia perdido tempo, não sabia quanto. Sentiu certo orgulho de sua forma física, acreditava poder andar durante várias horas sem se cansar. Percebeu que sua opção pelas ruas mais ermas o levara para longe dos táxis. Notou também um burburinho em uma das ruas transversais e, ao contrário do que vinha fazendo, dirigiu-se para ela.

Ao se aproximar da rua notou que uma multidão percorria por ela em um fluxo único. Perguntou-se o que poderia levar tanta gente a se aglomerar durante uma sexta

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feira da paixão. A resposta era óbvia e já devia ter sido deduzida durante a viagem de metrô: a multidão se dirigia à encenação da paixão de Cristo. Estava, portanto, nas cercanias do cenário de sua morte: tinha se encaminhado exatamente para a boca do lobo. Uma onda intensa o percorreu da cabeça aos pés, quantas vezes aquilo tinha se repetido naquele dia?

* * *

JC sentia-se imerso em um delírio, em uma espécie de sonho onde as coisas ocorrem abruptamente. Durante o dia inteiro havia praticamente esquecido a encenação da paixão. Sabia como ninguém que a encenação seria tão concorrida quanto o carnaval; que uma multidão teria vindo de fora da cidade, do mundo inteiro, acompanhar o maior espetáculo da Terra, como já vinha sendo chamado por alguns, apesar da concorrência com a grande festa da carne e dos corpos pelados.

Com a mente mais clara, tentava encontrar a razão de sua cegueira. O motivo de não ter percebido que, praticamente toda a movimentação nas ruas naquele dia, tinha como destino a encenação da paixão de Cristo. Sabia que muitas vias das redondezas estariam fechadas ao tráfego de veículos, e que outras abrigariam um enorme fluxo de ônibus advindos de todos os pontos da cidade e de fora dela. Também tinha plena consciência de que toda a movimentação do metrô, desde a manhã daquele feriado, teria estado direcionada ao grande espetáculo, de maneira que, ao descer naquele ponto, juntamente com boa parte da multidão que escolhera aquela mesma entrada para o extenso palco aberto, estava fazendo o exato oposto do que desejava, aproximando-se do local do qual pretendia se distanciar.

JC titubeou, sentia-se confuso, perplexo. Sentia ter estado agindo de uma maneira inexplicavelmente irracional, mecânica. Talvez devesse se espantar com o fato de não conhecer as vizinhanças do local onde tantas vezes tinha vindo ensaiar, mas isso não o incomodava. Sabia que seu senso de direção era praticamente inexistente, não esperaria reconhecer a região, nem suas proximidades, mais ainda diferenciadas pela presença da multidão. Mas o espantava que seu raciocínio tivesse falhado tão drasticamente, a ponto de não deduzir o local onde estava pela movimentação do povo.

Em meio à confusão que experimentava naquele momento, se lembrou de Madeleine. JC adorava sentir e sorver aquele poder que ela tinha de tranquilizá-lo completamente, por maior que fosse o problema. Bastava trazer sua imagem ao pensamento para que mundo voltasse a se inundar de felicidade.

Ainda indeciso, parado no meio da rua, decidiu retornar e se encaminhar na direção oposta, na mesma em que tinha chegado ali, mas ao voltar o corpo para trás percebeu a presença dos dois homens que anteriormente pareciam segui-lo, e que supostamente haviam sido despistados. Um terceiro agora se juntara a eles e caminhavam a uma distância não muito grande. Sua confusão se transformou em um temor intenso, quase em pavor. As surpresas que se sucediam resultavam em um abalo na confiança, em uma espécie de abandono de si mesmo.

Praticamente sem pensar no que fazia, retornou à direção que vinha seguindo anteriormente, rumo à multidão. Caminhou até ela apressadamente e se misturou ao

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povo tentando alcançar a margem oposta da rua, pretendia se camuflar em meio à aglomeração. Sabia que sua altura o traía, e tentava ocultá-la, mas era difícil não se sobressair em meio à turba, mesmo dobrando os joelhos excessivamente ao andar e abaixando a cabeça em demasia. Não ousava voltar a cabeça para trás em busca de seus perseguidores, o que o revelaria imediatamente. Preferiu seguir o fluxo misturado aos populares, tentando assim se perder de seus perseguidores.

A caminhada entre a multidão teve um efeito relativamente calmante, e depois de certo tempo JC conseguiu pensar em algo mais que não fosse a perseguição imediata que sofria. Foi quando olhou para o céu e percebeu que, sobre as luzes intensas que iluminavam a avenida repleta a noite já se instalara completamente. Um novo abalo atingiu a mente de JC. Tinha saído de casa cedo, pela manhã, deixado Madeleine no aeroporto e voltado para casa, de onde, após um curto tempo, saiu com o intuito de se afastar da cidade. Pegara o metrô com rapidez, e depois de uma viagem não muito demorada, vinha caminhando por um certo tempo.

Ainda não havia almoçado, o que o levava a supor estar perto do meio dia, hora em que uma fome avassaladora sempre o assaltava. A escuridão do céu o confundia ainda mais, aumentando a impressão de sonho que já vinha sentindo devido às sucessivas mudanças abruptas que percebia. Era como em um sonho que o dia virara noite, que a hora do almoço se transformava em hora do jantar, sem transição, assim como o dia comum havia se transformado em feriado, e a distância imensa em proximidade com o perigo. E todas as transformações aconteciam instantaneamente, sem o intervalo de um tempo que permitisse se acostumar à nova situação, percebida assim de maneira chocante.

Ainda conjeturou a possibilidade de algum fenômeno estranho estar ocorrendo, a iminência de uma tempestade violentíssima que encobrisse o céu, ou até mesmo um improvável elipse que tivesse se instalado nos céus sem que ele tivesse tido notícia da iminência do acontecimento, mas, em face do inesperado do anoitecer tão fora de hora, qualquer suposição pareceria francamente viável. Uma sombra de alívio iluminou seu semblante ao pensar que nada daquilo fosse real, apenas um sonho. Mas o mundo ao redor era excessivamente palpável, impossível duvidar dele. Emparelhou o passo com um cidadão com relógio no braço e perguntou-lhe a hora. Oito horas. Ao ouvir a resposta teve o ímpeto de perguntar sobre o anoitecer imprevisto, mas calou-se a tempo. Aquilo era absurdamente inesperado, surpreendente, estava confuso.

No mesmo instante foi invadido por um cansaço que até então não havia sentido. Percebeu que suas pernas, mais que o restante do corpo, pediam repouso, e começavam a se queixar do excesso de caminhadas. Calculou que teria estado andando seguidamente por umas dez horas quase, e sem se alimentar desde a véspera, já que nunca comia pela manhã, bebendo apenas um café. Também sentiu sede. O resultado de tudo isso foi uma espécie de abatimento, uma redução geral no ânimo.

Parou em uma carrocinha para tomar um mate. Parecia um bom lugar para se esconder, onde a cabeça ficava encoberta pelo teto baixo e improvisado do veículo. O cheiro de comida insuflou-lhe uma fome imensa. Pediu um cachorro quente na barraca ao lado. Enquanto comia, pensou em Madeleine, lembrou de sua face, de seu olhar, de seu corpo. Imaginou onde estaria àquela hora, gostaria de estar com ela. Tomou ainda um copo grande de limonada, e mais um sanduíche antes de prosseguir.

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Naquele momento, suas pernas estavam decididamente cansadas e JC preferiu acompanhar a multidão pela beira, onde o fluxo era mais lento. Pensou também que já era hora de abandonar a multidão e encontrar seu próprio caminho, longe da turba e do palco de sua morte.

Por um instante, percebeu a multidão caminhando como uma imensa boiada. Percebeu então estar a poucos metros da entrada para o espetáculo. Refletiu que, provavelmente, tinha sido “tocado” como um animal durante todo o dia. Deduziu ter sido provável que os homens no vagão do metrô, seus defensores, o tivessem incentivado na decisão de descer ali, pressionando-o com um empurrão, e que os que o seguiram durante todo o dia, talvez tivessem se mostrado sempre que ele se afastava do local do espetáculo, quando se encaminhava para a direção errada, corrigindo sua rota e o tangendo, desse modo, para a direção correta: o local de sua morte.

Essa constatação teve um efeito profundo em seu moral, aumentando o seu cansaço e reduzindo novamente o seu ânimo, que a ingestão de alimento havia recuperado em parte. Mas a chegada ao local do espetáculo o obrigou a se decidir. Respirou fundo, e como se tivesse acabado de acordar, ganhou novo alento e saiu do fluxo, seguindo rente ao muro que circundava o imenso palco ao ar livre.

Quando se viu isolado da multidão, sentiu todo o cansaço que embebia o seu corpo e desejou estar em uma cama. Imaginou Madeleine a seu lado, seu rosto, seus carinhos. Mas continuava caminhando. Perguntou-se para onde ir. Planejou o que considerou mais simples, retornar, guiado pelo fluxo de pessoas, pela próxima rua paralela. Chegando ao metrô decidiria o movimento seguinte.

Caminhou em relativa lentidão ao longo do muro que circundava o imenso cenário. Estava cansado demais para se preocupar com qualquer outra coisa que não o próprio cansaço, por essa razão não olhou para trás; teria reconhecido, caminhando atrás de si, os dois homens que o seguiam desde a tarde.

* * *

Andava com o corpo inclinado para frente, a cabeça meio tombada para baixo, a carcaça pesada acusando o cansaço, mesmo assim se deslocava ininterruptamente, até chegar à rua paralela, por onde planejava retornar até o metrô. Quando ia dobrar a esquina viu três tipos suspeitos caminhando em sua direção. Fora estes, a rua estava deserta. Imediatamente recobrou suas energias, e lhe veio o desejo de retornar e se misturar novamente à multidão. Voltou o corpo para trás, o suficiente para divisar e reconhecer os dois indivíduos atrás de si. Uma sensação de pavor tomou seu corpo, fazendo seu coração se acelerar fortemente. Apertou o passo instantaneamente, seguindo em frente. Avaliou os três indivíduos que se aproximavam pela rua transversal, dois deles muito pesadões, o terceiro alto e forte. Pensou em correr, mas o intenso cansaço latente não permitiu tamanho esbanjamento de energia. Não lhe restava opção, teria que seguir em frente, disfarçadamente. Tinha certeza agora que seu suposto disfarce poderia resultar apenas em um adiamento da conflagração, fosse ela qual fosse, e embora isso parecesse inútil, não via mais nada que pudesse fazer.

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Desistiu de dobrar a esquina, evitando o confronto com os homens, e prosseguiu rente ao muro imprimindo certa velocidade à caminhada; era o que de melhor conseguia fazer. Passou por um caminhão estacionado perto do muro reconhecendo nele os canhões de luzes que seriam a atração tecnológica da festa. Teria tido interesse em analisar o equipamento, mas não era o momento para aquilo. Percebeu mais dois homens caminhando na direção contrária à sua, o cerco parecia se fechar.

Os dois perseguidores às suas costas mantinham uma distância de uns quinze metros, os outros o alcançaram, mas se mantiveram do outro lado da calçada. Para seu alívio, os dois homens vindos pela direção oposta passaram direto, não pareciam policiais. JC Continuou seguindo em frente até o final do muro. Viu-se obrigado a dobrar a esquina seguinte para evitar o confronto com os que o perseguiam lateralmente. Ouvia os passos dos outros, cada vez mais próximos.

A rua em que entrou era margeada de casas de ambos os lados. Continuava a caminhada em passo relativamente acelerado, mas sem rumo, tentando apenas se manter distante dos perseguidores. O ritmo de seu coração já estava se normalizando quando os três que o acompanhavam pela outra calçada atravessaram a rua diagonalmente vindo em sua direção. Um deles se adiantou impedindo a fuga pela frente, os de trás reduziram a distância. Quando o alcançaram, formaram em conjunto um único grupo de cinco homens. Apenas um deles o olhava, os outros mantinham os olhos fitos no horizonte, como se não o percebessem. Este se emparelhou a seu lado e o encarou descaradamente, desafiadoramente. Caminhavam em silêncio. Repentinamente, um deles acelerou o passo tomando a frente do grupo. O que o encarava comunicou:

– Chegamos! E todos pararam em frente a um pequeno portão de ferro encravado em um muro alto, onde o que estava na frente impedia o prosseguimento de JC. O homem ao lado continuava a encará-lo de maneira intimidadora, enquanto os outros ainda evitavam cruzar olhares com JC.

Um deles abriu o portão e entrou, o que o encarava se dirigiu a JC:– Entra! Ordenou Aderson.E JC se viu obrigado a entrar na casa fortemente murada, seguido pelos outros

quatro. Tanto o cansaço quanto o desânimo o abatiam profundamente.

* * *

Um furto

– É aquele lá, no lugar certinho. – É ele, vamos indo bem devagar para ver se não tem ninguém por lá.– Instalar um cabo desses demora um pouquinho, precisa de alguém do outro

lado do muro. O motorista deve ter estacionado aí de manhã. Disseram que ninguém vai ficar por perto, o eletricista instala o cabo e vai para a festa. O controle é todo automático.

– É, foi o que disseram, mas vamos conferir porque a única pele em risco é a nossa.

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– Tá certo.– Cara, olha esses meganhas vindo pra cá, sujou!– Sujou. Você também tá limpo, né?– Claro!...– E aí?– Tinham a maior cara de meganha, mas tinha um bacana no meio, deviam

estar levando uma grana do otário.– E aí, vamos direto para o caminhão, ou damos um tempo?– Vamos seguindo, na hora a gente vê....– Dá uma olhada, os caras entraram em alguma casa, o que você acha?– Esquisito. Se fossem os homens da lei, e a serviço, não iam entrar em lugar

nenhum. Algum deles deve morar ali.– Será que vão ficar de olho na gente?–Acho que dá par arriscar, serviço rápido o nosso. Você desconecta o cabo

enquanto eu faço uma direta. Qualquer coisa a gente corre, na corrida aqueles caras não pegam a gente nunca.

...– Tudo certo com o cabo, vamos embora rapidinho....– O que é que a gente está levando? não me disseram. O caminhão está leve e

anda bem, mas disseram para ter cuidado nas curvas.– Parece ser um geradorzão e uma torre de iluminação. A torre dá a impressão

que ilumina uma cidade inteira, cada refletor gigante, e tudo móvel. Deve ser um brinquedinho maravilhoso, mas se ligarem isso no morro todo mundo vai saber que está lá.

– Será que conseguem acionar ele agora, enquanto a gente leva? – Sem risco, eu desliguei a chave do gerador. A gente ia virar a maior árvore de

natal, até um cego conseguiria seguir nossa luz, isso aqui tem cara de brilhar mais que o sol. Mas ainda bem que a gente vai para aqui pertinho.

– Engraçado isso, roubar uma carga dessas para fazer cinema. Eu não tinha acreditado, mas deve ser mesmo. A galera do morro vai acabar virando bacana também.

* * *

Adentraram a murada alta de uma casa antiga e de paredes de pedra escondida pelo muro. Um dos homens que o escoltavam dirigiu-se para a porta da casa, outro permaneceu no portão, fechando-o a chaves e trancas pesadas, enquanto Aderson e mais dois outros conduziram JC à parte do terreno nos fundos da casa.

Aderson se voltou para JC e olhou bem fundo em seus olhos, seu olhar intimidante era extremamente incômodo.

– Você está sendo esperado em algum lugar agora, não?

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JC ainda tentava se agarrar à ideia de estar sendo roubado, ou sequestrado, o que teria sido um alívio, mas a pergunta extinguia suas últimas esperanças: estava nas mãos da igreja.

– Eu não vou para a crucificação. Respondeu JC depois de um instante.A face de Aderson permaneceu imutável, mas seus olhos traíram um

sentimento de asco e de ódio.Os dois homens que haviam deixado o grupo tornaram a se reunir a ele, para

permanecerem todos em uma espécie de impasse silencioso incômodo. Ninguém pronunciava palavra, nada acontecia, apenas um longo momento desagradável e apavorante se estendia indefinidamente.

Depois de algum tempo, uma luz intensa se acendeu na outra propriedade, aos fundos, lançando o seu foco sobre o muro que separava ambos os terrenos. A iluminação vinha certamente da área onde o grande espetáculo já devia estar sendo encenado.

No mesmo instante um cansaço imenso o abateu completamente. Sentiu-se vencido, entregue. Leu a crueldade na face carrancuda de Aderson, sentiu uma onda de medo percorrer-lhe o corpo da cabeça aos pés, não era a primeira vez que sentia aquilo naquele dia fatídico. Aderson dirigiu-se a JC, preparava-se para dizer algo, quando um som claro e intenso inundou o local, fazendo-o se calar e caminhar vagarosamente de um lado ao outro, como a esperar o retorno do silêncio.

O que se ouvia intensamente eram os acordes iniciais da canção que tão bem conhecia, e que lhe tinha embalado tantos momentos de sonho e fervor no passado. Nos breves momentos seguintes, estranhamente condensados, rememorou inúmeros fatos de sua vida. Relembrou momentos de sua infância, eventos esquecidos da adolescência e juventude, os acontecimentos mais importantes de sua existência, redescobrindo alguns surpreendentes e que pareciam já bastante empoeirados devido ao esquecimento total a que tinham sido relegados. Ao final da recapitulação lembrou-se de Madeleine, reviu seu rosto em sua mente com um realismo impressionante, como se ela estivesse materializada à sua frente.

A lembrança vívida da amada deu-lhe novo alento. Pensou em lutar contra os homens ao seu redor: inviável, todos eles muito fortes, atléticos, grandes e vigorosos, e, sobretudo, fortemente treinados para tais circunstâncias. Uma avaliação imediata foi suficiente para descartar a hipótese. Poderia tentar escapar correndo. Naquele momento, o cansaço que o abatia cedia lugar a uma vitalidade arrancada de suas entranhas mais profundas. O desespero lhe insuflava uma energia antes oculta, e relegava o cansaço a um plano de fundo, a uma sensação constante por todo o corpo, mas sentida à distância, superável. Avaliou que o peso dos três homens que o circundavam provavelmente os impediria de alcançá-lo, mas ao medir a altura do muro que circundava a casa, sem nenhuma falha, como uma verdadeira fortificação, percebeu a inutilidade do plano. Nunca aprendera a escalar muros, nem os muito mais baixos que aquele, cuja altura certamente passava dos quatro metros.

Sua mente trabalhava com avidez em busca de algum plano que lhe permitisse escapar. Olhando sobre o muro, no lado oposto ao de onde vinha a luz intensa, via o morro à distância, pontilhado pelas miríadas de luzes amarelas iluminando-o belamente. Embora temendo a morte iminente, JC ainda conseguia ver poesia no

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mundo ao redor. Prédios distantes também compunham o cenário além dos muros, todos eles iluminados por lâmpadas e pelo piscar constante das televisões.

Os acordes iniciais da música intensa cederam lugar à voz do cantor em primeiro plano:

Teriam esses pés, em tempos antigos, caminhado sobre os verdes morros do Rio de Janeiro?

Os homens pareciam estar atentos à letra da canção. Mediram JC da cabeça aos pés com um olhar de asco.

E teria o Sagrado Cordeiro de Deus sido visto nas aprazíveis pastagens cariocas?

Os três trocaram olhares, enquanto tornavam a avaliar JC. Ouvia-se claramente a multidão do outro lado do muro respondendo enfaticamente as perguntas que a música lhes propunha.

E o Divino Semblante, teria brilhado sobre nossas colinas ensolaradas?

JC continuava a tentar imaginar alguma solução para a situação, mas nada lhe vinha à mente: tanto o combate quanto a fuga lhe pareciam igualmente inviáveis, completamente. Talvez tivesse tido a coragem, insuflada pelo desespero, de investir violentamente contra seus captores, mas ainda não havia perdido a razão, e essa lhe garantia que não teria nenhuma possibilidade de sucesso dessa maneira, imperioso encontrar método alternativo para escapar de seus captores.

E foi a Terra Santa erguida aqui, em meio a estes negros moinhos satânicos?

A expressão final teve um efeito profundo nas fisionomias de seus aprisonadores, a expressão funesta “moinhos satânicos” nítidamente insuflava neles um sentimento malevolente, uma propensão à crueldade. Foi a premência gerada pela sensação apavorante causada pelas expressões macabras de seus algozes que compeliu JC a iniciar a construção de um plano para livrá-lo da situação nefasta.

A música continuava intensa, tanto em volume quanto no fervor com que o cantor prorrompia os versos enérgicos:

Tragam meu arco de ouro brilhante!Tragam minhas flechas do desejo!Tragam minha lança: Oh sombras, revelem-se!Tragam minha Carruagem de Fogo!

Além da urgência compelindo JC a imaginar algo para escapar de seus algozes, a canção também lhe insuflava coragem e determinação.

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Não cessarei os embates mentais;Nem minha espada descansará em minha mãoAté que tenhamos erigido a Terra SantaNas verdejantes e agradáveis terras cariocas.

Quando a música findou, o plano de fuga de JC já estava arquitetado. Pensou uma vez mais em Madeleine, e, tendo ganhado alento, respirou fundo, ergueu os braços voltando o rosto aos céus, e pronunciou com sonoridade intensa:

– Pai! O monossílabo soava sempre de forma impressionante quando saído da boca

do Cristo. O “p” vibrava explosivamente, dando à palavra familiar uma tonalidade mística intensa. A amplificação obtida com a aparelhagem eletrônica fazia a voz retumbar com uma imponência sobrenatural. Os três homens ao seu redor se ajoelharam compungidos.

JC conhecia não só o discurso, mas as entonações e pausas que eram dadas. Havia, certamente, um substituto fazendo “o seu papel” apenas uns metros além do muro, mas os diálogos eram exatamente os mesmos que conhecia, em um roteiro seguido à risca nos movimentos, nos sons e nas pausas. JC sentiu uma estranha curiosidade, uma vontade intensa de conhecer a face do Cristo dom outro lado do muro, provavelmente alguém de sua altura e de seu porte, caracterizado e maquiado para adquirir suas feições. Tinha sido um Cristo imensamente popular durante o ano inteiro que se passara desde sua eleição. Seu rosto estampara muitas revistas, chegando a figurar em diversas capas relativamente importantes. Também havia aparecido na televisão inúmeras vezes, não só na Rediviva, onde era figura de destaque quase diariamente, mas em todos os outros canais, de modo que seu rosto era já bem conhecido do público, exigindo, portanto, uma forte continuidade entre si e seu substituto. O próximo Cristo também seria escolhido pela semelhança física com JC.

Havia ainda uma razão a mais para que a igreja buscasse uma forte semelhança entre ambos: a defecção do Cristo não havia sido divulgada, provavelmente nunca seria confirmada, no entanto, os meios de comunicação fatalmente acabariam por descobrir a substituição, sendo conveniente para a igreja postergar esse acontecimento, mantendo a ilusão de que tudo transcorria normalmente pelo maior tempo possível, se conseguisse, até o final da representação.

JC permanecia com os braços abertos em cruz e o olhar pio voltado para os céus enquanto aguardava o término da pausa estudadamente medida, e bem conhecida por ele. No momento exato, pronunciou novamente, e com intensidade e sonoridade ainda maiores que anteriormente:

– Pai!

Esse apelo, aparentemente simples, nunca perdia sua aura mística sob a pronúncia cheia e fervorosa de JC, e compelia os crentes a uma devoção profunda. Naquele instante, estava acentuada pelo prenúncio musical e pelo silêncio intenso obtido durante as pausas compungentes. Nova pausa.

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– Pai!

Após o brado pientíssimo, um forte ruído de ferragens pesadas sendo arrastadas acompanhou os movimentos no céu, onde as nuvens se abriam como portões colossais, para desvelar uma presença nunca óbvia, nunca explícita, e ainda assim seguramente presente na imensidão acima.

No terreno aos fundos, uma longa interjeição de espanto escapou da boca dos que ousaram erguer a cabeça ante tão solene momento, compelindo os restantes a ecoar o mesmo “oh”, e a mirar em adoração os céus se abrindo a pedido do filho de Deus, do Cristo que jazia na cruz.

JC foi obrigado a repetir as palavras de perdão do roteiro. Preferiria ter usado outras mais contundentes incriminando os maus e obrigando-os ao arrependimento, mas não tinha escolha, o roteiro estava pré-definida pela tragédia encenada. Ao final do discurso sonoramente pronunciado sob a reverberação intensa dos potentes auto-falantes, o Cristo perdoava os pecadores:

– Eles não sabem o que fazem!Apenas um segundo enigmático se passou antes da ocorrência de dois eventos

contundentes: todas as luzes da cidade se apagaram subitamente, ao mesmo tempo em que Aderson, retornando de uma espécie de transe que o jogara em uma compunção profunda, retirou um imenso punhal de seus próprios trajes, para cravá-lo repentina e impiedosamente por sob as costelas de JC, encravando-o até o coração.

A última imagem que os olhos de JC contemplaram antes de sua queda mortal, foi o radioso espetáculo que se desvelava na noite cálida do Rio de Janeiro. Em sua mente, as estrelas do céu adornavam o rosto de Madeleine que retornava linda em seu último devaneio.

* * *

– O que fazemos com o corpo? perguntou um dos homens surpreso com o acontecimento brusco e inesperado.

– Aguardamos abaixar a poeira e jogamos lá do outro lado do muro. É só avisar pro Solha. Sem problemas. Respondeu Aderson, parecendo retornar a si após uma espécie de possessão.

* * *

Averiguações posteriores constataram que a tentativa de ligação de uma poderosíssima torre de luzes em um morro da cidade teria sobrecarregado a precária rede elétrica que o abastecia, derrubando um relé e disparando um pedido de compensação de outro ponto da rede, logo desligado também pelo mesmo motivo, e causando em seguida uma sobrecarga no sistema previamente abarrotado, gerando um apagão que se estendeu pela cidade e se alastrou por quase todo o país, poupando apenas a região amazônica, abastecida por fontes locais. A pane não ficou restrita

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nem mesmo ao país, desabastecendo todo o Paraguai, Uruguai, e quase toda a Argentina, constituindo o maior blecaute já registrado na América do Sul.

Quando as luzes de toda a parte sul do continente se apagaram, o céu noturno se exibiu em todo o seu esplendor. Na cidade do Rio de Janeiro, imensas nuvens encobriam parte do céu, permitindo uma visibilidade profunda do cosmo através de uma imensa janela que se abria revelando a via láctea a se estender deslumbrantemente, entre uma profusão incontável de minúsculas estrelas radiantes emoldurando outras muito mais luminosas.

A brisa que varria a cidade e amenizava o calor da noite se fazia mais intensa nas alturas, onde empurrava as nuvens com força descomunal, obrigando-as a ampliar o cenário, como cortinas que se abrissem desvelando o espetáculo memorável. Foi a beleza contundente daquele céu estrelado, beleza esquecida e surpreendente, que roubou mais uma longa interjeição da multidão acompanhando o espetáculo.

Com os olhos voltados para cima, a imensa multidão contemplava os céus em êxtase, quando as incontáveis luzes radiantes das estrelas emolduravam uma presença que toda a multidão pressentia, sem que nenhum olho conseguisse fixar. Uma presença tão marcada quanto fugidia, tão indubitável quanto tênue, que parecia se apoiar nas nuvens que se abriam para revelar o espetáculo esplendoroso da noite estrelada. Ainda que impalpável, a presença colossal e sutil se deixava vislumbrar inequivocamente pela multidão extasiada, compungida, deleitada, mortificada pelo espetáculo pungente, e ungido por um final ao mesmo tempo poderoso e singelo. Os efeitos especiais daquela noite, executados magnificamente apesar da completa falta de energia foram admirados e elogiados em todo o planeta, embora a direção da igreja, muito modestamente, tivesse atribuído todos os créditos pelos efeitos visuais à providência.

Ao final de tudo, houve certo consenso de que o apagão inesperado acabou enaltecendo ainda mais o ápice do espetáculo. As consequências do furto do gerador, adquirido exatamente com a finalidade de impedir o eventual malogro de uma queda de energia, acabou sendo providencial.

Conforme declaração posterior da direção da igreja, a providência teria gerado o apagão, exatamente no grande momento da encenação.

* * *

Durante toda a viagem, Madeleine se preocupava com JC. Supunha, por tudo que ele já havia lhe contado sobre a igreja, que ele corria enorme perigo. Não conseguia compreender, no entanto, nem as justificativas, nem as motivações, e nem qualquer outra eventual explicação para o fato. Na verdade, tinha, no mínimo, uma enorme antipatia por tudo o que se relacionasse com a malfadada igreja.

Tinha ouvido falar, quando morava na França, e ainda não conhecia JC, na bizarra seita que anualmente imolava inocentes como forma de propaganda. Apesar de sua criação francesa, da visão de mundo tolerante, especialmente para com outras culturas, adquirida através da instrução obtida nessa cultura, não conseguia deixar de sentir uma forte repulsa pela religião que sistematicamente sacrificava seus

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seguidores, impondo-lhes sofrimentos, em busca de uma salvação de pecados quase sempre menores que os que ela mesma estava a cometer.

A aversão de Madeleine pela seita vinha, portanto, desde antes do primeiro contato com a tenebrosa fé, mas, naqueles tempos, resumiu-se a ao virar de rosto amuado em sinal de desprezo e asco pelas atrocidades cometidas em nome de uma fé macabra. Ao conhecer JC, no entanto, e se inteirar de mais detalhes da pavorosa seita, passou a ter por ela uma aversão visceral, uma repugnância odiosa pela crença hedionda.

A viagem era longa, e Madeleine pensava em JC, nos perigos que corria, e que tinha dificuldade em imaginar quais eram. Ao chegar a Lima, esperou em vão, no aeroporto, por uma ligação de JC durante algumas horas, para só depois se instalar em um hotel onde continuou esperando notícias de seu amado. Sabia que, quando ele se sentisse a salvo, fora do Brasil, tentaria imediatamente o contato com ela, mas não esperava notícias enquanto ele ainda corresse risco, sabia que ele temia que qualquer tentativa de comunicação com ela revelasse sua localização.

No hotel assistiu à tenebrosa representação da paixão de Cristo, transmitida diretamente para quase todo o planeta. À semelhança do carnaval, a transmissão do espetáculo era dirigida por um casal de apresentadores, que o comentavam e explicavam. As reprises dos melhores lances eram mostradas sob diversos ângulos, à maneira das transmissões esportivas. Madeleine se submeteu ao martírio de assistir todos os passos da paixão.

JC a havia alertado de que o Cristo se assemelharia a ele, mesmo assim ela não estava preparada para o que viu. O homem cujo corpo se dobrava ao peso da cruz , tinha o talhe exato de JC, o que a assustou de imediato. Tentava se tranquilizar buscando fixar alguma imagem do rosto do infeliz em foco, mas a câmera parecia escapar um átimo antes de focalizar com precisão, de enquadrar apropriadamente o rosto do desgraçado.

Madeleine tentou reiteradas vezes congelar as imagens do rosto, voltar as cenas, observar detalhes, mas nenhuma dessas ações resultou em convicção definitiva. Parecia que as imagens evitavam um enquadramento suficientemente claro para o discernimento das feições do miserável, o que, aliás, proporcionava certo conforto a Madeleine, que supunha que a ausência de closes no rosto do protagonista do espetáculo na tela se devia à tentativa de encobrir a farsa: nenhuma notícia sobre a substituição do Cristo foi apresentada, o homem em foco era simplesmente o Cristo, supostamente o mesmo intelectual que, dias antes pregava a nova era, e a libertação do homem.

Apesar de estar convencida da farsa, a moça não conseguia deixar de se emocionar com as cenas, com o infeliz que se dirigia ao calvário em busca da própria morte, entregando sua vida tão inutilmente, tão tolamente, quanto JC o teria feito. Para ela, a alegoria não representava a imolação de Cristo. A seus olhos o suicídio de JC simbolizava sua ingenuidade, sua bondade, sua candura e benevolência. Também significava sua parvoíce, sua imbecilidade irritante advinda de uma crença natural na benevolência das pessoas ao redor, vistas à sua própria imagem.

Foi o ápice do espetáculo que abalou Madeleine profundamente. Contra todas as probabilidades, contra todos os cânones das transmissões ao vivo, a câmera insistia

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em não fixar o rosto do Cristo, o que não podia passar despercebido pelos comentaristas que clamavam por um close nítido da face compungida do Cristo. Queriam ver suas lágrimas, sentir um pouco de sua dor, do sofrimento que sentia em nome da humanidade, mas as câmeras continuavam a negar a satisfação do desejo de todos os que assistiam o espetáculo mórbido.

Mas quando o Cristo se dirigiu aos céus para a prece final seu rosto se definiu na tela, e Madeleine não pode deixar de conter um grito agudo e descontrolado. Aquele era JC, não poderia ser outro. As imagens eram confusas, e, de certo modo, contraditórias. O Cristo vinha trazendo a cruz com gestos teatrais. Demonstrava um cansaço pesado e profundo, mas de aparência mais simbólica que real. Seu corpo parecia dizer: vejam como estou cansado!

Mas o rosto do homem que se dirigia aos céus era sincero, revelava um cansaço natural sob o que parecia uma maquiagem perfeita, sem nenhum resquício de artificialidade, apenas excessivamente branda, deixando assim de acentuar os detalhes que a imagem chapada da televisão naturalmente atenuam.

Mas era o rosto de JC, era sua voz, e aquilo exasperava Madeleine, lhe roubava a razão. Mantinha o olhar fixo na tela, mas sem conseguir raciocinar sobre o que via, nem sobre os fatos, nem sobre a imagem, embora sentisse, juntamente com o realismo despojado da face do Cristo, uma aura de artificialidade na imagem como um todo.

Foi a estupefação de Madeleine, mais que a língua em que ouvia transmissão, que a impediu de escutar o elogio dos apresentadores aos efeitos visuais que ressaltavam a magia mística da cena, e talvez a tivessem tranquilizado. Mas a visão do rosto de JC na cruz, pronunciando uma prece que retumbava sonoramente pelos auto-falantes da televisão, cravou-se na memória de Madeleine, juntamente com a firme crença de que o Cristo não era outro que não seu amado.

Quando a lança do centurião perpassou o coração do Cristo, Madeleine desfaleceu. Ao acordar, no tapete do quarto de hotel, bem cedo, na manhã seguinte, tinha a sensação de ter presenciado o assassinato de seu amado em um sonho vívido. Impressionada e atônita, pagou a diária apressadamente e se dirigiu ao aeroporto, com o intuito de retornar ao Rio o mais rapidamente que pudesse.Cria que JC estivesse morto.

* * *

Na tarde de sábado, já estava de volta ao Rio de Janeiro. Quase não tinha esperanças de ainda receber uma ligação de JC, e mesmo assim, se agarrava a essa possibilidade.

Retornou ao apartamento. Teve que chamar um chaveiro para destrancar a porta, mas não precisou fazer novas chaves, encontrou as suas onde as havia deixado.

Nada tinha a fazer na cidade, exceto esperar. Recebeu uns telefonemas de amigas, à noitinha Charlote veio lhe visitar. Tinham pouca ideia do que poderia ser feito e a inação incomodava Madeleine. Resolveu procurar a polícia no dia seguinte.

Pela manhã, dirigiu-se à delegacia em companhia da amiga. Embora tivesse se dirigido ao atendente em português fluente, foi informada de que o policial que falava

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francês não se encontrava no local naquele momento, mas não demoraria; em inglês teria sido mais fácil encontrar intérprete. Depois de alguns minutos, voltou a insistir na inutilidade da espera, pedindo que alguém a atendesse em português mesmo. Apesar de ligeiros protestos, um policial acabou chamando-a para o interior da delegacia, para colher seu depoimento.

Tendo ouvido pacientemente a moça entristecida, o policial comunicou que nada poderia fazer, que a religião era legal, passava na televisão, era de conhecimento de todos, nada faziam ilicitamente. O Cristo tinha oferecido sua vida deliberadamente, e o que acontecia nos rituais religiosos não era da alçada da polícia, eles que se virassem com o Senhor quando chegasse a hora, persignando-se ao pronunciar essas palavras. Madeleine tentava insistir no fato de que JC havia desistido de morrer, abdicado de ser o Cristo, e embora o atendente lhe ouvisse com o olhar fixo em seus olhos, repetia a mesma argumentação em resposta aos esclarecimentos da moça.

O diálogo prosseguia inutilmente quando o policial que falava francês retornou à delegacia e se apresentou à moça. O que a recebia sugeriu que o outro continuasse a atendê-la, oferta a que ela aquiesceu impaciente, mas satisfeita. Foi obrigada a repetir toda a história, dessa vez em francês, repetindo uns trechos aqui e ali devido à má compreensão do intérprete que parecia querer estender a conversa. Tendo apresentado os fatos, o policial respondeu que tudo aquilo era legal, que a morte ritualística, acontecida no interior de um local religioso não era considerado crime, repetindo a mesma argumentação do policial anterior.

A impaciência de Madeleine aumentava, assim como sua sensação de impotência. Não conseguia convencer o policial da veracidade de sua história. Ela insistia que o homem que carregava a cruz não era JC, o Cristo eleito, mas que mesmo assim ele tinha sido assassinado. Após algumas negativas do policial e a insistência férrea da moça, o homem acabou aquiescendo, alegando que, embora a queixa fosse inútil, e não viesse a ser levada em consideração, ela tinha o direito de fazer a ocorrência, pedindo a ela, portanto, que retomasse a história desde o início, para que a transcrevesse.

Os parágrafos da moça eram entrecortados pelo policial que pronunciava uma tradução, sempre emendada por ela antes de transcrever as palavras para o computador, o que a levou a prosseguir em português, facilitando o trabalho de transcrição.

Quando Madeleine deixou a delegacia, tinha a nítida sensação de que nada seria feito pela polícia, de que nenhuma providência seria tomada, nenhuma averiguação efetuada. Claramente, o policial atribuía a ocorrência à consternação natural esperada de uma viúva. Passadas quarenta e oito horas desde seu último contato com JC, suas esperanças estavam mais reduzidas, assim como seu ânimo.

Deixou a delegacia desconsolada, sentindo-se enfraquecida, desanimada, e, mais que tudo, esmagada pelo sentimento de inutilidade decorrente da incapacidade de ao menos imaginar qualquer atividade que pudesse trazer alguma ajuda. A inatividade a que se via compelida a desagradava sumamente. Voltou para casa admoestada pelo sentimento desconfortável que a induzia a fazer algo que ela não conseguia desvendar o que fosse. Por absoluta falta de opção, só lhe restou esperar.

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O restante da manhã acentuou o desgosto que sentia por toda a situação. Nem o parco sono necessário para complementar o que havia faltado durante a noite abrandou seus sentimentos. Permanecia jogada ao leito, inerte e sem forças. Esmaecida. Quase não havia comido naqueles dias, nem se lembrava disso, e se encontrava pálida e enfraquecida, acentuando sua aparência tristonha.

Revia pela televisão as cenas da crucificação, assistia à programação da Rediviva, a emissora da igreja que reprisava os melhores momentos do espetáculo mais de uma vez por dia. Foi no início da tarde, pouco antes do almoço, após assistir mais uma reprise do mesmo programa, que atentou para a chamada da propaganda: o espetáculo chegaria ao auge naquela noite, durante a ressuscitação do Cristo. Repentinamente Madeleine foi assaltada por um novo ânimo. Ergueu-se da cama sentindo uma fome intensa. Preparou um almoço ainda mais farto que o necessário e se alimentou corajosamente enquanto planejava sua ida ao espetáculo.

* * *

A tarde passou muito mais rapidamente que as duas anteriores, que haviam se arrastado longa e tristemente através de uma espera inútil. A sequência do espetáculo insuflou um novo ânimo em Madeleine, que durante toda a tarde se sentiu impaciente, aguardando o momento de sair.

Pouco antes das cinco da tarde, vestiu apressadamente uma túnica bege muito simples e se encaminhou-se ao ponto onde as bicicletas se encontravam disponíveis. Sem o saber, pegou a mesma que JC tinha usado dois dias antes e como ele se dirigiu à estação de metrô.

Guardou a bicicleta, comprou o bilhete de ingresso, adentrou a estação e desceu até a plataforma para esperar o trem. Fez tudo isso como se estivesse concentrada, não queria errar. Também não se mostrava abatida, ao contrário, sentia uma disposição redobrada, talvez por finalmente poder agir.

Quando o trem chegou, após vários minutos de espera, a plataforma já estava bem cheia. Entrou em um vagão e procurou um apoio onde se agarrar. A cada parada o carro enchia ainda mais, com a multidão disputando cada espaço de seu interior. Madeleine permanecia atenta ao gráfico das estações, mais que à comunicação sonora emitida pelos auto-falantes denominando os locais de parada. Antes de sair de casa, tinha olhado no mapa, definindo a parada onde desceria e o caminho que faria até o local do espetáculo. Também supunha que uma boa parte do povo se encaminhava para lá. Suspeitava, corretamente, que quase todos no veículo se dirigiam ao mesmo local.

Desceu do trem com a multidão, para fazer a conexão com a linha dois. Entrou em um vagão mais lotado que o anterior e pressentiu que a viagem seria penosa. As pessoas se comprimiam no espaço exíguo, e Madeleine se arrependeu de não ter pegado um táxi, mas aguentou o restante da viagem com a mente empenhada no caminho que fazia, em suas ações, deixando pouca margem para a percepção dos incômodos.

Desceu com a multidão e seguiu o seu fluxo até o local do espetáculo. As filas para a compra de ingressos não chegavam a ser grandes, revelando desde o início a

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boa organização do evento. A fila de entrada tinha tamanho suficiente para importunar, mas não excessivamente.

Madeleine adentrou o grande palco ao ar livre. Ao entrar, teve explicitada em sua mente a constatação de não saber o que fazia naquele lugar, embora sentisse estar ali, exatamente, para descobrir a resposta para isso. Lembrava-se das inúmeras descrições que JC fazia do local, sem perceber o quanto todas as referências ao evento a incomodavam. Tinha uma aversão ao espetáculo desde antes de conhecer JC. Havia assistido na França, anos antes, um documentário sobre a seita revelando a morbidez grotesca do espetáculo macabro. A bizarria do evento era provavelmente acentuada pela descrição isenta do narrador, pontuada apenas por observações críticas muito sutis.

Embora o documentário mantivesse um afastamento, uma neutralidade muito francesa relativa às peculiaridades culturais de outros povos, era impossível não se chocar com a sangueira vertida por um Cristo crucificado perante a vista da multidão extasiada, transida por um espetáculo místico de um horror explícito. O sofrimento do infeliz exposto na cruz era evidenciado pelas luzes, cenário, roteiro, fala e gestual dos atores, além da expressão facial do próprio protagonista da cena, que procurava sem nenhuma dificuldade, expor seu sofrimento da maneira mais dolorosa que conseguisse.

Madeleine percorria o cenário assaltada por sentimentos paradoxais, contraditórios. Via-se tomada por uma repugnância intensa causada pelos comentários das pessoas ao redor, que não conseguia evitar ouvir, e que se extasiavam com as manifestações bizarras assistidas poucos dias antes:

– A crucificação foi ali: uns cravos enormes enfiados nos pés e nas mãos, era sangue de verdade. O Cristo agoniava, coitado, a dor era de matar. Precisaram jogar um balde d’água nele, desmaiou quando enfiaram o primeiro cravo na perna.

A aversão imensa, a repulsa, a dor, eram repentinamente substituídas pelas lembranças de JC, evocadas pela visão dos palcos tantas vezes descritos por ele com entusiasmo, infantilmente, com a alegria ingênua do cordeirinho jovem a brincar com seu algoz. Madeleine se lembrava do sorriso de JC ao comentar cada cena, cada detalhe do cenário, e também sorria em resposta à imagem evocada em sua mente, embora lágrimas ainda escorressem por seu rosto, sob o choque da dor sentida pela tortura bárbara imposta com os cravos.

Sucessivamente o semblante de Madeleine foi levado das lágrimas à quase iluminação. Os comentários ouvidos versavam quase sempre sobre os sofrimentos do Cristo, sobre sua dor, fazendo Madeleine mergulhar profundamente em nova onda de agonia, para emergir quase radiante após as lágrimas, sob a lembrança de alguma imagem de seu amado descrevendo com alegre brandura a magnificência do espetáculo, ou o significado ritualístico de algum movimento secundário da encenação mística.

Tendo percorrido um bom trecho do imenso palco aberto, e alternado os sentimentos mais dolorosos com outros imensamente doces, Madeleine avizinhou-se da multidão que se aglutinava frente a um dos cenários. A moça mantinha todas as emoções à flor da pele. Desejava alguma resposta, não sabia qual, mas pressentia que, fosse qual fosse, tinha que estar ali.

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Ao se aproximar do ajuntamento, um pequeno grupo participante da organização do evento chegou até ela, abrindo caminho entre a multidão e se dirigindo para o palco. Madeleine aproveitou a situação e seguiu atrás deles, conseguindo com relativa facilidade chegar até bem perto do tablado, tendo conseguido percorrer os últimos metros até o palco com o favorecimento do grupo, que parecia ajudá-la a chegar lá, mantendo-a praticamente entre eles, enquanto se ajudavam mutuamente a vencer o espaço através da multidão.

Chegando quase à borda da aglomeração uma mulher olhou fixamente em seus olhos e disse:

– Você está sendo esperada. Venha comigo! E tomou uma de suas mãos. As duas se encaminharam para o palco, sob a proteção do pessoal de apoio que agora abria espaço ativamente entre a multidão.

Quando elas subiram no tablado, uma terceira mulher, mais velha que as duas jovens, as aguardava. Olhou para elas e com expressão grave perguntou:

– Quem vai tirar a pedra? A voz retumbou pelos auto-falantes.Antes que Madeleine pudesse tomar pé da situação, um forte tremor abalou o

palco em meio a um enorme estrondo, exigindo que as mulheres se apoiassem umas nas outras e abrissem pernas e braços tentando manter o equilíbrio. O povo também se assustava com o evento fortemente realista; era sempre necessário conter um certo princípio de pânico nesse momento.

Assim que o tablado parou de chacoalhar, a outra jovem apontou para uma gruta no fundo do palco pronunciando:

– Oh, a pedra foi retirada! Sua voz, claríssima, reverberava por todo o espaço.Madeleine se deixava levar pela outra jovem como se estivesse transida.

Parecia estar vivenciando um sonho, imersa de corpo e alma no mundo mágico criado pela atmosfera teatral. As mulheres se aproximaram da entrada da caverna encontrando ali panos de linho jogados. O interior da caverna foi se iluminando, até revelar um jovem lá sentado. As mulheres se assustaram com a presença, mas a voz dulcíssima do rapaz as tranquilizou:

– Não precisam se assustar. Disse o jovem. – Estão procurando Jesus de Nazaré que foi crucificado? Ele ressuscitou, não está aqui! Vão contar aos outros.

As mulheres correram assustadas, mas alegres. As lágrimas que brotavam dos olhos de Madeleine escorriam por um rosto muito feliz. Sentia uma felicidade intensa, contrastando fortemente com a tristeza depressiva dos últimos dias. Correu saltitante ao lado da jovem que lhe tomou a mão e a guiou pelos corredores demarcados por cordas entre a multidão, cuja existência ela parecia nem perceber.

Deslocaram-se rapidamente para o palco seguinte onde encontraram onze homens vestidos a caráter, e também imersos na atmosfera onírica intensificada pela iluminação magistral e pelo cenário de época. Sorridentes e esbaforidas, comunicaram a eles o que tinham ouvido, mas ninguém acreditou, continuaram tristes. Conversavam lugubremente sob a iluminação intensa que os ressaltava no palco elevado. Cenário e efeitos tinham sido idealizados para lhes atribuir uma aura mística, ainda reforçada pelo gestual teatral dos apóstolos, e pelo som encorpado das

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palavras que reverberavam para a plateia. Luzes e sons adicionavam dramaticidade à representação, uma atmosfera sobrenatural.

Repentinamente, o Cristo surgiu em frente a todos eles: – Alegrem-se! Disse o Cristo. E os apóstolos se ajoelharam, entre espantados e

amedrontados. Madeleine permanecia parada e extasiada ante a visão do Cristo. Lágrimas abundantes escorriam por seu rosto radiantemente alegre, enquanto ela tentava firmar a vista por entre as gotas que lhe conturbavam a vista.

– A paz esteja com vocês. Ficaram espantados? Amedrontados? Por que vocês estão perturbados, e cheios de dúvidas? Vejam minhas mãos e pés, sou eu mesmo. Toquem-me e vejam.

Apesar de uma estranheza indiscernível, aquela era a voz de JC , tinha que ser a voz de JC, o som que tanto amava. Madeleine não esperou segundo convite, correu para o Cristo antes que todos os outros, e o apertou fortemente nos braços. Chorava convulsamente enquanto o abraçava e ele a consolava.

Ainda abraçado a Madeleine, que não o deixava, e sob a aura sobrenatural obtida principalmente pela iluminação magnífica, o Cristo pronunciava suas falas com a voz fortemente encorpada pelos efeitos eletrônicos, entrecortadas pelo choro convulsivo e soluços de Madeleine.

A jovem já era uma celebridade nacional, pelo menos desde o carnaval, quando participara como destaque, juntamente com JC, do desfile de uma escola de samba, mas sua atuação personalista, emocionada e inovadora no espetáculo, viria a ser tão comentada quanto elogiada. Todas as coberturas do evento trataram de sublinhar a dramaticidade de sua representação, sua emotividade, sua naturalidade. Sua atuação, capturada em close por dezenas de câmeras ocultas no palco, foi repetida à exaustão, sob variados ângulos durante toda a semana que se seguiu. Suas lágrimas, enfocadas com nitidez sob todos os ângulos, derramaram-se em câmera lenta sobre suas faces, escorrendo suavemente pelo peito do Cristo.

Com a bela jovem ainda lhe cingindo o corpo, o Cristo ajeitou sua postura, erguendo a cabeça um pouco mais, destacando a sua alta estatura frente a moça que se aconchegava a seu peito quase como uma criança, bem abaixo da linha de seu ombro. Então o Cristo abriu os braços, ergueu os olhos para o céu, e exclamou em devoção:

– Pai!

A pronúncia sonora, com o “p” explosivo característico do Cristo Redivivo ecoou pelo espaço ao redor. Madeleine amava aquela voz. Já o tinha ouvido inúmeras vezes clamando aos céus, e embora tudo o que dissesse respeito à igreja costumasse lhe causar aversão, aquele apelo emocionado sempre lhe evocava um sentimento pio, uma expectativa compungente de algo grandioso

– Subo para junto do meu pai...

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Madeleine, extasiada, não interpretava as palavras do Cristo, apenas escutava sua sonoridade, musical e cheia. Adorava ouvir a sua voz, e se deleitava ante aquela musicalidade suave, amplificada e deliciosamente encorpada.

Sem palavras, mas com mãos carinhosas e firmes, o Cristo convenceu Madeleine a soltá-lo, e encaminhou-se para a minúscula plataforma onde iria se equilibrar em uma subida triunfal.

O vento soprava sobre o Cristo, fazendo seus cabelos e roupas ondularem, enquanto uma música suave e contínua embalava o povo. Uma longa interjeição pronunciada por milhares de bocas extasiadas intensificava o espanto que sentiam, obrigando a multidão a se ajoelhar reverentemente, ampliando assim a ascensão do Cristo, contemplada por uma infinidade de olhos piedosos.

A iluminação se esvaiu do palco, deixando-o na penumbra e se concentrando no Cristo, evidenciando-lhe a ascensão, ressaltando sua silhueta contra o céu estrelado, para se dissolver gradativamente em seguida, acentuando a altura da subida até a silhueta distante desaparecer na imensidão dos céus.

Como toda a multidão, Madeleine contemplava a ascensão do Cristo, sabia que era uma despedida, mais que isso, uma transição. Teria agora que recomeçar uma nova vida sem a presença de seu amado. Seguiria só. No mesmo instante, uma nítida pontada, a primeira que sentia, acusou uma nova presença se manifestando.

Enquanto o Cristo desaparecia nas alturas, Madeleine, com as mãos sobre a barriga, sentiu os movimentos autônomos ocorrendo no interior de seu ventre, causando uma forte impressão de continuidade. Após o rio de lágrimas jorradas de seus olhos, a moça foi invadida por uma intensa felicidade.

O céu noturno era límpido e estrelado, e Madeleine se sentia convicta de que tudo transcorria na mais profunda paz.