o eu que habito
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Este trabalho se dedica a compreender a identificação e a não identificação do indivíduo no espaço. Suas causas, modos e consequências. Levantando questões e possibilidades de solução, a temática da [não]identificação é tratada através da ressignificação dos termos “Lar” e “Habitar” sendo à confusão conceitual destes creditada a responsabilidade pelas [não]identificações psico-espaciais do homem. Isto é uma provocação aos modos comportamentais do indivíduo atual que se acha inerte e apático ao espaço em que vive, encontrando-se permanentemente em uma situação de constante insatisfação pessoal e social. Pensando na dimensão do indivíduo, este trabalho tem justamente a pretensão de retirar algum peso instaurado apenas sobre os deveres e responsabilidades do arquiteto e da arquitetura lançando algumas questões sobre o papel que enfim cada ser desempenha ou não em seu ambiente. Ao fim, pretende-se reunir respostas de modo a amenizar as inquietações colocadas, lançando possibilidades para que o indivíduo habite, no local, no momento, na intenção, no modo e na intensidade, não corretos, não melhores, mas suficientes para si.TRANSCRIPT
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da [no] identificao do indivduo no espao
O EU QUE HABITO
vladimir benincasa
jaqueline mongeroth
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UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTAFaculdade de Arquitetura, Artes e Comunicao
JAQUELINE MONGEROTH
O EU QUE HABITOda [no] identificao do indivduo no espao
BAURU2014
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JAQUELINE MONGEROTH
O EU QUE HABITOda [no] identificao do indivduo no espao
BAURU2014
Trabalho Final de Graduao apresentado Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicao, como requisito para a concluso do curso de Arquitetura, Urbanismo e Paisagismo pela Universidade Estadual Paulista Jlio de Mesquita Filho - UNESP Campus Bauru, sob orientao do Prof. Dr. Vladimir Benincasa.
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Para Aquela que foi me,
sonhou e amou na vida, e
habita em mim.
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todos importantes
Agradeo minha me, por ter se encantado
pela motocicleta do meu pai. Agradeo ao meu
pai, por ter retribudo. Agradeo Pati que em
91 adiou a primeira vez em que eu quebraria
a cara e que me colocava pra desenhar ao
seu lado enquanto estudava pro vestibular.
Agradeo Paula, amiga-irm que me fez ter
gosto pelos livros, pelos filmes, pela fotografia
e pela msica. Agradeo ao Vitor ,amigo-irmo
por rir de mim quando tirou mais nota em
matemtica. Agradeo ao Rodrigo, por nunca
ceder s comparaes entre irmos. Agradeo
ao Thiago, companheiro que sempre acreditou
em mim e nunca me deixa desistir. Agradeo
ao Vlad, por me dar segunda chance. E
agradeo novamente aos meus pais que me
ensinaram o valor do trabalho, do esforo e de
sempre tentar fazer o melhor, possvel.
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O belo, como a verdade, est ligado ao tempo em que se vive e ao indivduo que est pronto para compreend-lo.
(Gustave Coubert)
Cheio de mrito, mas poeticamente, o homem Habita nesta terra.
(Friedrich Hlderlin)
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O EU QUE HABITOda [no] identificao do indivduo no espao
Este trabalho se dedica a compreender a identificao e a no identificao do indivduo
no espao. Suas causas, modos e consequncias. Levantando questes e possibilidades de
soluo, a temtica da [no]identificao tratada atravs da ressignificao dos termos Lar
e Habitar sendo confuso conceitual destes creditada a responsabilidade pelas [no]
identificaes psico-espaciais do homem. Isto uma provocao aos modos comportamentais
do indivduo atual que se acha inerte e aptico ao espao em que vive, encontrando-se
permanentemente em uma situao de constante insatisfao pessoal e social. Pensando
na dimenso do indivduo, este trabalho tem justamente a pretenso de retirar algum peso
instaurado apenas sobre os deveres e responsabilidades do arquiteto e da arquitetura lanando
algumas questes sobre o papel que enfim cada ser desempenha ou no em seu ambiente.
Ao fim, pretende-se reunir respostas de modo a amenizar as inquietaes colocadas, lanando
possibilidades para que o indivduo habite, no local, no momento, na inteno, no modo e na
intensidade, no corretos, no melhores, mas suficientes para si.
Palavras-chave: lar, habitar, identificao, arquitetura.
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sumriointroduo (das intenes) .............................................................................................................. 19
PARTE 1: definindo o lar - ou Onde Habito ...................................................................... 281.1. Do que lar ...................................................................................................................... 321.2. O [no] lugar .................................................................................................................... 381.3. Conscincia ...................................................................................................................... 44
PARTE 2: reconhecendo o lar - ou Quando Habito ...................................................... 482.1. Da condio do habitar ................................................................................................... 522.2. O [no] ocupar.................................................................................................................. 562.3. Encontro ........................................................................................................................... 58
PARTE 3: aceitando o lar - ou PorqueHabito ...................................................................... 623.1. Da necessidade do lar ..................................................................................................... 633.2. O [no] querer ................................................................................................................. 663.3. Mudana............................................................................................................................ 67
PARTE 4: vivenciando o lar - ou Como Habito ................................................................ 724.1. Do modo do habitar ........................................................................................................ 744.2. O [no] ambientar ........................................................................................................... 824.3. Ajuste ................................................................................................................................ 86
PARTE 5: conservando o lar - ou Quanto Habito ........................................................... 905.1. Da manuteno do lar ..................................................................................................... 915.2. O [no] usar ..................................................................................................................... 945.3. Habitando ......................................................................................................................... 96
PARTE 6: procurando o lar - ou Quem Habito .............................................................. 1046.1. Da habilidade em habitar .............................................................................................. 1066.2. O [no] praticar ............................................................................................................. 1086.3. Busca ............................................................................................................................... 112
bibliografia ...................................................................................................................................... 116
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introduo (das intenes)
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Uomo Vitruviano.(Leonardo Da Vinci, 1487)
(...) a casa o nosso canto do mundo. Ela , como se diz amide, o nosso primeiro universo. um verdadeiro cosmos. Um cosmos em toda a acepo do termo.
(Gaston Bachelard)
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QUEM [SOU EU QUE] HABITO? Isto surge de uma inquietao que buscar ser,
se no sanada, ao menos amenizada. Esta inquietao, esse desconforto, provm de uma
constatao priori pessoal, mas que deseja ser evidenciada na tentativa de provocar srie de
desarranjos, ou melhor, rearranjos, nas relaes dadas de um indivduo no espao. Espao
aqui entendido como no apenas urbano, nem somente domstico, tampouco social ou
regional. Sem que seja necessrio classific-lo qualitativamente, o tomaremos, para fins do
discurso que se inicia, em sua conotao mais simples e pura: um meio em que o indivduo
se insira ou possa vir-a-ser.
A grande questo proposta ento a recorrente [no]identificao do indivduo no es-
pao, no ambiente, no entorno. A questo da identidade ser mesmo tratada de forma amb-
gua: ora da anlise de sua ocorrncia, ora da no, e a tentativa de compreender seus porqus.
Tomemos logo a arquitetura, de modo geral o intrigante espao criado e/ou
manipulado pelo homem para o homem - como a problemtica espao X indivduo mais
latente. Pois, sendo evidente o papel da arquitetura na vida humana, de pano de fundo, o
cenrio cotidiano, e sua devida eloquncia, como defendida por Ruskin, eis a questo: se as
arquiteturas comunicam, por que as pessoas no mais? Por que passamos a agir de forma to
passiva e alienada diante ao meio em que vivemos e convivemos? Neste ponto nos deparamos
com interrogativas complementares como as colocadas por Botton:
Por que faz diferena o que o ambiente em que vivemos tem a nos dizer? Por que os arquitetos se preocupam em projetar prdios que comuniquem ideias e sentimentos es-pecficos, e por que somos afetados de forma negativa por lugares que reverberam o que consideramos serem aluses erradas? Por que somos vulnerveis, to inconvenientemente vulnerveis, ao que os espaos que habitamos nos dizem?
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Estas so as perguntas fundamentais para chegarmos inteno maior deste trabalho
que a compreenso do sentimento humano para com o espao. Podemos trazer o proble-
ma para ainda mais perto ao pensarmos do modo como Juhani Pallasmaa tenta compreen-
der porque as construes modernas, to prximas e cheias de intenes, nos tocam menos
quanto uma velha cidade ou um simples galpo e como estes podem nos surpreender com
sensaes de intimidade e prazer. Desta maneira partiremos procura das possveis respostas
que nos digam sobre a afetividade do indivduo, de onde vm, para onde, para que, por que,
de que modo vo, e da mesma maneira retornam ou no para ns, pois neste ponto j se faz
certo que, ao nos relacionarmos espacialmente, afetamos e somos afetados, bem ou mal, em
maior ou menor escala, querendo ou no, e o que nos resta entender os meios deste fim.
Norberg-Schulz considera que nas sociedades primitivas, at os menores detalhes do
meio so conhecidos e significativos, constituindo estruturas espaciais complexas, enquanto
as sociedades modernas concentram toda a ateno quase exclusivamente na funo prtica
de orientao deixando a identificao ao acaso e que, em consequncia disso, a alienao
tomou o lugar do verdadeiro habitar, no sentido psicolgico. Do mesmo modo Enrique del
Moral colocar:
a arquitetura deve superar a simples utilidade, pois seu ltimo e mais digno objetivo , por meio da harmonia de seus elementos e a equitativa proporo do espao e volumes, despertar emoo e conquistar a beleza
O primeiro coloca o tema da identificao como um problema social ao considerar a
sociedade moderna racionalmente prtica que por conta disso no capaz do verdadeiro ha-
bitar. O arquiteto que segue tambm se refere funcionalidade como sendo perigosa, no en-
tanto aponta a arquitetura com responsvel por despertar os sentimentos humanos atravs
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da conquista da beleza. Mas pensemos: quando del Moral diz conquistar a beleza que bele-
za essa? Do modo colocado no parece se referir a uma beleza lgica, uma beleza imposta,
pois se assim o fosse, logo no precisaria ser conquistada. Neste sentido, em quem e de
quem a arquitetura to bravamente deve despertar emoo e conquistar a [noo de] bele-
za? Quem a arquitetura deve fazer identificar-se? Toda uma sociedade talvez, como nos diz
Schulz, mas considerar a sociedade ou mesmo uma sociedade como um todo responsvel
por um sentimento de beleza e o consequente bem-estar muito arriscado, leviano, muita
gente. Ao perguntarmos Quem podemos obter uma nica resposta segura: o indivduo.
Pensando na dimenso do indivduo, este trabalho tem justamente a pretenso de
retirar algum peso instaurado apenas sobre os deveres e responsabilidades do arquiteto e
da arquitetura lanando algumas questes sobre o papel que enfim cada ser desempenha
ou no em seu ambiente. Porm, de modo algum pretende-se transpor todo o peso sobre o
indivduo, pelo contrrio, a ideia que ser defendida a da cooperao, da troca, o mtuo
usar e transformar, pois, como novamente nos coloca Pallasmaa, a qualidade da arquitetura
no reside na sensao de realidade que expressa, mas, ao contrrio, em sua capacidade de
despertar nossa imaginao. E Jane Jacobs conclui:
As cidades tm condies de oferecer algo a todos apenas porque, e apenasquando, so criadas por todos.
O que ela nos diz, utilizando a escala urbana, que o lugar de todos deve ser construdo
por todos e, sendo o todo constitudo de pequenas partes, de pequenos seres, de pequenas
identidades , apenas cada um se identificando e criando poderemos ter um todo identificvel
e identificado.
Logo, o presente trabalho pretende analisar, o mais possvel, o indivduo atual e sua
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relao com o entorno. Com o olhar voltado reflexo do comportamento das pessoas diante
das arquiteturas e das urbanidades criadas pelo prprio homem, o estudo intenciona se fazer
sob a avaliao em diferentes ticas reunindo reas que transbordam as teorias de Arquitetura
e Urbanismo para fontes como a Filosofia e a Sociologia, a Psicologia, a Comunicao,
Semitica, a Lingustica, a Histria e a outras manifestaes artsticas, infestas de respostas
humanas.
De posse disso, ressignificar os sentidos de Lar e Habitar apresentar-se- como um
caminho compreenso do relacionamento espao-individual e possvel resoluo para as
[no]identificaes. Assim talvez possamos aprender o Homem enquanto ser e o sentido
do cada um e possibilitar a este se entender enquanto ser sensvel, um ser habitante. No
entanto, transcender tais significados no ser suficiente, pois at mesmo as mais fantasiosas
representaes, podero nos soar bvias, logo, o trabalho real ser iluminar a necessidade
humana de cultiv-los e pratic-los.
Partiremos da tese geral de que ESPAO + INDIVDUO = LUGAR ou LAR
conforme a relao que haja entre esses e da subdiviso desta tese em temas ou questes que
refletiro justamente sobre tal relao a fim de compreender a lgica proposta e defendida por
essa equao que, enfim, poder nos levar s respostas ansiadas. Tal problemtica intenciona
obter certo conforto temtico atravs de possveis solues para as questes fundamentais:
Quando, Onde, Porque, Como, Quanto e Quem [habito].
O trabalho pretende transcorrer atravs de um processo dialtico a partir da reunio
e confrontamento de teses e antteses, originando snteses que possam satisfazer as questes
postas. Isso se dar pela evoluo temtica dividida em seis partes que concentram em si uma
questo fundamental a ser elucidada, analisada e compreendida atravs, respectivamente, de
trs captulos. Deste modo, o trabalho fora pensado para, alm dentro do trabalho como todo,
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que cada parte tambm feche um processo dialtico.
Enric Ruiz-Geli, em um simpsio realizado em abril de 2013, defendeu que Arquitetos
devem ser como um vrus, infectando a mudana nos modos de habitar e viver. Sendo esse
um Trabalho Final de Graduao em Arquitetura e Urbanismo, nada mais justo seria honrar
o pensamento de Ruiz-Geli, mesmo que sob forma terica.
A concluso dever reunir as repostas obtidas atravs da reviso bibliogrfica proposta
e do mtodo descrito de modo a amenizar as inquietaes colocadas, lanando possibilidades
para que o indivduo habite, no local, no momento, na inteno, no modo e na intensidade,
no corretos, no melhores, mas suficientes para si.
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PARTE 1: definindo o lar ou Onde Habito
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O homem primitivo se protegendo da chuva.(Filarete)
Quando Deus disse a Ado: Sers um fugitivo e um peregrino na Terra, ps o homem frente a frente com seu problema fundamental: atravessar a soleira e reconquistar o lugar perdido.
(C. Norberg-Schulz)
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larSubstantivo masculino.
1. A parte da cozinha onde se acende o fogo .
(Dicionrio Aurlio)
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Para ressignificar o lar necessrio primeiramente resgatar algumas das suas principais
representaes ao longo do tempo e ainda antes entender como este smbolo mximo do
abrigo se deu na histria cultural e fisiolgica do homem.
Segundo alguns antroplogos, o ser humano pode ser definido em suas etapas primordiais
como um construtor de ferramentas, pois como nos esclarece Freud os primeiros atos
culturais (realizados pelo homem) foram o emprego de ferramentas, a dominao do fogo e a
construo de habitaes. Assim, a prpria habitao considerada uma ferramenta, tendo
como ideia e funo original ser um instrumento de proteo, reduto de abrigo do homem.
Andr Lefvre explicita que o indivduo habita da mesma forma que se veste (...)
para defender-se da inclemncia e hostilidade que o rodeiam (...). Essa a concepo mais
fundamental e natural que se pode ter a respeito das construes e primordialmente das
habitaes: do ato instintivo de procurar um espao que o defendesse, o homem passou
a adaptar ambientes para que a mesma funo cumprissem e mais adiante, j em um ato
racional, passaram a edificar espaos mesma maneira. Em muitas situaes esta concepo
estrida do habitar como um meio protetor vista como um ato primitivo do homem que
at determinado momento no fora capaz de superar seu instinto e ultrapassar os limites da
construo arcaica lhe empregando tambm noes de conforto e beleza esttica, mas Le
Corbusier nos dir:
exatamente a mesma atitude que voc pode encontrar em uma casa pompeianaou em um templo de Luxor (...). No existe essa coisa chamada homem primitivo,existem apenas meios primitivos. A ideia constante, potente desde o incio.
Ora, o primitivismo no est na ideia do homem em abrigar-se, mas no modo como o
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faz. O terico Joseph Rykwert suplementa:
No incio essas figuras [homem primitivo] deram expresso imediata sua natureza interior, a qual, no contaminada, seguia em unssono com as leis fundamentais de toda a criao.
Podemos notar que ambos os autores exaltam a capacidade do homem em transpor-
se para o meio ambiente. Ao dar expresso sua natureza interior ou possuir uma ideia
constante o homem segue em harmonia com as leis fundamentais de toda a criao que so
as mesmas da natureza: adaptar, transformar, criar, para o bem-estar.
De fato notvel que, mesmo diante do avano tecnolgico, das transformaes
socioculturais, econmicas e ambientais, nossas construes, no fim, a mesma funo
cumprem, nos acolhem seja fisicamente, emocionalmente ou espiritualmente. O grande
dilema a perda, ou melhor, o encobrimento que nossa necessidade natural est sofrendo
diante apuros prticos, estticos e tcnicos ou ainda a no compreenso do modo como este
fenmeno se d. O homem est se perdendo de si mesmo.
Ao ressignificar os sentidos de lar e habitar, tentaremos trazer o homem sua essncia,
pois habitar ou morar, como nos diz Heidegger, a essncia do ser-no-mundo, como
denomina a existncia humana. Efetivamente, se no habitssemos no construiramos
construir desde j entendido seja no s como o ato de edificar, mas como identificar-se,
construir seu mundo, achar-se - e de modo algum o homem poderia sobreviver sobre a
terra.
Em um processo de reconhecimento e compreenso essencial a necessidade de clareza
no que se busca e por tal motivo faz-se to importante a definio do Lar, que juntamente do
termo Habitar, permear todo este trabalho com o intento de elucidar novas possibilidades
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de vivncias psico-espaciais para o indivduo.
Para tanto, em primeira instncia, necessrio compreender do que se faz o Lar e sua
abrangncia conceitual que, inevitavelmente, o afastar de termos casuais como lugar e casa.
Em um segundo momento ser notvel o esforo em esclarecer, ento, os desconfortos gerados
a partir da confuso do [no] reconhecimento de lares e lugares. Finalmente, ainda nesta
parte, poderemos unir os conceitos at ento gerados e iluminar uma conscincia primordial
que poder ser, com certa crena, o incio de todo o processo de autoconhecimento proposto.
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A Casa
Era uma casaMuito engraada
No tinha tetoNo tinha nadaNingum podiaEntrar nela, noPorque na casaNo tinha choNingum podiaDormir na redePorque na casa
No tinha paredeNingum podia
Fazer pipiPorque penico
No tinha aliMas era feita
Com muito esmeroNa Rua dos Bobos
Nmero Zero.
(Vinicius de Moraes)
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1.1. Do que lar
Entendemos que o sentido de lar, a princpio, est fortemente ligado ideia de habitao
e esta com a noo de proteo fsica. Nossa inteno a partir deste momento ser desprender
o mais possvel essas relaes, pois o sentido de lar que ser aqui defendido tratar-se- muito
mais de um bem sentimental, psicolgico e imagtico do que concreto. No entanto, para
chegarmos at esta concepo, de incio precisaremos compreender como a ideia de lar
pode evoluir do concreto para o abstrato e para tanto nos apoiaremos em uma desconstruo
etimolgica e simblica do lar.
Segundo Carnielo Miguel a palavra lar derivada de lareira: a lareira primitiva que
faz do seu fogo o elemento inseparvel da cabana rstica. (...) A identificao do fogo est
presente nas cabanas rsticas como o elemento mais semelhante vida. O fogo cresce, move-
se, aquece, destri e quente, uma das qualidades fundamentais associada vida humana..
Carnielo Miguel chega a tal concluso conforme a definio de Ricardo Severo:
Para agasalhar o primeiro lar, o rstico altar do fogo sagrado que foi a mais poderosa divindade dos primitivos cultos edificou o homem a primeira casa, a um tempo habitao e templo.
O apontamento de Severo no isolado; tambm para Vitruvio a essncia da arquitetura
est relacionada cabana que protege o fogo e que aquece a famlia. O sentimento de
reconhecimento do fogo como algo muito prximo ao prprio homem e sua necessidade de
conservao comea nos dar indcios do que queremos. O fogo no se assemelha ao homem
somente em vida, mas tambm na morte quando o fogo se extingue, suas cinzas tornam-se
frias, do mesmo modo que esfria o corpo de um ser quando morre. H um paralelismo entre
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o conceito da alma que anima o corpo fsico e o fogo, o esprito que anima o corpo da casa.
Podemos compreender que o homem identifica-se ao fogo por este lhe proporcionar a vida
do mesmo modo que sua alma atravs do corpo. As propriedades do fogo e suas necessidades
e fragilidades so associadas s do homem. Quando o homem protege o fogo, est a proteger
a si mesmo, a sua alma e a vida do seu Ser.
Severo ainda nos lembra de que para Lewis Munford os vocbulos lar e me esto
associados em todas as fases da agricultura neoltica representando a constituio da base
familiar:
foi a mulher que fabricou os primeiros recipientes, teceu cestas e deu forma aos primeiros vasos de barro. Na forma, o lar criao sua...era o lar o ninho coletivo para o cuidado e nutrio dos filhos
Lembremos ainda que a palavra me advm do latim mater e significa aquela que
cuida e que empregada por muitas culturas com o significado de fonte, origem. De tal
maneira, podemos concluir que o lar de fato nosso casulo protetor supremo, ele nos anima
e nos sustenta. Mas esta proteo no se resume segurana fsica: como nossa me, ou a
lareira do fogo, nosso mantenedor e no cuida somente do corpo como tambm do esprito,
nos assegura sentimentalmente, afetivamente, nos faz lembrar quem somos e do modo como
viemos. O lar o que assegura nossa prpria alma, lar identidade, nossa dimenso mais
ntima, o prprio Ser.
Eu habito em mim, eu sou o meu Lar. No meu corpo e na minha mente moram todos
os meus anseios, necessidades, referncias, prioridades, gostos, desgostos, sentidos, sensaes,
sentimentos, modos, medos, incertezas e convices. O meu fsico e a minha conscincia so
o meu mundo - como colocam alguns autores, ainda que utilizando a figura da casa: para
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Norberg-Schulz o nosso mundo-da-vida ou, como o prprio traduz, nosso microcosmos;
o mesmo conceito de espao vital dito por Bachelard como canto do mundo ou cosmos;
e enfim imago mundi segundo Mircea Eliade, nossa imagem de mundo, o centro do
mundo. Isto nos diz que o que somos fsico-espiritualmente no apenas um mundo o
prprio mundo, todo um mundo, que o lar.
Todos estamos to confortveis com ns mesmos, de forma to plena e natural, que
no somos ento capazes de nos submeter a compreend-lo, nos compreendermos, e extrair
da prpria essncia, do nosso mundo interior o Self como elabora Jung - as potencialidades
para a construo do nosso perfeito mundo exterior.
Ressignificar o lar, enfim, consider-lo como territorialidades simblicas, ou seja,
um conjunto de valores simblicos que se expandem do Ser [essncia] interior para o ser
[existir] exterior. Ao ser um conjunto de valores o lar sentimento e ao ser sentimento ganha
todo o poder da imaterialidade. Nosso lar no possui dimenses, no se rende ao tempo e
pode se dar por relaes virtuais como veremos adiante.
Assim comeamos a estruturar uma nova concepo de lar, mas dizer que lar isto e no
aquilo no basta, devemos conhecer tambm o que outras representaes, que comumente
confunde-se ao lar so, e s ento poder fazer a segura distino entre as figuras.
Como fora introduzido, a ideia de lar extrapola enormemente a semelhana com o
termo lugar ainda que ambos sejam uma relao espacial. Paradoxalmente, exatamente
neste ponto em que as definies se encontram e se distanciam, pois enquanto lugar aqui
considerada uma relao estritamente fsico-espacial, o lar constri-se psicologicamente e
sentimentalmente, cheio do Ser. fundamental reconhecer, compreender e aceitar que lar
mais que lugar, o lugar de todos os lugares, onde eu me acho, em cada pedao e num
todo.
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To logo se pode dizer que a relao entre indivduo e espao, quando esta se der no
mbito da simples interao fsica, gerar um lugar, enquanto o lar surgir da identificao
psicolgica reconhecimento entre indivduo e espao. Por fsico e psicolgico tambm
podemos entender como a relao no e com o espao, respectivamente - no possui conotao
de simples uso, estadia temporria, aproveitar-se do espao em questo para realizar alguma
atividade que ali o caiba; enquanto com o espao significa troca, apropriao e transformao.
Diante disso, ocorre que a partir do nosso envolvimento espacial estamos sujeitos a
morar num lugar e a habitar um lar.
A equao colocada na introduo do trabalho pode ter sua relao compreendida
atravs da deduo:
Ao desvencilharmos lar de lugar automaticamente imagens concretas como: casa,
Terra, habitao, cidade, residncia, campo, moradia, edifcio... s quais somos
submetidos quase que imediatamente ao pensarmos em lar, mas que esto profundamente
ligadas ideia de proteo fsica e delimitao espacial, tambm devero ser absolutamente
desligadas. Recorrendo novamente ao texto de Carnielo Miguel poderemos compreender tal
necessidade:
A casa o objeto construdo, possui valor econmico, o abrigo, o invlucro protetor, a parte integrante do stio onde se integra. O lar, por sua vez, a vivncia familiar dentro da casa, o aquecimento ou a frialdade; o rudo ou o silncio, a calma ou a tempestade emotiva, o equilbrio ou a desarmonia, o clima espiritual que ecoa nos ambientes concretos da casa.
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LUGARinterao fsica
LARinterao psicolgica
ESPAO + INDIVDUO =
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Ou seja, um equvoco tratarmos objetos nicos como a casa como um lar total. Mesmo
que amemos enormemente nossa casa, nossa cidade, nosso bairro e o mercadinho da esquina,
nosso apego a um espao fsico como sendo o lar real, no verdadeiro, no nossa verdade,
apenas uma parte dela, somente algumas das infinitas projees de lar que somos capazes
de produzir.
Como tratado pela artista plstica Aline Volkmer, no podemos negar que a casa possui
um grande potencial imaginativo e existe de uma ou outra forma na mente de cada um,
construes de redutos imaginrios, ou ideias da infncia h muito tempo esquecidas, que
voltam a esses santurios individuais. Talvez seja este potencial o mais capaz de aproximar
as ideias de casa e lar, alis, que permite casa ser lar. Pois o sentimento de lar aqui tratado
pode ser facilmente representado por conceitos como a casa virtual, a casa imaginria, casa
onrica a casa de sonhos e dos sonhos a qual muito mais durvel e persistente quanto
a casa concreta, casa fsica, real, a casa analgica que envelhece, rui, finda, se perde. Pensar
em casas imaginrias como lares totalmente conveniente ao que buscamos, pois um
pensamento que rene ao mesmo tempo a questo do abrigo fsico projeo imaterial. O
imaginrio apenas se transforma, voa livremente, nunca envelhece e sempre possvel. A casa
real rende-se ao do tempo o qual se torna seu inimigo por pr lhe prazo de validade. Para
o lar, casulo imaterial, o tempo age como aliado por potencializar sua realizao e permitir ao
indivduo autoconhecimento.
Em suma, lar identidade reconhecer-se no que reconhecvel for. Lar afeto, apego,
encontro, prprio e aproprivel, um espelho do meu eu. Lar paz, calmaria, aconchego,
segurana em se estar seguro, seguro de si, dos outros, do mundo. No sendo objeto, nosso
lar aqui muito bem retratado pelo sentimento topoflico defendido por Yi-Fu Tuan:
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Topofilia o elo afetivo entre a pessoa e o lugar ou o ambiente fsico.
Pois o neologismo nos diz filho do lugar, noo de pertencimento e sentimento de
identidade pura, que como o termo lar nos confere a sensao de suficincia aqui, bem
estou e encontro e plenitude fao parte de.
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1.2. O [no] lugar
Como vimos, o lar se faz muito mais psicologicamente que fisicamente e, neste sentido,
poderemos distinguir lar de lugar com simples facilidade. No entanto devemos explicitar ainda
mais a distino entre os conceitos, primeiro porque alguns autores ainda tratam a concepo
de lugar muito semelhante de lar, segundo porque mesmo o lugar no sendo lar, ao mostrar-
se como espao em que o sentimento de lar pode ser projetado, um potencial vir-a-ser e
neste sentido temos de saber como isso se d.
Como gegrafo, Tuan esclarece que o significado de espao comumente se funde ao
de lugar, uma vez que as duas categorias no podem ser compreendidas uma sem a outra.
Segundo ele, um espao indiferenciado transforma-se em lugar medida que o conhecemos
melhor e o conferimos valor: Quando o espao nos inteiramente familiar, torna-se lugar
e que estes so centros aos quais atribumos valor e onde so satisfeitas as necessidades
biolgicas de comida, gua, descanso e procriao.
Reis-Alves muito nos auxilia ao reunir os conceitos partilhados por Cunha e Ferreira
para os termos espao (do latim spatium), ele a distncia entre dois pontos, ou a rea ou
o volume entre limites determinados e lugar (do latim localis, de locus), este o espao
ocupado, localidade, cargo, posio. Ferreira acrescenta alm da definio de espao
ocupado a de espao delimitado: (...). Stio ou ponto referido a um fato. Esfera, ambiente.
Povoao, localidade, regio ou pas.Com base nos autores citados, ele conclui que ao ser
ocupado o espao entendido como habitado pelo homem e que, assim sendo, a simples
presena do homem capaz de conferir significado ao espao antes inanimado, tornando-o
lugar. A mesma conotao expressa por Norberg-Schulz ao defender que o lugar a
concreta manifestao do habitar humano.
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Em seu texto O Fenmeno do Lugar fica claro o seu pensamento respeito:
Pensemos numa totalidade constituda de coisas concretas que possuem substncia material, forma, textura e cor. Juntas, essas coisas determinam uma qualidade ambiental que a essncia do lugar. (...) Portanto, um lugar um fenmeno qualitativo total, que no se pode reduzir a nenhuma de suas propriedades, como as espaciais, sem que se perca de vista sua natureza concreta. (...) ao classificar lugares, deveramos usar palavras como ilha, promontrio, baa, floresta, bosque, praa, rua, ptio, cho, parede, teto, telhado, janela, porta. (...) Por isso, lugares so designados por substantivos e isso implica dizer que os consideramos coisas [reais] que existem (...)
Nitidamente, como previsto, algumas consideraes aproximam-se e outras se afastam
das aqui defendidas. Primeiro, nos conveniente acordar com o conceito de que o espao
torna-se lugar a partir da ao humana, como defendem os autores e como foi colocado
diante da equao espao X indivduo proposta no incio. Do mesmo modo podemos
nos apoiar na acepo de Norberg-Schulz de que o lugar um ambiente concreto cheio
de propriedades qualitativas. Este entender nos ajuda, pois ao colocar o lugar como sendo
estritamente coisas [reais] que existem a ideia vai de encontro defendida neste estudo:
do lugar como um ambiente geral em que o indivduo pode atuar fisicamente ao passo que
o lar uma potencialidade individual a ser projetada, ou no, em coisas fsicas, de modo real
e/ou virtual (o que ser tratado em captulo futuro). Da mesma forma como empregado por
Tuan que claramente descreve o lugar como sendo um espao destinado realizao de
atividades funcionais vitais, ao qual conferimos valor e se torna familiar medida que supre o
homem funcionalmente e do seu consequente enraizamento. Contrariamente, tem-se a noo
de habitar humano empregada de forma desconexa s representadas neste trabalho, pois
habitar no deve ser considerado o simples estar do homem, o habitar depende do tipo de
relacionamento que o indivduo desenvolve diante o espao, a pura projeo do lar.
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De qualquer modo podemos compreender a natureza do lugar que to simples quanto
empregada por Tuan:
Lugar qualquer objeto estvel que capta nossa ateno.
Enfim, lugar qualquer lugar, todo lugar, nos escapa por ser de todos e/ou de ningum.
O lugar objetivo, funcional e estrito. Ento falemos de lugar:
lugar pequeno lugar de gentelugar de entradalugar quentelugar imaginriolugar marcadolugar l longelugar vaziolugar sujolugar perdidolugar estreitolugar de carrolugar cheiolugar estranholugar de morarlugar de prosa
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lugar incrvellugar altolugar de bicholugar de fumarlugar comumlugar de bikelugar feiolugar de esperalugar bomlugar de dormirlugar chatolugar bem pertolugar mgicolugar geladolugar fechadolugar apertado
lugar profundolugar gigantelugar maravilhosolugar abertolugar invisvellugar midolugar de passeiolugar histricolugar novolugar limpolugar escurolugar gostosolugar frescolugar tensolugar lindolugar iluminado...
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Nota-se que lugar expresso para tudo, referncia, ponto, marco, posicionamento
e espao de ao. substantivo, como define Norberg-Schulz. Agimos no(s) lugar(es),
passamos, so impresses e nada perdura.
D-se ento a importncia de saber reconhecer o(s) lugar(es) e o(s) no-lugar(es);
necessrio esforo para atentarmos ao que so meros lugares de passagem e aos que
merecem um pouco mais de ateno, so potenciais. O no-lugar, ainda que parea contrrio
direto ao lugar diante da negativa no o , e tambm no sendo lar, ou melhor, ainda no o
sendo, exprime toda a potencialidade do vir-a-ser como fora dito.
Ainda que desenvolva de forma contrria os conceitos de lugar e no-lugar extremamente
interessante o modo como o antroplogo Aug os define:
Se um lugar pode se definir como identitrio, relacional e histrico, um espao que no pode se definir nem como identitrio, nem como relacional, nem como histrico definir um no-lugar. (...) O espao do no-lugar no cria nem identidade singular nem relao, mas sim solido e similitude.
Segundo Reis-Alves, Aug sustenta a hiptese de que a supermodernidade produtora
de no-lugares e os exemplifica como (...) espaos pblicos de rpida circulao, como
aeroportos, rodovirias, estaes de metr, e pelos meios de transporte mas tambm pelas
grandes cadeias de hotis e supermercados. Fica evidente que a posio de Aug em muito
semelhante desenvolvida at o momento, com a diferena bsica de que o que para ele
definido como lugar seria o nosso no-lugar e o no-lugar por ele atacado semelhante ao que
chamamos de lugar.
O no-lugar uma diferenciao do lugar, um ensejo, uma predisposio ao lar. Tal
predisposio obviamente relativa ao indivduo que em um lugar se encontre, depender
dele identific-la e reconhec-la ou no. Este clima latente do lugar pode ser o que os antigos
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chamavam de Genius loci, como Norberg-Schulz nos explica:
Genius loci um conceito romano. Na Roma antiga, acreditava-se que todo ser independente possua um genius, um esprito guardio. Esse esprito d vida s pessoas e aos lugares, acompanha-os do nascimento morte, e determina seu carter ou essncia. (...) O genius denota o que uma coisa , ou o que ela quer ser.
Portanto o no-lugar seria ento uma oportunidade, um start, posto que o incio do
processo de reconhecimento do lar imposto esteja, o no-lugar seria o merecedor de um olhar
mais demorado do indivduo ao seu encontro. Deste modo, no apenas passemos por entre
lugares, preciso ateno, cuidado e olhar e vivenciar ao invs de instintivamente ver e passar.
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Grandes Mistrios Habitam
Grandes mistrios habitam O limiar do meu ser,
O limiar onde hesitam Grandes pssaros que fitam
Meu transpor tardo de os ver.
So aves cheias de abismo, Como nos sonhos as h. Hesito se sondo e cismo,
E minha alma cataclismo O limiar onde est.
Ento desperto do sonho E sou alegre da luz,
Inda que em dia tristonho; Porque o limiar medonho
E todo passo uma cruz.
(Fernando Pessoa, in Cancioneiro)
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1.3. Conscincia
Posto os primeiros esclarecimentos e definies comea nos ser possvel ter conscincia
da nossa verdadeira condio do habitar ou da habitabilidade que cada indivduo possui em si.
O termo conscincia empregado como sendo o produto do ciclo conhecimento aceitao
- compreenso - transformao. Estamos ainda na fase do [re]conhecimento em que nossos
conceitos indivduo-espaciais nos chegam de forma ressignificada e o precisamos assimilar
de maneira efetiva para partir compreenso de suas circunstncias, as quais referem-se ao
prprio indivduo. Tambm da importncia deste processo temos o apontamento de Yi-Fu
Tuan:
Sem a autocompreenso no podemos esperar por solues duradouras para os problemas ambientais que, fundamentalmente, so problemas humanos.
Assim, a conscincia geral no se refere somente ideia de que a relao humano-
espacial pode advir de uma experincia ntima, mas tambm de como esse processo se d
entre uma compreenso interior e um relacionamento exterior, da importncia do modo
como a satisfao ou no desta experincia influir em nossa vivncia e de que habitar uma
caracterstica inerente ao indivduo ainda que desconhecida. A habitabilidade do ser um
conceito que trataremos mais a frente, nosso propsito imediato aprender a habitar:
Por mais difcil e angustiante, por mais avassaladora e ameaadora que seja a falta de habitao, a crise propriamente dita do habitar no se encontra, primordialmente, na falta de habitaes. A crise propriamente dita de habitao , alm disso, mais antiga do que as guerras mundiais e as destruies, mais antiga tambm do que o crescimento populacional na terra e a situao do trabalhador industrial. A crise propriamente dita do habitar consiste em que os mortais precisam sempre de novo buscar a essncia do habitar, consiste em que os mortais devem primeiro aprender a habitar.
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Aliando a mensagem de Tuan esta ltima de Heidegger nos fica claro que a tarefa
primeira do indivduo na busca por encontrar-se no espao - independente de suas condies
polticas, sociais, ambientais, sociais e temporais - aprender a faz-lo, aprender a habitar. O
homem o responsvel pelas condies espaciais que cria e recria para si e do mesmo modo
deve se responsabilizar por suas inadequaes. Logo, a condio do habitar humano tratar-
se- nos sentidos condicionado a enquanto predisposio humana - e, paralelamente, do
modo como enquanto realizao humana - alm de estar estritamente ligada noo de lar
j que esta primazia no ato de habitar.
A conscincia do lar pressupe a capacidade de habitar justamente por representar
o prprio Ser, um ser que habita, que habita um Lar. A no compreenso deste vnculo
apontada pela psicloga Marilia J. Marino como um equvoco humano:
O discurso sobre a casa do ser uma transposio da imagem da casa para o ser; ao contrrio, um dia seremos mais capazes de pensar o que casa e habitar a partir da essncia do ser adequadamente pensada.
Ou seja: primeiro significamos casa para depois desvendar e compreender o ser que
a construiu, ao passo que o fluxo natural seria fazermos a transposio inversa da essncia
do ser construrem-se casas. Portanto, apenas diante da conscincia de quem se e do que se
faz seu lar o indivduo estar apto a habitar deveras, na cincia plena de que daquilo que me
habita eu habito, sob condies que sero explcitas nos captulos que seguem.
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PARTE 2: reconhecendo o lar ou Quando Habito
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Parece-nos ter ficado claro que para habitar h de se ter um lar. Mas ter lar, como
tambm se tenta esclarecer, no significa estritamente de posse de, pois se o lar o nosso
Ser evidentemente j o temos, est embutido em ns, a nossa prpria concepo de ser e
estar no mundo. Alm, ter lar conscincia de, ser capaz de transbord-lo, reconhec-lo,
reconhecer-se, em ambiente externo a ns de modo que nos seja possvel projetarmos nosso
Ser e habitar.
Ter lar ento no apenas ser querer ser. a nossa capacidade cognitiva de
transformar nossa concepo de Ser em um sistema de smbolos ou indcios de ns mesmos,
como apontado anteriormente, um conjunto de valores internos que possam ser transportados
ou lidos em um meio exterior. Yi-Fu Tuan mais uma vez nos esclarece como esse processo
se d:
Uma linguagem abstrata de sinais e smbolos privativa da espcie humana. Com ela, os seres humanos construram mundos mentais para se relacionarem entre si e com a realidade externa.
Ele completa:
Um smbolo uma parte de um todo (...). Um objeto tambm interpretado como um smbolo quando projeta significados no muito claros, quando traz mente uma sucesso de fenmenos que esto relacionados entre si analgica ou metaforicamente.
O homem um ser simblico. Mais que uma capacidade uma caracterstica que
no pode ser evitada, uma necessidade humana. Codificar seu mundo o modo como o
indivduo torna-se capaz de se relacionar e potencialmente habitar, de ser em algo. Neste
sentido resgatamos as intrigantes questes colocadas por Botton respeito da importncia de
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que as coisas nos digam algo: quando esperamos que os objetos, lugares, enfim qualquer
espao fsico nos comunique ansiamos, na verdade, que nos contem um pouco de ns
mesmos. Espaos que nada tm a nos dizer, nada tm a nos acrescentar.
Quando nos dispomos a pensar desta maneira algumas outras dvidas comeam vir
tona. Mesmo se referindo situao crtica habitacional oriunda de um mundo ps-guerra,
as incertezas levantadas por Heidegger nada perdem em atualidade, pois seja pela falta dela
ou pela sua feroz especulao, ou mais ainda pela sua inadequao, a questo da habitao
continua a ser uma incgnita:
Considerando-se a atual crise habitacional, possuir uma habitao , sem dvida, tranquilizador e satisfatrio; prdios habitacionais oferecem residncia. As habitaes so hoje bem divididas, fceis de administrar, economicamente acessveis, bem arejadas, iluminadas e ensolaradas. Mas ser que as habitaes trazem nelas mesmas a garantia de que a acontece um habitar? As construes que no so uma habitao ainda continuam a se determinar pelo habitar uma vez que servem para o habitar do homem. Habitar seria, em todo caso, o fim que se impe a todo construir. Habitar e construir encontram-se, assim, numa relao de meios e fins.
Futuramente abordaremos a relao entre habitar e construir tambm descrita pelo
filsofo, em todo caso, como havia apontado a sua fala extremamente conveniente ao que
propomos, busca pela ressignificao de nossos lares e do nosso habitar.
De posse do conhecimento exposto nos possvel a partir de ento iniciar o [re]
conhecimento da nossa potncia de lar e a escolha, a princpio, de quando habitar-se-.
Tratando-se o lar de um conjunto de ns mesmos, seu reconhecimento no poder ser
de outro modo que no um impulso sentimental quase que inexplicvel seria no tivssemos
aqui j conhecimento do que tal reao se trata ao retomarmos a fala de Tuan:
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O ser humano levado pelas emoes para alm do limite normal; ele possudo por uma fora cuja origem coloca fora de si mesmo, na natureza e na sociedade. Assim, o smbolo, um produto cultural supraorgnico, est intimamente ligado s experincias orgnicas corporais em seus estgios iniciais [atos fisiolgicos].
Claramente, nosso puro autorreconhecimento em algo externo a ns, substancial, objeto
qualquer seja que nos comunique pertencimento. Ali, ento, habitarei.
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Habitar o tempo
Para no matar seu tempo, imaginou:viv-lo enquanto ele ocorre, ao vivo;no instante finssimo em que ocorre,
em ponta de agulha e porm acessvel;viver seu tempo: para o que ir viver
num deserto literal ou de alpendres;em ermos, que no distraiam de viver
a agulha de um s instante, plenamente.Plenamente: vivendo-o de dentro dele;
habit-lo, na agulha de cada instante,em cada agulha instante: e habitar nele
tudo o que habitar cede ao habitante.E de volta de ir habitar seu tempo:
ele corre vazio, o tal tempo ao vivo;e como alm de vazio, transparente,
o instante a habitar passa invisvel.Portanto: para no mat-lo, mat-lo;
matar o tempo, enchendo-o de coisas;em vez do deserto, ir viver nas ruas
onde o enchem e o matam as pessoas;pois como o tempo ocorre transparente
e s ganha corpo e cor com seu miolo(o que no passou do que lhe passou),
para habit-lo: s no passado, morto.
(Joo Cabral de Melo Neto)
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2.1. Da condio do habitar
Como exposto na introduo deste captulo, a condio do habitar ter lar. Ter
lar, sendo tambm colocado, como uma potncia sugere uma apropriao do espao,
apropriao esta no necessariamente literal, materialmente, tocando e sentindo atravs do
tato; o sentimento da apropriao, como veremos, pode ser explorado por todos nossos
sentidos inclusive nas imaterialidades. Apropriar trata-se igualmente identificar, ter para si e
diferentemente do ocupar.
Posto isso faremos o devido resgate conceitual a respeito do habitar para que, como
sobre o lar, possamos compreender suas vicissitudes. A palavra habitar na lngua portuguesa
se refere a 1. Ocupar como residncia; residir. 2. Tornar habitado. 3. Ter hbitat em. T.c.
4. Habitar (1). T.i. 5. Morar (com algum), enquanto residir, um sinnimo recorrente,
apresenta-se como: 2. Acontecer; estar presente; [] 3. Achar-se; ser; estar. Norberg-Schulz
faz a anlise do termo em ingls e apresenta as relaes construdas por Heidegger partindo
do alemo:
Em ingls, a palavra dwell [habitar] deriva do noruegus antigo dvelja, que significa residir ou permanecer. De modo anlogo, Heidegger relacionou o alemo wohnen [morar, residir] a bleiben [permanecer] e sich aufhalten [deter-se, ficar]. O filsofo assinala que o gtico wunian significava estar satisfeito, estar em paz. A palavra em alemo para paz, Friede, significa ser livre, isto , protegido do perigo e das ameaas. (...) Friede tambm se relaciona com zufrieden (contedo), Freund (amigo) e o gtico frijn (amor). Heidegger usa essas relaes lingusticas para mostrar que habitar significa estar em paz num lugar protegido.
Em seu texto Construir, habitar, pensar o prprio Heidegger definir:
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Habitar, ser trazido paz de um abrigo, diz: permanecer pacificado na liberdade de um pertencimento, resguardar cada coisa em sua essncia. O trao fundamental do habitar esse resguardo. O resguardo perpassa o habitar em toda a sua amplitude. Mostra-se to logo nos dispomos a pensar que ser homem consiste em habitar e, isso, no sentido de um de-morar-se dos mortais sobre essa terra.
As definies novamente reunidas por Reis-Alves e por Norberg-Schulz nos contam
de forma racional o sentido de habitar que se complementam s noes de lugar que foram
anteriormente colocadas: de que seja o ocupar do homem, ou onde este se encontra a funo
do habitar; onde o homem est o lugar e o habitar, segundo as definies, seria o prprio
estar, ficar, deter-se, permanecer. Mas esses entendimentos so completamente alheios ao que
defendemos, pois permanecer demanda tempo e nosso habitar completamente atemporal.
Apenas com a evoluo lgica das relaes criadas por Heidegger o nosso habitar se
torna lcido quando ele une as ideias de bem-estar e proteo e estas ao sentimento de amor:
se sentir protegido no requer somente segurana fsica, mas aconchego espiritual a paz de
um abrigo estar pacificado na liberdade de um pertencimento, a paz a satisfao e se
sentir abrigado se sentir pertencente, a parte de algo, ou a prpria coisa. Isto se torna mais
consistente quando na segunda passagem ele ainda diz: O trao fundamental do habitar
esse resguardo e em at-lo ao de-morar-se dos mortais sobre essa terra; ou seja, quando
pensamos em habitar como um permanecer o devemos tratar no sentido de manuteno do
seu sentimento de pertencimento atravs de um resguardo, atravs da memria e/ou de
nossas projees e assim o de-morar-se no deter-se fsico-temporalmente, mas no se
esquecer, a capacidade humana de continuar habitando mesmo sem sua presena fsica no
espao que sua capacidade de habitar o leva.
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Diante disso, habitar j no mais mera ao. Habitar estado de esprito, um
devaneio, um capricho do Ser. Habitar diferente de morar e igualmente ao lar sentimento,
uma prosa prpria dentro de si. Se lar o identificvel ou a natural identidade, habitar
a suma identificao. Distinto ao morar ou residir que estar sentido de efemeridade,
transitoriedade e mesmo de fragilidade, o habitar ser, pertencer e o apropriar-se do lar.
Neste propsito, apropriao que no incio bem definimos como ter para si enfim se
desdobra como um permitir ser diante uma constante [re]criao de ns mesmos ao nos
refletirmos em espaos inacabados de sentido. Constante busca, troca e transformao, temos
o habitar como um sentimento cclico que faz-se pelo desejo: escolha, atrao, proximidade,
intimidade, elo, conexo, manifestao, satisfao. Ao conferir sentido aos espaos o prprio
indivduo o ganha.
Ademais, o habitar no se faz to somente do reconhecer, mas do se fazer reconhecvel,
inteligvel para si mesmo. Trazer tona o que se e o que se quer ser, bem como resgatar e/
ou resguardar o se foi.
Em mais um momento Heidegger nos lembra de que construir j em si mesmo um
habitar. Ele nos remete ideia de processo, valorizao e necessidade do processo. Como
de costume, precisamos esmiuar o que de fato quis nos dizer, pois quando diz construir sua
concepo foge edificao ou qualquer entendimento que esteja preso no plano material.
Como estruturamos no incio do trabalho, nesses termos, construir refere-se a identificar,
construir uma imagem, constituir ideia sentimento de a fim de, um querer, uma procura,
o deixar-se habitar. Justamente, a mensagem de que j o processo pelo encontro de ns
mesmos, a construo do Ser pelo ser Ser indivduo/identidade, e ser identificao - em
si um habitar. Pois o filsofo refora:
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No habitamos porque construmos. Ao contrrio. Construmos e chegamos a construir medida que habitamos, ou seja, medida que somos como aqueles que habitam.
Ser como quem habita simplesmente ser, dos modos mais puros que a expresso sugere,
porquanto j em o homem existir consiste seu habitar: o homem medida que habita.
Ponce recorre Bacon e Bachelard para nos transmitir a mesma lio, respectivamente: Eu
sou o espao que habito, o ponto de origem de toda atividade (...) ou a mesma ideia em
outros termos: Je suis lespace ou je suis.
Exercer o habitar, que deveria ser ao imediata ao homem no mais o e habitar se
transformou em um deixar ser, ter total conscincia e aceitao de que Eu sou o meu lar e
que, inevitavelmente, a cada lugar que eu v meu poder de habitar tambm ir.
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2.2. O [no] ocupar
Pensar habitar como tosco ocupar, assim como confundir lar e lugar, um sofrvel
engano. Ocupar seria a generalidade do termo morar como colocado h pouco; trata-se
da passagem, um indivduo que passa por um espao ocupa um lugar e isso um evento,
acontecimento casual, rotineiro.
o que nos resume Ponce valendo-se do termo usar no sentido em que configura
uma breve ocupar (ideia de funcionalidade):
Quanto s obras, ns as vivemos e as habitamos. Uma relao que vai muito mais alm da simples ao de usar. O uso se converte, em muitas ocasies, por fora do costume, em um ato mecnico, quase irracional. O habitar, diferentemente, implica numa relao comprometida, consciente e ativa. Uma relao que viaja em duas direes. Habitamos e somos habitados.
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Pois estamos onde no estamos.
(Pierre-Jean Jouve)
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2.3. Encontro
Neste ponto conhecemos tanto o significado de lar quanto o de habitar, ou melhor, seus
ressignificados ento defendidos. De posse disso enfim partimos ao encontro de nossos lares.
De maneira alguma iremos formular ideias concretas de espaos habitveis ou lares.
Primeiro porque este no o intento deste trabalho, o qual acredita na criao de um processo
individual de autoconhecimento atravs da elucidao de alguns conceitos. Segundo por se
tratar de um sentimento nico e individual que cada um deve guardar e desenvolver em si;
isto nos leva a uma terceira considerao a de que seria impossvel prever e indicar potenciais
lares ao passo que no estamos trabalhando com conceitos como se diz domnio pblico
ou agrado geral e, como nos lembra Tuan, muitos lugares cheios de significncia para
determinados grupos so conhecidos emocionalmente e nem mesmo se apresentam para
todos visualmente. O que gera a quarta e ltima observao, a de que seria extremamente
inconsequente nos submeter a ilustraes exemplares, ou transformar indcios em figuras de
lar, apontamentos que possam comprometer o desenvolvimento pessoal do leitor.
Como mencionado, para habitar que se encontre um lar. O que trabalharemos neste
momento como se d esse encontro, que encontrar esse? Quais as possibilidades para o
reconhecimento de nossos lares? Quando enfim habitamos?
Encontrar, como vrios termos empregados, no se justifica por sua representao
literal de chegar de encontro, defrontar-se, ver com os prprios olhos, achar
pessoalmente, se deparar, no se trata de um encontro essencialmente fsico e material,
exatamente porque nossa busca no o . Este encontro um outro, muito mais sensvel, um
despertar, o start ao qual nos referimos quando falamos sobre o no-lugar. Neste sentido, a
nossa reflexo em algo, reconhecendo-o como lar, nosso primeiro ato em habitar.
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Esta reflexo no necessariamente se dar em um meio material [real], nossa projeo
muito bem poder ocorrer da mesma forma em um anteparo fsico, mas inserido em um
meio imaterial [virtual] que podemos chamar de um encontro potico igualmente gerado
pelos cinco sentidos, mas regido pela emoo. No conveniente extrapolar a definio da
imaterialidade, pois isso ocorrer em captulo frente que falar exatamente dos modos do
habitar. Por hora, ficaremos com a sugesto de que este meio representado pela memria,
pelo sonho, pelo devaneio e pela imaginao.
Para Norberg-Schulz possvel sentir-se em casa sem conhecer a fundo a estrutura
espacial do lugar, isto , o lugar percebido por ter um carter genericamente agradvel.
Segundo ele, o sentimento profundo de pertencimento antecede necessidade de um
desenvolvimento psicolgico pleno do indivduo. Esta ideia muito recorrente e talvez seja a
motivadora da situao em que colocamos em questo princpio - da [no]identificao do
indivduo como sendo um ato involuntrio a si, que dependa essencialmente das caractersticas
do espao e sobre este aspecto agiremos contrariamente o terico, tentando demonstrar
mais uma vez que a identificao pressupe o reconhecimento que o indivduo faa de si e
no do lugar propriamente: quando o indivduo se encontra ele se [re]produz no espao, ele
se torna o prprio espao, ele o contamina e no o oposto.
por conta disso que a cena simples e mesmo as pouco atrativas podem revelar
aspectos que antes passavam desapercebidos e este novo insight na realidade , s vezes,
experienciado como beleza. Este encontro, descrito por Tuan como o sentimento de
topofilia j mostrado, segundo o mesmo no a ao emotiva mais forte do homem, por
isso ao ocorrer, mesmo de forma inexplicvel, podemos ter certeza que este meio ambiente
transmissor de acontecimentos emocionais realmente fortes e que identificado como um
smbolo. O smbolo, que contm e comunica um significado que ns o damos, consciente ou
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inconscientemente, a imagem que fazemos de ns.
Muitas vezes o nosso encontro, da formao da nossa imagem em coisa, visto do
modo posto pelo gegrafo uma experincia de beleza. No s ele: Existem tantos estilos de
beleza quanto vises de felicidade proclama Stendhal. Botton argumenta que esta amplitude
de opes nos liberta para escolhermos quais obras de arquitetura em particular respondem
de forma mais ou menos adequada s nossas necessidades psicolgicas genunas pois o que
realmente buscamos parecer com objetos e lugares que nos tocam por sua beleza, mais
do que possu-los fisicamente, de fato no desejamos t-los ou cont-los e sim personifica-
los. Segundo ele, o sentido de beleza normalmente transmitido como um sentimento de
bondade, gerador de bem-estar e satisfao, por nos passar mensagens de demasiada perfeio,
caracterstica que o homem incessantemente busca. Logo, o belo nos atrai porque ns o
escolhemos, o determinamos como belo, a nossa projeo de beleza, um projeto de ns.
Enfim, quando nos encontramos em algo no somente refletimos o que somos, mas tambm
o que mais profundamente queremos ser.
Tuan considera o sentido de beleza como uma projeo arquetpica do subconsciente
humano que se lana no exterior; desta forma os espaos transformam-se em smbolo da
totalidade psquica, um microcosmo capaz de exercer uma influncia benfica sobre os seres
humanos que entram no lugar ou que a vivem.
evidente a nossa procura em algo e o encontro est fortemente ligado ao desejo de
comunicao; uma nsia de nos apresentarmos ao mundo de forma no verbal, atravs de
objetos e espaos, para que todos saibam quem somos e assim lembrar de ns mesmos.
Enfim habito quando encontro um lar, quando eu me encontro.
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PARTE 3: aceitando o lar ou Porque Habito
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Neste momento, nosso processo de conscincia passa do conhecimento aceitao.
Os termos lar e habitar j foram ressignificados e boa parte de suas circunstncias j fora
enunciada. Partiremos agora para a fase em que ser necessrio aceitar esta ressignificao
que em suma uma ressignificao do nosso modo de nos relacionar diante o meio externo,
uma transformao na maneira como vivenciamos nossas experincias, uma mudana
nosso jeito de ser, por isso to resistente. Apenas aceitando a possibilidade de um novo ser
que poderemos compreender como faz-lo e o que tratamos at ento como potencial se
tornar real.
O habitar um valor sobre o qual no deveramos discutir importncia j por este estar
contido em ns, no cada um: o que importamos o que levamos para dentro, se guardamos
e protegemos o sentimento do lar que nossa prpria identidade, nos permitir habitar ,
ou deveria ser, um gesto natural em externar nossa intimidade e assim, fazendo parte nossa,
evidente seja um ato importante.
Mesmo reconhecendo importncia, ainda difcil aceitar a necessidade diante o atual
estado de comodidade. Mais que sua importncia, a necessidade de exercer o habitar encontra-
se no fato de ser o modo como existimos no mundo, ou como deveria ser. Esta a prpria
viso de Heidegger com relao existncia humana: morar a essncia de ser-no-mundo.
Ser-no-mundo o prprio existir, a condio fundamental para que o indivduo
seja. Fora isso, sem sua identificao, quem este ser no mundo? Um ser sem identidade
no ningum, no nada, no existe. Repetidamente reforamos que o homem se apoia
no espao construdo porque este o meio que lhe d visibilidade; a arquitetura e as artes
do forma aos estados de esprito e aos sentimentos mais humanos. Por isso a arte conforta,
porque ela permite ao homem continuar.
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3.1. Da necessidade do lar
Ora, se estamos condicionados ao habitar, o que nos falta aceit-lo enquanto uma
manifestao do nosso Ser e entend-lo como uma possibilidade de satisfao e conforto,
harmonia e plenitude.
Ento a pergunta transpe-se: por que necessitamos tanto nos encontrar em algo? Ou
por que estamos condicionados a isso? So as respostas a essas questes que possuem a
potncia de nos fazer aceitar o habitar. Voltemos considerao do abrigo.
Vimos no incio conceitos que deixam clara a funo fundamental do habitar como um
resguardo do homem. Filarete recorre ao Gnesis para nos mostrar como isso se deu:
Devemos supor que quando Ado foi alojado no paraso estava chovendo. E como no tinha proteo, levou as mos cabea para defender-se da gua. E do mesmo modo que a necessidade o obrigou a encontrar comida para seguir vivendo, assim tambm a habitao foi uma habilidade para defender-se do mal tempo e da gua.
Mesmo que nos soe de maneira mtica a lio explcita e at mesmo bvia: o homem
necessita da habitao para defender-se e, mais interessante, considerada uma habilidade.
Certamente, como o mundo em sua forma inata no habitvel, no suficiente para a
sobrevivncia do homem ser em sua condio natural, necessariamente ele tem que reinventar
o mundo. Isso significa que cabe ao homem ser na terra e criar seu prprio mundo, o
mundo-da-vida, o microcosmo que lhe guarde. Por isso a princpio ele concebe a edificao:
(...)Inventa uma segunda pele que o proteja e lhe garanta um espao habitvel onde possa produzir e reproduzir sua vida. Uma pele que lhe propicie a comodidade, a segurana e o deleite que necessita para viver plenamente. (...) A essa segunda pele temos dado o nome de Arquitetura.
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Como diz Ponce, mesma maneira de Lefvre, a primeira arquitetura fora concebida
no intuito de resguardar o indivduo. Em sua ideia bruta, os primeiros espaos manipulados
pelo homem inegavelmente cuidaram de preserv-lo muito mais por um instinto fsico que
psicolgico, pois a sobrevivncia do corpo precede a da mente. Em todo caso o homem,
como ser complexo, tratou de unir os dois planos e por isso que, mesmo de forma primitiva,
Filarete considera a habitao uma habilidade: o habitar uma predisposio fsica que fora
desenvolvida psicologicamente pelo homem.
De parte disso, o lar qualquer espao que consiga tornar mais consistentemente
disponvel para ns as verdades importantes que o mundo mais amplo ignora, ou que nosso
eu distrado e indeciso tem dificuldade em manter. Construmos pelo mesmo motivo que
escrevemos: para registrar o que importante para ns. Assim, objetos, espaos, coisas, nos
contam algo, nos trazem memria a lembrana de algo, cheios de significados. E o que eles
nos dizem? Balbuciam parte de nossa histria, partes de ns mesmos, descobrir o lar uma
descoberta de si mesmo.
Logo, a parte nosso corpo, o habitar modo como podemos nos guardar
psicologicamente, convertendo nossa identidade em identificao. neste sentido que ter
lugar uma condio humana, como vimos nossa forma de manifestar o que e como
somos, bem nos lembra Norberg-Schulz:
A identidade de uma pessoa se define em funo dos sistemas de pensamento desenvolvidos, porque so eles que determinam o mundo acessvel. Esse fato confirmado pelo uso corrente da linguagem. Quando uma pessoa quer declarar quem , geralmente diz: Sou nova-iorquino ou Sou romano. Isso tem um valor bem mais concreto do que dizer: Sou arquiteto ou, ento, Sou um otimista.
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Por isso em sua conotao primeira o abrigar possui duplo significado e capaz
de transformar o habitar objetivo-substantivo [estar em] no nosso habitar subjetivo-adjetivo
[estado de].
O sentido ambguo do abrigar - gerado pelo lar e consequentemente usufrudo ao habitar
- j fora insinuado anteriormente atravs da anlise do termo proteo que est intimamente
ligado ao sentimento materno: alm de assegurar o corpo fsico, a garantia de nosso estado
emocional. Nos encontrar em algo agarrar os nossos sentimentos mais ou menos ocultos.
O habitar propicia o usufruto de ns mesmos, abrigar o nosso Ser e o que nos
possibilita ser. Estamos ento condicionados a isso, porque nos imprescindvel este reduto
defensor. O abrigo o que nos preserva em todas as nossas dimenses, seja no plano material
ou no espiritual e a ns concede vida e/ou a conserva. Por este motivo habitar ser-no-
mundo, o que nos concede a vida, o justo viver. Do modo sugerido por Hlderlin em
seu poema:
A vida dos homens uma vida habitante(...)
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3.2. O [no] querer
A parte nossa explcita necessidade em habitar, preciso valoriz-la e usufru-la para
alcanar o conforto fsico-emocional de que tratamos. Para habitar, no sentido total declarado,
habitar poeticamente, preciso um querer, o querer ser.
Estando evidente nossa condio em habitar, preciso fazer-se habitar. Estamos
propensos instintivamente, o que no nos garante uma ao efetiva. Ser habitante tornar
nossa capacidade em vontade, a potncia do lar na ao do habitar.
O Sentimento do habitar algo que pode ser praticado e explorado, como veremos a
frente, mas demanda esforo. Como estamos na fase de aceitao, o querer tambm aceitar
e aceitar, como uma abertura, lembremos, permitir. Permitir-nos agir o que produz a fora
motriz do nosso interior para uma projeo exterior e essa fora a atitude:
Atitude primariamente uma postura cultural, uma posio que se toma frente ao mundo (...) e formada de uma longa sucesso de percepes, isto , experincias.
Conforme Tuan, a atitude uma postura, uma posio, o prprio querer. O no-
querer nossa condio atual, a inrcia esttica; portanto a atitude o que nos move, o que
nos leva no somente a parecer ser, mas ser. Isso se d de forma contnua e cumulativa por
isso a necessidade de mudar o estado de inrcia: Percepo tanto a resposta dos sentidos
aos estmulos externos como a atividade proposital, na qual certos fenmenos so claramente
registrados (...).
Segundo ele ainda, a reunio de percepes que nos confere experincias e estas
reforam nossa capacidade em habitar, enfim, o que molda nossa habitabilidade, alimentada
por nossa constante troca entre estmulos internos e externos que uma atividade proposital,
ou seja, recebemos abrigo medida que nos doamos para o mundo.
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3.3. Mudana
A mudana o passo inicial no resgate da capacidade de identificao do indivduo.
Mudar nossa viso de mundo, modificar o nosso ser, o que nos permitir a compreenso
dos modos do habitar que seguiro.
Em todo caso, temos de aprender a mudar, ou melhor, conhecer de que maneira o que
somos e as ideias que temos podem se converter em novas resolues de vivncia.
Se habitar um gesto que depende do querer, do hbito de cada um, a mudana em
questo no fsico-espacial, mas do modo como agimos e reagimos no espao: se ali estamos
preciso atentar ao que sentimos, ao que recebemos do meio em que nos encontramos e
compreender como deveremos agir para com ele.
Outra questo, alm da prpria vontade e da ateno, a forma como entendemos
o habitar enquanto ao. Parte de nossa no identificao no se d pela resistncia do
indivduo em se comunicar, pelo contrrio, vimos o quo latente esta caracterstica humana,
a problemtica est em justamente no sabermos como faz-lo ou ainda, estarmos presos ao
plano material do espao fsico concreto que atingimos apenas na realidade e que muitas vezes
esta priso que nos causa sentimentos de insatisfao e/ou no suficincia.
A mudana necessria enfim no apenas na reao que temos para com o que chega
at ns, mas tambm no modo como chegamos at as coisas, na prpria ao do indivduo,
ou adiante, na sua interao com o mundo, no modo como o experincia. o que nos fala
Norberg-Schulz ainda referindo-se ao poema de Hlderlin:
(...) os mritos do homem no contam muito se ele incapaz de habitar poeticamente, isto , de habitar no verdadeiro sentido da palavra.
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Habitar no verdadeiro sentido da palavra, ou em todos os sentidos da palavra. A
princpio, o indivduo deve abrir-se s novas possiblidades do habitar, especificamente s
experincias virtuais de ambiente: Vamos entregar-nos, pois, ao poder de atrao de todas
as regies de intimidade. No h intimidade verdadeira que repila. Todos os espaos de
intimidade designam-se por uma atrao. Reiteramos ainda uma vez que seu ser bem-estar..
Bachelard explicita toda a potencialidade do habitar ao conferi-lo genericamente a regies de
intimidade [lares] s quais devemos nos entregar diante a atrao indiferentemente fsica
e/ou emocional, que se encontrem no plano terreno e/ou das ideias, contanto que seja uma
experincia que nos conceda bem-estar.
Tal transformao obviamente no se dar de jeito to instantneo, mas sim de forma
gradual na medida em que reconhecemos e extrapolamos as diversas condies do habitar,
tanto na sua objetividade quanto na subjetividade. O processo de identificao do indivduo se
auto alimenta conforme avanamos na sua prtica. Nesta fase ento o que devemos ter uma
conscincia de mudana e partir compreenso.
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PARTE 4: vivenciando o lar ou Como Habito
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A poesia no (...) nenhum construir no sentido de instaurao e edificao de coisas construdas. Todavia, enquanto mediao propriamente dita da dimenso do habitar, a poesia um construir em sentido inaugural. a poesia que permite ao homem habitar sua essncia. A poesia deixa habitar em sentido originrio.
(Martin Heidegger)
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Na linha do processo de conscincia, j conhecemos os termos ressignificados e tambm
passamos pela aceitao destes sentimentos como necessrios ao homem. Nesta ocasio
iremos compreenso do como habitar.
Vimos as condies do habitar e que este um sentir, sentir-se bem, em paz, confortvel,
satisfeito e pleno. Conforme Norberg-Schulz, a base existencial do homem, o habitar, d-se
fundamentalmente pelo orientar e identificar, em suma, onde e como:
Para conquistar uma base de apoio existencial, o homem deve ser capaz de orientar-se, de saber onde est. Mas ele tambm tem de identificar-se com o ambiente, isto , tem de saber como est em determinado lugar.
O habitar experienciar-se atravs de uma projeo em coisa e enquanto experincia
pode suceder de distintas maneiras e a justa compreenso destes modos que iniciaremos.
conveniente ressaltar que quando habitamos, seja de modo virtual ou real, obviamente
ocupamos um espao no tempo com isso, mas esta noo torna-se irrelevante, pois para
habitar no h regras, no tem dia nem hora, no existe perodo mnimo nem prazo de
validade. possvel habitar a todo instante e de inmeras maneiras. Enquanto sentimento de
pertencimento extremamente indiferente ao tempo, pois o indivduo no necessita estar
em um dado momento muito menos permanecer por um determinado perodo em alguma
coisa para habit-la. O sentimento vale-se muito mais da sucesso de experincias e de suas
intensidades do que da durao e o meio por que se do; por isso podemos consider-lo um
sentimento atemporal, no sentido de sua independncia.
Assim, no se trata apenas de simples vivncia ou permanncia, mas de estabelecer
uma relao e [res]guardar na memria e [re]viver no sonho e [re]criar no devaneio e [re]
inventar na imaginao... Este aquele de-morar-se do Ser, o estar sempre em contato,
materialmente ou mentalmente.
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AS CIDADES E OS SMBOLOS 1
Caminha-se por vrios dias entre rvores e pedras. Raramente o olhar se fixa numa coisa, e, quando isso acontece, ela reconhecida pelo smbolo de alguma outra coisa: a pegada na areia indica a passagem de um tigre; o pntano anuncia uma veia de gua; a flor do hibisco, o fim do inverno. O resto mudo e intercam-bivel rvores e pedras so apenas aquilo que so.
Finalmente, a viagem conduz cidade de Tamara. Penetra-se por ruas cheias de placas que pendem das paredes. Os olhos no vem coisas mas figuras de coisas que significam outras coisas: o torqus indica a casa do tira-dentes; o jarro, a taberna; as alabardas, o corpo de guarda; a balana, a quitanda. Esttuas e escudos reproduzem imagens de lees delfins torres estrelas: smbolo de que alguma coisa sabe-se l o qu tem como um smbolo um leo ou delfim ou torre ou estrela. Outros smbolos advertem aquilo que proibido em algum lugar entrar na viela com carroas, urinar atrs do quiosque, pescar com vara na ponte e aquilo que permitido dar de beber s zebras, jogar bocha, incinerar o cadver dos parentes. Na porta dos templos, vem-se as esttuas dos deuses, cada qual representado com seus atributos: a cornucpia, a ampulheta, a medusa, pelos quais os fiis podem reconhec-los e dirigir-lhes a orao adequada. Se um edifcio no contm nenhuma insgnia ou figura, a sua forma e o lugar que ocupa na organizao da cidade bastam para indicar a sua funo: o palcio real, a priso, a casa da moeda, a escola pitagrica, o bordel. Mesmo as mercadorias que os vendedores expem em suas bancas valem no por si prprias mas como smbolos de outras coisas: a tira bordada para a testa significa elegncia; a liteira dourada, poder; os volumes de Averris, sabedoria; a pulseira para o tornozelo, voluptuosidade. O olhar percorre as ruas como se fossem pginas escritas: a cidade diz tudo o que voc deve pensar, faz voc repetir o discurso, e, enquanto voc acredita estar visitando Tamara, no faz nada alm de registrar os nomes com os quais ela define a si prpria e todas as suas partes.
Como realmente a cidade sob esse carregado invlucro de smbolos, o que contm e o que esconde, ao se sair de Tamara impossvel saber. Do lado de fora, a terra estende-se vazia at o horizonte, abre-se o cu onde correm as nuvens. Nas formas que o acaso e o vento do s nuvens, o homem se prope a reconhecer figuras: veleiro, mo, elefante
(Italo Calvino, As Cidades Invisveis 1990, p.17-18)
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4.1. Do modo do habitar
Habitar, como muito dito, no estar, mas estado, o ser como viver em plenitude
do Ser o estado de sentir-se conectado permanentemente - no preso, ou mesmo
subordinado, mas estar com o espao, tom-lo em si e deixar-se nele. Nossa conexo no
espao manifestada atravs do sentimento de encontro:
l | ali |aqui | ali | l estoul | ali |aqui | ali | l soul | ali |aqui | ali | l me l | ali |aqui | ali | l eu.
Pode-se dizer ento que o encontro encontrar-se no encontro com nosso(s) lar(es).
O encontro plural: encontramos nossa identidade ou nosso Ser, de forma sentimental
e imagtica, ao encontramos espaos concretos que nos comuniquem em realidade ou
virtualidade.
Trata-se de um encontro potico ou o habitar original nos dito por Heidegger e
defendido por Norberg-Schulz como o habitar poeticamente. De acordo com o primeiro
a poesia que nos permite habitar e que faz a mediao entre toda a dimenso do habitar,
quer dizer, dos modos deste. Tais modos podem ser gerados no s pelo sentido que se
relaciona estritamente ao ambiente fsico concreto como o tato, mas tambm e muito mais
pelos demais e/ou composies sinestsicas deles nos submetendo emoo.
Como se v, o modo como habitamos no um modo atuante ou passivo, ao mesmo
tempo, somos agentes e reagentes e por isso habitar se relacionar com o ambiente e no no
ambiente.
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a troca que compe as possibilidades e potencialidades do estar [estado] e do ser: a partir
das relaes sensoriais e sinestsicas do indivduo pra com o meio externo.
Segundo Botton nossos estmulos sensoriais so potencialmente infinitos: aquilo em
que decidimos prestar ateno (valorizar ou amar) um acidente do temperamento individual,
do propsito e das foras culturais que atuam em determinada poca(...). Ou seja, no s
sentimos, mas escolhemos o que sentimos mais ou menos, em maior ou menor intensidade,
e que somos condicionados a isso, como se houvesse um filtro entre o estmulo instintivo e a
conscincia ou representao que tomamos disso. Ainda ele nos mostra exatamente como
possvel nos identificarmos em algo atravs de sentidos isolados e como os reproduzimos em
fatos significativos quando diz:
Assim como uma infncia pode vir tona com o cheiro de um sabo em p ou uma xcara de ch, toda uma cultura pode brotar dos ngulos formados por algumas linhas.
Adiante poderemos compreender precisamente que os sentidos so o meio pelo qual
podemos habitar, pois so eles que nos trazem nossos lares e tambm os criam, so de fato
o que nos permite sentir. essa a poesia, rendermo-nos s nossas sensaes. No momento,
exploremos mais do que se tratam.
Tuan se dedica fortemente a analisar como os indivduos se relacionam com o mundo
externo atravs dos sentidos e podemos nos apoiar com segurana em suas consideraes que
os analisam de forma condicionada e encadeada, vejamos:
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O tato a experincia direta da resistncia, a experincia direta do mundo como um sistema de resistncia e de presses que nos persuadem da existncia de uma realidade independente de nossa imaginao. Ver no ainda acreditar: por isso Cristo se ofereceu para ser tocado pelo apstolo incrdulo. (...) Os olhos obtm informaes muito mais precisas e detalhadas sobre o meio ambiente do que os ouvidos, mas geralmente somos mais sensibilizados pelo que ouvimos do que pelo que vemos. (...) Para muitas pessoas, a msica uma experincia mais forte que olhar quadros e cenrios. Por que isso? Em parte, talvez, porque no podemos fechar nossos ouvidos como podemos fechar nossos olhos. Sentimo-nos mais vulnerveis aos sons (...) nossa experincia de espao aumentada grandemente pelo sentido auditivo, que fornece informaes do mundo alm do campo visual.
Como havia dito e que fica reforado pela citao do gegrafo, o tato um sentido que
est extremamente ligado noo do real e por isso nos traioeiro na concepo do habitar,
pois nossas relaes espaciais no se do apenas de maneira ttil concreta em um mundo
real, como ele mesmo nos diz, nossas vivncias ou experincias de espao so fortemente
ampliadas atravs dos outros sentidos. Claramente pela reunio dos sentidos que sentimos
o mundo ao nosso redor.
Santos, o qual se dedica pesquisa sobre a interao corpo-espao-objeto, nos diz:
Percebo que Sokolowski ainda contempla a relao espao-corpo quando argumenta que o
corpo move-se atravs do espao do mundo, e ao mover-se no espao pontos (ou relaes) so
estabelecidos.. Mas essas relaes no so capazes de configurar o habitar, justamente por
este no se configurar em corpo, mas em mente. A relao entre corpo e espao evidente,
mas temos que compreender que suas possibilidades vo alm do mundo real e o que nos
leva a essa experincia alm so os modos dos sentidos:
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Mesmo quando nos relacionamos com coisas que no se encontram numa proximidade estimvel, demoramo-nos junto s coisas elas mesmas. O que fazemos no simplesmente representar, como se costuma ensinar, dentro de ns coisas distantes de ns, deixando passar em nosso interior e na nossa cabea representaes como sucedneos das coisas distantes. (...) A partir desse momento em que pensamos, estamos juntos daquela ponte l e no junto a um contedo de representao armazenado em nossa conscincia. Daqui podemos at mesmo estar bem mais prximos dessa ponte e do espao que ela d e arruma do que algum que a utiliza diariamente como um meio indiferente de atravessar os espaos(...).
Assim, nossos laos afetivos gerados pelo que sentimos se do mesmo em distncia, tanto
espacial quanto temporal. Essa distncia suprida precisamente por qualquer manifestao
sensorial que nos leve at os lares que abrigam este afeto e o meio em que essas experincias
realizam-se deixam de ser a materialidade e frutificam-se grandemente na imaterialidade da
memria, do sonho, do devaneio e da imaginao.
De certa maneira, as experincias fsicas so codificadas sentimentalmente e tornam
a se projetar, a nos projetar, atravs dos meios citados, os considerados virtuais. Virtual
no no sentido de irreal, mas que no podemos palpar; ns somos capazes de sentir, ver,
at mesmo ouvir e degustar, mas so idealizaes que no podemos concretizar, o mximo
que conseguimos verbalizar por isso so experincias extremamente ntimas e nicas, e to
exaltadas aqui.
Embora talo Calvino no fale de espaos isoladamente, a aluso que ele faz cidade
semelhante ao que falamos. A ideia de cidade no vista de um modo racional e concreto,
mas de uma forma pessoal e intimista. A ela confere-se uma espcie de projeo do sujeito
que varia de acordo com cada visitante. Como se refere Wolkmer as cidades quase que
representam essa humanidade, esse mudar ao longo do tempo, os diferentes pontos de vista.
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Essas so as vivncias mais fiis que podemos ter. um paradoxo experincias irreais
serem consideradas as mais verdadeiras, mas o ponto que na medida em que s ns temos
acesso a elas nossos desejos mais sinceros e o nosso verdadeiro eu o Ser - podem ser
revelados sem se contaminarem com a convenincia humana de preocupar-se sempre em
passar e manter a imagem do que gostaramos de ser e no do que deveras somos.
Por este motivo, talvez, o homem esteja sempre a simbolizar seu mundo, para que no
se perca de si mesmo. Pallasmaa exemplifica esclarecendo nossa relao com a arte:
A linguagem da arte a linguagem dos smbolos que podem ser identificados com nossa existncia. Se lhe falta um contato com as memrias sensoriais que vivem em nosso subconsciente e ligam nossos vrios sentidos, a arte fica inevitavelmente reduzida a mera decorao. Sem significado. A experincia da arte uma interao entre nossas memrias corporificadas e nosso mundo. Em certo sentido, toda arte se origina de nosso corpo (...).
Na medida em que a arte pura e inata considerada a maneira capaz de expressar a
verdade humana, um reflexo da nossa existncia, no s por nos identificarmos em smbolos,
mas tambm por nos expressarmos atravs deles.
Isto nos diz que se identificar como um habitar o nosso contato com o externo
sensorialmente, que uma experincia a princpio corporal torna-se mental no momento em
que a registramos qualitativamente em nossa memria e a guardamos para novas projees.
As experincias vividas bem como as que poderemos viver, as expectativas, desejos, devaneios
e intenes tambm configuram um habitar.
Os modos pelos quais habitamos nossos lares so os mesmos que nos permitem mant-
los e pratic-los. A memria o meio consciente que conserva nossas experincias passadas
as quais sempre temos disposio para habitar em lembrana e como base para atitudes
futuras.78
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O sonho o meio imaterial mais complexo em que podemos experienciar os ambientes;
mesmo sob inconscincia ele o nico meio capaz de projetar todas as dimenses de vivncia
a um s tempo: ele resgata, reflete e cria. Infelizmente no poderemos nos estender a seu
respeito, mas inegvel que os sonhos se do em ambientes muitas vezes desconhecidos
com sequncias e fatos que consideramos estranhos ou surreais mesclados com dados de
nossa realidade vivida. O devaneio o meio fantasioso o qual podemos considerar como uma
solidariedade entre a memria e a imaginao. uma forma de recriarmos nossa realidade e
mold-la ao nosso desejo mentalmente. A imaginao a pura projeo do futuro, tambm
uma forma de modificar o presente mas como uma evoluo desde.
O sentimento de manuteno que estes meios de experincia nos conferem fica explcito
no pensamento de Bachelard, principalmente com relao ao devaneio:
O espao habitado carrega a essncia do aconchego que permite abrigar a imaginao, o pensamento, o sonho. Ao devaneio pertencem valores que marcam o homem em sua profundidade. (...) Ento, os lugares onde se viveu o devaneio reconstituem-se por si mesmos num novo devaneio. exatamente porque as lembranas das antigas moradas so revividas como devaneios que as moradas do passado so imperecveis para ns.
Atravs do sonho, do devaneio, da imaginao e da prpria memria, vivemos em lares
imaginrios. Conforme o mesmo autor, vivemos fixaes de felicidade e reconfortamo-nos
ao reviver lembranas de proteo. Essas fixaes de felicidade podemos considerar como
sendo a prpria identificao, que nos gera conforto e entusiasmo.
Estamos irremediavelmente condicionados a simbolizar e talvez seja esse o motivo que
nos faa seres to dependentes do ambiente em que nos inserimos. Para Botton, o homem
parece incapaz de olhar um prdio, um mvel ou qualquer pedao de espao sem relacion-lo
s suas situaes histricas e pessoais o que os tornam uma espcie de suvenires emocionais
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que resgatamos e transpomos aos cenrios em que nos encontramos.
O prprio Pallasmaa nos conta sobre suas experincias sensoriais atravs da memria:
Eu mesmo, por exemplo, no consigo encontrar na memria da minha infncia uma nica janela ou porta como tal, mas posso sentar-me janela de minhas inmeras lembranas e observar um jardim h muito desaparecido ou uma clareira agora coberta de rvores. Posso ainda atravessar as inumerveis portas de minha memria e reconhecer a escurido clida e o cheiro peculiar das salas que esto do outro lado.
Para habitar basta sentir, no h critrio, ordens ou segredos que no o sentimento de(o)
cada um. Permitindo-se habitar, ha