o estoicismo de sÊneca e suas consideraÇÕes … · daí um tópico especialmente dedicado a ele....

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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE INSTITUTO DE CIENCIAS HUMANS E FILOSOFIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA DISSERTAÇÃO DE MESTRADO O ESTOICISMO DE SÊNECA E SUAS CONSIDERAÇÕES SOBRE DEUS E MORTE Marcus Vinicius Continentino Porto Niterói RJ 2018

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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

INSTITUTO DE CIENCIAS HUMANS E FILOSOFIA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA

DISSERTAÇÃO DE MESTRADO

O ESTOICISMO DE SÊNECA E SUAS CONSIDERAÇÕES

SOBRE DEUS E MORTE

Marcus Vinicius Continentino Porto

Niterói – RJ

2018

2

MARCUS VINICIUS CONTINENTINO PORTO

O ESTOICISMO DE SÊNECA E SUAS CONSIDERAÇÕES

SOBRE DEUS E MORTE

Dissertação apresentada à banca examinadora do

Programa de Pós-Graduação em Filosofia da

Universidade Federal Fluminense como obtenção

para o titulo de Mestre em Filosofia na área de

História da Filosofia

ORIENTADOR: Prof. º Dr. Marcus Reis Pinheiro

Niterói-RJ

2018

3

MARCUS VINICIUS CONTINENTINO PORTO

O ESTOICISMO DE SÊNECA E SUAS CONSIDERAÇÕES SOBRE

DEUS E MORTE

Dissertação apresentada à banca examinadora do

Programa de Pós-Graduação em Filosofia da

Universidade Federal Fluminense como obtenção

para o titulo de Mestre em Filosofia na área de

História da Filosofia

BANCA EXAMINADORA:

Prof. Dr. Marcus Reis Pinheiro - UFF

(ORIENTADOR)

Prof. Dr. Luis Felipe Bellintanni Ribeiro – UFF

Prof. Dr. Remo Mannarino Filho – PUC RJ

4

Ficha catalográfica automática – SDC/BCG

Bibliotecária Responsável: Angela Albuquerque de Insfran CRB7/2318

P839e Porto, Marcus Vinicius Continentino

O Estoicismo de Sêneca e suas considerações sobre Deus e Morte / Marcus

Vinicius Continentino Porto; Marcus Reis Pinheiro, orientador. Niterói, 2018.

102. f

Dissertação (mestrado) – Universidade Federa Fluminense, Niterói, 2018.

DOI: HTTP://dx.doi.org/1022409/PFI.2018. mestrado. 02983852792

1. Estoicismo. 2. Sêneca, Lucio Aneu. 3. Deus 4. Morte. 5. Produção

Intelectual. I. Título. II. Reis Pinheiro, Marcus, orientador. III.

Universidade Federal Fluminense. Instituto de Ciências Humanas e

Filosofia

CDD

5

À minha família, Aos meus amigos, À minha quase sempre maravilhosa Baby,

A mim também, mereço, mesmo que pouco...

6

Feito essa gente que anda por aí Brincando com a vida... Cuidado companheiro! A vida é pra valer, E não se engane não, tem uma só. Duas mesmo que é bom, Ninguém vai me dizer que tem, Sem provar muito bem provado, Com certidão passada em cartório do céu, E assinado embaixo: Deus! E com firma reconhecida! A vida não é de brincadeira, amigo. A vida é a arte do encontro, Embora haja tanto desencontro pela vida. Vinicius de Moraes – Samba da Bênção

7

AGRADECIMENTOS

Nesta seara trilhada, cujos passos estão nestas páginas cunhados, afirmo que

indubitavelmente não chegaria ao fim da mesma sem ajuda daqueles cujos nomes aqui

registro.

Meus agradecimentos ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia da minha

estimada e amada Universidade Federal Fluminense, aproveitando o ensejo para

estendê- los a todos os professores que ministram aulas no Programa. A UFF é local

onde vivi, convivi, estudei. Hoje vivo, convivo, estudo e trabalho. Pretendo ainda fruir

todos estes verbos num futuro extenso.

Agradeço imensamente a Marcus Reis Pinheiro, meu professor em algumas

disciplinas na graduação e meu orientador no curso de mestrado, pessoa sempre

disposta a tirar minhas dúvidas e extremamente colaborativo e presente. Certamente,

sua participação foi de fundamental importância para que este trabalho alcançasse seu

termo.

Especial agradecimento aos professores Luis Felipe Bellintani - pessoa na qual

tive o privilégio de ser aluno e assistir suas aulas, tanto na graduação, como no mestrado

– e Remo Mannarino, juntamente com o primeiro, membro da banca, que se dispuseram

a examinar e avaliar este trabalho.

Não posso deixar de citar Luciene Pacheco, secretária da Pós-Graduação, colega

de trabalho, pela atenção, eficiência e carinho com que, sempre que precisei, eu fora

atendido.

Impossível esquecer Maria Clara de Salles Teixeira, colega de trabalho, mas

antes, Queridíssima Amiga. Deixo aqui meus registros de gratidão pelos incentivos e

pela torcida por meu sucesso.

Menciono ainda meus nobilíssimos amigos Thiago Selem, Ottavio Rodrigues

Azevedo, Sandro Toledo, Valdeir Prates Guaraciaba, Jociléa Santos, Reinaldo Lomba,

Roberto Torviso e Elias da Silva Maia. Honram-me com vossas demonstrações de

carinho e amizade, e acreditem, nossos encontros acadêmicos e etílico-filosóficos,

8

verdadeiros simpósios, foram de muita valia para fortalecerem meu ânimo e espírito e

assim persistir nesta jornada.

Por fim, agradeço a toda minha família, pais, filho, irmãs, e claro, à minha

companheira Jackeline Aparecida de Souza Rocha, a Baby, pela paciência, carinho e

amor que me oferecera neste interregno laborativo.

9

RESUMO

A proposta do presente trabalho se ancora na filosofia estoica, especialmente no

estoicismo de Sêneca, pensador do século I de nossa era. Preliminarmente ofereceremos

uma abordagem geral do que fora o estoicismo ao longo do tempo, remetendo-nos as

suas doutrinas e algumas personagens relevantes em sua história durante as três fases

em que esta escola é segmentada pelos estudiosos do tema. Numa etapa posterior, e

central de nossa proposta, vários aspectos temáticos peculiares à filosofia senequiana

serão analisados, especialmente aqueles que tangenciam os conceitos de divino e suas

falas sobre a morte. Aspectos da vida e da morte do filósofo também marcam presença

neste trabalho.

10

SUMÁRIO

Apresentação...................................................................................................................11

Introdução.......................................................................................................................12

Capítulo I: Do Estoicismo Anterior a Sêneca.................................................................16

Capítulo II – O Estoicismo Romano ou Estoicismo Imperial.........................................28

Capítulo III – A Filosofia de Sêneca. .............................................................................36

III.1)A Vida de Sêneca e a Contextualização com seu Tempo.......................................36

III.2) A Filosofia Multitemática de Sêneca.....................................................................44

III.3) O Deus Senequiano................................................................................................57

III4) A Questão da Morte em Sêneca..............................................................................63

III.5) Os Últimos Dias de Sêneca. Sua morte, uma ação política?..................................69

Conclusão........................................................................................................................86

Bibliografia .....................................................................................................................90

11

APRESENTAÇÃO

O estoicismo, escola filosófica da Grécia Antiga, criada pelo filósofo Zenão de

Cício (336 a.C – 264 a.C), é uma das mais importantes e marcantes escolas filosóficas.

Almejamos nas páginas que seguem demonstrar o pensamento de Lucius Aneus Sêneca,

autor que pode ser considerado um dos expoentes máximos, não só da filosofia estóica,

mas da história da filosofia. Nascido na província romana de Córdoba, porém educado

em Roma, aristocrata da era imperial do século I, preceptor e posteriormente

conselheiro do imperador Nero. Sua filosofia bebe na fonte do Estoicismo Primeiro,

grego por natureza, mas com uma peculiaridade própria, em muitos pontos distinta da

escola grega, afinal, Sêneca incorpora à sua filosofia seu modus vivendi, tipicamente

romano.

Antes de prosseguirmos é necessário dizermos que a ideia inicial deste trabalho

era compararmos a filosofia senequiana com a filosofia de alguns pensadores cristãos

dos primeiros séculos. Pretendíamos fazer uma abordagem comparativa, num âmbito

geral, entre estoicismo e cristianismo e enfocando, num âmbito particular, o estoicismo

senequiano com o pensamento cristão primitivo. Averiguamos que muitas sentenças

filosóficas de Sêneca em muito se assemelhavam às máximas dos Evangelhos. Nossos

questionamentos eram: até onde Sêneca fora um visionário de uma nova ótica de mundo

que estava por surgir? O cristianismo e sua filosofia, sem sombras de dúvidas,

influenciariam todo o pensamento ocidental nos dois próximos milênios. Ou ainda: o

quanto desta nova filosofia resgatou, incorporou e utilizou-se do pensamento estoico,

com uma nova roupagem, para difundir e propagar suas idéias? Entretanto, averiguamos

que se tratava de tarefa por demais pretensiosa, onde o tempo exíguo para a feitura do

mesmo não nos permitiria a entrega de um trabalho satisfatório. Adiamos esta pretensão

para trabalhos futuros. Sendo assim, decidimos que nos limitaríamos ao estudo da

filosofia senequiana, abordando alguns tópicos de seu pensamento, oferecendo uma

atenção especial principalmente naquilo que Sêneca entende por divino e seu tratamento

filosófico com a morte. Temas também por demais presentes no pensamento cristão. De

12

antemão informamos não se tratar de uma abordagem comparativa, apenas fazemos esta

referência para trazermos à ciência dos que se dispõe a ler estas páginas por quais

caminhamos passamos para chegarmos ao tema desta dissertação.

Preliminarmente optamos em apresentar um panorama geral do pensamento

estoico, principalmente na ética e na física, para posteriormente enforcarmos em nosso

tema central. Mas por que estudar o estoico Sêneca? Pensar e refletir sobre Lucius

Aneus Sêneca, nos dias de hoje, ainda é tarefa extremamente profícua. Não somente

fora referência para os primeiros autores cristãos, mas nosso estoico influenciou

pensadores no decorrer dos séculos seguintes1.

Esta permanência no tempo é significativa para justificar um estudo sobre sua

filosofia. Ou seja, esta perenidade do pensamento senequiano, que ultrapassou a sua

era, mais ainda, transbordando até o presente as suas máximas e modo de enxergar o

mundo, num processo dinâmico e criador, nos abrindo várias possibilidades de estudo é,

em nosso entender, justificativa por si só para nos dedicarmos a pretensão deste

trabalho.

Autor de inúmeras obras, estas são matérias-primas de imensa gama de

interpretações e teses sobre os mais variados conceitos elaborados ou abordados pelo

famoso filósofo romano. A importância do estóico na história da filosofia antiga tem

destaque privilegiado.

Ancoramo-nos nas muitas passagens dos textos onde encontramos

frequentemente ensinamentos que nos direcionam a fomentar um pensamento crítico em

relação à posse de bens materiais, um desapego à fama e ao poder político, como

também a defesa de um agir para não nos deixarmos levar pelas futilidades da vida.

Sêneca adverte que frente aos percalços da vida, há sempre uma saída, uma

possibilidade de se ultrapassar os obstáculos, por menor que seja a abertura deste leque

de escolhas, ele estará lá, competindo ao homem estóico fazer a escolha mais acertada,

que pode ser extrema, por exemplo, a morte, um dos temas desenvolvidos por Sêneca

com o qual nos debruçamos neste trabalho.

Outro tema recorrente, a questão da divindade, também nos despertou atenção,

daí um tópico especialmente dedicado a ele. Afinal, o deus cristão que nos ouve e

atende nossas demandas é um deus antropormorfizado, é carne, é verbo, é logos, é

espírito, é humano e divino num só tempo. Entretanto, tal descrição do divino pareceria

1 Ver ZILLES: 1996

13

absurda a um filósofo estóico, por muitos motivos, mas exporemos aqui,

preliminarmente, apenas um deles: o deus estóico não nos atenderia em particular, não

se ocuparia de nós enquanto pessoa, mas sim enquanto todo. Tal distinção deste deus

estóico com o deus cristão se ameniza no estoicismo romano e Sêneca não foge a esta

regra. Isto posto, objetivamos aqui tecer nossos entendimentos sobre a visão senequiana

de deus.

Propusemo-nos também expor alguns aspectos da filosofia estoica, da

multivariedade de temas abordados pelo nosso filósofo, além de aspectos de sua vida e

da sua morte. Esperamos, humildemente ter alcançado nosso objetivo, ao menos, de

forma satisfatória.

Por fim, cumpre-nos observar que o estoicismo foi a filosofia que conquistou em

Roma Antiga o maior numero de adeptos, seguidores e admiradores, seja no período

republicano, seja no período imperial Afirmamos ainda que a leitura dos escritos de

Sêneca é extremamente útil para que possamos entender a natureza humana, mais do

que isto, serve-nos como instrumento auxiliar para tentarmos determinar quais valores

devemos cultivar no decorrer de nossa existência, sem um despertar alucinado de

paixões, mas sim num majestoso exercício intelectual.

14

INTRODUÇÃO

Ao planejarmos nosso trabalho, dissemos em linhas anteriores que almejávamos

traçar um breve quadro expositivo do movimento filosófico estoico ao longo do tempo.

Salientamos que não temos como pretensão aqui dissertarmos sobre todo o movimento

estoico, posto que, nossos esforços se concentrarão na filosofia de Sêneca, mas

entendemos ser de suma importância apresentar as fases do movimento, seus

personagens proeminentes, suas características próprias que a diferenciam das outras

escolas filosóficas, para assim podermos situar melhor onde caminhou o nosso filósofo

objeto de estudo. Agindo assim, teremos subsídios mais robustos para mergulharmos

com mais afinco naquilo que propusemos.

O que seria então o estoicismo? Que escola filosófica seria esta que nos

presenteia com grandes vultos da história da filosofia e que até os dias de hoje causam

tamanho interesse e repercussão, não só nos meios acadêmicos, mas também na vida

cotidiana daqueles que desejam se deleitar com o prazer de uma boa leitura? Ou mais

que isso, por que não dizer que ao lermos os estoicos estaríamos também nos

exercitando para um “bem-viver”? Tentando responder a estas questões, traçaremos nas

linhas que seguem um breve panorama do estoicismo. Caminhemos então

conjuntamente:

Parece-nos ser de opinião quase unânime entre os comentadores que o

estoicismo pode ser dividido em três grandes fases2, convencionalmente demarcadas no

tempo, que teriam características próprias e personagens que se sobressaíram nestas

devido à fecunda contribuição que ofereceram ao desenvolvimento daquela escola

filosófica. Seriam elas em ordem cronológica: O estoicismo antigo 3 , o estoicismo

2 Há quem diga que na realidade o estoicismo pode ser dividido em cinco fases, a saber: “1. a primeira

geração; 2. a era dos primeiros escolarcas atenienses; 3. a fase platonizante (o estoicismo ‘médio’); 4. A descentralização do século I antes de Cristo; 5. a fase imperial. O principal motivo para separá -las é que cada uma representa, em certa medida, uma perspectiva diferente do que é ser um estóico.” Ver

INWOOD: 2006 3 Por vezes denominado também de estoicismo primeiro.

15

médio, e por fim, o estoicismo romano4. O fundador do estoicismo é Zenão, filósofo

que floresceu aproximadamente no ano 300 a.C, ou seja, cem anos após a morte de

Sócrates, até, aproximadamente, fins do século III a.C. Fora sucedido por Cleantes,

natural de Assos5 , que por sua vez fora sucedido pela figura de Crisípo, natural de

Soles6, fechando assim a primeira fase. A segunda seria a era de Panécio e Possidônio,

que se desenvolve no tempo por volta dos séculos II e I a.C, e por fim, a terceira fase, a

que floresceu em Roma, coincidindo com o início da era cristã, dominada por figuras do

quilate de um Sêneca, Musônio Rufo, Epictêto e Marco Aurélio. Daremos ênfase ao

estoicismo imperial, aquele a qual pertence Sêneca. No estoicismo antigo, falaremos um

pouco da física, posto que, no estudo filosófico estoico, a questão da divindade tem ali o

seu lugar, em contrapartida passaremos rapidamente pela lógica e teceremos algumas

considerações sobre a ética, posto que, sendo Sêneca um filósofo cujo trabalho voltou-

se principalmente para esta divisão da filosofia, sendo assim, entendemos ser relevante

mostrarmos a seara por onde ele mergulhou.

4 Por vezes chamado de estoicismo imperial ou neo-estoicismo.

5 Atual Turquia.

6 Também na atual Turquia

16

I. O Estoicismo anterior a Sêneca

Dissemos em linhas anteriores que Sêneca pertenceu à última fase do Pórtico,

mas, antes de falarmos sobre ele e sua filosofia, deixaremos aqui algumas linhas

referentes à fundação do estoicismo e alguns de seus conceitos. Utilizaremos como

espinha dorsal para tecermos o aqui proposto, a clássica obra do ilustríssimo Diógenes

Laércio,7 certamente uma das maiores fontes de consulta quando o tema é estoicismo

antigo. Desejamos apenas demonstrar alguns conceitos básicos dos estoicos referentes

ao campo da física, mais especificamente no que eles pensavam sobre deus e destino,

como também algumas questões do campo da ética, posto que, como dissemos, Sêneca

é um filósofo voltado em seus trabalhos quase que exclusivamente de caráter ético.

Após estas preliminares, comecemos a nossa seara:

Em meados do século IV para o III a.C, Zenão forma seu grupo filosófico,

inicialmente conhecido como zenonianos, no entanto, logo depois seriam chamados de

estoicos, e até os dias de hoje a nomenclatura da escola daí se deriva: estoicismo. Por

que estoicos? Pelo fato de Zenão e seus discípulos se reunirem num local onde havia um

pórtico pintado. Em grego, pórtico é stoá. Zenão, apesar de não ateniense, viveu até o

fim de sua vida em Atenas e sua morte deu-se em 292 a.C. Deixou-nos como legado a

filosofia que viria a se tornar a principal escola da era helenística 8. Zenão é o grande

nome do estoicismo antigo, posto que, é o mestre fundador da escola. Escola esta que

tinha como preceito fundamental entender a filosofia como uma forma de vida. Ou seja,

desde os primórdios, os estoicos pregam que a filosofia é uma prática de vida. Filosofar

só faria sentido se os preceitos filosóficos que eles defendiam fossem realmente po stos

em prática. Um dos seus objetivos é o alcance da ataraxia, como diriam os gregos

antigos, ou da “tranqüilidade da alma”, como diria mais tarde Sêneca.

7Trata-se de referência à obra de Diógenes Laércio, Vida e Doutrina dos Filósofos Ilustres , escrita em dez

livros por volta do século III cujo teor é a biografia dos filósofos gregos da Antiguidade com suas

respectivas doutrinas. As letras DL são as iniciais do nome do fi lósofo, enquanto os números romanos fazem referência ao livro em que foram colhidas as citações. Já os números cardinais, aos parágrafos do mesmo. Doravante, para todas as referências à citada obra de Diógenes nos utilizaremos deste artifício. 8 A palavra “helenística” deriva de helenismo, termo que corresponde ao período que vai de Alexandre

Magno, o macedônico, até o da dominação romana (fim do séc. IV a. C. ao fim do séc. I d.C.)

17

Zenão chegou à cidade de Atenas, aos 22 anos, oriundo de outra cidade grega,

Cício 9 . Era homem que desde a mocidade nutria ávido interesse pela filosofia

socratiana. Quando criança, seu pai, por ser comerciante, frequentemente encontrava-se

em Atenas, e de lá lhe trazia escritos de conteúdo socráticos, despertando assim em

Zenão o gosto pela filosofia desde a tenra idade.

“(...) mas claro está que, pelo menos desde seus vinte e poucos

anos, ele era (Zenão) apaixonadamente dependente das

tradições filosóficas de Atenas, espicaçado, como se dizia, por

liv ros sobre Sócrates que seu pai, um mercador, t razia de suas

viagens.” (SEDLEY: 2006)

Ou seja, ao chegar a Atenas, Zenão não era um neófito nos saberes filosóficos.

Desde menino tivera contato com livros de filosofia. Fora em Atenas que Zenão

conheceu Crátes, homem este que pregava um escandaloso desprezo às normas sociais,

influenciando assim o fundador do estoicismo a escrever um trabalho, de cunho político

utópico, denominado a República. Em tal trabalho vemos que instituições sociais das

mais variadas espécies deveriam ser abolidas, mostrando desde então a importância da

ética na filosofia estoica.

“De modo caracteristicamente cínico, a maior parte das

instituições cívicas - templos, tribunais, cunhagens,

vestimentas diferenciadas para os sexos, educação

convencional, casamento e assim por diante – deveriam ser

abolidas. o que se presume ainda não estivesse em evidência,

mas que estava prestes a se tornar a chave da filosofia

madura de Zenão, era a tentativa de resgatar um papel

ético para os valores convencionais.”10

(SEDLEY: 2006)

Diógenes nos relata que este trabalho produzido por Zenão, fora objeto de

extrema censura, pois lá havia o relato de que „apenas os virtuosos são dignos de serem

cidadãos, amigos, parentes ou homens livres‟. Assim, afirmavam seus opositores que

filhos que não fossem sábios, ou seja, virtuosos, seriam, inexoravelmente, inimigo dos

pais.11 Fora ainda Zenão homem de imenso prestígio em Atenas exatamente por ter se

dedicado aos estudos filosóficos e a cultivar nos jovens a busca pela virtude e

9 Hoje, trata-se da cidade de Lamaca, Chipre, pais insular do Mediterrâneo.

10 Grifo nosso.

11 DL, VII, 33

18

moderação. 12 Dedicou-se aos estudos da dialética com Diodóros e mais tarde com

Polêmon13·Tratava-se de homem com hábitos alimentares simples, frugais, ao ponto de

ser ridicularizado por seus adversários que diziam que sua filosofia ensinava seus

discípulos a sentirem fome.14

Destes discípulos, podemos citar aqui alguns: Persáios, Aríston, que fora o

responsável pela inserção no Pórtico dos pensares sobre a indiferença; Hérilos de

Cártago, Dionísios, Sfairos, Cleantes, que veio a ser o sucessor de Zenão na direção da

escola estoica, Filonides, Cálipos, Possiddônio, Atenodoros e o seu homônimo, Zenão

de Sídon. Sábio, discreto e respeitado, Zenão morreu como viveu e foi dono de sua

morte como fora dono de sua vida.15 Todo este corpo de pensadores que aqui citamos,

foi responsável pela inserção e fundamentação das doutrinas estóicas no campo

filosófico. Falemos um pouco delas:

Iniciamos dizendo que a clássica divisão da filosofia em três partes também fora

utilizada pelos estoicos. Oportuno dizer que todas elas são interdependentes entre si,

indissoluvelmente integradas, onde as analogias feitas para demonstrar esta

interdependência entre as partes são válidas reproduzir. Eles, estoicos, demonstram esta

tripartição interdependente através de uma metáfora muito elucidativa: a um organismo

vivo, mais especificamente a um animal, ou também a um ovo ou a um pomar cercado:

“(...) onde os ossos e os nervos correspondem à lógica, as

partes carnosas à ética e a alma á física.” E ainda a um ovo:

“(...) a casca à lógica; a c lara, à ética, a gema à física.” ou a um

campo fértil: “cerca externa é a lógica, os frutos são a ética, e o

solo e as árvores são a física.” (DL, VII, 40)

Quanto às opiniões dos estoicos em relação à hierarquização e ordenamento das

partes da filosofia, Zenão e Crisípo entendiam, por questões metodológicas, que a lógica

devia ser tratada em primeiro, a física em seguida e a ética por último.16 Alguns outros

estoicos ofereciam hierarquização distinta daquela de Zenão. Independente das

divergências, não iremos nos concentrar em tal discussão, em razão de que, todas são

fundamentais para a construção da doutrina estoica. Entretanto, devido ao proposto em

nosso trabalho, nos dedicaremos aqui à ética, por razões que já registramos; e à física,

por termos um tópico de nosso trabalho referente à divindade senequiana. Assim sendo,

12

DL, VII, 10 13

DL, VII, 25 14

DL, VII, 27 15

DL, VII, 2 e 15 16

DL, VII, 40

19

entendemos ser relevante trazer aqui alguns conceitos da física estoica, já que esta fase

do estoicismo17 era a parte da filosofia que se dedicava à teologia estoica. “A doutrina

física dos estoicos divide-se em seções acerca dos corpos, dos princípios, dos

elementos, dos deuses, dos limites, do espaço e do vazio.” 18

Antes de entrarmos na física e na ética estoicas, é oportuno dizer que estes

filósofos não desprezavam a lógica, ao contrário, ofereciam enorme valor à mesma,

diziam inclusive que seus estudos eram indispensáveis para que o homem sábio fosse

insuperável em suas argumentações19. Era na lógica que os estoicos obtinham subsídios

para entender os preceitos da física e da ética.

Segundo Diógenes Laércio, os estoicos não tinham uma definição única das

divisões dos campos de estudo da lógica. Alguns diziam que a lógica poderia ser

decomposta em dois campos de conhecimento: retórica e dialética20, onde a primeira se

resumiria numa ciência em falar bem e claramente, enquanto a segunda seria o ramo

onde se é estudado o discurso sobre os mais variados assuntos mediante perguntas e

respostas.21 Os estoicos ainda a definem como a ciência do que é verdadeiro ou do que é

falso ou daquilo que não é nem verdadeiro e nem falso. 22 Havia todo um escopo de

investigações nesta parte da filosofia que se referiam não apenas a análise de formas

argumentativas, mas também a teorias de conceitos, proposições, percepção, etc. Ou

seja, a lógica dos estoicos antigos não se debruçava apenas no que hoje chamamos de

lógica, mas também à filosofia da linguagem e ao campo da epistemologia.

Quanto à física, esta tem a sua importância devido ao fato de ser a parte da

filosofia que nos permite conhecer e entender o mundo que nos cerca, a natureza

(physis) que nos envolve e na qual estamos inseridos. Os estoicos defendiam que

entendendo este mundo, do qual fazemos parte, teríamos subsídios para melhor nos

posicionarmos frente aos percalços e atribulações do nosso cotidiano. As ações por nós

praticadas se darão conforme este entendimento. Isto irá sem dúvida refletir na

construção da doutrina ética estoica. Bem, como dissemos, é na física que os estoicos

antigos formulavam seus conceitos sobre o divino. Eles partiam do pressuposto que

17

Referimo-nos ao estoicismo antigo 18

DL, VII, 132. Grifo nosso. 19

DL, VII, 47 20

DL, VII, 41 21

DL, VII, 42 22

DL, VII, 43

20

deus é matéria e que esta matéria tem uma racionalidade. Tentemos decompor esta

ideia:

Todo o kosmos, ou seja, tudo aquilo que existe seria dotado de vida, seria

também animado e ainda mais, seria também racional. Os estoicos advogavam haver

dois princípios fundamentais na natureza: um passivo; o outro, ativo. O principio

passivo seria matéria em si, o que eles estoicos chamavam de “matéria sem

qualidade”,23 enquanto o principio ativo, intrínseco à matéria, seria a razão (lógos). A

matéria teria em si este princípio inteligente (lógos) que por sua vez seria o próprio

deus24. Assim, concluímos que o lógos é visto como algo divino, é o próprio deus. Mas,

por sua vez é também a própria natureza (physis) que é imanente a ela mesma. Deus

seria a “Razão Universal”, seria também o próprio kosmos que é lógos. “Zenão diz que

a substância de deus é o cosmos inteiro e o céu” 25 Verificamos que os conceitos de

deus e kosmos se confundem na teologia estoica:

“O termo „cosmos‟ tem uma significação tríplice: primeiro, o

próprio Deus, cuja qualidade é idêntica àquela de toda

substância do cosmos; ele é por isso incorruptível e incriado,

autor da ordem universal, que em períodos de tempo pré-

determinados absorve em si toda a substância do cosmos e por

seu turno a gera de si” (DL, VII, 137)

Observamos também na epígrafe supra que o kosmos, que é o próprio deus, se

autodestrói para renascer num ciclo eterno. A este fenômeno os estoicos chamavam de

ekpyrósis, ou seja, a tese estoica de que há uma destruição cíclica do kosmos que

voltaria a ser recriado por ele mesmo. Seria um movimento eterno de construção,

destruição e reconstrução do universo pelo “fogo-artífice”, que os estoicos também o

identificavam com o lógos e com a phýsis: “A natureza é um fogo-artífice percorrendo

seu caminho para criar!”26 Daí um dos nomes de deus ser Hefestos 27. Todos os fatos

se repetiriam, eterna e ciclicamente, exatamente como se deram. O trilhar de uma

formiga, os atos humanos, os eventos meteorológicos, exatamente tudo se daria

conforme se dera antes e se dará sempre. E tudo governado pela razão.

Outras passagens na obra de Diógenes nos chamam a atenção naquilo que se

referem a deus, entretanto, a nosso ver, uma em específico se sobressai na medida em

que descreve deus em muitos aspectos:

23

Composta de quatro elementos: fogo, água, ar e terra. DL, VII 137 24

DL, VII, 134 25

DL, VII, 148 26

DL, VII, 156 27

Deus mitológico do Fogo. DL, VII, 147

21

“Deus é imortal, racional, perfeito, feliz, insusceptível de

qualquer mal, solícito em sua providência, em relação ao

cosmos e tudo que está no mesmo, mas não tem forma humana

é o demiurgo do universo e como se fosse o pai de todas as

coisas, é aquilo que penetra em toda a parte, total ou

parcialmente , e recebe muitos nomes de acordo com as várias

modalidades de potência.” (DL, VII, 147)

Essas várias modalidades de potência de deus seriam as várias composições em

que a matéria se demonstra, tendo em vista que ele é a causa e o princípio racional de si

mesma. O próprio kosmos é um ser vivo e animado, ou seja, possuidor de alma.

Argumentavam ser o universo possuidor de alma diante do fato de que, se somos

possuidores de alma e somos parte deste universo, esta nossa alma, por sua vez, só

poderia ser uma parte da alma do kosmos. A natureza, physis, que também é deus, é

aquilo que mantém a coesão dos kosmos, ou seja, é o próprio todo, mas seria também:

“a capacidade movida por si mes ma que, de conformidade com

os princípios seminais, produz e conserva tudo que germina por

si em períodos definidos, fazendo as coisas como elas são e

obtendo resultados condizentes com suas fontes” (DL, VII, 148)

É possível assim verificar que os estoicos entendiam e atribuíam a deus

conceitos bastante diversificados, mas que poderiam ser resumidos da seguinte maneira:

deus seria material, a própria natureza, é o princípio racional da matéria, permeia o

universo (da mesma forma que a alma faz com o corpo)28 e é o próprio universo. Deus

está em tudo e é responsável pela criação (é o fogo-artesão). Deus também é imortal e

não antropormorfizado. È um Deus “logos-kosmos-physis”.

Todavia, não falamos ainda do destino, cujo conceito está amalgamado ao

divino. Deus seria também o próprio destino: “Deus é ainda uma substância única, quer

se chame mente, ou destino, ou Zeus, mas é ainda designado por muitos outros

nomes.”29 Deus e destino (heimarméne), na visão estoica, se confundem. Mas, devemos

lembrar que deus é a própria razão, assim, numa peculiaridade filosófica estoica,

averiguamos que os conceitos são interdependentes, pois, se deus é a razão, concluímos

que destino e razão também se imbricam conceitualmente. Se a razão é regente deste

universo, é fácil perceber que, para os estoicos, a sequência dos acontecimentos também

se dá de forma racional, ou seja, inteligente. Conforme o aforismo vulgar: “Se assim é, é

28

DL, VII, 138 29

DL, VII, 135. Grifo nosso.

22

porque assim deve ser!” Consequentemente, ao homem, ser dotado de razão, compete

resignar-se e compreender que fazemos parte de um todo maior que é o kosmos, que por

sua vez é regido por ditames racionais. Tudo se dá numa harmonia perfeita.

“Que todas as coisas acontecem de acordo com o destino. O

destino é um encadeamento de causas daquilo que existe, ou a

razão daquilo que dirige e governa o cosmos. Mas ainda: os

estoicos dizem que a adiv inhação em todas as suas formas é

um fato real e substancial, se há realmente uma providência, e

provam que ela é de fato uma ciência d iante da evidência de

certos resultados. “(DL, VII, 149)

. Ora, se tudo está pré-determinado, não é difícil conceber a possibilidade de os

estoicos admitirem a prática de se prever o futuro, afinal, trata-se de uma doutrina

extremamente fatalista, onde os fatos se darão de forma ordenada e racional. Assim:

“Baseada especialmente nesta visão determinista da realidade, os estoicos defendiam

tanto práticas divinatórias em geral como a própria astrologia.” 30

É verdade que temos aí um paradoxo liberdade/destino, posto que, se tudo está

pré-determinado, onde estaria a liberdade das ações humanas? Os estoicos afirmam que

esta liberdade residiria justamente no ato de compreender e resignar-se que o universo é

inteligente, ou seja, aquilo que num primeiro e furtivo olhar pode parecer um mal, é, na

verdade, necessário existir para que todo o universo permaneça coeso, perfeito,

ordenado, enfim, um universo “benfazejo”. A questão da heimarméne perpassou toda

escola estoica em todas as suas épocas, inclusive na Imperial, onde todos os seus

grandes expoentes filosóficos lhe deram robusta atenção:

“Deve ter a consciência de que tudo que acontece não pode

deixar de acontecer, em vez de se atrever a censurar a

natureza. A melhor at itude a tomar é de não censurar o que

não podemos alterar. E conformamo-nos sem res mungar com

os desígnios da divindade que rege o curso do universo. Mau

soldado é aquele que segue seu general sempre a se queixar.

Por conseguinte aceitemos pressurosos e animados as suas

ordens, não queiramos fugir do curso desta máquina

deslumbrante na qual estão entretecidos todos os nossos

sofrimentos.” (SÊNECA. Cartas: 107, 9 e 10) 31

30

PINHEIRO: 2015 31

Trata-se da obra composta pelo nosso filósofo objeto de estudos: Cartas a Lucílio, no original em

latim: Lucius Annaei Senecae ad Lucilium Epistulae Morales. O algarismo primeiro faz referência ao número da carta, enquanto o segundo refere-se ao parágrafo da mesma de onde fora retirada a citação. Doravante serão apenas denominadas como Cartas. Esclarecemos ainda que quando se tratar de

citações referentes ao nosso filósofo objeto de estudo, Sêneca, estas apenas trarão o nome de sua respectiva obra, devidamente registradas em nossa bibliografia.

23

Fácil é perceber então que as demandas do destino são implacáveis. Deus, como

já vimos, numa perspectiva estoica é este destino, no auge de sua sabedoria,

configurando-se na natureza, no universo e na razão. É autor de toda uma engrenagem

perfeita, reguladora daquilo que nos envolve e dos fatos por nós vividos. Compete aos

homens, desejando ter uma vida perfeita e feliz, agir como o homem sábio que sabe que

para o funcionamento perfeito do universo, seus percalços e sofrimentos são

racionalmente compostos para a felicidade e perfeição do todo.

Finalizamos aqui nossos escritos sobre a física estoica dizendo que ainda há

muitos outros temas que por ela são abordados. Eis alguns: fenômenos meteorológicos,

astronômicos, ópticos, da origem do kosmos, assim como de assuntos referentes ao

campo da medicina32.

Ao abordarmos os temas da física estoica, chegamos a conclusão de que para

termos uma vida feliz devemos seguir os ditames da natureza, ou, se preferirem,

devemos aceitar o que o destino nos reservou. Como vimos, não temos poder para

exercer nenhuma influência naquilo que já está prévia e eternamente determinado. É

justamente aí que entrará a ética estoica. Ela nos oferece diretrizes para o nosso agir

num mundo em que, sob um olhar menos apurado, pode nos parecer caótico, mas,

conforme vimos é extremamente ordenado e racional. Agindo conforme os preceitos

racionais da natureza, poderemos ter uma vida virtuosa. O homem deve procurar ser

virtuoso em suas ações diárias. Este é um preceito fundamental na ética estoica. Há todo

um conjunto de regras, uma espécie de código ético que se for seguido, auxiliará o

homem a encontrar a felicidade. Vejamos alguns preceitos éticos: deve-se honrar os pais

e irmãos, mas antes deles, os Deuses33.O cultivo da amizade é outro tema presente, pois

afirmam que não há possibilidade de existir sentimentos de amizade entre pessoas más,

pois somente aos homens de bem há este privilégio. 34 Dizem ainda os estoicos que o

homem é naturalmente um ser agregador, nascido para viver em comunidade.

Estimulam ainda a prática exercícios físicos. 35 Ou seja, há toda uma série de

pressupostos que devem ser atendidos para que o homem chegue a condição de

virtuoso. Mas o que seria virtude para os estoicos? Como eles a definiam e como chegar

a ela? Os estoicos defendiam que somente o homem sábio é capaz de ser virtuoso.

Entendemos então que o objetivo aqui é também alcançar a condição de sábio. Para se

32

DL, VII, 137 33

DL, VII, 120 34

DL, VII, 124 35

DL, VII, 123

24

chegar a virtude é necessário seguir uma das máximas es tóicas que diz: “é preciso viver

conforme a natureza”. E como se daria isso? Os estoicos advogavam que todo ser vivo

tem em si o instinto da autopreservação, que seria o instinto natural de sobrevivência,

ou seja, um desejo inato de manter a própria vida. “Os estoicos dizem que o primeiro

impulso do ser vivo é o da sobrevivência, que lhe foi dado desde o início pela

natureza”36 Os gregos davam a tal fato o nome de oikeiósis. Para que isto ocorra, todo

ser vivo tende a repelir tudo aquilo que lhe é nocivo e agregar para si aquilo que lhe é

útil ou benéfico. Assim, o gato naturalmente afasta-se da aranha quando percebe sua

proximidade, pois “sabe” que esta poderá lhe fazer mal ao lhe picar e injetar- lhe veneno.

Os filhotes dos animais, instintivamente, buscam o leite nas mamas de sua progenitora,

pois “sabem” que ali encontraram alimentos que lhes proporcionaram capacidades de se

manterem fortes e saudáveis. Ao “agirem” assim, tanto o gato quanto os filhotes estão

seguindo as leis da natureza, buscando para si aquilo que lhe é melhor e afastando-se

daquilo que pode lhe trazer algum mal.

Nós homens, todavia, temos um atributo superior aos outros seres vivos que nos

coloca num outro patamar: somos dotados de razão! Justamente por isso, podemos

“seguir a natureza” de forma muito mais promissora, vantajosa e perfeita do que todos

os demais. Ora, se somos parte desta natureza que, como já dissemos, é racional,

podemos também dizer que seguir a natureza, em nós homens, é seguir o que manda a

razão. Agir de forma racional, nada mais é do que agir conforme a natureza. Somos

necessariamente impelidos por esta natureza a seguirmos os mandamentos da razão.

Repetindo: se vivermos conforme a natureza, seremos virtuosos e consequentemente

felizes. Crisípo dizia: “A felicidade consiste na virtude.” 37 Ou seja, a virtude não nos

leva à felicidade, ela é a própria felicidade. Afirmava ainda que “nossas naturezas

individuais são partes da natureza universal” 38 Por sua vez, Zenão afirmava que: “o fim

supremo consiste em viver de acordo com a natureza, ou seja, viver segundo a virtude,

porque a virtude é o fim para o qual a natureza nos guia.” 39 Esta virtude se apresenta

em quatro formas principais: prudência (1), que seria o conhecimento do mal e do bem e

daquilo que não é mal, nem bem; coragem (2), que seria o conhecimento daquilo que se

deve escolher ou se deve evitar e do que nem se deve escolher ou evitar; justiça (3) e

moderação (4). Todas as demais formas de virtude seriam conseqüências destas

36

DL, VII, 85 37

DL, VII, 89 38

DL, VII, 87 39

DL, VII, 87

25

citadas.40 Ora, mas se há virtude, há de se ter também aquilo que lhe é seu contrário, e

este antônimo seria o vício, assim definido pelos estoicos: “a ignorância das coisas cujo

conhecimento constitui a virtude.” 41 Assim como na virtude, os vícios seriam de quatro

formas contrárias aos da virtude: imprudência, covardia, injustiça e imoderação. Todos

os demais vícios dali se derivam. O homem só tem uma vida infeliz por não ter ciência

daquilo que é o bem, já que “a virtude tem um bem que lhe é inerente”42

Surge aqui então questão dos “bens, males e indiferentes” proclamada pelos

estoicos. O que seriam? Ora, Bem é nada mais nada menos do que aquilo, que contribui

para vivermos de acordo com a natureza, aquilo que nos permite a realização da

oikeiósis. Mal, seria justamente o contrário, aquilo que não contribuiria para atingirmos

este fim a qual estamos destinados, ou seja, prejudica nossa realização da oikeiósis.

Indiferentes são aquilo que não nos prejudicam e sequer nos beneficiam: vida, saúde,

prazer, riqueza, assim como seus antônimos: morte, doença, sofrimento, pobreza.43 E

por que dizem isso? Como poderia o estado de riqueza ser indiferente? Ou a pobreza?

Alegam que coisas que tanto podem beneficiar, como a riqueza por exemplo, também

pode prejudicar. Dependerá do uso que faremos delas. Assim sendo, bem é aquilo que

traz exclusivamente felicidade. Mal, seria aquilo que nos afasta dela. A rigidez da

doutrina estoica referente a isto é tamanha que esta chega a dizer que o único e

verdadeiro bem é a virtude, ou seja, o verdadeiro bem é o bem moral, tudo o mais

seriam males. Tanto o vício como a virtude são absolutos. Não há estágios

intermediários entre eles. Assim, advogam que somente é possível ser virtuoso ou

insensato. Aquele que possui a virtude, a possui plenamente, pois suas formas são

intrínsecas umas às outras. 44

Assim entendemos que o homem virtuoso é aquele que chega ao ápice absoluto

da existência. Na virtude os estoicos sentiam-se protegidos de todos os males que lhe

pudessem afligir. É na virtude, e somente nela, que o homem estoico enxergava a

felicidade, a paz da alma. Seus louvores nas sentenças proferidas pelos seus mestres não

eram apenas uma figura de retórica, mas sim, uma devoção sincera àquilo que eles

entendiam como o maior dos bens.

40

DL, VII, 92 41

DL, VII, 93 42

DL, VII, 94 43

DL, VII, 102 44

DL, VII, 125

26

Toda a doutrina estoica está intimamente ligada a estes três dos seus principais

conceitos que falamos: virtude, destino e deus. Todo o estoicismo, desde o antigo até o

imperial há de trabalhar estes elementos.

Para finalizarmos, dizemos que antes de chegarmos ao estoicismo romano,

houve uma fase de transição que já demonstrava algumas características próprias. Fora

o estoicismo médio que contou com figuras do quilate de Panécio e Possidônio que

floresceram no segundo século a.C. Estes, enlevados pela cultura romana, propuseram

novas leituras sobre o estoicismo antigo. Não eram romanos, mas tinham contato com

aquela cultura que os influenciaram, abrindo e sedimentando caminho para o que mais

tarde irá contribuir com o surgimento do neo-estoicismo. Este terá seu vigor na “Cidade

Eterna”45

Através de Diógenes, sabemos que Panécio, ao contrário de Zenão, fora defensor

da linha didática que preconizava ser o estudo da física o marco inicial de entrada nos

conhecimentos filosóficos46. Admitia duas formas de virtude: a teórica e a prática.47.

Todavia, assim como seu discípulo Possidônio, entendia que a virtude não seria o

bastante para contemplar o homem com a felicidade, pois era necessário também para o

alcance da mesma, gozar de boa saúde, ser materialmente próspero e ainda ser forte48

Não defendia os procedimentos adivinhatórios, pois entendia que adivinhação não

existia.49 Apesar de nenhuma de suas obras terem chegado até nós, Diógenes nos cita

duas: Da Serenidade do Ânimo50 e Das Escolas Filosóficas51

Possidônio, discípulo de Panécio, assim como ele, não teve nenhuma de suas

obras conservadas. Nada nos chegou, a não ser fragmentos. Daí a dificuldade em

estudá- lo. Sabemos que fora, assim como Panécio, introdutor de novas doutrinas no

Pórtico, oferecendo-lhe um ar mais eclético. Levando-se em conta os relatos de Laércio,

verificamos que fora profícuo escritor, sendo autor de obras que transitaram em vários

temas da filosofia estoica. Eis a relação que nos oferece Diógenes ao longo de seu

trabalho: Lições de Possidônios, 52 Sobre o Critério, onde dizia que este era a própria

45

Nome pelo qual a Antiga Roma era conhecida. 46

DL, VII, 41 47

DL, VII, 92 48

DL, VII, 128 49

DL., VII, 149 50

DL, IX, 20 51

DL, II, 87 52

DL, VII, 41

27

razão 53 ; Do Estilo, 54 Da Ética, 55 Dos Deveres, 56 Da Física, e também um Dos

Deuses 57 . E ainda outras como: Do Cosmos 58 , Do Destino 59 e Meteorologia 60

Possidônio afirmava que a virtude existia e podia ser provada sua existência.

Sustentava tal afirmação dizendo ser possível observar o progresso que Sócrates

obtivera tentando alcançá- la. Afirmava ainda, distintamente de seus antecessores, que a

riqueza não era um indiferente e sim, um Bem. 61 e que o homem sábio deve fazer

orações aos deuses.62

Com estas breves linhas finalizamos aqui o breve panorama sobre o estoicismo

anterior a Sêneca. Passemos agora ao eixo central de nosso trabalho.

53

DL, VII, 54 54

DL, VII, 60 55

DL, VII, 91 56

DL, VII, 124 57

DL, VII, 139 58

DL, VII, 142 59

DL, VII, 149 60

DL, VII, 152 61

DL, VII, 103 62

DL, VII, 124.

28

II - O ESTOICISMO ROMANO

Ou Estoicismo Imperial

A última fase do Pórtico. Fase esta onde está situado nosso filósofo objeto de

estudo. Tal período se dá com mais tonicidade nos dois primeiros séculos da era cristã.

Embora não houvesse uma escola institucionalizada, como no período helenístico, há,

nesta fase, numerosos professores estoicos. É bem verdade que, por não haver um

instituto centralizador “contratando” professores para ministrarem aulas, o “ser

professor” estoico se dava numa outra ótica, ou seja, as pessoas estariam dispostas a

ouvir, ler e seguir aqueles que assim se apresentavam, e, logicamente, quanto mais

numeroso fosse este grupo, maior seria o prestígio do professor estoico. Extremamente

imbricado com a vida política romana, o estoicismo imperial encontra fértil terreno para

desenvolver suas raízes, onde as diversas fases do Imperium com suas características

próprias influenciaram o desenvolvimento desta fase. Vejamos: Na era julio-claudiana63

houve um contexto extremamente positivo para o desenvolvimento, não só do

estoicismo, como também de outras filosofias. Otávio Augusto César 64 , primeiro

imperador romano, patrocinava dois pensadores estoicos. As figuras de Atenodoro de

Tarso e Ário Dídimo 65 desempenhavam papel de conselheiros na corte do jovem

Augusto. Sêneca, primeiro grande expoente do estoicismo imperial, tutor e preceptor de

Lucius Aenobarbo, o famoso imperador Nero, onde mais tarde fora ser seu conselheiro,

e segundo muitos, figura primeira nas decisões do imperador, decisões estas que

conseqüentemente recairiam sobre todo o povo romano, fora filosofo de envergadura

maior.

Verificamos que o estoicismo é uma filosofia que defende uma profunda ligação

do homem com a natureza. Suas palavras quase que são uma ode em homenagem a esta

63

Época que se refere à dinastia da família Julio-claudiana no poder imperial de Roma. Inicia -se no

reinado de Augusto, 27 a.C , indo até o ultimo dia do reinado de Nero em 68 de nossa era. Tal dinastia legou cinco imperadores em Roma. Em ordem: Otávio Augusto, Tibério, Calígula, Claudio e Nero. 64

Conforme dito na nota acima, trata-se do primeiro imperador romano. Seu reinado deu-se de 27 a. C

até a sua morte em 14 d.C. 65

O primeiro fora aluno de Possidônio, já o segundo fora professor do jovem Augusto C esar.

29

relação que também era entendida como divina. Interpretavam o mundo e o homem

através de uma lógica e uma física que desencadearam numa ética que “codifica” as

ações do homem para trilhar o caminho cuja meta é o alcance de uma vida feliz. Assim,

os antigos estoicos utilizavam de forma promissora todas as três partes da filosofia. Já

nesta fase, chamada de imperial, verificamos uma importante mudança frente àquele

estoicismo de Zenão, posto que, aqui há uma dedicação quase que exclusiva à ética,

sendo praticamente deixada de lado a física e a lógica.

Em contraste com os poucos fragmentos que possuímos para os filósofos do

antigo e médio estoicismos, aqui temos escritos substanciais e completos de vários

filósofos romanos. Para nossa sorte e deleite, estes homens nos deixaram uma extensa e

profícua obra que nos permitem mapear com maior objetividade suas direções

filosóficas.

Sêneca, (c. 25-90 d.C), o escravo Epicteto (c. 55-155 d.C) e o imperador Marco

Aurélio (121-180 d.C), expostos propositadamente aqui em ordem cronológica, pois

certamente os escritos dos anteriores influenciaram os posteriores, são certamente os

maiores expoentes desta fase. (Marco Aurélio era admirador do escravo Epicteto, e se

não cita Sêneca em sua obra, obviamente dela teve conhecimento.)

Dois deles escreveram em grego, Epicteto e o imperador romano Marco

Aurélio , enquanto Sêneca (4 a. C - 65 d. C) escreveu em latim. Musônio Rufo (25 d.C –

95 d.C), apesar de não ter na história da filosofia o status extremamente elevado dos

anteriormente citados, tem também sua importância, pois nos legou suas Diatribes e

alguns fragmentos em grego que nos auxiliam a perscrutar o pensamento esta fase.

A efervescência política por qual passava o Imperium, além das próprias

características da cultura romana, que não via com maus olhos a incorporação de

costumes de outros povos, certamente contribuíram para a construção desta nova fase

do Pórtico, principalmente no que tange ao ecletismo, onde aqui ele ganha seu vigor

máximo. A doutrina estoica de que os homens são partícipes de uma fraternidade

universal também teve sua contribuição, afinal, “todos os caminhos levam à Roma” pois

esta era a “senhora do mundo” e assim permitiram ao estoicismo romano florescer

numa tentativa de justificar a imposição da Pax Romana a outros povos. Um aporte

maior para com a divindade também se dá com maior tonicidade. A teologia toma um

vigor antes não visto. Deus se torna mais “presente”. Máximas semelhantes às que estão

contidas nos Evangelhos não são poucas. Sêneca é promissor neste quesito. A questão

30

da liberdade e o contraponto com o determinismo também é extensa. Há aqui uma

preocupação “psicológica” maior com o indivíduo e com sua individualidade.

Não queremos com isso dizer que os estóicos romanos recuem do materialismo e

determinismo preconizados anteriormente. Mas nesta fase, a preocupação com a

liberdade se mostra muito mais fértil, afinal, era necessário se libertar antes de tudo das

amarras da escravidão de “espírito”. Tanto, Sêneca como os outros dois expoentes nos

dão exemplos pertinentes em relação às questões da liberdade. Todavia, os

“mandamentos do destino” têm nas suas obras presença constante. Assim, verifica-se

que estes mestres pretendem encontrar um ponto de equilíbrio nesta dicotomia

destino/liberdade. Para melhor expor estas características, entendemos que o maior

exemplo para atestar o que dissemos é mergulhar nas palavras que estes homens

proferiram. Comecemos com Musônio:

Este afirmava, seguindo as características do “Novo Pórtico”, que “a lógica

deveria ser reduzida ao mínimo indispensável.” 66 Devemos lembrar, sempre, que os

estoicos desta fase oferecem maior valor à ética, considerando a prática filosófica muito

mais eficaz que a teoria, afinal, a filosofia se fazia na ação. Nada valeria ser conhecedor

das máximas filosóficas sem que estas não coadunassem com o seu modo de vida. Ou

seja, é fundamental a prática filosófica e as linhas infra se utilizam de uma analogia com

a arte médica para demonstrar que apenas a teoria não traz estrutura sólida para nos

adequarmos ao mundo como um ser postulante a virtuoso.

“Havendo dois médicos, um competente para falar acerca das

artes médicas, mas que jamais exerceu o tratamento dos

enfermos, e outro incapaz de falar, mas que está habituado a

tratar dos enfermos segundo a teoria médica, qual dos dois

escolherias se estivesses doente?” (MUSÔNIO RUFO.

Diatribes: V, 5-10)

Verificamos ainda certa unicidade nas vozes dos filósofos deste período.

Musônio, posterior cronologicamente a Sêneca, coincide seu pensamento com este em

vários aspectos, onde podemos aqui citar, a título de exemplo, aquele que diz que a

verdadeira pátria do homem estoico é o mundo, em razão de que o homem estoico é

antes de tudo um cosmopolita. Vejamos o que diz Musônio quanto a esta questão

comparando suas palavras com a de seu famoso antecessor Sêneca:

66

REALE: 1994

31

“Não é o mundo pátria comum de todos os homens, como

pensava Sócrates? Por isso não corresponde à verdade pensar

que estás exilado da pátria se te afastas do lugar onde nasceste

e foste educado, mas que apenas estas privado de uma cidade,

tanto mais se te consideras verdadeiramente uma pessoa. Um

homem assim (...) se considera cidadão da cidade de Zeus,

constituída de homens e de deuses.” (MUSÔNIO RUFO.

Diatribes: IX) 67

E vejamos agora o que diz nosso filósofo cordovês. A um leitor mais desavisado

pode transparecer que o texto abaixo fora escrito pelo mesmo homem que escrevera as

linhas acima em destaque, mas não, trata-se do eminente Sêneca. Veja como são

semelhantes seus dizeres sobre a posição do homem como cidadão universal:

“Por isso, numa atitude magnânima, não nos confinamos numa

cidade única, mas estendemos nossas relações ao mundo e

professamos que a pátria para nós é o universo, a fim de poder

dar à v irtude um campo mais vasto. Vedaram teu acesso ao

tribunal e proib iram-te a tribuna e as assembléias: olha atrás de

ti que tamanhas vastidões te estão abertas, quantas nações.

Nunca te será interditada uma parte tão grande que não reste

outra maior.” (Da Tranqüilidade da Alma: 4.4)

Nota-se nas obras dos dois autores, Musônio e Sêneca, uma predominância

ímpar a entender o caráter universal que o homem ocupa neste mundo. A verdadeira

pátria do homem não se configura apenas no lócus de seu nascimento, em sua terra

natal, ou ainda, onde vive, trabalha e convive com os demais semelhantes, mas sim, nas

fronteiras da cidade/pátria do homem estoico. Estas são nada mais nada menos que as

fronteiras do kosmos. Haverá sempre uma terra onde o homem poderá repousar sua

cabeça sobre um leito. A importância oferecida pelos homens e o orgulho por pertencer

a esta ou aquela pátria perdem, em muito, o significado na doutrina estoica.

Evidentemente que Sêneca, como homem de Estado, não desprezava as obrigações

impostas pelos cargos aos quais destinou seus saberes e ocupações. Não apregoava ele a

falta de compromisso para com estes afazeres, que, em ultima instância, o sucesso dos

mesmos implicava no sucesso do bom funcionamento do Estado, e, por conseguinte,

numa teórica nação/pátria mais feliz. O que Sêneca condenava aqui era o apego e

orgulho devotado em demasia pelo homem à terra que em que nasceu ou viveu. Numa

visão estoica poderíamos dizer que o mundo é propriedade de todos os homens.

67

Apoud: REALE 1994

32

Após, eis que surge com brilho o filósofo escravo Epictêto. Este viveu a maior

parte de sua vida em Roma, como escravo a serviço de Epafrodito, o cruel secretário

de Nero que, segundo a tradição, uma vez lhe quebrou uma perna. Apesar de sua

condição, conseguiu assistir as preleções de seu professor Musônio Rufo.

Provavelmente por ter sido escravo, o tema da liberdade é extremamente

marcante em sua obra, mas não se trata aqui da liberdade do corpo, e sim a liberdade do

espírito. O escravo frígio68 afirmava que a verdadeira liberdade era a da alma. Nada

adiantava um corpo livre sendo a alma acorrentada. Deus, morte, liberdade e destino são

temas de presença marcante em suas duas obras, Manual e Diatribes..

Em Epicteto temos a prova maior que a filosofia pode estar ao alcance de todos,

visto que, ele, escravo, tem tanta importância e reconhecimento no campo da filosofia

quanto Marco Aurélio, imperador do maior império do mundo. Também fatalista, como

todos seus antecessores, afirmava que as coisas podiam ser divididas em duas grandes

classes: das coisas que estão sob nosso poder (1) e das coisas que não estão sob nosso

poder (2). Utilizemos as próprias palavras do filosofo para melhor desenvolver esta

questão:69

“Das coisas existentes, algumas são encargos nossos; outras

não. São encargos nossos o juízo, o impulso, o desejo, a

repulsa – em suma: tudo quanto seja ação nossa. Não são

encargos nossos, o corpo, as posses, a reputação, os cargos

públicos – em suma: tudo quanto não seja ação nossa.

(EPICTÊTO. Manual. I,1)

Epicteto nos ensina que não podemos cair na ilusão de almejarmos modificar

aquilo que não está ao alcance de nossa vontade, de nosso querer. Estaríamos

condenados a sermos eternamente frustrados e infelizes se assim agíssemos, posto que,

vociferar contra os ditames daquilo que não pode ser modificado seria o mesmo que,

como diria sabiamente o axioma popular hodierno: “dar murro em ponta de faca”. Ou

seja, só alimentaríamos um sofrimento desnecessário. Mas, ao invés, sendo nós capazes

de identificarmos esta dicotomia, isto é, identificarmos aquilo que não está sob nosso

poder e conduzirmos nossas ações na esfera daquilo em que está circunscrita as coisas

que estão sob nosso poder, a possibilidade de alcançarmos a felicidade, sinônimo de

68

Epicteto nasceu na Frígia 69

Aldo Ducci, tradutor da obra que usamos como referência traduz para encargos. No original grego, Epícteto util izava-se dos termos, respectivamente, tá ephpemin e ta ouk ephpemin

33

virtude na filosofia estoica, torna-se um caminho bem mais suave a ser percorrido.

Evitar a doença a pobreza, a morte, tudo isto em Epicteto estaria fora de nosso controle.

Por mais que cuidemos da saúde física de nossos corpos, que trabalhemos com afinco e

poupemos dinheiro, que evitemos situações perigosas que podem nos levar à morte,

nada nos impede de ficarmos doentes, pobres ou ainda, que venhamos a morrer em

qualquer momento. Assim, não devemos nos deixar levar por estas preocupações.

Como dissemos, a questão da liberdade do espírito é marcante. Vejamos o que

diz o filósofo:

“O senhor de cada um é quem possui o poder de conservar ou

afastar as coisas desejadas ou não desejadas de cada um. Então,

quem quer que deseje ser livre, nem queira, nem evite o que

dependa dos outros, senão, necessariamente será escravo”

(EPICTÊTO. Manual. XIV b)

Era, assim como Sócrates, defensor da filosofia da ação, não deixando nada

escrito, assim, temos conhecimento de seu pensar através dos escritos compilados por

seu discípulo Arriano. Atendendo às características desta fase, sua filosofia baseia-se

praticamente na parte da ética.

Continuando nossa seara na descrição da escola estoica no âmbito da Roma

Imperial não poderíamos deixar de citar algumas passagens da obra e da vida do

filosofo imperador Marco Aurélio. Este aos 11 anos de idade toma contato com a

filosofia estoica, obedecendo as suas premissas de uma vida austera, tornando-se em

161 de nossa era, imperador daquele que será considerado o maior império do mundo.

Torna-se então senhor do universo. Além de imperador, ressalte-se que esta personagem

fora homem de guerra, visto que, durante seu reinado, Roma declara guerra a inúmeras

cidades, estando sempre o filósofo em campo de batalha. Nos prelúdios destes

combates, escreve sua única obra, onde, por ironia do destino, torna-se famosa e chega

até nós. Digo ironia, em razão do fato de que Marco Aurélio nunca desejou que as

mesmas fossem publicadas. Seu nome em grego70 é Ta eis heauton significando “Para

mim mesmo”. Traduções recentes nos apresentam a mesma com o título de Meditações

ou Pensamentos, há também quem as chame de Solilóquios. Há nesta obra inúmeras

passagens que demonstram o perpétuo exercício (askésis) a que o homem deve devotar

para alcançar a virtude. Como todos os outros estoicos, é extremamente fatalista,

70

Marco Aurélio, apesar de imperador romano,cuja l íngua oficial à sua época era o latim, escreveu em

grego. “(...) escrevia seus pensamentos em língua grega, que lhe parecia a mais apta a exprimir inquietações intelectuais e morais profundas.” (Ver PESSANHA: 1985)

34

entretanto, o caráter religioso de sua obra é por demais presente. Entende também que a

morte é um indiferente, pois a vida no pensamento de Aurélio é posta como algo a que

não devemos nos agarrar, tendo em vista sua condição extremamente passageira. Assim

como em Sêneca, a qualidade da vida é mais importante que o tempo de vida.

“Em todos os teus atos, ditos e pensamentos, procede como se

houvesse de deixar a vida dentro em pouco. (...) Mesmo se

houveres de viver t rês mil anos ou dez mil vezes esse tempo,

lembre-se que ninguém perde a v ida senão aquela que está

vivendo, nem vive outra senão a que perde. Assim a mais longa

ou a mais curta vem a dar no mesmo. (MARCO AURÉLIO.

Meditações. II; 11 e 14)

A morte, assim como em Sêneca, faz parte da vida, e justamente por isto, com

ela não devemos nos preocupar. O importante é o agora, o tempo presente: “(...) um dos

atos da vida é também esse no qual morremos, basta portanto dispor bem o presente

também para este ato.”71 Manter a serenidade e prevenir-se diante das atribulações

cotidianas que iremos encontrar é mandamento na filosofia do imperador. Além disso, é

necessário compreender que aqueles que estão entremeados pelos vícios em sua alma,

assim o estão porque não têm o conhecimento necessário para se alcançar a virtude.

“Previne a ti mesmo ao amanhecer: „vou encontrar um

intrometido, um mal agradecido, um insolente, um astucioso,

um invejoso e um avaro.‟ Eles devem todos estes vícios à

ignorância do bem e do mal. (...) Não em razão do mes mo

sangue ou da mesma semente, mas por ter parte na inteligência

e numa parcela da div indade, nenhum dano posso receber deles

(...) Tampouco posso me exacerbar com um parente, nem

odiá-lo, pois nascemos para a ação conjunta, como os pés, as

mãos, como as pálpebras (...) Por isso, é contra a natureza agir

em sentido contrário. Agastar-se é agir em sentido contrário.

(MARCO AURÉLIO. Meditações II, 1)

A presença de deus encontra-se em diversas falas do filósofo onde ele não deixa

de se mostrar fatalista, panteísta (no sentido que entende ser deus a própria natureza),

resignado com as demandas do destino e que fazemos parte de uma fraternidade

universal e ainda: somos parte da inteligência suprema, ou seja, deus!

“Se te custas suportar alguma coisa, é porque esqueceres que

tudo ocorre de acordo com a natureza universal; que a falta não

é tua, ademais, tudo que ocorre sempre ocorreu assim, sempre

ocorrerá, e está ocorrendo agora em toda parte; que um

parentesco próximo liga o homem a todo gênero humano, não

pelo sangue ou pela semente, mas pela comunhão da

71

Meditações. VI, 2

35

inteligência. Esqueces também que a inteligência individual é

uma d ivindade e emanou de lá, que nada é particular a

ninguém, mas seu filho, seu corpo, seu alento mesmo

provieram de lá, que tudo é opinião e que cada um só vive o

presente e só perde este.” (Meditações, XII, 26)

“Deus” ou “deuses” são sempre citados na obra do filósofo imperador, onde não

há uma distinção clara entre estes dois termos, sendo utilizado com um só significado:

“As obras dos deuses são plenas de providência”72 e “Como tens procedido até aqui

com os deuses?” E ainda: “Tenhas um só deleite e contentamento de passar de um ato

social a outro ato social, o pensamento em Deus!”73

Assim, finalizamos nossa explanação sobre algumas questões do pensamento

estoico, tentando demonstrar, aos que dedicaram seu tempo a ler até aqui estas linhas,

por quais teorias filosóficas Sêneca trilhou e quais ele ajudou a construir para seus

sucessores. Importante dizer, antes de oferecermos termos a este capítulo que, logo após

Marco Aurélio, esta admirável escola filosófica entra em num processo de rápido

declínio. Há o que advogam que com o surgimento e crescimento do cristianismo, o

estoicismo teve ali seu momento derradeiro. “A outra grande força que contribuiu de

maneira determinante para a dissolução do estoicismo, foi a religião cristã.”74

Assim sendo, entendemos estar agora numa posição mais confortável para

discorremos sobre a filosofia de Sêneca. Passaremos então nas paginas que seguem, a

nos dedicar a dissertar sobre a mesma.

72

Meditações: II, 3 73

Meditações: VI, 7 74

REALE: 1994

36

III – A FILOSOFIA DE SÊNECA

III.1) A VIDA DE SÊNECA E A CONTEXTUALIZAÇÃO COM O SEU TEMPO

Oferecemos nas linhas anteriores um panorama geral sobre o que fora o

estoicismo, esta escola filosófica de importância fundamental na construção do

pensamento filosófico antigo. Com esta visão geral do que fora a escola, sentimo-nos

confortáveis para entrarmos no tema central e final de nosso trabalho. A filosofia de

Sêneca. Nossa proposta se desenvolverá da seguinte maneira: preliminarmente, faremos

um breve relato da vida de Sêneca. Antes de tudo queremos deixar claro que, por não se

tratar de um trabalho biográfico, muitas lacunas sobre a vida do filósofo estoico

certamente estarão presentes, mas nosso objetivo aqui não é tecer um relato

historiográfico minucioso de sua vida, mas sim, de conjeturarmos sobre alguns pontos

específicos de sua produção filosófica. Para atingirmos tal objetivo, após o breve relato

biográfico do filósofo exporemos neste capítulo algumas peculiaridades e características

de sua obra. Assim sendo, iniciaremos o que propusemos. Afinal, quem foi Sêneca?

Lucius Annaeus Seneca , (4 a.C – 65 d.C) fora nascido na cidade de Córdoba,

onde hoje é a Espanha. Também conhecido como Sêneca, “O Moço”, para distingui- lo

de seu pai, o orador Sêneca, “O Velho”. Fora Sêneca, orador, advogado, questor, pretor

e senador do império romano nos governos dos imperadores Tibério, Calígula, Cláudio

e Nero, sendo preceptor deste último e filósofo. Foi figura de grande influência no

governo do último. Além de ser um dos senadores mais admirados, influentes e

respeitados, torna-se figura extremamente querida nos meandros do poder, sendo

justamente por isso, alvo de benfeitores, mas, por outro lado, também adquiriu para si

muitos inimigos.

Apesar dos cargos e poder no Império que é senhor do mundo, não é através

disto que Sêneca passa à história, mas sim, por ser o maior representante do estoicismo

romano.

37

De sua vida, antes do ano 41 de nossa era, pouco sabemos, sendo nossa maior

fonte , os escritos do próprio. Sua carreira lembra a do orador Cícero - como ele também

fora senador - que nascera um século antes. Seu pai era da classe mandatária de sua

cidade natal e sua mãe de uma família de nobres de uma pequena cidade vizinha. Seu

pai abandonou a esposa em Córdoba e fora morar em Roma, dedicando-se a oratória

onde obteve relativo sucesso. Com isto as portas se abriram para uma carreira pública

nas entranhas do poder no império. Válido ressaltar que para que isto ocorresse era

condição sine qua non ser homem de muitas posses. “Para tal ascensão, excepcional na

época, era preciso não só ser muito rico, como transbordar de ambição.”75

Sêneca teve três irmãos, o mais velho chamado de Galião e citado nos Atos dos

Apóstolos76. Suicidou-se no reinado de Nero. O mais moço suicida-se também em 65,

fora eminente funcionário do Imperium, quando não senador. Lucano, eminente poeta,

seu sobrinho, mesmo fim, no mesmo ano. Nota-se que o destino a quem tanto Sêneca

devotava reverências não fora muito condescendente com sua estirpe quando o trato é

deixarmos esta vida.

Ainda moço é enviado para Roma pelo seu pai para estudar retórica. Fora então

aluno de um famoso orador, de nome Átalo, onde Sêneca não deixa de fazer reverências

ao próprio em suas obras.

“Ainda guardo na memória um preceito que ouvi de Átalo nos

tempos em que eu frequentava a sua escola (onde eu era o

primeiro a chegar e o últ imo a sair; até mes mo durante os

passeios do mestre eu o aliciava à discussão de um ou outro

problema. Dizia Átalo: o docente e o discente devem se unir

num propósito comum: o primeiro, ser útil ao discípulo, o

segundo, tirar proveito do convívio com o mestre.” (Cartas:

108; 3)

Veyne no ensina: “Em seus dias de velhice, Sêneca voltará a falar muito de

Átalo, citando respeitosamente fragmentos de seu ensino” 77

75

VEYNE: 2016 76

Eis a passagem: At 18:12-16 “Quando, porém, Gálio era procônsul da Acaia, os judeus se levantaram unânimes contra Paulo, e o conduziram ao tri bunal, protestando: ‘Este persuade os homens a adorar a Deus de uma forma contrária à lei!’ No momento em que Paulo daria início à sua defesa, Gálio os

admoestou: "Se, em realidade, houvesse, ó judeus, alguma afronta grave ou crime, certamente e com razão eu os ouviria. Entretanto, visto que se trata de uma questão de palavras e nomes de sua própria lei, ora resolvei isso vós mesmos; pois não quero me dispor a ser juiz desses assuntos!”E ordenou que

fossem expulsos do tribunal.” 77

VEYNE: 2016

38

Tinha por volta de vinte anos quando se dera sua conversão à filosofia.

Certamente o mestre supracitado em muito o influenciou para que tomasse este

caminho. Após esta idade, a vida de Sêneca nos é um mistério. Só teremos noticias do

eminente filósofo já quando este tem 35 anos. Ou seja, há um lapso de 15 anos dos

quais sobre a sua vida nada se sabe. Deduz-se que se dedicou aos livros de filosofia,

posto que, após seu regresso à história já aparece como importante escritor. Construiu

sua carreira política durante o reinado de uma série de imperadores tiranos, senadores

bajuladores e líderes imprevisíveis. Estava, literalmente, sob a incerteza do dia de

amanhã. E isto se reflete fielmente em sua filosofia. Estes imperadores eram em ordem

sucessiva: Tibério, Calígula, Claudio e Nero. Os dois primeiros morreram assassinados,

enquanto o último vendo a eminência de seu assassinato, suicida-se.78 Diante de um

cenário de instabilidade política gigantesco, restava àqueles que caminham nos

corredores do poder mostrar suas manifestações de solidariedade e lealdade. Sêneca foi

um destes homens.

“O cu lto da personalidade ou adulação era isto: ao mes mo

tempo uma simples cláusula de cerimonial monárquico e uma

obrigação incontornável, sob suspeição de alta traição. Até

mes mo os oponentes estoicos mais orgulhosos não podiam

tomar a palavra senão recorrendo a este linguajar. (VEYNE:

2016)

Já participando ativamente da vida política de Roma, em 41 fora exilado para a

Córsega, acusado de adultério. Messalina, primeira esposa do imperador Cláudio, conta

a história, fora a responsável pela acusação e condenação do filósofo a deixar sua pátria.

Após longos 8 anos, em 49, volta do exílio, onde obteve indulto através da influencia de

Agripina79, segunda esposa do imperador Claudio. Agripina lhe confia a educação do

seu filho, aquele que viria se tornar o imperador Nero. Este Sêneca que volta a Roma é

agora o mais famoso cidadão de sua época. Esta fama o lega o status de ainda

persistente nos dias de hoje de um dos maiores expoentes intelectuais do início da Era

78

Suetônio nos informa sobre a morte dos três. Em referência a Calígula, diz ele: “Puseram-lhe fim à

vida descerrando-lhe mais de trinta golpes. Alguns conjurados enterram-lhe a lamina até mesmo nos genitais.” Quanto à morte de Cláudio, as palavras são esta s: “Não há quem duvide do fato dele ter morrido envenenado. A dúvida recai porem no que se refere a pessoa ou ao lugar em que tenha sido -lhe ministrado a droga mortífera.” Já sobre o fim de Nero, eis o que diz o historiador: “Nero enterrou o

ferro na garganta com a ajuda de seu secretário Epafrodito”. (SUETÔNIO: Calígula, Claudio e Nero.) 79

Júlia Augusta Agripina foi uma das mais poderosas mulheres da Dinastia julio-claudiana. Ela era bisneta do imperador Augusto, sobrinha-neta e neta adotiva de Tibério, irmã de Calígula, sobrinha e quarta

esposa de Cláudio e mãe de Nero.

39

Cristã. Durante os próximos dez anos, durante o reinado de Cláudio e Nero publica

extensa obra. Aumenta a sua fortuna, casa-se em data desconhecida com aquela que ira

mais tarde testemunhar sua morte: Paulina. Na ocasião em que Nero ascende ao trono,

torna-se ainda mais rico. O imperador presenteia com afagos ao seu antigo professor.

“Nero, subindo ao trono irá presentear com bens imóveis e

outras dádivas reais seu antigo preceptor, terá uma das maiores

fortunas de seu século: 75 milhões de denários, (os trinta

denários de Judas representava um bom salário mensal). Este

capital equivalia a um décimo ou mesmo a um quinto de dos

rendimentos anuais do estado romano.” (VEYNE:2016)

Recorreu a sua própria filosofia para demonstrar ser possível ao mesmo tempo

possuir riquezas e ser filósofo, sendo provavelmente o mais famoso de sua época.

Deixou-nos uma obra vasta, com mais de 20 livros sobre os mais variados assuntos

perpassando por diversos aspectos da vida. Sua riqueza e poder político não foram

capazes de lhe oferecer uma vida sem atribulações e livre de frustrações. Seus escritos,

apesar do vigor com que ali defendeu suas teorias, nos mostras um homem que traz

consigo uma certa melancolia. Passa a ser conselheiro do imperador até quando no ano

de 62 tenta retirar-se da vida pública para se dedicar ao ócio, morre suicidando-se a

mando de Nero

“Sêneca retira-se da vida pública quando já desgastadas sua

relações com Nero o qual, tendo descoberto as conjurações

urdidas contra ele por Calpúrnio Pisão, acusa Sêneca de

secretas relações com Pisão e o condena ao suicídio”.

(REALE:1994)

É importante ressaltar que Sêneca vivera numa época extremamente conturbada,

onde assassinatos, traições, dissídios, e hipocrisia eram a regra no mundo político. Tudo

isso, certamente influencia ardorosamente sua filosofia.

Após o relato de sua vida, podemos agora dar início à análise da sua produção

filosófica. Quais as características de sua obra? Qual seria a função do texto senequiano

e quais suas relações com a vida prática? Pergunta que tentaremos responder no

transcorrer deste trabalho.

Podemos dizer que Sêneca discorre sobre uma variada gama de problemas no

bojo de sua extensa produção filosófica. Produção esta em sua quase totalidade de

caráter ético, característica inclusive de todos os outros expoentes desta fase, buscando

na realidade dos fatos concretos, na essência da natureza humana, nos exemplos

históricos sobre diversos aspectos da cultura romana uma valorosa fonte de consulta e

40

inspiração para o leitor atento aos questionamentos dos valores da sociedade na qual

está inserido. Proliferam exemplos de fatos e atos humanos em sua obra. Morte de

amigos, intempéries da natureza certificadas por historiadores da época, acontecimentos

comprovados pela narrativa de outros autores dão à obra de Sêneca um “quê” de

realidade que ultrapassa as meras especulações filosóficas. Sua obra nos leva a viajar ao

seu tempo. A leitura de seus escritos é, até os dias de hoje, de uma estrondosa utilidade

prática que nos auxilia nos encalços de pretender determinar os valores da existência

humana. Estoico por excelência, não deixa de utilizar-se de máximas de outros filósofos

não estoicos para persuadir e angariar para si discípulos em quem depositava confiança.

Lucílio, o das Cartas, é um deles.

“As Cartas a Lucílio não foram as únicas que Sêneca escreveu,

diversas fontes, entre elas o próprio Sêneca, nos dão conta de

muitas outras cartas dirigidas a outros destinatários. Todas elas

se perderam. Em contrapartida conserva-se uma co leção de

cartas pretensamente trocadas entre Sêneca e São Paulo,

decerto devido ao fato de Sêneca ser citado com apreço por

diversos padres da Igreja, que no filosofo viam um justificado

precursor das doutrinas cristãs” (SEGURADO E CAMPOS:

2004).

Abrimos aqui parênteses: Sêneca, distintamente de muitos outros autores, não se

reservou a único estilo literário. Sua obra perpassa por diálogos, tragédias e cartas. Para

nosso infortúnio, em se tratando de cartas, apenas aquelas destinadas a Lucílio

chegaram até nós, no entanto, muitas outras foram escritas e temos o privilégio de

termos acesso as suas tragédias e diálogos. Sua obra é esplendorosa, sendo este homem,

devido ao conteúdo moral inserido em seus escritos comparado por alguns a um

verdadeiro cristão80. Ironicamente, Sêneca teve papel político de extrema relevância

num Estado que em sua época perseguia os cristãos.

Mas, voltando às peculiaridades de sua obra: esta sempre nos mostrou um autor

ligado às questões práticas, onde as teorias ali desenvolvidas estão intimamente ligadas

à realidade. As meras exposições de teoria por si só, em Sêneca, não encontram refúgio,

posto que, o cordovês alia sua filosofia e seus princípios teóricos da escola estoica aos

condicionamentos da vida política e social. Nunca deixando de lado, é de bom alvitre

aqui ressaltar, que a busca pela ataraxia, a aproximação tanto quanto possível do ideal

do sábio, está indissociável desta aplicabilidade à vida prática. A teoria é em Sêneca

totalmente imbricada com a realidade, sendo muitas vezes exposta somente quando

80

Sêneca é citado na obra de São Jerônimo chamada Das Vidas Ilustres e também em Tertuliano.

41

possível a sua aplicação no moldar de forma marcante a vida humana. Exemplificamos

o que dizemos nos apropriando da carta 91 dirigida a Lucílio. Nela Sêneca relata a

ocorrência de um incêndio numa próspera cidade à época. Tal tragédia atinge duramente

um amigo comum aos dois. Partindo da exposição de um acontecimento de natureza

concreta, Sêneca utiliza-se do mesmo para desenvolver sua exposição teórica ao afirmar

que as catástrofes se inserem na ordem natural das coisas, cabendo ao homem

conformar-se com as leis da natureza, confirmando e utilizando dos pressupostos

estoicos de que as calamidades naturais não são em si mesmas males ou bens, em razão

de que os únicos males e bens são os morais, tudo o mais é indiferente.

“O nosso amigo Liberal está entristecido com a notícia do

incêndio que devastou a colônia de Lião. E de facto, uma

calamidade desta atingiria qualquer pessoa (...) Todos estes

fatores perturbam o espírito de nosso Liberal, ele que, em

relação a sua situação pessoal, mostra sempre a máxima

firmeza de ânimo (...) convenhamos, há motivos para ele se

deixar perturbar: desgraça inesperada é mais difícil de suportar!

Por isto, nóss estoicos nunca devemos nos deixar apanhar de

improviso. (...) O nosso espírito deve prever todas as

circunstâncias, deve pensar em tudo o que pode virt asuceder.

Se a fortuna assim o quiser, a que não pode ela a reduzir um

homem, por muito próspero que seja?” (Cartas: 91, 1 a 4)

A utilização de personagens históricas é respaldo para exemplificar atitudes que

devemos ter (ou não) no trilhar da vida. Sócrates, Platão, Cícero, Catão, Alexandre, o

Grande; Julio César e Otávio Augusto são figuras referidas inúmeras vezes nas obras do

filósofo. Isto só pra ficar entre as mais proeminentes historicamente. Ainda há a

utilização de personagens mitológicos tais quais: Dédalo ou Ulisses. Utilizando-se de

fatos ou anedotas atribuídas a estas personagens, Sêneca tenta convencer-nos que tais

atitudes são dignas de exemplos a imitar, ou, muitas das vezes a condenar. Não há então

uma manifestação inútil de erudição em suas linhas, posto que, ao demonstrar

conhecimento histórico dos fatos apresentados, Sêneca tem como intuito pronunciar seu

juízo de valor sobre as personagens aludidas para assim nos fazer refletir sobre as

atitudes a serem executadas por nós. A utilização de sentenças e máximas, muitas das

vezes alheias à sua autoria, tem como intuito a fácil memorização das mesmas pelos

seus leitores.

42

“São leg ião as máximas que seriam possíveis retirar da obra do

filósofo (...); a Idade Média, época durante a qual Sêneca

figurou entre os autores mais lidos e apreciados, fê-lo sem

rebuços, e chegaram até nós amplos repositórios de tais

máximas, pacientemente recolh idas pelos monges medievais.”

(SEGURADO E CAMPOS: 2004).

É necessário aqui afirmarmos que tais sentenças, curtas em sua maioria, tem

como propósito maior sua utilidade prática de técnica mnemônica, em razão de que,

estas se memorizam muito mais facilmente; o contrário, sentenças difusas e longas,

trazem dificuldades em ficar guardadas em nossa lembrança. Não fugindo aos ditames

da escola estoica, Sêneca fora filósofo que não oferecera muita importância à retórica.

Sim, já dissemos aqui que o estoicismo de Zenão deu lugar à retórica em seu arcabouço

filosófico, no entanto, trata-se de um lugar de subordinação, utilizado mais como uma

expressão organizativa de sua lógica. No ato de expor sua filosofia e na tentativa de

transmitir a verdade, preocupação maior do estoicismo, a retórica teria como objetivo

transmitir “a verdade” do interlocutor, o autor do discurso. Seria o convencer da platéia

que a sua verdade é forçosamente a correta. Ora, o estoicismo antigo rejeitava todo tipo

de eloqüência desnecessária, despreza os artificialismos. Daí a retórica ter uma menor

importância na obra senequiana. Nem por causa disso, devemos deixar de mencionar

que à época de Sêneca, Roma já desfrutava da eminência de um dos maiores retóricos

da história: Cícero. Assim sendo, pelos motivos expostos, podemos explanar que

Sêneca expunha de forma muito tênue as questões de ordem retórica.

Sêneca verificou que sua vida, cheia de labutas, percalços, atribulações era

fecunda fonte de construção do seu pensar filosófico. Não se tratavam de meras

especulações, afinal, vivera o eminente filósofo em tempo e lugar que por si só já

seriam artífices de infortúnios. Excetuando, talvez, os últimos dias de sua existência,

onde se manteve fora dos meandros do poder, sua vida fora cunhada pela dor do exílio,

além do que, quase fora condenado à morte por acusação de crime político pelo

imperador Calígula81. Em sua volta à terra que escolhera para viver, experimentou as

glórias, as benesses do poder e a inveja que este inspira àqueles que o desejam. Ou seja,

de monótona e ociosa a vida de Sêneca nada teve. O que queremos mostrar ao

levantarmos aqui estes fatos é que a filosofia senequiana não se respalda em vãs

81

Caio Cesar Calígula. Terceiro imperador romano. “Dos vinte e nove anos de vida (de 31 de agosto de

12 até 24 de janeiro de 41), reinou três anos, dez meses e oito dias”. (de 17 de março de 37 até 24 de janeiro de 41). Ver SUETÔNIO: Calígula.

43

divagações teóricas, frutos de uma meditação sobre abstrações ou possibilidades.

Sêneca viveu explicitamente nos meandros onde a corrupção, a inveja, os jogos de

interesses e traições eram quase que a regra. Em uma constante luta contra as

adversidades da vida que lhe foram impostas, teve Sêneca ali a possibilidade de

construir sua filosofia, isto é, uma filosofia que lhe ofereceria subsídios para combater

suas próprias fraquezas e não sucumbir às mesmas. Mais que isso, não apenas sua vida

se mostrava como exemplo de luta contra as adversidades. Sêneca entendia que a vida

de todos os homens se configurava numa constante luta contra suas próprias fraquezas.

Entretanto, a maioria dos homens, no olhar acurado do filósofo, se deixava abater antes

mesmo do inicio do combate.

As idéias e falsos valores impostos pela sociedade logravam êxito sem

resistência dos homens que se deixam levar pelo apego aos bens materiais e prazeres

oriundos daquilo que o poder político pode lhes proporcionar. É importante

contextualizar a época e o lugar onde o pensador registrou suas obras. No caso das

Cartas, talvez a mais importante entre as muitas obras do filósofo, já se encontrava

Sêneca em posição de pouca influência sobre as diretrizes do governo de Nero. Já não

tinha o filosofo pretensão e ilusão de poder colaborar positivamente na orientação

política do Imperium. Sua preocupação maior era se fortalecer moral e filosoficamente

seu amigo Lucílio, assim como, instruí- lo. Sêneca percebe que sua vida está no fim, e

verá também que é necessário fazer um balanço desta, assim, ao dedicar-se a isto,

codifica os objetivos que o verdadeiro filósofo deve atingir.

A filosofia para Sêneca é algo que deve não só ser pensado, mas,

principalmente, vivido. Ou seja, a filosofia da ação. A busca pela sabedoria não se faria

exitosa se esta apenas se concretizasse teoricamente. Debater um problema específico só

preenche satisfatoriamente a filosofia senequiana na medida em que a tentativa da

resolução deste ancora-se na formação moral do indivíduo. Sêneca seria um filosofo da

condição humana por tentar conduzir o homem a uma diretriz que lhe permita trazer

para si utilidade existencial. Por exemplo, a morte, tema tão persistente em seus

escritos, é uma condição inexorável na vida de qualquer pessoa, seja o pensar na própria

morte, assim como a dor suscitada no ser humano pela perda de um ente querido. Como

reagir a tal situação? As obrigações que são impostas pela sociedade. Como encará- las?

As distribuições desiguais das riquezas. Por que tratar igualmente pessoas de diferentes

extratos sociais? Os bens matérias tão almejados por tantos. Que valor atribuir a eles?

44

São estas perguntas que perpassam toda a filosofia senequiana. São estas problemáticas

mais imediatas da vida que conduzem o filósofo na busca por respostas satisfatórias.

III. 2 A FILOSOFIA MULTITEMÁTICA DE SÊNECA

Verificamos que na filosofia de Sêneca há abordagens dos mais variados temas.

Entendemos ser de suma importância trazer à tona alguns deles e tecermos alguns

comentários. Natureza da alma humana, desapego aos bens materiais, a filosofia

enquanto ação, amizade, a filosofia como pedagogia, as dicotomias liberdade/destino e

bem/mal, política, a questão do sábio, a independência e o “ecletismo” filosófico, a

filosofia como “medicina curativa”, são alguns dos muitos temas que se fundem

naturalmente uns aos outros quando nos propomos a efetivar análise da filosofia

senequiana.

Interessante notarmos também que muitos deles estão engajados na razão.

Aquela razão humana que falamos há pouco e que é parte da razão maior, a razão

universal. Tentaremos expor nas linhas a seguir alguns deles, lembrando sempre que

não pretendemos fazer isto de forma estanque ou em segmentos determinados em

capítulos ou sessões, até mesmo porque, entendemos que se assim fizéssemos,

perderíamos a fluidez do texto com rupturas repentinas, não coadunando assim com a

proposta tácita de nosso filósofo que não raramente, numa breve sentença, expõe ao

leitor uma multiplicidade de propostas e análises sobre o homem e a vida que nos

obrigam ter uma série de reflexões.

Comecemos por aquilo que Sêneca entendeu ser peculiar somente ao homem. O

fato da alma humana ter duas naturezas, distintas, porém, complementares. Vejamos:

Frequentemente encontramos na obra senequiana e principalmente nas Cartas um lema

repetido à exaustão, síntese da filosofia estoica: “É preciso seguir a natureza”. Este

“seguir a natureza” deve ser entendido de duas formas. A primeira seria aquela que diz

que estamos predispostos a seguir aos nossos próprios instintos animais, tais quais:

comer, beber, dormir, se autoconservar, isto é, satisfazer às nossas “necessidades

naturais”.

45

“Ora, sabes quais limites a lei da natureza nos impõe? Não

passar fome, nem sede, nem frio. Para que afastes a fome e a

sede, não é necessário acomodar-se à soleira dos soberbos, nem

agüentar seu cenho franzido e mesmo sua ultrajante cortesia;

não é necessário arriscar-se nos mares, nem seguir tropas. O

que a natureza requer está disposto ao seu alcance.” (Cartas: 4,

10)

A segunda materializa-se naquilo que consiste em oferecer um olhar superior a

tais instintos. Isto é, seguindo aos nossos instintos, verificamos que há um traço neles

que nos distingue de todos os outros seres, o bem maior e específico de todos os

homens: a razão. Melhor dizendo: seguir a natureza tem um significado todo peculiar

quando aplicado à natureza humana, posto que, diferentemente da natureza animal, ao

homem, seguir a natureza é, nada mais nada menos do que seguir às evocações da razão.

Ora, mas este mesmo homem é, sem sombra de dúvidas, também um animal, e

ao exortarmos a seguir a natureza não estaríamos o incitando a seguir seus instintos

animais? Não haveria aqui uma contradição? Esta problemática é resolvida por Sêneca

quando ele nos afirma que há na alma humana duas características, hierárquicas, uma de

nível inferior, onde ali estariam alojadas as paixões; e outra de nível superior, lócus

adequado da razão. O exercício aqui é fazer com que a natureza da alma humana de

nível superior prevaleça, com o uso da razão, sobre a de nível inferior. Em síntese,

podemos dizer que natural ao homem deixar-se fluir em direção ao que diz a razão. Até

mesmo porque, como estoico, Sêneca entendia que a razão humana era parte de uma

razão maior, a razão universal, o logos que tudo governa e controla.

Abrimos agora este parágrafo para falarmos sobre outro tema muito abordado

pela filosofia senequiana: o trato humano com os bens materiais e com o poder

temporal. Afirmamos que em referência a esta questão, é regra maior em Sêneca: que

para com estes não devemos oferecer apego. O homem não encontrará a felicidade na

posse dos bens materiais. É importante esclarecer que Sêneca não é defensor da pobreza

como fonte primeira para o alcance da felicidade ou fato gerador para o crescimento da

alma. A crítica que o filósofo faz aqui é em relação à importância que os homens dão ao

acúmulo de bens na ilusão de que isto lhe proporcionará o desfrute de uma vida feliz.

46

"Não é diferente no caso do pobre e do rico, e seu

sofrimento é o mesmo: o dinheiro se apega tão

intimamente à alma, que não se pode arrancá-lo sem

dor. É alias, eu o repito, mais suportável e mais simples

nada adquirir do que perder alguma coisa: daí vem que

se vê um ar mais alegre nas pessoas que a fortuna nunca

visitou do que naquelas que ela traiu. Para o dinheiro, a

verdadeira medida consiste em não cair na pobreza,

mais aproximar-se dela o mais possível.

(Da Tranquilidade da Alma: VIII, 3 e 9)

E é a este trato, ou seja, aos valores oferecidos pelos homens às aquisições

materiais e ao poder político onde Sêneca exige que a austeridade com si próprio se dê

numa forma plena. Apesar da riqueza material que o cordovês fora possuidor, e a

riqueza é sem sombra de dúvidas um privilégio oferecido pelo destino, Sêneca era tenaz

defensor da tese de que a felicidade a ser alcançada pelo homem não perpassa pela

aquisição e acúmulo de bens materiais, assim como, não há necessidade da obtenção de

poder político ou posição social elevada para o alcance da tranquilidade da alma. Muito

pelo contrário, cotidianamente tais aquisições são sementes cujos frutos se materializam

na infelicidade. A verdadeira felicidade, aquela que é o supremo bem, esta reside no

bem moral. É necessário ser austero e severo para conseguir a obtenção do bem moral.

Sua materialização é caminho árduo e difícil e, lamentavelmente, pouco atraente para a

maioria dos homens. Sêneca parece ter conseguido manter esta austeridade, ao menos

seus escritos e fontes que o citam o colocam como um homem portador desta qualidade.

A cobrança que Sêneca impõe a si mesmo demonstra o que dizemos, afinal, sua

filosofia repudiava de forma veemente a ação humana voltada para si mesma. Há todo

um fundamento ético na ação humana senequiana. Assim, fazer um bem ao próximo,

orientar os amigos, meditar e praticar exercícios com o fim de alcançar a tranqüilidade

da alma e não se entregar aos prazeres do corpo requerem toda uma austeridade que só

faria sentido se esta tivesse como fim o bem moral. Ser austero somente por ser austero

não teria o menor sentido na visão de Sêneca. Sua filosofia tem antes de tudo um caráter

eminentemente pedagógico.

No entanto, tal pedagogia se desenvolve também no fato de que esta filosofia

deve ser vivida austeramente e para isso é necessário ao homem ceifar aquilo que não é

provido de conteúdo moral. Não se deixando apenas levar por saberes teóricos, mas ao

contrário, praticando uma filosofia que manifesta através da vida.

47

“A filosofia não consiste em palavras, mas em ações. O seu fim

não consiste em fazer-nos passar o tempo apenas com algumas

distrações, nem libertar o ócio do tédio. O objetivo da filosofia

consiste em dar forma e estrutura à nossa alma, em ensinar-nos

um rumo na vida, em orientar os nossos atos, em apontar-nos o

que devemos fazer ou deixar de lado. (Cartas: 16; 3)

Os altos e baixos de sua vida o fizeram refletir sobre os reais problemas que

realmente são dignos de nossa atenção. Seus escritos, fácil é perceber, além do caráter

pedagógico que estes o adquirem ao transmitir aos seus leitores suas idéias e tentar

convencê- los de sua doutrina, tem também como objetivo educar a si mesmo. Este

“educar-se por si mesmo” se dá através da fixação das suas próprias sentenças que em

sua maioria são curtas, justamente para melhor memorização por parte de seus leitores.

Ao meditar sobre as intercorrências de sua existência, Sêneca almeja assegurar

para si uma estabilidade existencial, assegurando assim uma fidelidade aos princípios

que ele mesmo prega. Poderíamos dizer que Sêneca não faz de sua filosofia uma mera

especulação. É muito mais que isso, é, ousamos dizer, terapia que o eminente escritor

faz com seus leitores e com si mesmo. Poderíamos afirmar que Sêneca faz de sua

filosofia uma terapia e também uma pedagogia.

Outro marco importante na filosofia senequiana é a importância que esta oferece

à amizade. O discorrer sobre a amizade não é tema novo na história da filosofia, outros

filósofos na Antiguidade já se debruçaram sobre o tema 82, entretanto, Sêneca, homem

voltado e preocupado com o cotidiano humano tende a oferecer à amizade humana uma

visão um pouco mais robusta. Amizade em Sêneca se justifica por si só, não está

respaldada numa troca de interesses, mesmos que estes sejam calcados na reciprocidade.

É um dar sem esperar nada em troca, um caminho de fluxo único. Até mesmo ao sábio é

necessário o fazer e ter amigos. Mesmo desfrutando o homem de progresso em seu

crescimento pessoal, seja referente ao seu caráter ou a sua própria sabedoria, este

progresso seria vão se estivesse arraigado na solidão ou na impossibilidade de ser

solidário. É da natureza humana fazer e ter amigos.

82

Por exemplo: Cícero escreveu uma obra dedicada ao tema: Da Amizade.

48

“O sábio embora se baste a si mes mo, deseja no entanto ter um

amigo, quanto mais não seja para exercer a amizade, para que

uma tão grande virtude não fique inativa, não como afirmava

Epicuro „para ter alguém que o ajude na doença e o socorra se

for encarcerado e o ajude na miséria‟, mas pelo contrário, para

ter alguém a quem ajude na doença, alguém que, caso seja

capturado, possa libertar. Quem só cuida de si e procura

amigos com fins egoístas não pensa corretamente. Amizades

deste tipo chama-se-lhes corretamente de oportunistas „- O

sábio basta a si mes mo -‟ Amigo Lucílio, muita gente

interpreta incorretamente esta máxima, afastando o sábio do

mundo que o rodeia e o reduzindo aos limites de seu corpo. O

sábio basta a si mes mo para viver uma v ida feliz, não

simplesmente para viver, na medida em que para v iver carece

de muita co isa, mas para se ter uma vida feliz basta-lhe possuir

um espírito são, elevado e indiferente à fortuna. (...) Por isso

mes mo, embora baste a si próprio, precisa ter amigos, deseja

mes mo tê-los, no maior numero possível, não para se ter uma

vida feliz, pois é capaz de ter uma vida feliz mes mo sem ter

amigos. Não é qualquer consideração utilitária que incita a

amizade, é sim uma disposição natural. Tal como existe em nos

uma atração inata para as outras coisas.” (Cartas: 9; 8 e ss)

Percebemos, através dos ditos acima, que a amizade tem valor em si mesma,

mas é, antes de tudo, se olharmos através de uma ótica utilitarista, que fazer o bem aos

amigos é para a condição humana melhor do que recebê- los. O que nos faz bem é fazer

o bem.

Tais conceitos perpassam por uma extrema doação da alma humana a estes

valores. Para Sêneca, o sentimento de amizade é também independente da condição

social, da origem da família e do lugar de nascimento aos quais pertençam os seres

humanos. Podemos verificar isto nas palavras do filósofo de Córdoba quanto à condição

de escravo destinada a alguns seres. Entendia ele que o escravo e o homem livre podem

naturalmente ser amigos, e que aquele, o escravo, é capaz de prestar benefícios aos seus

semelhantes. O radicalismo de sua filosofia chegava ao ponto de proclamar que o

escravo que se utiliza da razão para viver e, consequentemente, pratique a virtude, é

gigantescamente mais dotado de liberdade daquele homem nobre, rico e poderoso que

se deixa cair nas garras dos vícios e das paixões humanas. Vejamos o respeito que

Sêneca devotava aos escravos:

49

“Foi com prazer que ouvi d izer a pessoas vindas de ti que vives

com os seus escravos como se fossem seus familiares. Isto só

atesta que és um espírito bem formado e cu lto. „São escravos! ‟

Não! São homens! „São escravos! ‟ Não! São camaradas! „São

escravos‟ Não! São amigos mais humildes. „São escravos! ‟

Não! São companheiros de servidão se pensares que todos

estamos sujeitos ao golpe da fortuna. Não há razão meu amigo

Lucílio para buscares amigos apenas no foro ou no senado, se

olhares com atenção, encontrá-lo-ás em tua casa.” (Cartas: 47;

1 e 16)

Em contrapartida, vejamos o que Sêneca nos diz quanto ao tratamento

dispensado aos superiores hierárquicos social e politicamente, tais quais senadores ou

aqueles a quem o povo entregou o poder quando o tema amizade circunscreve esta

questão:

Tê-los a todos como amigos seria ingente tarefa, basta que não

os tenhamos por in imigos. O sábio, consequentemente não irá

provocar a ira dos poderosos, antes, se esquivará, tal como no

mar procuramos esquivar as tempestades. (Cartas: 14; 7)

Observamos que ao falarmos em amizade, tangenciamos na questão da

escravidão. Assim sendo, pedimos vênias ao leitor para aqui abrirmos parênteses: ora,

alguns aqui poderiam questionar o filósofo, fazendo críticas a sua postura de vida, posto

que, se assim pensava Sêneca, por que o mesmo não libertou os escravos dos quais era

proprietário? Por que não pôs em xeque o sistema escravocrata do qual usufruiu? Por

que não levar até as ultimas consequências o seu pensamento? Respondemos correndo

o risco de nos tornarmos repetitivos: há de se contextualizar a época e o cenário onde

Sêneca viveu e atuou. Escravos não eram cidadãos e nem sequer detinham direito à

própria vida. Eram aquilo que os romanos denominavam com res, ou seja, literalmente,

coisa! Ao dizer que o escravo pode ser superior a um cidadão romano, devemos

entender que à época esta era uma postura revolucionária. Fato que comprova os

dizeres de Sêneca, e aí o estoicismo mostra-se profícuo no seu pensar, é que tanto o

aristocrata, quanto o escravo e o imperador fizeram filosofia estoica e a praticaram com

uma admirável elevação moral.83

Mas, voltando às explanações sobre os temas e características da filosofia

senequiana, um dos que não podíamos deixar de trazer aqui é a questão dicotômica

destino/liberdade. Sêneca, homem estoico, oferece ao destino importância impar em seu

83

Referimo-nos aqui a Sêneca, Epicteto e Marco Aurélio

50

trabalho filosófico. E o que seria da liberdade humana frente ao destino? Tentemos

aqui responder esta questão respaldada em nossa interpretação da filosofia senequiana.

Sêneca chama o destino de fatum, ora o chama também de fortuna, e ao

perpassamos por tal assunto, parece inexorável o levantar da questão sobre o como este

pode existir frente à liberdade. Afinal, devemos lembrar que em Sêneca, a liberdade é

também tema recorrente. Ora, se ao homem compete estar acorrentado às diretrizes do

destino, como seria possível exercer sua liberdade de escolha? Seria o homem realmente

um ser livre? Num primeiro olhar, pode parecer contraditório entender o homem como

um ser livre estando ele sob uma ótica de mundo totalmente regido pela égide do

determinismo. Sêneca trata esta contradição liberdade/destino de uma forma bastante

inteligente. Afirma Sêneca que ao homem tudo é determinado no sentido de que não há

escolha sobre as características do corpo, da capacidade cognitiva, dos talentos inatos,

do lugar de nascimento e da família em que iremos ser acolhidos. Tudo isto é

determinado pelo destino. Um fato do qual não há possibilidade de escolha. Todavia,

nossa liberdade reside nas ações com que o homem lidará com os determinismos

impostos pela natureza.

“Um vai atado às honras, outro, as riquezas; alguns são

oprimidos por sua nobreza, outros, por sua origem humilde;

sobre a cabeça de uns pesa uma t iran ia alheia, sobre a de

outros, a sua própria; alguns são retidos num só local pelo

exílio, outros pelo sacerdócio. Toda a v ida é uma escravidão. É

preciso acostumar-se à sua condição, queixar-se dela o mínimo

possível e agarrar toda a vantagem o que ela tenha em torno de

si. O destino guia quem o segue de bom grado, mas arrasta

quem recusa a segui-lo.”(Da Tranqüilidade da Alma:10. 3-4.)

Está em nossas mãos o poder de agirmos e reagirmos frentes aos percalços que

nos são impostos. Aqui sim, está enraizada a nossa liberdade. A possibilidade de

decidirmos como enfrentar o que nos é imposto pelas diretrizes da natureza/destino. Por

que nascemos pobres e não ricos? Por que nascemos escravos e não libertos? Por que

somos baixos e de compleição frágil ao invés de altos e com porte atlético? Ora, a razão

nos diz que contra tais ditames do destino, nada é possível fazer. Por que lamentarmos

de forma irracional o que o destino nos ofereceu? Não é preceito estoico vivermos

conforme a natureza? Ora, se assim o é, viver conforme a natureza é viver conforme os

ditames da razão. Viver conforme a natureza é viver essenc ialmente e unicamente

orientado pelo traço maior da característica humana: a razão. Esta nos diz que nada

51

podemos contra aquilo que está escrito nas paginas do livro do destino, mas nos diz

também que o aceitarmos é melhor que tentarmos reprimi- lo, posto que, será uma luta

vã. Seguir seu fluxo seria a atitude racional. É válido ressaltar que na visão estoica

fazemos parte de um todo e aquilo que talvez seja por nós – erroneamente - classificado

como um mal, é, para o todo, ou seja , para o kosmos, o bem.

Esclarecemos que para o estoicismo todas as coisas seriam passiveis de uma

tríplice classificação: boas, más e indiferentes. Seriam boas aquelas que se conformam

com o bem moral; más seriam aquelas que contrariam o bem moral, e indiferentes

seriam aquelas que são boas ou más conforme o uso que fazemos delas. Ou seja, elas

não seriam boas ou más em si mesmas. Ficam estas na dependência daquilo que dela

fazemos. Sendo a virtude um bem, na verdade, o único bem; e o vicio um mal, em

sentido estrito, o único mal; as coisas como riqueza e pobreza, força física ou

fragilidade, seriam indiferentes, posto que, através delas tanto podemos fazer um bem

quanto praticar um mal. Sob esta ótica, é possível afirmar que a condição de liberto ou

escravo, determinada pelo destino, é moralmente indiferente, tendo em vista que tais

condições serão valoradas como bens ou males conforme o que o homem livre ou o

escravo farão delas. Sêneca afirmava que é perfeitamente possível ao escravo ser mais

livre do que aquele que se encontra na posição de liberto.

"Já o único escravo de Diógenes fugiu e ele não julgou valer

trazê-lo de volta, embora lhe fosse indicada sua localização.

Disse ele: “É vergonhoso que Manes possa viver sem Diógenes

e Diógenes sem Manes não o possa”. Ele me parece ter dito:

“Podes fazer teu trabalho, Fortuna, pois na casa de Diógenes já

não há nada que é teu. Fugiu meu escravo; ou antes, eu é que

fui embora livre”." (Da Tranquilidade da Alma: 8,7)

Outro ponto da filosofia senequiana que não poderíamos deixar de citar é aquele

que labora com a questão do sábio. Tentaremos expor doravante aqui algumas linhas

sobre o tema. Vejamos: todo homem é potencialmente dotado de razão e que o critério

estabelecido para se atribuir valores às coisas fixa-se na bondade moral. E Sêneca é

radical neste tema: o bem moral é o único bem. Não se trata aqui de ser o maior dos

bens, mas, como dissemos, é o único bem. Há uma dicotomia bem/mal absoluta em

Sêneca. Assim sendo, Sêneca entende existir também uma dicotomia absoluta entre

sábio/não sábio, ou seja, aquele que é moralmente perfeito em razão oposta àquele que é

moralmente imperfeito. Ora, mas se as coisas podem ser boas, más ou indiferentes, não

poderia haver uma terceira categoria de homens que, se não fossem sábios, ao menos

52

não seriam totalmente ignorantes? Ou que ao menos pudessem estar entre aqueles que

não são absolutamente bons ou maus? Os antigos estoicos afirmavam que um homem

ou é sábio ou não. O sábio seria um tipo ideal, inatingível. O sábio seria o limite

inalcançável pelo homem.

Sêneca já não entende assim. Apesar de explanar que todo homem é bom ou

mau, ou seja, sábio ou não sábio, é possível na filosofia senequiana encontrar gradações

entre esses extremos. Um homem pode não ser sábio, porém é possível a este tender

para a bondade. Isto é, apesar de bem/mal serem categorias imutáveis e diametralmente

opostas, ao homem, utilizando-se este da razão, e somente da razão, é possível ao

mesmo aproximar-se do ideal de sábio. Sêneca afirmava que muitos poucos homens

atingiram o ideal do sábio, Catão e Sócrates são exemplos citados.

“Alguém que não conhecia Catão agrediu-o no banho, por

inadvertência, pois quem lhe faria uma injúria conhecendo-o?

Momentos depois, Catão disse a esse homem, que procurava se

desculpar: „Não me lembro de ter sido agredido. Julgou melhor

reconhecer a injúria do que vingá-la. „Nenhum malefício,

indagas, „foi feito ao agressor depois de tamanha petulância?‟

Não, mas ao contrário, foi-lhe feito um bem enorme: passou a

conhecer Catão.” (Da Tranquilidade da Alma: 32. 2-3)

Sêneca nos afirmava que um “não-sábio” é capaz de caminhar na via que leva à

sabedoria. Evidentemente, iniciará este caminho ainda nas modéstias da ignorância,

sendo imprescindível a prática dos exercícios, ou seja, a verdadeira ação filosófica

lança-o, senão à condição de sábio, ao menos a um progresso irreversível a esta posição.

Não é possível almejar o alcance da sabedoria instantaneamente, como se fosse uma

“iluminação”, mas, ao contrário, moderadamente, e somente através de muito esforço e

prática filosófica. Isto é, há de se ter uma dedicação hercúlea para progredir em direção

ao alcance da sapiência. É importante deixarmos registrado aqui que para Sêneca é

perfeitamente possível ter consciência do que é o bem, e, apesar disto, continuar na

prática do mal. Ou seja, aqui, o mal não é fruto da ignorância, mas da inadequação entre

o bem que se conhece e o que se quer praticar. Sêneca é um filosofo da ação, assim

sendo, o homem totalmente mau e o homem totalmente bom - o sábio - situam-se num

lócus impassível de mudanças. Cabe ao homem mediano, este situado entre esses

pólos, aproveitar-se do exercício da prática filosófica. É a este homem a quem Sêneca

dedica as suas letras. O exemplo do discípulo Lucílio é pertinente aqui. Embora tudo

indique que não tenha alcançado a condição de sábio (ao menos não há esta menção nas

Cartas), este progrediu o suficiente e de tal forma que não regredirá. O próprio Sêneca

53

nunca se considerou um sábio, e mais ainda, buscava no exemplo daqueles que

considerava sábios orientações para sua vida confessando tal condição em muitas

passagens de suas obras.

“E com isso pensas talvez que eu queira dizer que sou um sábio?

Não, absolutamente; porque, se pudesse mesmo só afirmá-lo,

isso significaria que não só não seria infeliz, mas seria o mais

felizardo de todos os homens e quase um deus. Agora (e isso

basta para suavizar qualquer miséria) me entreguei aos sábios e,

ainda incapaz de defender-me por mim, encontrei em campo

alheio abrigo, que facilmente protege a si mesmo e aos seus. Eles

me aconselharam que ficasse sempre atento, e observasse

qualquer ataque, qualquer assunto de desgraça muito antes que

me abatesse.” (Consolação à Minha Mãe Helvia. V, 2)

Alguns poderão questionar certa incoerência entre as apregoações dos escritos

de Sêneca com a sua vida, posto que, este fora homem nobre, vivendo no esplendor e

nas riquezas, usufruindo das benesses que estas são capazes de oferecer. Outro ponto de

questionamento é a nobreza moral defendida por Sêneca em seus escritos e algumas

fraquezas condenáveis quanto a sua própria conduta moral. Ora, o próprio Sêneca estava

ciente destas condições e toda sua vida fora um combate constante na tentativa de

apequenar esta discordância. Os seus três últimos anos de vida, onde precisamente é

composta a sua maior obra, As Cartas, Sêneca alcança a vitória na arena dos jogos da

vida. Somente na morte nos é permitido fazer um diagnóstico correto e isento do que

fomos nós na seara da vida. E Sêneca assim o fez.

A independência e um certo ecletismo são outras características marcantes na

filosofia senequiana. Apesar dele se utilizar de grandes mestres do antigo Pórtico –

Zenão, Cleantes e Crisípo – assim como dos pensadores do período médio – Posidônio e

Panécio - muitas das vezes clama para si o direito de fazer sua própria filosofia. Critica

muitas vezes as figuras mais proeminentes do estoicismo, rejeitando Zenão e

aproximando-se de Epicuro. A história do Pórtico mostrou-nos que esta escola

filosófica, distintas de outras, em muito oferecia aos seus adeptos uma possibilidade de

beberem na fonte de outras correntes filosóficas. Panécio e Posidônio, aquelas figuras

aqui mencionadas, proeminentes do segundo período do estoicismo, tinham aberto as

portas para a trilha do caminho do ecletismo. Mas é em Sêneca que este ecletismo se

mostra mais forte. O filósofo romano não via entraves em buscar nos dogmas de outras

escolas fontes para a construção de seu trabalho intelectua l. Não havia resistência, por

parte do estoico, em acolhê- las, mesmo que estas se confrontassem diretamente com as

palavras do fundador Zenão. Ele, Sêneca, entendia que a busca pela verdade, para ser

54

completa, deveria oferecer um repensar às doutrinas antigas, verificando assim suas

validades e, sendo necessário, aprofundá-las. Um exemplo disso é a utilização das

máximas de Epicuro nas obras do autor romano. O fundador da “Escola do Jardim” fora

tônica fonte de inspiração para Sêneca. Este caráter eclético permitiu que suas obras nos

apresentassem um autor desprovido da rigidez doutrinária que caracterizava alguns

filósofos de sua época. Não estamos dizendo aqui que o preceptor do imperador Nero

era um eclético por excelência. Não, nada disso. O que queremos afirmar é que a

filosofia senequiana se apropriava de algumas diretrizes de outras filosofias, fazendo ali

todo um revestimento estoico. Sêneca “vestia” com o estoicismo aquilo que, apesar de

oriundo de uma escola distinta e às vezes até mesmo rival, seguia o mesmo fluxo de sua

filosofia e assim poder advogar a favor de seu estoicismo. Podemos dizer então que ele,

Sêneca, nem sempre é fiel ao Pórtico e que suas conclusões filosóficas são mais

intuitivas que teóricas, não fazendo dele por isso, um não estoico.

É digno de nota dizermos que a filosofia de Sêneca deu-se também no bojo de

sua própria existência enquanto pessoa, adaptando-a aos reveses que a vida lhe trazia,

florescendo sempre em um constante e corrente aprendizado. Trata-se de uma filosofia

viva. Uma filosofia de certa forma independente, posto que, a história mostra que o

filósofo tenta adaptar seu pensamento com sua própria vida. Sua filosofia fora sendo

construída continuamente e teve sua coroação com a morte. É o aproximar-se do bem

que traz sentido à nossa existência. Devemos viver sempre almejando estarmos

próximos ao bem e distanciarmo-nos daquilo que é mal. Sêneca entendia que a tônica

divisão entre bem e mal se situa unicamente no campo da moral. O fim último do

homem é a tranquilidade da alma, a serenidade do espírito, onde ao atingirmos tal

condição, passamos, enquanto homens, a sermos livres das obrigações impostas pela

sociedade. Os fatos sociais passam a ter menor relevância, e as obrigações no campo da

política também se diluem ao alcançarmos este promissor estado existencial.

Devemos aqui asseverar que um dos entendimentos que podemos oferecer a

filosofia de Sêneca era de que esta pode agir como uma espécie de medicina da alma.

Aqui verificamos o tema da filosofia agindo como medicina curativa da alma. Ou seja,

não bastando apenas à filosofia diagnosticar as doenças da alma, deve a mesma além de

diagnosticá- las, curá-las. A “doença” no caso em tela era a crise de valores morais por

qual passava a sociedade e a entrega às paixões nos homens da época de Sêneca. Não há

necessidade de dizermos aqui que muito provavelmente hoje estejamos padecendo do

mesmo mal. Façamos então alguns comentários sobre este tema nas linhas que seguem:

55

Lembremos que Roma gozava de uma prosperidade acentuada e de uma quase razoável

estabilidade política, sendo testemunha de um florescer artístico profícuo. Todas estas

vertentes não foram capazes de retirar do campo de observação e crítica de Sêneca a

enorme crise de valores morais por qual passava sua época. Os espetáculos na arena

romana eram imensa fonte de dor e objeto de rejeição de Sêneca. Utilizava-os como

exemplo do descaminho dos valores morais do povo romano.

“Lucio Sulla foi o primeiro a apresentar os leões soltos no

Circo, enquanto que anteriormente eram apresentados

acorrentados, e que foram enviados arqueiros ao rei Boco para

exterminá-los. Que seja! Façamos também esta concessão. Mas

acaso há um mínimo de valor em saber que Pompeu foi o

primeiro a proporcionar um combate no Circo com dezoito

elefantes, tendo-se enviados criminosos para enfrentá-los como

se fosse uma batalha? O primeiro dos cidadãos e, segundo o

que a fama nos legou, homem que se sobressaiu entre os líderes

por sua bondade, julgou ser um novo tipo de espetáculo digno

de memória matar homens de um modo novo. Combatem até a

morte? É pouco. Que sejam es magados por uma enorme massa

de animais. Seria suficiente que estes assuntos passassem ao

esquecimento, para que posteriormente um prepotente qualquer

não aprendesse e invejasse uma ação tão desumana!” (Da

Brevidade da Vida: 13. 6-7)

A ausência nos homens de um espírito superior que os guie na existência, a

ganância desmedida pelos bens materiais, os excessos com o corpo tais quais os grandes

banquetes ofertados, o se deixar levar pelas paixões mostraram a Sêneca uma sociedade

doente. Ora, ao ser convalescente é indicado a procura de um médico. Sêneca entendia a

sociedade romana como uma sociedade enferma, presa a toda espécie de charlatães e

adivinhos, onde estes promoviam toda espécie de salvação. Ora, tanto o homem como a

sociedade que padece de algum mal merece ser tratada. É justamente isto que Sêneca

almeja em sua obra, diagnosticando os males e propondo os remédios para que estes

possam ser curados.

Em Sêneca, aquele que se torna escravo das paixões é um homem doente, onde o

sintoma maior desta enfermidade é o não uso da razão. A razão, que todo homem possui

em potência, ao não se materializar em ato, em ação, é sinal maior do defeito humano.

Assim sendo, Sêneca com sua obra deseja exatamente diagnosticar tais males,

apontando as causas deste e propondo tratamento adequado. É esta a missão do filósofo.

O tratar dos homens como se um médico fosse. A filosofia pode ser uma forma de

medicina, no entanto, uma “medicina da alma”.

56

Sabemos que praticamente todas as correntes filosóficas têm como intuito

libertar os homens das paixões. Permitir e ensinar os homens a dominar as paixões é

proporcionar-lhe uma forma superior de felicidade. Os gregos denominavam este estado

de ausência de paixões de apathéia 84 . Em Sêneca, tal estado é definido como

tranqüilidade da alma (tranquillitas animi).85 É importante salientar que a filosofia tem

como intuito ajudar ao “paciente” encontrar esta tranquilidade. Ou seja, em outras

palavras, deve a filosofia encontrar a cura para os males da alma, e não apenas

diagnosticá- los e defini- los.

Sendo Sêneca um senador e vivendo nos salões do poder, certamente a política,

outro campo de atuação do filósofo, não deixa de ser mencionada nos escritos dele.

Apesar de se tratar de um político, Sêneca, curiosamente, ao dirigir-se ao amigo Lucílio,

nas Cartas, está sempre a pedi- lo que renuncie à vida no campo da política. Válido

lembrar que as Cartas foram escritas nos últimos anos de vida de Sêneca, onde a

dedicação ao ócio, por parte do filósofo, se deu de forma quase que efetiva. Em outras

obras, nosso filósofo dedica boa parte de seu tempo a se dedicar à reflexão política.

Uma delas, inclusive, em resposta direta a Lucílio, vejam só, que via nos conselhos de

Sêneca contradição com o que pregava a escola estoica: de que o sábio deve participar

da vida política da cidade.

“Textos como Da Cólera, ou o Da Clemência, até mesmo a

Consolação a Políbio ou a Sátira à morte de Cláudio, têm, entre

outras, uma forte conotação política. Quando após a morte de

Cláudio, e o acesso a Nero ao poder, Sêneca orientou a política

Romana a titulo de conselheiro do jovem imperador, fê-lo

porque teve nas mãos uma oportunidade única de agir, através

da política, sobre a vida moral de Roma.(...) Sobre o Ócio, em

resposta precisamente a uma objeção de Lucílio que estranhava

ver Sêneca , contrariamente aos princípios da Escola defender

o sábio do afastamento da vida pública. (SEGURADO E

CAMPOS: 2004)”

Ora, Sêneca entendia que o verdadeiro sábio, ou ao menos aquele que pretende

ser, deve somente contribuir com a vida política de sua sociedade se esta for capaz de

permitir que suas ações se dêem de forma digna e proveitosa. O cenário onde vivia

Sêneca era justamente a antítese de uma sociedade que buscava em si os valores

profícuos para a construção de uma moral digna. Se ao fazer política, era necessário o

84

Literalmente: ausência de paixões. 85

Sêneca escreveu todo um tratado sobre este tema com este mesmo titulo.

57

abandono da moral, melhor não fazê-la. Assim sendo, Sêneca, ao fim de sua vida,

preferiu se retirar da política.

Arrematando, podemos aqui dizer que o grande traço da filosofia senequiana é

que para ser filósofo, deve ser viver como tal, e isto é recorrente em sua obra, ou seja, a

filosofia não é um mero acumular de conhecimentos vãos. Ao contrário, como já

dissemos, é árduo caminho a se percorrer. Caminho este que exige, por exemplo, ter

uma disciplina com o corpo. Isto para Sêneca era um agir filosófico. A condenação aos

banquetes e orgias gastronômicas, a prática da meditação e o exercício sempre dispostos

a alimentar o espírito, eram ações filosóficas de imenso valor. Entretanto a ação em

Sêneca, e principalmente a ação filosófica não tem valor em si mesma, esta, só

realmente é valorosa ou virtuosa, caso esteja alicerçada no fundamento ético. A ação

humana deve ser sempre fundamentada no exercício ético. Viver como filósofo apenas

para angariar fama tem em Sêneca sentença da maior rigidez condenatória.

III. 3) O DEUS SENEQUIANO

Explanamos anteriormente alguns temas que se entrelinham na filosofia de

Sêneca. Dedicaremo-nos agora a expor nossos entendimentos sobre a temática de deus

na filosofia senequiana. Temática esta em que Sêneca dedicou profícuo espaço em seus

escritos. O tema do divino é certamente um dos mais que mais nos despertam atenção

na obra do autor. Despertar este oriundo da originalidade, em nosso entender, com que

Sêneca trata a temática de deus. Por isto, dedicamos este tópico específico, objetivando

demonstrar sob a ótica senequiana o trato com o divino.

Ao nos propormos falar da concepção de deus oferecida por Sêneca em sua

filosofia, entendemos ser de bom alvitre dizermos que Sêneca, estoico convicto, utiliza-

se das concepções estóicas do divino na construção da sua teologia. Tivemos

oportunidade de mostrar neste trabalho quais os principais conceitos emitidos pelos

estoicos referentes a deus. Aqui, nos limitaremos a enfocar o deus senequiano, ou seja,

as peculiaridades do pensamento senequiano no trato com o divino Sem sombra de

dúvidas podemos afirmar que o objeto de investigação da teologia estoica era o

“princípio diretor” do kosmos. Ou seja, há algo que dirige todo este universo, sendo este

algo diretor entendido pelos estoicos como deus. Na tentativa de entender este princípio,

os estoicos abarcavam em suas questões teológicas a natureza do divino, a existências

58

de outros deuses, nossas posturas frente a estes deuses, além das questões relacionadas

ao destino e à providência.

Zenão ao escrever Sobre o Todo oferece-nos algumas concepções sobre seu

entendimento de divino, no entanto, os que o sucederam na escola atribuem a esta

questão maior destaque.

“Se o pai fundador da escola, Zenão de Cício, ainda parece ter

publicado suas concepções teológicas no contexto de seu

principal trabalho cosmológico Sobre o Todo, seus sucessores

atribuíam uma posição mais proeminente à teolog ia como tema

independente.” (ALGRA: 2006).

Outros autores importantes devotaram seu tempo a escrever sobre temas ligados

a teologia. Crisípo nos lega não só um Sobre os Deuses, mas também Sobre Zeus. Este,

tal como Cleantes, entendia a teologia como uma subdivisão da filosofia. Já seu

discípulo, Antípatro de Tarso, oferece-nos Sobre o Cosmos e também Sobre o Vaticinio.

Posidônio também escreve Sobre os Deuses. 86

Já dissemos que a física era a parte da filosofia que tratava das questões da

teologia estoica, afirmando que deus é matéria e a razão universal, porém, quanto aos

estoicos da Era Imperial, fase do estoicismo em que se encontra Sêneca, podemos dizer

que suas questões de natureza teológica se encontravam em seus escritos de natureza

ética, no entanto, válido se faz salientar que Sêneca tratou com muito afinco esta

questão em sua obra Naturales Quaestiones 87 , um tratado de física. Todavia, esta

questão do divino perpassa praticamente por toda sua obra. Por exemplo, Sêneca nas

Cartas mostra todo seu fervor estoico ao dizer ao seu amigo Lucíolo que deus é também

a própria natureza, onde estes, deus e natureza, se combinam. Lembremos que os

estoicos antigos diziam que deus é material, e está na natureza e é a própria. Ou seja,

deus “habita” a natureza, mas é também ela mesma. Aos estarmos em contato com a

natureza, estamos em contato direto com deus.

“Se penetrares num bosque cheio de velhas árvores, de altura

fora do comum, e tais que a densidade dos ramos entrelaçados

uns nos outros oculta a visão do céu, a própria grandeza das

arvoredo, a solidão do lugar, a visão magnífica desta sombra

densa e contínua no meio da p lanura, tudo te fará sentir a

presença divina.” (Cartas: 41, 3)

86

DL, VII, 41. 87

Desenvolvidas em oito livros, as Naturales Quaestiones foram compostas na última parte da vida de

Sêneca. A edição que chegou até nós não é integral e quase certamente difere da edição original por ordem e composição. Sêneca ali disserta sobre os fenômenos da natureza, ou seja, um tratado de física.

59

Sêneca entendia que a filosofia era um caminho promissor para o encontro com

deus. Ao dedicarmo-nos a ela, nos sobrepujamos à maioria dos homens e nos

aproximamos do divino. Argumenta o filosofo que um espírito comprometido com a

filosofia certamente estará mais próximo da divindade: “Dirige todo teu espírito para

filosofia, acompanha a sempre, pratica-a: uma enorme distância te separará dos demais

homens e os deuses pouco te distanciarão de ti” 88

Já na Carta de número 41 temos uma fala muito peculiar sobre o que Sêneca

entende como divindade. Ali, numa síntese inteligente, o filósofo cordovês demonstra

algumas das qualidades que ele entende pertencer ao plano do divino. A primeira delas

é a possibilidade oferecida ao homem de estar em contato direto com a divindade, sem

que para isso haja a necessidade de intermediários. A figura dos ministros de confissão

religiosa é irrelevante para a feitura deste contato, assim como os templos e os ícones

representativos de deus não têm importância e nem sequer se faz necessário, posto que,

a proximidade dos homens para o ente divino está presente sempre. Vejamos:

“Não é preciso elevar as mãos ao céu, nem pedir ao min istro do

culto que nos deixe formular votos ao ouvido da estátua do

deus, como se assim fosse mais fácil sermos atendidos: a

divindade está perto de ti, está contigo, está dentro de ti!”

(Cartas 41, 1)

Ou seja, o homem, como parte da natureza, tem também dentro de si uma

partícula de deus, posto que, deus também é a própria natureza. Prosseguindo na

missiva, verificamos ainda que a divindade nos trata com reciprocidade. Sêneca entende

que sem deus, não existe a possibilidade do homem seguir a trajetória do bem. Se

formos bons, deus será bom conosco, posto que, trata-se de um deus justo. É rigorosa a

sentença senequiana referente a isto. Apesar de Sêneca admitir que não saiba qual é

natureza de deus, isto é, entende que é impossível sabermos “quem ou o quê ele

realmente é”, afirma peremptoriamente que este deus existe e está a nos observar e que

é possível sentir a sua presença.

“É verdade Lucílio, dentro de nós reside um espírito

divino que observa e rege nossos atos, bons e maus, e

conforme for por nós tratado, assim ele próprio nos

trata. Sem a d ivindade, ninguém pode ser um homem de

bem, ou será que alguém pode se elevar acima da

fortuna sem o auxílio divino? As decisões grandiosas e

justas, é a divindade que as inspira. Em todo homem de

88

Cartas: 53, 11

60

bem, qual seja o deus, ignora-se, mas existe um deus!”

(Cartas: 41, 2)

Embasado nos escritos de Reale que defende a tese de que Sêneca é mais

original do que outros estoicos quando afirma sermos nosso maior juiz, posto que, há

uma voz interior dentro de nós: “o ponto no qual Sêneca é mais original está na

psicologia, na sondagem interior das vozes humanas em captar e interpretar o

sentimento interior do divino”89 , podemos afirmar aqui que também concordamos com

esta tese. Notamos nos escritos de Sêneca que sempre há um chamamento a fazermos

um autoexame de nossas ações. A razão nos permite distinguir o que é certo daquilo que

é errado. Estarmos cientes de nossos atos faz de nós o nosso maior juiz.

“Ninguém se voltará de bom grado ao passado, exceto aquele

cujas ações estão todas submetidas à censura de sua

consciência, que nunca se engana. Aquele que ambiciosamente

muitas coisas cobiçou, orgulhosamente desprezou,

insolentemente venceu, traiçoeiramente enganou,

desonestamente , prod igamente d issipou seus bens,

necessariamente terá que temer suas próprias recordações” (Da

brevidade da vida: 10, 4).

Ao falarmos com o nosso eu, ou seja, com nossa consciência, de certa forma nos

aproximamos de deus e ficamos aptos a alcançar o bem:

“Faz do verdadeiro bem o teu alvo, busca a alegria dentro de ti.

Ora, o que significa dentro de ti? Significa que a felicidade se

origina em si mesmo (...). Perguntas o que ele é ou de onde ele

vem (o bem)? Eu te direi: o verdadeiro bem vem da boa

consciência” (Cartas: 23, 6 e 7)

Se antes dissemos que em muitas passagens de suas obras o pensamento

senequiano se adéqua aos preceitos panteístas da escola estoica, em outros momentos

também dissemos que há uma peculiaridade toda própria na sua concepção de divino.

Deus que é a própria causa de si. É também a consciência humana, que por sua vez é

parte de deus. Quando Sêneca nos diz que deus está dentro de nós, refere-se também a

esta voz da consciência nos exortando à prática do bem.

“O primeiro ato de culto a prestar aos deuses é acreditar neles,

seguidamente reconhecer neles a majestade, e também

reconhecer neles a bondade. Se queres ser agradável aos deuses

sê tu próprio bom. Prestar-lhe-ás culto em abundância se te

limitares a imitá-lo.” (Cartas: 95, 50)

89

Reale: 1994

61

É preciso lembrar que Sêneca utiliza-se de diversas nomenclaturas no seu tratar

com o divino: divindade, deuses, deus, júpiter, razão universal, Zeus, destino,

providência e natureza são todos vocábulos utilizados para nomear deus. Trata-se de um

recurso pedagógico usado pelo nosso filósofo para atrair a atenção de seus leitores e

discípulos. Sêneca buscava inserir-se na “cultura” daqueles a quem buscava convencer,

utilizando de palavras e autores conhecidos e familiares do seu público, para só mais

tarde o inserir na filosofia estoica. Retiramos ainda algumas outras passagens da obra

senequiana que expõe seu pensar sobre o divino. Deus, também é responsável pelo

nosso tempo de vida na Terra e sendo ciente de todas as coisas, é ciente também do

tempo em que nos encontraremos com a morte. “Se a divindade nos conceder mais um

dia, aceitemo-lo com alegria. O mais feliz dos homens, o dono seguro de si próprio, é

aquele que aguarda sem ansiedade o dia seguinte. 90

Deus, nos traços pessoais que Sêneca lhe oferece, pode por nós ser objeto de

agradecimento, porém também nos oferece liberdade de escolha, o que em certa forma,

vai de encontro com a doutrina determinista estoica, ou seja, aquela característica

peculiar em Sêneca que não quer se prender totalmente aos ditames estoicos:

“Agradecemos à divindade o fato de que de ninguém pode ser obrigado a permanecer

vivo.”91 Dedicar-se a conhecer os mistérios da vida e o destino da alma após a morte e a

verdadeira essência de deus é tarefa que se sobrepuja às demais na visão senequiana. Ao

defender tal tese, Sêneca está, nada mais, nada menos, nos afirmando que ao se dedicar

à filosofia, pode o homem chegar mais próximo de deus.

Recolhe-te a estas coisas mais tranqüilas, mais seguras,

melhores! Acaso tu pensas seres o mes mo estas duas coisas :

cuidar que o trigo seja transportado ao celeiro, intacto e salvo

da fraude e elevar-se às coisas sagradas e sublimes para

conhecer qual é a substância de deus, seu prazer, sua forma,

que destino aguarda a tua alma, que lugar a natureza nos

destina após nos separarmos do corpo e outras coisas cheias de

notáveis maravilhas? (Da Brevidade da Vida: 19, 1)

Entretanto há certas passagens em sua obra em que Sêneca vai além, afirma o

nobre filosofo que ao se dedicar à filosofia, pode o homem se igualar a deus: “aquilo

que a filosofia me prometeu foi tornar-me igual à divindade. Foi este o convite que

recebi, por isso, vim.”92 . E somente com ajuda de deus, pode o homem chegar à

90

Cartas: 12, 9 91

Cartas: 12, 10 92

Cartas: 48, 12

62

felicidade: “É fácil o trajeto para uma vida feliz, apenas empreendei-o sob bons

auspícios e com a boa ajuda de Deus”93 Em outra passagem Sêneca sugere que o

homem é o único ser que tem a consciência da existência do divino, ou seja, a nós é

possível saber o que é deus e até mesmo imitá- lo. Imitando-o, inexoravelmente teríamos

uma vida feliz. Ao dizer isto, Sêneca coloca o homem sobre o mais alto patamar dos

seres existentes, sobrepujando-o aos animais e plantas: “Porém, qual o motivo para

fazer o homem voltar-se para exemplos tão estéreis quando se tem o cosmo e Deus, a

quem o homem, dentre todos os viventes, é o único a conhecer, para ser o único a poder

imitá- lo”94 Sêneca entende que não podemos solicitar à divindade a prática do mal para

com o outro: “É um deus: tanto perdes tempo ao dirigires tua ira contra ele quanto a

rogares que ele dirija a dele contra o outro.95 Verifica-se que Sêneca a todo instante

pondera sobre a natureza de deus, sua obra é toda uma investigação sobre quem

realmente é a divindade, mas sempre afirmando que a nós homens é possível

alcançarmos o status divino. “Na realidade a razão é comum aos deuses e aos homens,

naqueles atingiu a perfeição, neste é suscetível de atingir.”96

Arrematando esta seção, é de bom alvitre registramos nestas linhas que por ser

Sêneca cidadão romano, primeiro nome de peso na escola estoica do Império, ao dar

uma “nova roupagem” ao estoicismo, oferecerá à sua teologia uma visão peculiar à

mesma. Tendo sido muito influenciado pela cultura romana, certamente sua visão

teológica sofre influências também, assim sendo, aquele antigo “deus--razão-universal”

impessoal e distante, de aspecto panteísta, adquire em Sêneca caráter mais pessoalizado.

Continua o nobre filósofo sendo materialista, disto não temos dúvidas, porém, o

panteísmo do antigo Pórtico, em muito se dissolve em Sêneca, afinal, em muitas

passagens ele refere-se a Deus como uma entidade única, num sentido quase que

pessoalizado, distinta de nós. Lembremos que Sêneca tinha em sua filosofia um

ecletismo que o habilitava a aceitar influencias das mais variadas doutrinas.

93

Da Tranquilidade da alma: 13, 1 94

Da Tranqüilidade da Alma: 16, 2 95

Da Tranquilidade da Alma: 30, 2 96

Cartas: 92, 27

63

III. 4) A QUESTÃO DA MORTE EM SÊNECA

Ao dissertamos aqui sobre a morte, ironicamente começaremos estas linhas

falando sobre a vida. Já dissemos que a filosofia senequiana não se manifestava apenas

na teoria. Sêneca defendia ardorosamente uma postura filosófica muito mais rígida. Não

bastava o saber teórico, é necessária a prática filosófica. Defensor da ideia de que é

melhor viver estoicamente do que apenas conhecer a doutrina estoica, Sêneca postulava

que a sabedoria, atingida através da filosofia, é também uma arte de vida. A ação que

praticamos deve estar intimamente ligada à doutrina filosófica. A filosofia ensina-nos a

viver. No entanto, não nos basta viver, é necessário viver bem. Ora, sendo a morte

conseqüência natural da vida, saber viver para Sêneca é também, e talvez em última

instância, saber morrer. “Deve-se aprender a viver por toda a vida, e, por mais que tu

talvez te espantes, a vida toda é um aprender a morrer”97 .

No tocante a este aspecto da doutrina senequiana podemos depreender a seguinte

elocubração: sendo a morte situação da qual jamais poderemos escapar e se

concordamos que toda nossa vida é um aprender a morrer, podemos dizer também que

Sêneca nos convoca para que aproveitemos bem o tempo que nos é disponível (o tempo

escasso da nossa vida) para que estejamos sempre preparados para encaramos esta

realidade: a morte. Ao dedicarmos o tempo que temos a nós mesmos, cumprimos

mandamento insubstituível na filosofia do autor cordovês. Querelas vãs e preocupações

inúteis em nada nos acrescenta. É imperativo percebermos, o quanto antes, que tal fato,

ou seja, a impossibilidade de se recuperar o tempo perdido é sentença implacável.

"Vemos que chegaste ao fim da vida, contas já cem ou mais

anos. Vamos! Faz o cômputo de tua existência. Calcula quanto

deste tempo credor, amante, superior ou cliente, te subtraiu e

quanto ainda as querelas conjugais, as reprimendas aos

escravos, as atarefadas perambulações pela cidade; acrescenta

as doenças que nós próprios nos causamos e também todo o

tempo perdido: verás que tens menos anos de vida do que

contas. Faz um esforço de memória: quando tiveste uma

resolução seguida? Quão poucas vezes um dia qualquer

decorreu. como p lanejaras! Quando empregaste teu tempo

contigo mesmo?" (Da Brevidade da Vida. 3 – 2,3)

Dedicar tempo a si mesmo não significa, como pode parecer numa primeira

leitura menos atenta, dedicar-se a uma prática egoística de se agir somente em proveito

97

Da Brevidade da Vida, VII, 3-4.

64

próprio. Muito menos numa busca incessante pelo desfrutes dos prazeres mundanos e

conquista de riqueza. A felicidade em Sêneca não reside aí. Sêneca afirma que esta não

se materializa na aquisição de bens e no desfrute dos prazeres vãos. É a incapacidade de

distinguir o que é prazer daquilo que é felicidade que faz com que o homem quase

sempre viva mal. Sêneca admite não ter vivido bem em muitas fases de sua vida, mas, a

história ensina que o filósofo soube morrer bem.

Encarar a morte corajosamente é uma das qualidades que elevam o homem mais

próximo do patamar de sábio. Pois, mais importante que o tempo de vida que possamos

vir a ter é a qualidade da vida que teremos. Vejamos as palavras do filósofo: “E, deste

modo, por mais curta que seja, ela (a vida) é mais que suficiente; e portanto, quando lhe

vier o último dia, o sábio não hesitará em caminhar para a morte com passo firme.”98

Continuamente ecoa em muito de seus escritos um apelo ao leitor para que este

medite sobre a morte. “Nada será mais útil para manteres em tudo a justa medida do que

meditares na incerteza e brevidade da vida. Faça o que fizeres, nunca deixe de pensar na

morte.”99

Este apelo não se dá para que o leitor permaneça em estado de morbidez ou

infelicidade. É precisamente o contrário. Ao pensarmos na morte como algo natural,

abrimos caminho para alcançarmos uma vida feliz.

Ao falar da morte, Sêneca é de um radicalismo profundo. Num mundo onde

constranger o individuo a fazer aquilo que muitas vezes não deseja é quase que uma

regra, ou seja, há de se ter uma obediência ao que hoje denominamos fatos sociais, a

busca pela independência, necessariamente enseja sempre no homem um meditar sobre

a morte, visto que, esta pode ser, muitas das vezes, a única forma de se assegurar sua

própria liberdade. Em suma, em ultima instância o homem é sempre livre, posto que,

pode morrer, a priori, quando desejar, e para sermos mais diretos, estamos falando aqui

sobre o suicídio. A morte, seja a natural ou a provocada, é a libertação de todo mal.

O suicídio é, em muitas ocasiões, defendido por Sêneca. Verificamos uma

extensa defesa que o filósofo de Córdoba faz deste ato extremo. Evidentemente fazemos

tal afirmativa com os devidos cuidados que se deve ter, pois, Sêneca não é um defensor

do suicídio em qualquer circunstância. Romper com o medo que se tem da morte é uma

das expressões vociferadas para se defender o suicídio quando isto se faz necessário

para se defender a dignidade humana. A própria perda da razão é também motivo para

98

Da Brevidade da vida: 11, 1-2 99

Cartas: 114, 27

65

se tirar a própria vida. Mas aqui cabe uma ressalva, a de que Sêneca não defende o

suicídio para evitar a dor física, que seria uma condição interior nossa. As condições

exteriores, estas sim, podem nos oferecer permissão, na ótica senequiana, para que

demos termo a nossa própria existência. Outra situação em que a defesa do suicíd io tem

justificativa em Sêneca é aquela onde as condições políticas tornam impossível a vida

com dignidade.

Após este breve interregno para expormos algumas considerações sobre o

suicídio, voltemos ao tratamento que Sêneca oferecia à questão da morte involuntária,

aquela senhora que pode nos visitar sem mandar recados prévios de sua chegada.

Sêneca sempre trabalhou com este tema de forma muito fecunda, oferecendo ao mesmo

uma visão contrária à maioria daqueles que se dedicam a nela pensar. A morte pode ser

suave e serena. Se o estoicismo tinha como proposta uma prática existencial pautada em

viver harmonicamente com a natureza, ou seja, estar em ordenação harmônica com o

kosmos, e a morte é uma condição natural da vida, devemos concluir que morrer nada

mais é do que seguir o fluxo inexorável dos acontecimentos e nos sujeitarmos a ele da

melhor forma possível.

A filosofia senequiana nos afirma que a única real propriedade do ser humano é

o seu tempo de vida. Por isso, devemos administrá-lo de forma sábia e correta, isto é, o

tempo deve ser valorizado, uma vez que, a cada dia que vivemos, este dia já é do

domínio da morte. Perceber tal lei somente no final de nossa existência seria tardio

demais. A filosofia seria então o instrumento capaz de aprimorar o homem, fazendo-o

crescer espiritualmente e racionalmente, pois é através deste progresso espiritual e

racional que o mesmo terá subsídios para compreender que a morte não é motivo para

gerar em si terror e medo. Só assim, o homem será capaz de ter serenidade se

compreender e aceitar que a vida nada mais é que um bem temporário. Até mesmo a

velhice não é obstáculo para uma vida feliz - desde que não se esteja em estado de

decrepitude, pois aí o suicídio pode ser justificado - tendo em vista que aqueles que

pensam que ao estarem nestas condições estariam mais próximos da morte, cometem

erro grosseiro. Frente a isto, Sêneca nos oferece palavras consolatórias, todavia nos

chama a atenção para lembrarmos sempre que a morte pode acometer a qualquer um em

qualquer momento. Juventude e velhice não seriam, a priori, respectivamente atestados

de vida futura longeva ou breve.

66

“Dirás que é penoso ter a morte d iante dos olhos, bom, esta

condição é coisa que tanto está no homem velho como no

jovem, já que a morte não nos chama por idades, além disso

não há ninguém tão velho que não tenha direito a esperar um

dia mais.” (Cartas: 12,6)

É importante frisarmos novamente: é necessário ao homem que este entenda

que a quantidade de tempo que se vive é menos importante que a qualidade, agindo

assim, será possível ao mesmo desfrutar de uma vida calma, tranqüila e constante.

Somente a este homem que viveu de forma constantemente serena, poderá ser atribuído

o lema: “Este sim, viveu bastante!” Um dos recursos utilizados por Sêneca para instruir

seu leitor para como se portar frente à possibilidade da morte eminente e do inexorável

chegar dela é o exemplo de homens que ao se encontrarem em tão extremada condição

se postaram com coragem, honra e dignidade.

“Se bem reparares, durante grande parte da vida agimos mal,

durante a maior parte não agimos nada, durante toda a vida

agimos inutilmente. [...] É um erro imaginar que a morte esta a

nossa frente, grande parte dela já pertence ao passado, toda

nossa vida pretérita é já do domínio da morte [...] preenche

todas as tuas horas! Se tomarmos nas mãos o dia de hoje,

dependeras menos do dia de amanha. De adiantamento em

adiantamento, a vida vai se passando. [...] Ficas certo, caminha

para a morte desde que nasceste [...] Vivem mal os homens que

estão sempre começando a viver. [...] Sócrates debateu filosofia

na prisão e não quis partir, embora houvesse pessoas que lhe

prometessem o exílio, ele não quis evadir-se, ficou no cárcere

para exemplo de que não devemos recuar frente a estas duas

coisas: o cárcere e a morte!” (Cartas: 1, 4, 12, 23, 24)

Na análise de como Sêneca trabalha em sua obra com a morte, uma passagem

em particular chama-nos atenção, não só pela beleza com que as letras ali são utilizadas,

afinal, isto é recorrente no estoico, mas também pela síntese que Sêneca consegue fazer,

numa simples epístola, sobre seu pensamento referente ao findar da vida. Trata-se da

carta de número 63. Verdade seja dita, não só as Epístolas Morais que aqui a chamamos

de Cartas, mas quase toda obra de Sêneca perpassa pelo tema morte. Há sempre uma

frase, um conselho, uma referência que nos faz refletir conjuntamente com o filósofo

sobre o tema em questão. Na carta supracitada, Sêneca tem como intuito consolar seu

destinatário, Lucíolo, que está a sofrer com o falecimento de um amigo 100. À primeira

vista, Sêneca demonstra-se até um pouco rude com o amigo, posto que, ao consolá- lo,

100

Nomeado na epístola como Flaco.

67

aconselha-o a não deixar-se tomar pelo sentimento de tristeza e melancolia por muito

tempo. O próprio Sêneca faz a ressalva, como veremos logo mais, que seu conselho tem

nada mais que a tentativa de despertar no amigo a visão estoica da morte. A

naturalidade como Sêneca a encara pode, num primeiro momento, fazer-nos crer que tal

homem não é nutrido de sentimentos de compaixão e solidariedade, mas, seguindo na

leitura da epístola, percebemos que Sêneca transporta para os seus escritos o que vê na

morte. Sim, esta é passível de nos fazer entristecer e ficarmos até mesmo inertes, porém,

tudo em seu tempo, e assim como a vida é passageira, a tristeza e a dor pela perda de

um ente querido também o é. Ou seja, nada que vá de encontro ao pensar estoico dos

acontecimentos cíclicos, onde as coisas vão e vêm. A tristeza e a dor pela ausência

perene de um amigo ou ente querido, assim como vieram ao nosso encontro, certamente

um dia irão embora. Há de se ter equilíbrio e sabedoria para enfrentarmos com virtude

e dignidade tamanho percalço humano. Sêneca demonstra que por ser um ardoroso

amante da vida, e como não podemos ter ciência de quando esta terá seu termo,

devemos não nos preocuparmos com a morte. Pensar na morte sim, pois se trata de

exercício para estar preparado para ela, mas, deixar-se preocupar com a morte e não

viver a vida é ato condenável na visão senequiana. O prazo de nossa existência neste

mundo não está sob nosso controle, haja vista não termos poder para estendermos em

mais um dia sequer aquilo que já está determinado pela natureza. A perda de um amigo

suscita em nós a dor, porém, sábio é encarar com naturalidade tal questão. Vejamos nas

linhas que seguem algumas passagens da epístola que demonstram o que dissemos:

“Não ousaria exigir de ti que não sentisses o mínimo abalo

perante o facto, embora isso fosse o ideal. (...) Importa que,

perante o desaparecimento de um amigo, nossos olhos nem

fiquem secos, nem inundados. Chorar sim, desfazer-se em

prantos, isso não! Achas que te imponho uma lei severa? Ora,

até mesmo o maior poeta da Grécia concedeu às lagrimas o

espaço de um dia (...) O pranto não decorre da dor, mas do

desejo de mostrar aos outros que sofremos. (...) mes mo as

aflições mais acesas, cessam com o tempo. (...) a tua dor, ela

passará, e tanto mais depressa quanto mais intensa se mostra.

(...) Não interpretes mal os benefícios que a fortuna te deu, ela

te roubou um amigo, mas fo ra ela quem to tinha dado.

Gozemos intensamente a companhia de nossos amigos, até

porque não saberemos por quanto tempo o faremos. (...) E que

dizes tu daqueles que não ligam importância aos amigos vivos,

e os pranteiam exageradamente quando morrem? Parece que só

tem amizade pelos defuntos! Sou eu que te escrevo estas

palavras, eu que imoderadamente chorei meu grande amigo

Aneu Sereno. Eu que me incluo no número daqueles que se

deixaram vencer pela dor! Hoje, no entanto, condeno a minha

68

atitude passada, e compreendo que a principal causa do meu

excessivo pranto foi o nunca ter me passado pela idéia que ele

pudesse morrer antes de mim (...), como o destino se

preocupasse com a o rdem das idades! Sereno é mais moço do

que eu. E o que isso tem? Neste momento medito em que tudo

é mortal e que a mortalidade não obedece a qualquer lei. O que

é possível, tanto é possível hoje como em qualquer dia.”

(Cartas: 63, 1 e ss)

Assim como a dor, a doença, a pobreza e o exílio, a morte para o filósofo seria

indiferente – nem boa e nem má:

“A glória não está na morte em si, a gló ria está em morrer

valorosamente (...) não são boas nem más coisas como a

doença, a dor, a pobreza, o exílio, a morte (...) ninguém louva a

morte em si, mas sim o homem que a morte lhe arrebata sem

previamente lhe perturbar o ânimo.” (Cartas. 82, 11).

O que podemos aprender com tais passagens? Ora, a morte é um indiferente

porque não depende de nós, não está sob nosso encargo. E o que estaria sob o nosso

encargo então no tocante à morte? Estarmos sempre preparados, mantendo-nos dignos

para quando a hora derradeira nos consumir. Se não podemos evitar a morte, podemos,

com toda certeza, não temê-la.

O ideal pregado por Sêneca seria viver com dignidade frente a qualquer acidente

do destino, ou se preferirmos ser mais exatos, quaisquer mandamentos do destino aos

quais estamos subjugados, devemos encará- los com coragem, serenidade e dignidade.

Certamente um destes mandamentos é o nosso encontro com a morte. Sêneca nos diz

que Leônidas101 dirigiu-se aos seus soldados, dizendo: “Camaradas, jantai hoje na plena

certeza de que haveis de ir cear com os mortos! Sêneca completa: “A comida não se

lhes enrolou na boca, não se lhes colou na garganta, não lhes caiu das mãos” 102

101

Sêneca não fugindo a sua característica pedagógica cita exemplos de fatos atribuídos a personagens históricas para ilustrar sua filosofia. No caso em tela, Leônidas foi rei e general de Esparta de 491 a.c.

até a data de sua morte em 480 a.c. 102

Cartas: 82; 22

69

III.5) ÚLTIMOS DIAS DE SÊNECA.

Sua Morte, uma ação política?

Os três últimos anos da vida de Sêneca deram-se com o eminente senador

trabalhando nas Cartas a Lucílio, sua derradeira obra, onde durante este interregno

publica seus primeiros tomos. Encontrava-se em profunda meditação. Já realizado e

afamado como escritor e ciente que está sob o jugo e a desconfiança de Nero e que tal

destino o traria, no mínimo, consequências não muito felizes, tanto podendo ser o

desterro, como também, na pior das hipóteses, naquilo que poderia desencadear no

termo de sua vida. Tendo este panorama, dedica-se por isto ao ócio, afasta-se da vida

pública, engajando-se na política por outro caminho: difundir seu pensamento e seu

testemunho dos fatos que presenciou ou teve conhecimento e daí, como quase sempre,

desenvolver sua filosofia. As Epístolas são a obra-prima do mestre e este também é

ciente de tal fato. Promete, sem modéstia, ao amigo que devido a estas cartas, seus

nomes passarão à posteridade.

“Um dia passará sobre nós toda a profundidade do

tempo; apenas uns quantos gênios se elevarão de entre a

massa e, antes de algum d ia mergulharem também no

mes mo silêncio, resistirão ao esquecimento e manterão

vivo seu nome. O mesmo que Epicuro prometeu ao teu

amigo, eu te prometo a t i, Lucílio : a posteridade há de

se recordar de mim, hei de fazer com que alguns nomes

perdurem por estarem ligados ao meu.” (Cartas: 21, 5)

Em época que não se tolerava oposição, nem ao menos, sequer, indiferença, o

despotismo de Nero103 traria ao nosso filósofo um total afastamento da vida política.

Não por entender o regime cesarista como ilegítimo, ao contrário, afirmava o filósofo

senador em uma de suas passagens na obra Da Clemência: “O melhor dos regimes é

viver sob o governo de um rei justo.” 104 Apesar de republicano, Sêneca entendia que tal

época já não tinha mais retorno, não havendo o porquê de lutar por uma forma de

governo que não havia mais possibilidade de se restabelecer. “O arrivista de Córdoba

103

Não somente Nero, mas o cesarismo em geral não admitia nenhum tipo de indiferença para com os

Imperadores. A bajulação e a adoração eram exigências comuns praticadas por todos eles. 104

SÊNECA apoud: VEYNE: 2016

70

teria preferido viver no tempo da liberdade republicana, porém sem cultivar nostalgia

dessa República, que pertencia a uma era morta.” 105

Assim sendo, Sêneca não sendo um anticesariano, torna-se, secretamente - por

motivos óbvios - um antineroniano. Decide ser apenas filósofo. Esta será sua única

atividade. Abandona a advocacia e seus clientes, escreve que deixa o Forum e o Senado

para ter uma vida distinta da que até então tinha vivido. Numa das passagens das

Epístolas ele já demonstra esta vontade:

“Conheces lugar mais agitado que o Forum? Pois, se for

necessário, mes mo aí se pode viver com tranquilidade.

Claro que, havendo possibilidade de escolha, eu prefiro

ir para longe das vistas, quanto mais da vizinhança do

Forum!” (Cartas: 28,6)

Sua ação política se dará apenas pelo seu pensamento registrado nas Cartas,

afinal, era a única forma possível. Tenta a todo custo desvincular-se de Nero e entendem

alguns que a epístola 73 fora destinada a ele. 106 Sim, em tal carta há uma sutileza que

somente os grandes escritores são capazes de ter, deve-se lê- la nas entrelinhas, na razão

em que não demonstra nenhuma hostilidade ao Imperador, porém, isto não é argumento

para demonstrar que Sêneca com Nero concordava .

“O homem sincero e puro que abandona o Senado [...] e

todos demais cargos administrativos do Estado, este

homem só sente estima pelo príncipe que lhe permite a

libertação.” (Cartas: 73,5)

Sêneca, por não mais concordar com o despotismo de Nero, tenta incutir no

pensamento do imperador, mesmo que de forma indireta, que este só será digno de seu

respeito caso o liberte das obrigações para com o Estado e com ele próprio. Não mais

era aliado do imperador artista. No entanto, demonstrar isso publicamente não era uma

escolha pessoal, e sim uma escolha da política vigente, onde filósofos eram sempre

vistos como suspeitos. Afinal, o mais perigoso dos homens não é aquele que detém a

espada, mas sim o que traz consigo o brilhantismo no pensar. Daí a mensagem inserida

na epístola ter toda uma conotação artificiosa.

“No fim das contas, falar a linguagem art ificial da

adulação não era menos desonroso do que é para nós a

clandestinidade dos oponentes, quando eles fogem da

105

Veyne: 2016 106

“Estamos em questão de abordar os textos-chave de Sêneca, a saber, a carta 73, que é na verdade uma

carta aberta a Nero.” (VEYNE: 2016)

71

policia em vez de desafiá-la à luz do dia.” (VEYNE:

2016)

Com o assassinato de Agripina, mãe do imperador, assassinato este engendrado

e realizado pelo próprio filho, Nero traz para si a desconfiança do povo romano, haja

vista que, ao assassinar a própria mãe, todos os súditos passaram a se perguntar quais

seriam os limites do príncipe romano. Há vários relatos contraditórios sobre em que

circunstância deu-se a morte de Agripina. Quase todos, porém afirmam que Nero a

assassinou. Fiquemos aqui com o relato de Suetônio:

“Depois de três tentativas de envenenamento, e como havia

percebido que ela se premunira de antídotos (...) de forma

rápida tramou o assassínio da mãe e sustentava a todos que ela

havia se suicidado”. (SUETÔNIO: A Vida dos Doze Césares.

Nero)

Tentando reverter tal situação, Nero almeja impor na mente de seus súditos

sujeição à sua divindade e glória. Entretanto, grave crise financeira se abate sobre o

Império e o crescimento da oposição ao seu reinado faz com que o déspota torne-se

mais cruel. Seus conselheiros, Sêneca sendo o principal, já não viam mais volta neste

percurso. Ou seja, a crueldade e o despotismo já não permitiriam a Sêneca ter

influência no governo neroniano.

Lembremos que Sêneca é filósofo por excelência, logo, a dedicação e a lealdade

a sua própria filosofia contribuíram de forma cabal para que este abandonasse a vida

pública. Seu papel, agora um mero coadjuvante, não o mais satisfazia. Abandonando o

Forum, Sêneca deseja não transparecer o foco, aos olhos de Nero, de que seria um

homem opositor ao governo. Sua vida agora é de filosofar e testemunhar os sombrios

tempos.

“Mas um rei não se limita a dar proteção aos filósofos!

É evidente que não. Mas vejamos. Imagina que Neptuno

proporcionou uma travessia marít ima a mais completa

calmaria: não é verdade que em idênticas circunstancias,

um homem cujo navio transporta uma carga maior e

mais preciosa se mostrará mais grato para com o deus?

O sábio, por conseqüente, reconhecerá sua imensa

dívida ao príncipe cu ja admin istração e supervisão lhe

facilitam o ócio. Produtivo, a liberdade de usar a seu

tempo, e uma tranqüilidade que as perturbações públicas

não vem perturbar.” (Cartas: 73, 5 e 10)

72

São muitas passagens nas Cartas que dão a pista de que Sêneca quer

sinceramente ser eximir da vida pública. Admirador de Sócrates, utiliza-o como

exemplo para justificar a conduta daqueles homens que não temem o tirano, mesmo que

todos ao seu redor o temam. A Tirania dos Trinta 107, na época socrática serve como

pano de fundo para descrever e talvez, de forma análoga à sua vida, perceber que ele,

Sêneca, está também diante de um dilema.

“Acaso pode encontrar uma cidade mais desafortunada

do que foi Atenas no período em que os Trinta Tiranos a

dilaceraram? Eles mataram mil e trezentos cidadãos,

dentre os mais notáveis. (...) Sócrates porém movia-se

neste meio, consolava senadores que se lamentavam,

exortavam os que se desesperavam da situação política,

aos ricos que se temiam por suas posses ele repreendia o

arrependimento tardio de sua perigosa avareza, e para os

que desejavam imitá-lo, figurava como um grande

exemplo ao avançar livre entre os trinta potentados.

Essa mes ma Atenas porém matou-o no cárcere (...) Vale

notar que numa situação opressiva, um homem sábio

encontra ocasião para se manifestar e numa situação

próspera, e feliz, reinam o d inheiro, a inveja e outros

mil v ícios da inércia” (Da Tranqüilidade da Alma: 5;1 a

3)

Ou seja, o dilema de Sêneca era, como Sócrates, manter-se ao lado dos trinta

tiranos, que no caso de Sêneca se unificavam na pessoa de Nero, ou escolher a

liberdade, a um preço muitíssimo caro, para trilhar em vida os caminhos da virtude em

que acreditava ser necessário um homem passar. Sêneca escolhe a segunda opção, mas

utiliza-se de uma estratégia diferente, fazer Nero crer que este não era visto como

inimigo.

Contextualizemos a situação por que passava o eminente pensador: seria

possível ir frontalmente contra aos caprichos de Nero, homem com poderes sobre a vida

e a morte de qualquer pessoa que tivesse os pés sobre o território de seus domínios – o

gigantesco Império Romano? Ora, a Sêneca restava nada mais nada menos que calar-se

ou fazer seu protesto desviado através de metáforas escritas nas Cartas. Numa época em

que não bastava apenas não se opor ao governo, mas também aplaudi- lo, onde a opinião

107

Depois de derrotar Atenas na guerra do Peloponeso, em aproximadamente 400 a. C, Esparta estabeleceu em Atenas um governo de trinta pess oas, denominadas magistrados. Estes construíram um

senado composto por quinhentos membros, extremamente oligárquico, cooptados entre os seus partidários.

73

própria deveria prostrar-se diante da vontade do Imperador, nada restou a Sêneca senão

criticar o poder constituído através do artifício do se passar por bajulador.

Vejamos a carta de número 73. Aquela a que nos referimos nas linhas acima.

Num primeiro momento pode, aos olhos de muitos, ser de uma incoerência atroz os

escritos ali registrados. Esta Carta é extremamente icônica no que se refere à tentativa

de Sêneca de se livrar dos jugos do imperador, mas também há naqueles dizeres

algumas considerações sobre o posicionamento político do filósofo. Apesar do

destinatário da mesma ser seu amigo Lucílio, devemos lembrar que tais cartas eram

públicas e, sendo assim, certamente Nero teve conhecimento de seu conteúdo. O

missivista inicia a mesma afirmando que permanecem em erro aqueles que entendem

que ser filósofo é ser homem possuidor de oposição ferrenha ao governo estabelecido e,

por conseqüência, à sua maquina de governar, ou seja, à administração pública. Ao

contrário, é justamente a estas pessoas, e principalmente ao primeiro cidadão, ou seja,

ao príncipe, a quem o filósofo deve devotar gratidão.

“É precisamente o contrário que se passa: nenhuma classe de

pessoas lhe tem maior gratidão (membros da admin istração

publica e o imperador) e com toda a justiça, pois a ninguém os

seus préstimos são mais notórios que aos filósofos. Aos quais

proporcionam as benesses de uma vida de ócio e tranqüilidade.

Os filósofos, portanto, que nos seus esforços com v ista a uma

vida consagrada à moral, só têm a beneficiar com a segurança

social, veneram como a um pai o príncipe a quem devem tal

benesse, têm mesmo para com eles uma v ida muito superior à

dos que vivem no meio da agitação política, pois estes, embora

muito devam aos príncipes, muito também exigem deles, como

gente cujas ambições, tanto maiores quanto mais são

satisfeitas, , liberalidade alguma pode contemplar a ponto de

deixar saciadas.” (Cartas: 73, 1 e 2)

Sêneca nos fala ainda sobre a liberdade e paz desfrutadas pelos cidadãos do

império e que estes devem ao soberano, no caso em tela, o imperador, o desfrute de uma

cidade pacífica e livre. Afirma ainda que compete ao filósofo estar situado no ócio, e

por isso ele, Sêneca, não estaria em posição de rebeldia frente ao Estado. Ao contrário,

os filósofos seriam os verdadeiros e leais cidadãos do Imperium. Mas não seria um

pensador, por excelência, um homem rebelde às incongruências impostas pelo Estado

aos seus cidadãos? Num primeiro momento, sim. Mas devemos ter um olhar mais

apurado sobre este paradigma. Afinal, devemos nos atentar para o fato de que Sêneca

quer sua aposentadoria, quer a todo custo sair das amarras a que está atrelado o “homem

de Estado”. Verificamos que em nenhum momento da epístola o nome de Nero é citado,

74

no entanto, através de uma mensagem artificiosa, Sêneca tenta transpassar o fato de que

não será hostil ao imperador. Mas não ser hostil ao imperador significa aliar-se a ele?

Entendemos que não. Trata-se de fazer apenas uma aliança aparente, posto que, a

lealdade prometida pelo filósofo é a um soberano sem nome. Nero, conta a histór ia,

tinha a todo instante o vício do desejo de ser citado e lembrado. 108 Ao não ser citado nas

Cartas, Sêneca utiliza-se da adulação como uma arma antineroniana. É valido dizer que

Nero já havia recusado a Sêneca seu afastamento.

“Dois anos antes desta carta, Nero recusa a Sêneca sua

aposentadoria como amigo do príncipe, alegando que

qualquer um que não estivesse com ele estava contra

ele. A carta de numero 73 sustenta que é possível ser

antineroniano sem por isso ser pró-neroniano”

(VEYNE: 2016)

Ou seja, Sêneca fora condenado duas vezes. Uma, a permanecer fiel ao

Imperador. Outra, mais adiante, a condenação derradeira. Nero que não poupara seus

mais próximos aliados, parentes e afins, não teria para com o filósofo posição diferente.

Condena-o ao suicídio. Assim, aquele que em boa parte de sua extensa obra advoga a

tese de que devemos durante toda a vida estarmos preparados para a morte, terá a sua

prova de fogo. Fora condenado à morte por conspiração. Sua postura perante a morte

fora conforme apregoara? Segundo o mais famoso relato que temos deste fato, nos

deixado pelo historiador Cornélio Tácito 109 , sim. Sêneca encarou a morte com a

dignidade que sempre apregoara.

Entendemos que não podíamos pôr termo a este trabalho senão com a descrição

dos derradeiros momentos do estoico romano. Para tal, utilizaremo-nos da versão

narrada nos escritos do historiador supracitado. Esta ocupa alguns poucos parágrafos de

seus Anais. Após, devido à beleza das linhas ali compostas, as transcreveremos em sua

íntegra.

Tácito nos informa que Sêneca, ciente de que sua condenação é iminente, espera

o oficial de Nero trazer- lhe em casa sua sentença. Quando este chega, solicita a

108

Conta-nos Suetônio: “Sonhava irrefletidamente em ter seu nome eternizado e em sua memória

perpetuada. Mudou a denominação de várias coisas e de vários lugares, com o propósito de substituí -los por um designativo tirado de seu nome. Designou o mês de abril o mês de Nero. Tinha como projeto substituir o nome de Roma por Nerópolis.” (A Vida dos doze Césares. Nero.) 109

Cornélio Tácito. (Nasceu em 56. Morreu em 117) Foi um senador e historiador romano. As porções

sobreviventes de suas duas maiores obras "Anais" e "Histórias" tratam dos reinados dos imperadores Tibério, Cláudio, Nero e os imperadores do ano dos quatro imperadores (69), um período de tempo que se estende da morte de Augusto, em 14, até a primeira guerra romano-

judaica em 70. Há muitas lacunas nos textos, incluindo uma em "Anais" que corresponde a quatro livros inteiros.

75

permissão para que possa redigir seu testamento. O oficial recusa seu pleito. Diante

disto, Sêneca afirma aos amigos ali presentes que diante da proibição de testemunharem

sua gratidão para com eles, deixará seu único bem restante, a imagem de sua vida. É

esta lembrança da imagem de Sêneca vivo, porém diante da morte, sereno e leve, que

fará com que estes virtuosamente percebam a gratidão devotada pelo condenado aos

seus próximos e amados. Suetônio110 nos relata que após a condenação, escasso tempo

de vida restava aos infortunados. Não há tempo para pranto nem mesmo lamentações.

Para todos os condenados à morte, não restava mais que

uma hora de existência. E de forma a impedir qualquer

retardamento do fim eminente, (Nero) enviava médicos

para curar sem demora os hesitantes. Ou seja, para

abrir-lhe logo as veias. (SUETÔNIO. A Vida dos Doze

Césares: Nero)

Diante da trágica cena, seus amigos, segundo as palavras de Tácito, não seguram

o pranto, e Sêneca firmemente os admoesta para que mantenham a compostura. Afinal,

o que a sabedoria os ensinara? Que não deveriam assim se comportar diante daquilo que

está determinado pelo destino. Não se tratavam de estoicos? Não era previsível a atitude

do imperador? Por que a surpresa? Lembrou aos mesmos que o seu algoz já tinha dado

fim às vidas da mãe e irmão. Por que haveria de poupar seu conselheiro e educador?

Nada havia a temer, posto que, tentou viver de forma virtuosa, e se não atingiu

este objetivo, ao menos na morte deveria assim se comportar. Afaga sua esposa, a

consola, dirigindo- lhe palavras que demonstram que o filósofo estoico encontrava-se

convicto de sua forma de vida e que apavorar-se no momento derradeiro não mudaria as

letras do livro do destino. Esta, tomada pela dor da tragédia que se consumará, solicita

que seja tomada pelo fio do punhal. Sêneca, que a amava e a prezava, afirma a Paulina

que esta teve nos exemplos e nas palavras do filósofo respaldo para que a tenha ânimo

para transpor tal obstáculo, no entanto, se assim desejava, por fim à própria vida, que 110

Caio Suetônio Tranquilo. Suetônio: ( Roma 69 d.C. — ca. 141 d.C.) foi um escritor latino. Passou à

posteridade devido a obra de sua autoria denominada A Vida dos Doze Césares . Nesta, relata, entre outras biografias, a do Imperador Nero. Sêneca, logicamente não poderia deixar de ser citado. Deixamos registrado aqui as três passagens, todas tiradas do livro referente a Nero, onde Sêneca é lembrado:

(1)“(Nero) Foi adotado por Cláudio, aos doze anos e confiado aos cuidados de Aneu Sêneca. O que se diz é que Sêneca tinha sonhado na noite antecedente que era preceptor de Caio Cesar Calígula e Nero justificou total e rapidamente este sonho, fornecendo o mais cedo possível os traços de sua natureza feroz.” Devemos lembrar que Calígula é visto muitas vezes como o mais cruel imperador que Roma já

teve, o que explica as palavras de Suetônio quanto as premunições de Sêneca. (2) “Obrigou Sêneca, seu preceptor, a se suicidar, mesmo diante dos seus freqüentes pedidos ele tivesse respondido com juramento aos deuses de que ‘suas suspeitas eram vã s e que preferiria morrer a fazer-lhe mal.’ (3) “Seu

preceptor, Sêneca, sonegou-lhe o conhecimento dos antigos oradores, com o propósito de fixar mais sobre si mesmo a admiração de seu discípulo.

76

assim fizesse, ratificando assim sua postura filosófica no que pensava sobre o suicídio:

se não há outra saída digna para se manter no lócus do bem moral, tal ato extremo,

suicídio, é a única saída.

“O sábio considera indiferente se sua morte é natural ou

voluntária, se ocorre mais tarde ou mais cedo. (...) Morrer mais

cedo, morrer mais tarde – é questão irrelevante; relevante é,

sim, saber se se morre com dignidade ou sem ela, pois morrer

com dignidade significa escapar aos perigos de viver sem ela.”

(Cartas: 70, 5 e 6)

Sêneca, após oferecer anuência à esposa que com ele ponha termo à vida, não

sem antes dizer- lhe que o seu ato de compaixão e solidariedade para com ele será muito

mais glorioso que o seu próprio, corta as próprias veias e a da esposa.

Se nos transportarmos mentalmente à cena relatada pelo historiador, nos

impressionaremos como Sêneca sofre terrivelmente as dores do seu fim. Sua morte deu-

se vagarosamente. Devido à idade já longeva e ao estado de saúde precário, seu

sofrimento é potencializado. O sangue jorra. Temendo que sua esposa fraqueje diante de

agouro tão atroz, solicita para que se conduza a um aposento contíguo ao lugar onde se

desenrola a tragédia. Ainda teve forças para ditar um longo texto aos seus subalternos.

Tácito nos relata que não os transcreveu, posto que, à época, este texto fora publicado e

era de conhecimento de muitos. Infortunadamente tal publicação não chegou até nós, e

assim fomos ceifados do privilégio de termos ciência das ultimas palavras do

importante filósofo. Imaginamos aqui o quanto nós perdemos ao não ter acesso às

importantes e certamente sábias palavras derradeiras proferidas por Sêneca em suas

últimas horas. Abrindo aqui parênteses, apenas para exercício intelectual, podemos

dizer que hoje, se estas palavras até nós tivessem chegado, teríamos uma espécie de

versão latina do Fédon. Sim, teríamos nos dias hodiernos uma descrição minuciosa do

pensar de Sêneca sobre a morte estoica, posto que, o filosofo estaria filosofando sobre a

mesma no exato momento em que a lhe encarava frente a frente. O belíssimo discurso

de Sócrates, lá no Fédon, é de uma admirável e plácida naturalidade que tem sido

“ouvido” e admirado no decorrer dos séculos. Acreditamos que o mesmo se daria com

Sêneca no tocante a esta questão. Fechemos os parênteses e voltemos ao relato em que

antes nos concentrávamos:

A esposa de Sêneca, Paulina, Nero não permitiu que morresse. Os soldados do

imperador incitaram os escravos de Sêneca para que salvassem a sua mulher. A sangria

por que ela passava fora estancada através de curativos. O relato de Tácito nos diz que

77

Paulina ainda viveria alguns anos sem deixar de mostrar em seu semblante as marcas

que a falta do amado lhe impusera.

Ainda sobre Sêneca, Tácito nos conta que sua morte deu-se de forma muito

sofrida. Podemos depreender que esta lentidão somente potencializou a dor. Para

atenuar seu sofrimento, bebe veneno, provavelmente o mesmo que fora oferecido a

Sócrates, mas o mesmo não fizera efeito. Seu corpo já se encontrava inerte e frio, no

entanto, vivo. Oferece sua libação a Júpiter, onde podemos lembrar aqui que deus pode,

no olhar do filósofo, ser clamado por vários nomes. Ao entrar num banho quente e

sendo mais tarde, mediante sua solicitação, levado à sauna da casa para morrer sufocado

pelo vapor. Teve seu corpo cremado, de forma estoica, sem pompas, conforme

registrado em seu testamento escrito anteriormente.

O que podemos depreender de tal narrativa? Mesmo que Tácito a tenha floreado

com uma dramaticidade teatral, afinal, não se tratava de historiador contemporâneo do

protagonista e sabedores somos que quanto maior a distância do narrador para o tempo

que o fato narrado se deu, maior a chance deste fugir, mesmo que não intencionalmente,

à verdade, devemos admitir que Sêneca deixa-nos um legado de que realmente fora

filósofo. E filósofo estoico. O que chegou a Tácito é a mais pura síntese de uma morte

estoica. E por isso narra como a morte de Sêneca se dá de forma estoica.

Sêneca preparou-se em vida para a morte, conforme defendeu em sua filosofia, e

morreu de forma digna e sem conflitos e jamais vociferou contra o que o destino lhe

impusera. Afinal, aquilo que pode parecer um mal, aos ditames do destino, é um bem

para todo o Universo. Assim sendo, Sêneca aceitou os ditames determinados pela

fortuna como um estoico deveria fazer. Sua morte, mesmo que Sêneca nada tivesse

escrito, é um legado filosófico. Há alguns que comparam a morte de Sêneca com a

morte de Sócrates, o que aqui também defendemos se oferecermos credibilidade às fala

de Tácito. Outros dizem que é apenas comum na morte de ambos o fato de deixarem a

vida proferindo discursos aos amigos. Independente destas comparações, o importante é

ressaltar que para a filosofia que Sêneca pregava, era necessário que esta se

materializasse no terreno da ação. Filosofia, para Sêneca, se perfaz também, e

principalmente, no terreno da ação. Não coadunar o seu pensar, os seus escritos, aquilo

que advogou e defendeu durante toda vida sem por em prática, em ação toda a teoria

defendida, era para Sêneca, atroz contradição, onde tal postura não permitiria a ele se

denominar filósofo. A filosofia não se produz apenas nas letras, mas, antes de tudo, nas

páginas cunhadas no livro da vida, onde o exemplo deve persistir até o momento

78

derradeiro. Parece-nos que Sêneca alcançou senão em vida, ao menos na morte esta

máxima filosófica. A filosofia é ferramenta para instruir através do exemplo e da ação.

Conforme dito nas linhas acima, segue agora o relato de Tácito:

Sêneca, sem nenhum temor, pediu tábuas para redigir um

testamento e, com a negativa do centurião, voltando-se a seus

amigos, disse-lhes que, dado que estava impedido de gratificar

os méritos destes, deixava-lhes um único bem, ainda que fosse

o mais belo que lhes podia dar que era a imagem de sua

própria vida; da qual, se tivessem memória do que ela tivera

de estimável, estariam pagos com a honra de uma amizade tão

constante. Junto a isso, ante as lágrimas deles, já com palavras

amorosas, já com severidade à guisa de correção, procurava

reconduzi-los à firmeza de ânimo, perguntando-lhes onde

estavam os preceitos de sabedoria, onde a resolução de

conduta preparada durante tantos anos para opor-se a

qualquer adversidade iminente? Havia alguém que ignorasse a

crueldade de Nero? E que estava faltando àquele que ordenara

o assassinato da mãe e do irmão senão mandar matar também

o que fora seu educador e preceptor?

Depois de ter feito tais considerações e outras semelhantes a

seus amigos todos, ele abraça sua esposa, e um tantinho

emocionado em v ista dos temores do momento, faz-lhe

exortações e pede-lhe que tratasse de temperar, e não de

eternizar, a dor pela perda de um marido, mas que ela a

suportasse tomando honesto consolo na contemplação de uma

vida dedicada à virtude. Ela, por seu turno, afirmando que

também tinha tomado a resolução de morrer então, pede com

grande instância a mão de um matador. Com isso, Sêneca, não

querendo impedir-lhe a glória e ao mes mo tempo amando-a

com ternura, para não abandonar a mulher que fora tão cara a si

e só a si às injúrias, diz-lhe: “Eu te havia indicado os

conselhos de que tinhas necessidade para levar a vida adiante,

mas vejo que escolhes a glória da morte. Não penso mostrar

que te tenho inveja ao exemplo que hás de dar de ti, nem

estorvar-te essa honra. Seja igual em nós dois a constância de

nosso generoso fim, ainda que seja certo que o teu será mais

resplendente”. Depois disso, cortaram-se ao mesmo tempo as

veias dos braços pelo mesmo ferro. Sêneca, que tinha o corpo

muito velho e enfraquecido por larga abstinência, a ponto de

fazer derramar sangue muito lentamente, cortou também as

veias das pernas e dos tornozelos. E extenuado pela crueldade

daqueles tormentos, para não afetar com as mostras de sua dor

o ânimo da esposa e para ele mes mo não cair em fraqueza

vendo o que ela padecia, persuade-a a que se retire a outro

aposento. E servindo-se de sua eloquência até aquele ú ltimo

momento de sua vida, chamando quem escrevesse, ditou

muitas coisas que, por terem ficado no vulgo com as mesmas

palavras, deixarei de registrar.

Nero, porém, sem nutrir contra Paulina nenhum ódio pessoal

e temendo que sua crueldade se tornasse odiosa demais,

79

ordenou que a impedissem de morrer. Sob os rogos dos

soldados, seus escravos e libertos pensaram-lhes as feridas dos

braços e estancaram-lhe o sangue. Ignora-se se isso foi contra a

vontade de Paulina; pois no vulgo, inclinado às piores

interpretações, não faltou quem acreditasse que ela tinha

procurado partilhar da honra da morte de seu marido enquanto

suspeitou que Nero fosse implacável, mas que, depois, quando

uma esperança mais doce lhe tinha sido o ferecida, ela acabou

vencida pelas branduras da vida. Viveu ela ainda alguns anos,

fiel à memória de seu esposo, conservando uma palidez

extrema que mostrava quanto de sua força v ital se lhe tinha

esvaído. Entretanto Sêneca, vendo o sangue verter-se com tanta

dificuldade e a morte vir tão devagar, solicitou a Estácio Aneu,

em quem sabia por experiência ser dotado de uma amizade fiel

e da arte da medicina, que lhe trouxesse um veneno já

preparado de antemão: o mes mo que se dava aos condenados

por julgamento público em Atenas. Sêneca tomou-o, mas foi

em vão: seus membros já estavam frios, e o corpo não podia

dar livre curso ao efeito do veneno. Enfim, ele entrou em uma

banheira de água quente e aspergindo os escravos que lhe

estavam mais próximos, acrescentou: “Ofereço esta libação a

Júpiter Liberador”. Em seguida foi levado a um aposento de

estufa, onde o vapor o sufocou. Seu corpo foi cremado sem

pompa solene, como antes o ordenara em seu testamento,

enquanto, ainda muito rico e muito poderoso, pensava no que

se faria em seus momentos derradeiros. (Tácito, Anais, XV, 62-

64)111

Registremos aqui que os Anais de Tácito, de onde retiramos e

transcrevemos a passagem acima, são sua última obra, escrita aproximadamente

cinqüenta anos após a morte de Sêneca. Tácito era um historiador que se

prestava a narrar os acontecimentos políticos nos reinados dos imperadores

Tibério, Calígula, Claudio, Nero e dos quatro imperadores 112 do ano de 69.

Distintamente de Sêneca, trata-se de homem que repugna a política

neroniana de forma expressa, algo que podia fazer sem temor, afinal, Nero já

havia morrido e com ele deu-se termo a dinastia júlio-claudiana. Assim, é

possível que seu relato sobre as últimas horas do filósofo não tenha se dado de

forma isenta como prescreve os mandamentos de uma boa narrativa histórica.

Entretanto, vemos em outros relatos de Tácito uma aguda crítica aos

desmandos do imperador (atitude inconcebível a ser tomada por Sêneca a não

ser que este estivesse disposto a pagar um alto preço: a própria vida) a ponto de

nomeá-lo como déspota e no relato acima descrever a morte do filósofo como

111

Apoud VEYNE: 2016 112

Tratam-se dos Imperadores Galba, Otão, Vitélio e Vespasiano.

80

algo digno de admiração. Aquele que conhece a narrativa descrita por Platão na

majestosa obra Fédon, onde encontramos o relato das últimas horas de vida do

filósofo grego Sócrates, verificará a semelhança da narrativa, no que tange à

postura de ambos frente à morte113, posto que, tanto Sócrates como Sêneca, no

chegar da hora derradeira, encaram a morte de forma serena e naturalmente,

tendo em vista que é melhor morrer digna e honradamente do que se entregar

aos pressupostos de uma vida não virtuosa. A pergunta que podemos inserir aqui

é: o quanto da narrativa de Tácito, no que se concerne às derradeiras horas do

filósofo estoico, não é uma tentativa de transformar Sêneca num herói

filosófico? As semelhanças são muito evidentes: ambos condenados a morrer

encararam a morte como ação libertadora, ambos morreram cercado de amigos e

durante o esvair iminente de suas vidas, proferiram discursos filosóficos, ambos

ao invés de serem consolados, consolaram os amigos. O que queremos expor

aqui é que há um grau de possibilidade considerável de que os acontecimentos

narrados por Tácito, e já dissemos isto, num certo sentido, em linhas acima,

sejam uma tentativa do historiador romano transformar a morte de Sêneca num

teatro onde, assim como Sócrates, Sêneca fora a encarnação do apogeu do

filósofo. Não haveria na narrativa de Tácito uma visão extremamente subjetiva

da morte do filósofo? Não estamos aqui a advogar esta tese, apenas a trazemos

como ilustração de uma possibilidade. Afinal, fato histórico é a condenação do

filósofo ao suicídio. Condenação esta impetrada pelo imperador.

Lembremos que Sêneca imprimiu hercúleo esforço para livrar-se do jugo

de Nero, oferecera- lhe até mesmo toda sua fortuna, segundo relato do próprio

Tácito que transcreve nestes mesmos Anais os dizeres peticionários do filósofo.

O historiador ainda nos apresenta a resposta de Nero a esta petição, utilizando-se

inclusive de certo sarcasmo frente às apresentações de agradecimento oferecidas

por Sêneca diante da recusa de Nero.

Sêneca – assim como é o final de todas as conversas

com um déspota – agradece, mas muda os hábitos de

seu poder anterior, afasta-se da multidão que o

homenageava, evita os seus companheiros, faz-se pouco

113

Há quem não veja semelhança na morte dos dois, o historiador contemporâneo Veyne afirma:”A

morte de Sêneca não é uma imitação da morte de Sócrates, como se ouve por aí, ela se inspira na doutrina estoica, Sócrates é morto agradecendo a Esculápio por libertar sua alma do corpo. Sêneca morre agradecendo ao deus estoico por ter lhe dado meios intelectuais de morrer por vontade própria.

O único ponto em comum é banal: ambos morreram proferindo discursos fi losóficos aos amigos. (VEYNE: 2016)

81

frequente na cidade, como se, pela saúde frág il ou pelos

estudos da filosofia, mantivesse-se em casa. (TÁCITO.

Anais. XIV, 56)114

Independente da forma como se deu seu suicídio, podemos afirmar que a morte

de Sêneca é também um acontecimento político, onde, provavelmente, despertou

paixões tanto favoráveis quanto desabonadoras referentes à conduta de vida do filósofo.

Ao estar inserido nos primórdios de sua vida política nos palcos do poder e já em seu

final nos bastidores, Sêneca, desejando ou não, faz de sua morte um fato além de

filosófico, também político. Porque dizemos isso? Ora, Sêneca era homem político,

cidadão romano que teve influencia extremamente pertinente na vida e decisões

políticas de Roma e como tal, seus escritos não fugiam às questões políticas, e ainda,

morreu por não concordar politicamente com Nero.

114

Apoud MARTINS ESTEVES (2011). Transcrevemos aqui a título de curiosidade passagens do relato

de Tácito, tanto da petição de Sêneca para se abdicar dos encargos de amigo do imperador (1), como a

resposta de Nero (2). Ambas retiradas dos Anais

(1) Sêneca (...) ev itando o imperador sempre mais a sua companhia, solicita uma ocasião para audiência e,

tendo sido esta concedida, começa deste modo: “Este é já o décimo quarto ano, César, desde que fui

associado a suas expectativas, e o o itavo, desde que obtiveste o poder. Durante este tempo, cumulaste-me

com tantas riquezas e honrarias, de modo que nada mais falta à minha felicidade senão o saber moderar

tudo o que tenho. (...) Eu, o que poderia contrapor à tua liberalidade senão os estudos, por assim d izer ,

cultivados à sombra, e que só tiveram fama porque eu fui reconhecido como aquele que te assistiu com os

rudimentos da tua primeira juventude, grande recompensa à minha obra? Mas tu cumulaste -me com um

imenso reconhecimento, com uma fortuna incomensurável, (...) sou contado entre os mais importantes da

cidade? Entre os nobres e portadores de antigas honrarias a minha origem recente brilhou? Onde está

aquele espírito, contente com poucas coisas? (...) Uma só defesa me ocorre: que eu não devia me opor a

teus dons. Ambos já atingimos a medida: por um lado tu, de quanto um imperador possa dar a um amigo,

por outro eu, de quanto um amigo possa receber de um imperador. O resto aumentará a inveja, que, em

verdade, como todas as coisas mortais, resta aquém de tua grandeza, mas pesa sobre mim, e eu preciso me

proteger. Assim como se, cansado, na vida militar ou na rua, te pedisse uma ajuda, agora, neste caminho

da vida, velho e incapaz mesmo dos mais leves encargos, como não possa mais sustentar os meus bens,

peço ajuda. Ordena que estes sejam admin istrados por teus procuradores e sejam revertidos para o teu

patrimônio. Eu não me reduzirei à pobreza, mas, deixados aqueles bens por cujo brilho sou ferido,

retomarei no espírito as coisas das quais me separaram os cuidados dos jardins e das vilas. Restam a t i o

vigor e, visto por tantos anos, o governo supremo; nós, os amigos mais velhos, podemos reclamar o

repouso. ” (2) A estas palavras, Nero respondeu mais ou menos assim: “O fato de poder responder de

imediato ao teu d iscurso preparado devo a ti, que me ensinaste a desenvolver não só os temas preparados,

como também os imprevistos. (...) Mas me deste o que a condição do momento exigia e, com a razão,

com o conselho e com os preceitos, sustentou minha infância e, em segu ida, minha juventude. E os dons

que me deste, enquanto eu tiver vida, serão eternos; aqueles que tens de mim, jard ins, rendimentos e vilas,

estes são sujeitos ao acaso. (...) Envergonha-me citar filhos de libertos que se mostram mais ricos: donde

também me causa rubor que tu, superior em meu afeto, ainda não te anteponhas a todos em fortuna. Mas

tua idade é ainda v igorosa, capaz de gerir negócios e de gozar de seus frutos, e nós começamos os

primeiros passos do império (...) se me devolveres teu dinheiro, nem a quietude, se abandonares o

príncipe, que correrão na boca de todos, mas sim a minha avareza e o medo da minha crueldade. Isso

porque, se, sobretudo, a tua continência devesse ser louvada, não conviria a um homem sábio receber a

glória do mes mo fato que causa infâmia a um amigo.” A estas palavras acrescentou beijos e um abraço,

afeito por sua natureza e exercitado pelo hábito a ocultar o ódio sob carícias enganadoras. (TACITO.

Anais, XIV, 54 – 56, apoud: MARTINS ESTEVES: 2011)

82

É verdade que há quem diga que o estoicismo não oferecera linhas férteis a este

tema. Todavia, é possível afirmar que Sêneca nos legou vários textos onde a política se

faz presente de forma pertinente. Como ilustração podemos citar alguns: Da Clemência,

dedicada a Nero, ensaio de caráter moral cujo conteúdo é uma advertência ao imperador

sobre os perigos da tirania, mostrando como exemplos príncipes bons e tiranos; Da

Brevidade da Vida onde encontramos uma análise perspicaz das sociedades corruptas de

sua época; Da Ira, que segundo alguns fora destinada a Calígula, outros alegam que o

destinatário é o imperador Cláudio. Neste tratado Sêneca torna público o mal advindo

desta paixão humana frente à sociedade, paixão esta tão presente nos imperadores de

sua época. Da tranqüilidade da Alma, outra obra que não poderíamos deixar de citar,

cujo tema central é a participação do homem na vida pública. 115 Abrimos aqui um

parênteses para tecermos alguns comentários sobre esta última. Trata-se de um diálogo

entre o nobre filósofo e seu amigo Sereno, onde este último faz perguntas ao filósofo

estoico no intuito de saber como se postar perante aos percalços da existência humana.

As respostas de Sêneca quase sempre denotam um viés político, posto que, algumas das

questões apresentadas por Sereno se enquadram nesta seara. É importante verificarmos

que o próprio Sereno faz menção aos mestres do antigo estoicismo demonstrando a

importância da participação do homem estoico na vida política.

“Gosto de seguir o que mandam os preceitos e de inserir -me na

vida pública, gosto dos cargos e das prerrogativas, não,

evidentemente, da púrpura ou de assumir funções com direito a

lictores, mas para estar mais apto a servir e ser útil para amigos

e parentes, para todos os cidadãos, e, por fim, para todos os

homens. Resoluto, sigo Zenão, Cleanto, Crisipo, dos quais,

porém, nenhum se ocupou da política, mas nenhum a

deixou de lado.”116

( Da Tranquilidade da Alma. 1, 10)

Sêneca sabiamente responde ao seu interlocutor, que se lamenta das condições

nefastas da vida pública, tendo em vista a hipocrisia e a ambição pelo poder reinante

neste segmento de atuação social, que a atuação política do filósofo pode se dar além da

esfera pública. A atuação política não se perfaz apenas nos círculos políticos, através de

cargos ou ações de natureza pública. O homem pode atuar politicamente na sua vida

privada através de meandros externos ao poder. Ou seja, independentemente de outras

atividades que pode o homem exercer, comandar um império, ser um alto membro da

corte, estar imbuído das atividades responsáveis pela administração fisca l e tributária do

115

Para todas essas obras, ver comentários de PESSANHA: 1985 116

Grifo Nossso

83

Estado, ser membro da casa legislativa responsável pela feitura das leis, que no caso em

tela se configurava no Senado, fazer filosofia é também uma atividade tipicamente

política. Vejamos o que nos diz o filósofo:

“Queres saber que auxílio eu penso que deva empregar contra

este tédio. O melhor, como diz Atenodoro, seria deter-se nos

afazeres da administração pública e nos deveres jurídicos . De

fato, assim como alguns passam o dia ao sol, a se exercitar e

cuidar do corpo (...), outros preparam sua alma para os

confrontos das atividades civis, para quem o mais belo é

consagrar-se a essa ocupação, pois, quando, se tem o propósito

de tornar-se útil aos concidadãos e a todos os homens, a um só

tempo exercita-se e aprimora-se quem se tenha lançado a essas

obrigações, admin istrando interesses coletivos e particulares na

medida de sua capacidade. Porém, afirma o filósofo, „diante de

tão intensa ambição dos homens , de caluniadores, que

distorcem para o mal as boas intenções, visto que a sinceridade

dificilmente está segura e sempre há de nos ocorrer mais

obstáculos do que êxitos, é preciso de fato retirar-se do foro e

da vida pública . mas uma alma elevada tem onde demonstrar

largamente sua atuação mes mo no âmbito privado. (...) Não é

útil ao Estado só quem promove candidatos, defende réus e

delibera sobre a apaz e a guerra, mas quem exorta a juventude,

quem instila a a virtude nas almas, em meio a tamanha escassez

de bons preceitos, quem agarra e puxa os que estão decaindo na

corrida pelo d inheiro e pelo luxo e, se nada mais consegue, ao

menos os retarda; esse homem, no privado, realiza at ividade

pública. (Da Tranquilidade da Alma. 3, 1 a 5)

Verificamos que em praticamente toda sua obra há um posicionamento político,

mesmo que alguns destes se dêem nas entrelinhas ou de forma metafórica. As Cartas,

impossível neste contexto não citá- las, obra derradeira de nosso filósofo, são, em certo

sentido, também um discurso político. As Cartas nos demonstram isso de forma eficaz.

Quais chamamentos éticos responder, frente à política vigente, é a grande pergunta que

Sêneca se faz. O que se pode aceitar num mundo político onde a intriga e a luta pelos

cargos políticos ultrapassam todos os limites do tolerável? Já dissemos aqui que Sêneca

era um republicano, mas distintamente do que advogava Tácito 117, Sêneca não era um

republicano nostálgico. Admite que o cesarismo vigente é um caminho por onde a

política romana irá dali pra frente trilhar. Sêneca era antes de tudo filósofo, e dele se

espera um postura enquanto filósofo, mas era também político e havia uma certa

“responsabilidade” frente às ações a se tomar neste terreno.

117

VEYNE: 2016

84

Posteriormente havemos de ver se o sábio deve ou não dar a

sua colaboração ao Estado. Por agora chamo tua atenção para

aqueles estoicos que vivendo à margem da polít ica , se

dedicaram ao estudo da condução da vida e do es tabelecimento

dos direitos humanos sem incorrerem ao desagrado dos

poderosos. (Cartas: 14; 14)

Sêneca, numa decisão também política, escolheu agir como filósofo,

evadindo-se da vida pública, pagou por esta escolha, com a própria vida. Verdade seja

dita, este rompimento não se deu e forma direta, afinal, Sêneca tenta de todas as formas

não provocar a ira de Nero, mas não deixa de dizer o que pensa (sempre em entrelinhas)

sobre o reinado vigente. Rememoremos: os estoicos afirmavam haver os “preferíveis” e

é indubitável que a vida é preferível à morte, e ainda mais, nenhum princípio estoico

nos diz que devemos atirar-nos à cova dos leões sem os devidos víveres e armamentos.

Prudência não faz mal a ninguém. O heroísmo inútil e transloucado nunca fora

aclamado por Sêneca como postura virtuosa. Se admitirmos isto, fácil é entender a

postura de Sêneca frente ao reinado de Nero. Cautela é diferente de temor assim como

prudência é distinto de covardia.

Muitos creditam ao estoicismo uma postura inerte frente aos problemas

políticos, posto que, advogam estes que o sábio estóico seria aquela pessoa apartada do

mundo, reclusa em seus pensamentos e vivenciando o ócio. Ora, sendo o objetivo de

qualquer estoico o alcance da condição de sábio, estariam admitindo então tratar-se de

uma filosofia apolítica. Não concordamos com esta tese. Afinal, esta linha de pensar

transforma o homem estoico naquele cerrado em seu ostracismo, sendo esta sua única

preocupação, enquanto as demandas políticas do mundo que o envolve estariam

completamente desvinculados de seu pensar. Salientamos que registramos nos

primórdios deste trabalho que o fundador da escola do Pórtico, Zenão, escreveu uma

obra chamada Da República. Crisípo escreveu também a sua República118. Ário Dídimo

fora professor do imperador Otávio Augusto César. Válido lembrar também do filósofo

imperador, o estoico Marco Aurélio. Ou seja, podemos dizer que política e estoicismo

têm um laço comum, seus filósofos estão, por uma via ou outra, demonstrando interesse

na política. Sêneca não foge à regra. Vejamos: se para nosso filósofo a filosofia é guia

para as ações humanas, a condutora do caminho para virtude, como desvinculá-lo de um

pensamento político? A filosofia ordena a vida, regula a ação, mostra o que deve ser

feito.

118

DL, VII, 34.

85

“O objet ivo da filosofia consiste em dar forma e estrutura a

nossa alma, em ensinar-nos um rumo na vida, em orientar

nossos atos, em apontar-nos o que devemos fazer ou pôr de

lado, em sentar-se ao leme e fixar a rota de quem flutua a

deriva entre escolhos.” (Cartas: 16, 3)

Sêneca é devoto da filosofia enquanto ação, e por isso é também devoto da ação

política. Ora, se aquela, a filosofia, é instrumento de aperfeiçoamento moral dos

homens, há também de ser instrumento de aperfeiçoamento da ação política. Se o

objetivo aqui é o alcance da virtude, podemos também dizer que para o alcance da

mesma, necessário se faz ser virtuoso enquanto cidadão, seja cidadão romano, mas

também cidadão do mundo, do kosmos. Diz Sêneca: “A pior critica que nos podem

fazer é a acusação de repetirmos as sentenças da filosofia sem pormos em prática seus

ensinamentos.”119

Sêneca, se não viveu, morreu como nos ensinara, de forma política e

filosoficamente.

119

Cartas: 24, 15

86

CONCLUSÃO

Após as leituras das obras propostas, podemos dizer que chegamos às seguintes

conclusões ao término de nossa investigação: Apesar de alguns entenderem que o

estoicismo é a filosofia que prega a resignação e o conformismo, alegando inclusive que

o homem estoico é um homem que se posta de forma passiva frente aos percalços da

vida, dizemos justamente o reverso. O homem estoico é sobretudo um homem ligado à

ação. Inclusive às ações políticas. Até mesmo o morrer pode ser um ato político. É o

homem que está sempre imbuído na perspectiva de se postar ativamente frente às

mazelas trazidas pelo destino. Sêneca afirmava que a grandeza do homem se aflora

justamente nesta ocasião:

“Mas ao sábio em nada são nocivas a pobreza, a dor, as outras

tempestades da vida. Nem todas as suas obras são por ele

impedidas, somente aquelas que s destinam aos outros, o próprio

sábio está sempre em ação,, e sua grandeza é tanto mais

manifesta quanto mais a fortuna se lhe opõe.” (Cartas:85; 37)

O homem sábio não reduz as intempéries da vida às mazelas da fortuna e as

repudia, mas sim, deseja, em última análise, que estas aconteçam, posto que, na cadeia

dos fatos, tudo aquilo que ocorre se dá porque certamente é o melhor que podia ocorrer.

A razão universal não poderia dirigir aquilo que não é bom, ou seja, se algo

ocorreu, é porque é melhor assim ocorrer e compete ao homem adequar sua razão à

razão universal e divina para entender que assim é que as coisas devem se dar.

Este posicionamento perante o mundo demonstra cabalmente a diferença

existente entre o sábio e o homem que ignora tal lei. Enquanto aquele entende e até

deseja que as coisas aconteçam como devem acontecer, este deseja que as coisas

aconteçam como ele desejaria que acontecessem. Sêneca foi fiel defensor dessa tese.

Fez da sua filosofia uma “medicina da alma”. Ao afirmar que a alma humana tem uma

dupla natureza, aquela inferior, que nos remete a condição animal (o homem é também

um animal) e outra superior, racional, que nos remete à proximidade com os deuses,

87

Sêneca nos diz também que devemos ter o cuidado de não agirmos somente pelo

impulso da natureza anímica inferior. Daí a importância da filosofia, que nos permite

distinguir o que é oriundo de nossos instintos e o que é racional e Sêneca com sua

filosofia procura encontrar uma “cura”, através da reflexão, para sermos capazes de

fazermos esta distinção. Nosso nobre filósofo mostra-se homem além de seu tempo ao

condenar o instituto da escravidão, a advogar em favor de uma fraternidade universal,

posto que, todos pertencem à pátria universal, a entender que a virtude humana tanto

pode estar no escravo como no rei e ao dizer que não é o acúmulo de bens ou a fama

que nos traz a felicidade. É um amante da sabedoria, um filósofo por excelência.

Referente à visão estoica e senequina da divindade podemos concluir que os

princípios gerais do estoicismo no tocante a deus tem como premissas o fato de que

deus é pura matéria, afinal, não há um outro deus, senão o próprio universo, a própria

natureza, a própria razão. Uma razão que tudo governa: até mesmo a circularidade dos

tempos onde os acontecimentos são eternamente cíclicos, numa engrenagem perfeita

onde todos os fatos estão entrelaçados entre si. Afinal, a doutrina estoica diz:

Necessariamente tem que ser assim! As coisas são como devem ser! Surge então o

maior postulado estoico: “viver de acordo com a natureza”. Averiguamos que para o

estoicismo, seja ele de qualquer fase, viver de acordo com a natureza é viver de acordo

consigo próprio, já que, nesta seara filosófica, o homem faz parte da natureza, e é

também a própria, natureza e homem vivem numa perfeita harmonia, onde um permeia

o outro. Ora, se deus é a própria natureza, neste aspecto não há porque duvidar da

existência de deus, tendo em vista que ele pode ser tocado, sentido e ouvido e o homem

faz parte de deus e deus está nele.

Sêneca advogava que é dever do homem se coadunar com a “vontade” de deus,

entretanto, esta “vontade” é a tradução das leis da natureza. Viver conforme a natureza

seria viver conforme a lei de deus, mas este deus não se materializa

antropomorficamente nem se encontra individualizado como um espírito divino que nos

observa, premia e castiga como o deus cristão. Sendo um estoico, Sêneca admite que

deus é matéria e também o próprio kosmos, é a razão universal, é o destino, é a natureza,

mas é também a nossa consciência. Nossa consciência é o nosso maior juiz e dela não

podemos fugir. Se “ouvirmos a voz” da consciência, certamente estaremos ouvindo a

voz de deus. Evidentemente precisamos buscar refúgio na filosofia para aprendermos o

caminho da sabedoria, alcançarmos a virtude e chegarmos a uma vida feliz e assim

viver em quase pé de igualdade com deus, ouvindo sua voz, ou se preferirem, ouvindo a

88

nossa consciência. Este aspecto psicológico que Sêneca oferece a sua teologia é

extremamente pertinente. “De que nos vale esconder dos outros alguma coisa se a

divindade nada permanece oculto? Ela existe dentro da nossa alma, toma parte ativa nas

nossas reflexões”120.

Mas há também traços pessoais na concepção que Sêneca tem de deus que nos

chama atenção: podemos falar com ele, orar para ele: “(...) viva com os homens como se

a divindade te observasse, fala com a divindade como se os homens te escutassem.”121.

É esta uma das características divinas que torna o deus senequiano mais próximo de

nós, onde quase há ali uma “pessoalidade divina”. Em resumo podemos dizer que

Sêneca entende deus como: material, onipresente, abdicador de culto, recíproco em

nossas ações, acessível a nós, posto que podemos orar pra ele e dele somos parte, nossa

voz da consciência, supremamente bom e tais características só são possíveis porque ele

é a própria razão universal.

Sobre a morte podemos dizer que para Sêneca a morte sempre foi pensada como

complemento de uma vida virtuosa. Pensar na morte é, paradoxalmente, pensar na vida.

É preciso saber então, admitindo que a vida virtuosa, aquela que permite a tranqüilidade

da alma (ataraxia), é a vida feliz, qual papel teria a morte no decorrer de nossa vida. Os

homens, segundo Sêneca, não têm medo da morte em si, mas sim, o grande temor é o

pensar na morte. Uma vida pautada na ética, naquela que busca o alcance da felicidade,

necessariamente fará com que o homem pense a todo instante na morte.

A doutrina socratiana 122 nos ensina que o homem que se dedica à filosofia

também deve estar disposto a morrer, e neste aspecto, Sêneca o assemelha, posto que, só

pode ter disposição para a morte aquele homem que não a teme.

A filosofia do Pórtico, apesar de fundada por um só homem, contribui de forma

substancial e robusta para o pensamento da morte com a participação de vários outros

expoentes de épocas distintas e distantes entre si. Entretanto, ancora-se numa base

fundamental todo seu pensamento: todos os acontecimentos do mundo são

necessariamente regidos por uma razão divina e universal, isto é, na natureza, nada

acontece por acaso, posto que, tudo já está pré-determinado, inclusive a hora fatídica de

nossa despedida deste mundo. Para os estoicos a virtude é o pressuposto para o alcance

da felicidade, e assim sendo, ao sábio compete estar feliz em qualquer circunstância,

120

Cartas: 83; 1 - Grifo nosso. 121

Cartas: 10; 5 122

“Pois alguma coisa há para os mortos”. PLATÃO. Fédon. (63 b –C)

89

independente das vicissitudes que a vida lhe reserve, pois somente o sábio é homem

virtuoso, e conseqüentemente feliz. Daí o homem sábio praticar a ação visando

unicamente o bem moral, fazendo o certo por ser unicamente certo, estando sempre em

posição de preparo para tudo, principalmente para a morte.

Sêneca nas Cartas demonstra a seus discípulos, e em conseqüência, a todos nós,

que a vida feliz é a vida virtuosa, e para isso devemos aceitar e desejar os

acontecimentos, tendo em vista que eles são engendrados pela razão universal.

Adequando nossa razão à razão universal teremos uma vida repleta no estado de

ataraxia. Seus ensinamentos tentam demonstrar que a morte é um “indiferente” porque

nada podemos contra ela. Podemos sim, deixar de temê- la. Pensar na morte sempre

para não temê- la é marco fundamental na filosofia senequiana. “Nenhuma meditação é

tão imprescindível quanto a meditação na morte.”123 O preparar-se para a morte

em Sêneca tem sentido porque ela faz parte da vida, e não porque possamos alcançar

algum benefício ou “prêmio” após ela. Sêneca não nos remete a nenhum momento

sobre sua expectativa daquilo que vem após a morte e parece-nos que todo corpo de

pensadores estoicos assim o fazia.124

Em resumo, podemos afirmar que Sêneca deseja naturalizar a morte, afinal, faz

também ela parte da natureza, e através da prática dos seus ensinamentos filosóficos,

podemos transformar a necessidade de morrer num sentimento de liberdade que se dará

quando aceitarmos este fato como irrefutável e imprescindível para a ordem cíclica das

coisas. A morte em si não é um mal, é, como dissemos, um indiferente, e como tal,

devemos verificar que o bem está em viver virtuosamente se preparando para morrer, ou

seja, é vivermos de modo justo, ético, moralmente correto. Se assim o fizermos, teremos

uma boa morte. Para isso, Sêneca nos convoca a filosofar, pois só é possível morrer

bem, sendo discípulo da filosofia.

123

Cartas: 70; 18 124

CHAUÍ: 2010.

90

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