"o estatuto da razão" (gerd bornheim)

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Gerd Bornheim: SOBRE O ESTATUTO DA RAZO (322 reads) Pretendo fazer aqui uma apresentao sobre o tema da razo, e inicio com algumas observaes preliminares. Saliento, em primeiro lugar, que isso que se chama de razo, e que se expande hodiernamente como uma atividade dotada de uma autosuficincia de fato extraordinria, na verdade teve suas origens em um plano que tende a ser encoberto, por exemplo, pelo rigorismo do pensamento lgico, e at mesmo pela interminvel expanso da tecnologia e do consumo. Nos incios, no entanto, a razo apresentava uma ndole essencialmente instrumental, totalmente voltada para os afazeres prticos; a mo e o pensamento no se distinguiam, e, entrosados, perseguiam objetivos comuns. A razo servia, assim, para o homem prover-se, defender-se e, em ltima instncia, para inventar sua prpria criatividade. Mas observe-se de imediato que todo esse processo desdobrou-se de maneira extremamente lenta. No princpio, um pouco maneira da criana, o pensamento no oferece nenhuma autonomia. O paralelo com a criana, entretanto, no leva muito longe, j que a menor idade se desenvolve com uma rapidez espantosa. Ao passo que o homem primitivo, em vez de ser infantil, plenamente um animal. E dentro de um comportamento basicamente adulto que esse homem passa a desenvolver suas faculdades mentais. Isso, repito, num processo em tudo demorado. Convm chamar a ateno para a importncia de uma palavra que acabo de empregar: os antigos entendiam a razo como facultas, "faculdade", e faculdade significa atividade; pela atividade que a tardinheira razo desenvolve seu estatuto especfico. Claro est que tal estatuto vai se expandir de muitos modos, em cada povo, em cada cultura, e de certo modo tambm, por decorrncia, em cada indivduo. Mas tudo se faz norteado pelas vicissitudes oriundas das exigncias prticas. Em segundo lugar, h um momento nesse vagaroso processo de evoluo que ostenta um privilgio excepcional. Trata-se, escusado dizer, da Grcia. E a que tem incio a histria da razo de um modo bem mais preciso. Mas comea a tambm uma certa ambiguidade. A vocao primeira da razo, seu destino por assim dizer natural enquanto atividade humana, est em fazer que o homem se ocupe de suas circunstncias simplesmente mundanas. Acontece que a atividade da razo deixou-se perturbar, muito cedo, por elementos de natureza teolgica. De fato, foi apenas nos tempos modernos que o engenho racional conseguiu alcanar um nvel de autonomia muito grande, e pde assim desembaraar-se daquele estorvo teolgico. Mas nos comeos, e isso nem poderia ter ocorrido de outro modo, os gregos tiveram uma ideia em tudo original e absolutamente genial: eles inventaram que o prprio Deus razo. J na mitologia, Apolo, por exemplo, o deus do Sol, da inteligncia. Quando Tales, o primeiro filsofo, asseverara que tudo est cheio de deuses, ele queria

dizer que h uma forma de inteligncia aderida a todas as coisas, ideia que faria grande sucesso no pensamento antigo. H, sobre o tema, entre muitos, um fragmento esclarecedor de Herclito: " sbio escutar no a mim, mas as minhas palavras [...]" logoi (Fragmento 50); essas palavras vm do Logos, do pensamento divino: o critrio do pensamento est no Absoluto, e no no homem. Parmnides, para citar mais um exemplo, nem sequer fala, ele conduzido, relata o passo inaugural de seu belo poema, presena da deusa, Dike, a Justia, e ela que mostra ao filsofo o caminho da verdade. Em definitivo, tudo acaba sendo teologia. H uma palavra, encontradia com certa frequncia nos dilogos platnicos: inspirao; a inspirao habita o homem e tem origem divina, um pouco maneira daquele daimon, o demnio bom que circula no interior de Scrates e comanda seus passos, os caminhos de seu pensamento. Portanto, o divino, de mltiplas maneiras, faz-se presente em tudo, principalmente no pensamento, e ele toma a si a tutela da razo humana. E, evidentemente, o que vale para a razo grega valer tambm, a seu modo, para a longa tradio do pensamento cristo: a medida est sempre no divino, e mais precisamente na revelao, na palavra do prprio Deus. Contra isso tudo, disse, a razo comea a desalienar-se e a impor-se enquanto atividade autnoma apenas nos tempos modernos. Realmente, com Descartes processa-se uma reviravolta que parece at superar em tudo a duas vezes milenar tradio inventada pelos gregos. J significativo que as Meditaes metafsicas do pai da filosofia moderna comecem com o escoro de uma autobiografia. Biografia crtica, poder-se-ia dizer, j que, nela, procede a uma espcie de suspenso de todo seu passado. Assim, lanando suspeitas sobre sua vida pregressa, ele legitima o artifcio da dvida, e nesta, com a hiptese do gnio maligno, por pouco no a prpria divindade que se desacredita. Mas, percorrido esse itinerrio, o nosso filsofo alcana por fim a certeza absoluta, o cogito, ponto de partida de toda edificao filosfica. E no meramente curioso o fato de que, para Descartes, a experincia absoluta j no coincide com a experincia do Absoluto, ela se deixa averiguar em termos simplesmente humanos, trata-se do exerccio da razo presa sua prpria imanncia apenas em um momento ulterior que o recurso a Deus passa a ser solicitado. Desse modo, varrido o passado, inventa-se o homem moderno. Mas gostaria de voltar por um momento Grcia, e tecer algumas consideraes principalmente em torno do pensamento de Plato. Mas lembro primeiramente as auroras. Todo pensamento ocidental prende-se a dois tipos de exerccio da razo, e ambos foram inaugurados pelos gregos: um por Parmnides, e o outro por Herclito. Parmnides enfatizava o que considera o nico caminho realmente vlido para o pensar: o caminho do ser, do ser bem redondo, uno, eterno, imvel, imutvel, perfeito o ser

simplesmente aquilo que . Contraposto a ele, haveria o absurdo radical, logo descartado, que seria o caminho do nada. E entre os dois cabe vislumbrar um terceiro caminho, o dos pobres mortais, tontos de duas cabeas, jogados que so do ser para o nada e do nada para o ser. E claro que esse caminho, como que contaminado pelo nada mas no excludo do reino da verdade, no poderia apresentar consistncia maior: ele se atm apenas ao mundo das aparncias, da doxa, da opinio, que se contrape rigidamente ao primeiro caminho, o do ser. A nica via realmente trilhvel a que afirma que o ser igual ao ser, que a, como dir a lgica, igual a a, e que alm disso no podemos ir. J volto ao tema. O outro caminho foi elaborado por Herclito. Chegou-nos dele um belssimo fragmento, que Hegel certamente no conheceu: se o tivesse conhecido certamente teria escrito sobre o tema que o fragmento aborda um certeiro comentrio. Mas, a esse respeito, Hegel s conheceu a doutrina heraclitiana dos contrrios: quente e frio, bom e mau, masculino e feminino, e por a afora. Ora, o fragmento a que me refiro diz o seguinte: "No houvesse a injustia, ignorariam o prprio nome da justia" (Fragmento 23). Aqui, no se trata tosomente dos contrrios, e sim de uma clara contradio: o desvelamento do que seja a justia passa pela no-justia. Isto : o nome, o conceito, depende da frequentao da negatividade: s sabemos o que realmente a sade atravs da enfermidade. O nome da justia, o seu conceito, s se atinge atravs de sua negao. Com outras palavras: a verdade no se alcana apenas pela passagem fictcia de a a a, pois, longe disso, para atingir a faz-se necessrio percorrer todo um desvio: atravs da experincia de b que se chega realmente a a. Mas o grande mestre do pensamento tradicional foi de fato Parmnides at ser desdito justamente pelo hegelianismo. E passo a Plato. Num dilogo de juventude, Crtilo, batizado com o nome de um discpulo de Herclito, Plato marginaliza o pensamento deste ltimo com uma facilidade notvel, pretendendo em concluso prender-se hegemonia do ser parmendico. Mas, logo mais, as coisas passaram a complicar-se. Num grande dilogo da maturidade, O sofista (que ostenta o subttulo Do ser), primeiro tratado de metafsica do Ocidente, Plato prope-se descartar a figura do sofista. Lembro que os sofistas eram sbios, sophos, oriundos das colnias gregas, que aos poucos afluam grande Atenas atrados por sua irradiao cultural. L chegados, para viver, punham-se a dar aulas de retrica sobre os temas em que eram versados; sem dinheiro, introduziram o hbito de cobrar por suas lies comportamento considerado estranhssimo para o cidado grego de ento, dedicado aos privilgios da assiduidade s assembleias, ao dilogo poltico, frequentao do teatro e, mais que tudo, preparao das guerras e participao nelas. Ora, os sofistas pareciam fomentar um srio desvio no comportamento usual dos jovens. Plato e Aristteles incumbiram-se de denegrir-lhes a imagem, no que obtiveram um sucesso mais de

duas vezes milenar. A reabilitao do sofista ter incio, de fato, com Hegel, e principalmente, j em nosso sculo, com as valiosas pesquisas do italiano Untersteiner. Mas, para os dois grandes mestres do pensamento grego, o sofista acaba representando um srio perigo precisamente devido a sua atividade docente: que eles trocavam a plenitude do ser pela pseudoverdade do mundo das aparncias. O seu discurso no passaria de um engodo no qual os fins justificam a elaborao de quaisquer meios. O perigo representado pelo sofista originar-se-ia exatamente dessa conivncia com o no-ser. E na refutao de tal conivncia concentra-se o escopo primeiro do dilogo platnico. De certo modo, Plato arma para si mesmo uma cilada. Pois, como proceder? Com a lgica parmendica jamais se poder incriminar o sofista. Se o sofista o campeo do no-ser, em boa dialtica s consigo derrot-lo se me arvorar em pensar o no-ser; caso contrrio, a mais gil das argumentaes, dizendo apenas o ser, deixar nosso inimigo inclume. S h ento uma sada: o notrio parricdio (241 d). Plato atreve-se a cometer um crime inafianvel: tenta pensar o noser. E, nesse seu intento, ele elabora nada menos do que o primeiro grande quadro categorial da metafsica. O resultado to extraordinrio que o leitor facilmente chega a ter a impresso de que o tal sofista no passava de um pretexto. Pois o parricdio subsiste no prprio cerne daquele quadro. Trata-se, portanto, de pensar o ser, mas de tal maneira que se possa refutar no s o sofista, esse negociante do no-ser, mas tambm dominar a natureza do erro. O pano de fundo, como sempre, est na relao entre unidade e multiplicidade; claro que, como sempre tambm, para Plato, tudo se concentra no mundo das Ideias divinas, e nosso filsofo nem sequer se ocupa de provar sua existncia: elas funcionam como uma espcie de pressuposto j do assentimento de todos. Eis o nervo de articulao da arquitetura que oferece O Sofista, entre a suprema Ideia, a do Bem, e a multiplicidade das Ideias, Plato introduz algumas categorias o nome mais geral das coisas, como definir Aristteles , que garantem a inteligibilidade do real. Por que a necessidade do parricdio? Porque a subservincia absoluta ao princpio parmendico da identidade metafsica condena o pensamento estril proposio tautolgica, que daria razo a Antstenes: impossvel afirmar que o homem bom, s se pode avanar que o homem homem e o bom bom. O que est em jogo , pois, a predicao; necessrio que haja comunicao entre as Ideias. Ou melhor: algumas Ideias se comunicam com outras, e outras Ideias no se comunicam, e h algo que corre entre as Ideias, para garantir-lhes a comunicao possvel e a inteligibilidade. Esse algo o ser, ao qual Plato acrescenta mais quatro categorias: o movimento, o repouso, o mesmo e o outro (ou a diferena, se se preferir a traduo de David Ross). Alm disso, h um sexto termo, digamos que se trata de uma quase-categoria: o no-ser. Pois acontece que o no-ser, numa determinada relao, , e que o ser, por sua vez, de algum modo no

(241 d). Evidentemente, para Plato esse no-ser no poderia ser o no-ser absoluto, o contrrio absoluto do ser parmendico; ele , antes, um outro ser, ou um ser outro, a alteridade, a diferena. Assim, como exemplo j no plano das categorias, o movimento o no-ser do repouso, como este o no-ser daquele. Cabe inferir que o ser o prprio jogo das relaes (257 a). Desse modo, o "ser corre atravs de todos os gneros" (259 a-b), ou das categorias, bem como atravs de todas as Ideias. O notvel da anlise platnica reside precisamente nesse tipo de construo metafsica que, longe de fixar-se na mesmidade do ser eletico, busca flexibilizar-se atravs do acolhimento das dimenses radicalmente no eleticas: o movimento, o outro e o no-ser. Evidentemente, tudo permanece adstrito, em Plato, ao mundo das Ideias; so interpretaes de carter onto-teo-lgico, e que nada tm a ver com o nosso mundo. Entretanto, no difcil perceber que Plato, se seu discurso for considerado numa perspectiva puramente formal, est fazendo nada menos do que uma primeira tentativa de fundamentao do problema da contradio, e abrindo assim o caminho para um tipo de ontologia que no se limite ao crculo fechado da identidade. Intil acrescentar que esse avano platnico acabou no significando praticamente nada para o evolver da metafsica, j que esta ficou presa, pelo privilgio emprestado identidade, ao "esquecimento" daquelas dimenses que passaram a ser consideradas negativas. De fato, o banimento da contradio arrasta consigo tambm a presena do ser do no-ser, do outro, e inferioriza de modo flagrante toda a questo do movimento. O admirvel, no caso de Plato, est justamente nessa abertura ao plano, digamos, da no-identidade. E no se diga que Plato est meramente preocupado com a refutao do sofista; em verdade, o que ele elabora o prprio cerne de sua ontologia. Tanto que a questo do heteron, do outro, em particular, est longe de restringirse ao dilogo aventado. Realmente, no apenas curioso o fato de que Plato volta ao tema do outro em sua velhice, no Timeu. O dilogo explora a preocupao do autor com a natureza do mundo, e, na sua sempre afanosa busca de um modelo, afirma que este mundo cpia de um modelo eterno (29 a-b). Plato discute a natureza da alma adequada a tal mundo; e relata: o Demiurgo comps essa alma a partir de uma certa mistura: ele misturou o que Plato chama de substncia indivisvel, eterna e invarivel, com a substncia divisvel, que se encontra nos corpos; e com a mistura conseguiu produzir uma terceira substncia, intermdia, substncia essa que compreende em si a natureza do Mesmo e a natureza do Outro; tomou ento essas trs substncias e combinou-as em uma forma nica, harmonizando pela fora o Mesmo substncia do Outro, "que resistia a ser misturado" (34 b e seguintes). Claro que isso tudo apresentado apenas como mito, mas, justamente, sabe-se da importncia da presena dos mitos criados por Plato para elucidar, por assim dizer, os limites mais extremos de seu pensamento. Seja como for, a aventura platnica de fato consumou-se, e ela s chegar a ser demitificada ao termo de

toda a evoluo da metafsica, a partir dos desdobramentos da ontologia hegeliana. No correr do desenvolvimento da metafsica ocidental a presena do outro sempre representou qualquer coisa como um perigo a ser cuidadosamente evitado. E o primeiro a dar-se conta claramente do que poderia representar a anuncia a tal perigo foi nada menos do que Aristteles. No somente porque ele recusa o mundo das Ideias platnicas: elas nem existem, diz redondamente o Estagirita, e mesmo se existissem nada explicariam, apenas transfeririam o problema da multiplicidade para a esfera divina, dificultando tudo. Mas ele silencia sobre o prprio cerne da ontologia platnica, sobre aquelas seis categorias, e entrega-se, antes, edificao de uma nova tabela de categorias, fundamentada por inteiro na categoria de base, a substncia. E com essa nova base Aristteles constri tambm o seu Organon, que saiu por inteiro de sua cabea. O outro escamoteado, ou reduzido marginalidade dos acidentes, que no prejudicam em nada a prioridade do mesmo, da substncia. Nem h exagero em afirmar que Aristteles se revela, no fundo, mais parmendico do que Plato. Sua lgica, fundamentada no princpio de identidade e que acaba encontrando sua guarida ltima e definitiva na substncia absoluta, encontra seu empenho maior precisamente no banimento da contradio, que se faz, simplesmente, sinnima de erro. O amplo domnio que essa lgica exerceu sobre o todo do pensamento ocidental, at o surgimento da crise da metafsica, comprova apenas a natureza teolgica da identidade aristotlica. A questo que se coloca aqui, em relao a essa extraordinria hegemonia da lgica da identidade, no deixa de ser paradoxal. O raciocnio lgico de tipo aristotlico, considerado formalmente, foi escassamente empregado ao longo da histria da filosofia. O decisivo, o que realmente funciona nessa lgica, est em seu fundamento, na ordem teolgica que garante. O problema j deve ser colocado em funo do prprio Aristteles: ele no nada ortodoxo na formulao do raciocnio filosfico em geral, e isso j por razes que nem poderiam ser fundamentadas no preconizado tipo de raciocnio lgico. Trata-se aqui prioritariamente da dialtica tal como Aristteles a entendia, mais presente em sua obra do que permitiria supor o rigor lgico. Mas no s dela. Veja-se sobre o assunto o texto que transcrevo a seguir, notvel por seu sucesso de sntese, escrito por um excelente intrprete: Ter-se-ia de mostrar que, se o silogismo est praticamente ausente da Metafsica, encontram-se nela em contrapartida todos os procedimentos descritos nos Tpicos e nas Refutaes sofsticas: a refutao, a diviso (sob a forma propriamente aristotlica da distino dos sentidos), a induo, a analogia etc. Apenas citemos aqui, de memria, o estabelecimento do princpio de contradio pela refutao de seus negadores, a distino dos sentidos do ser, a determinao puramente analgica dos princpios considerados em

sua unidade, de modo geral o carter diaportico das exposies "introdutivas" que tendem a confundir-se aqui com a Metafsica em seu todo, e em quase tudo esse tom polmico que, segundo as justas expresses de Charles Thurot, revela mais "o dilogo da disputa" que o "monlogo da cincia". Deve-se ento dizer que dialtica e ontologia se confundem? A confuso de fato no nos deve aqui mascarar a distino de direito, nem a identidade dos procedimentos a diversidade das intenes. Permanece verdadeiro que a inteno filosfica "cognitiva", ao passo que o objetivo da dialtica simplesmente "peirstica". A dialtica, no mais que qualquer outra arte, no tem em si mesma o seu prprio fim: instrumento universal de exame, pertence sua essncia colocar questes mais do que a elas responder; indiferente a contedo, ela pe entre parnteses toda considerao de interesse, mesmo que esse interesse for a prpria verdade (Pierre Aubenque, Le problme de l'tre chez Aristote, Paris, puf, 1962, pp. 300-1. Peirastiks, que aparece com grafia afrancesada no texto, significa "que ensaia, que experimenta"). Seria quase o caso de jogar o rigor epistmico defendido na analtica contra o prprio Aristteles. O tema colocado pelo grego tambm de outro modo: no incio do livro Das partes dos animais, introduo sua biologia, Aristteles distingue entre dois tipos de abordagem na pesquisa, considerando ambos legtimos: um est na cincia das coisas, e o outro chamado, neste texto, de cultura (paideia), que apenas outro nome para a dialtica; a equilibrada iseno de Aristteles no impede que se reconhea aqui que o mtodo mais empregado por ele o dialtico. Eis os traos fundamentais dessa cultura geral, que todo o oposto do discurso inconsistente: universalidade, funo crtica, carter formal, abertura totalidade. Mesmo a negao passa a ostentar uma dimenso vlida: as proposies dialticas oferecem um carter negativo associado ao carter universal. Ao invs de fixar-se, como faz acertadamente a cincia, sobre uma natureza determinada, a dialtica liga-se totalidade, alando o negativo, como diz Aubenque, condio de "ndice de uma possibilidade indefinida, tornando-se abertura para a totalidade" (Idem, ibidem, p. 289). E no me Hirto de citar mais este passo da anlise de Aubenque: Tal em Aristteles o triunfo amargo da dialtica: que o dilogo sempre renasa a despeito de seu fracasso, e, ainda mais, que o fracasso do dilogo seja o motor secreto de sua sobrevivncia, que os homens possam continuar se entendendo quando j no falam de nada, que as palavras conservem ainda um sentido mesmo que seja problemtico, alm de toda essncia, e que a vacuidade do discurso, longe de ser um fator de impotncia, seja transmudada num convite pesquisa indefinida (Idem, ibidem, pp. 294-5). Nosso comentarista chega a aproximar Aristteles dos sofistas.

Resta apenas um detalhe: que a real reabilitao do sofista e mesmo a anlise de Aubenque s se fez possvel em nosso tempo. No por acaso que a dialtica aristotlica foi to radicalmente denegrida ao longo da histria; que o discurso deixava-se guiar por um ideal monolgico, e as aberturas possveis, tais como as que encontramos j no pensamento grego, permaneciam como que embebidas em uma atmosfera metafsica, ou onto-teo-lgica, que tudo tinha a ver com o monismo do ser parmendico. Sugeri em outro lugar, a propsito das belas hipteses discutidas por Plato, em seu dilogo Parmnides, que elas de certa forma delineiam como que os possveis de todo o pensamento futuro; elas seriam justamente o resumo das possibilidades desse pensamento. Lembro: so trs as hipteses fundamentais: a que afirma que o ser como um bloco uno alheio a qualquer distino, e, se nada se distingue de nada, suspende-se a relao e o dilogo se torna impossvel, e camos no alogon, no mutismo; noutra hiptese, incide-se no extremo oposto, tudo so blocos distintos suficientes em seu isolamento, e por isso mesmo suscitam novamente aquele mutismo; restaria ento uma hiptese intermediria, na qual a separao se compatibilize com a unidade, e torne o discurso possvel. Ora, ao longo da histria da metafsica, as possibilidades, dentre as trs aventadas, concentram-se em duas delas; a mais forte a terceira, que cedo passa a chamar-se concepo anloga do ser: o ser se diz de muitas maneiras, postulava j Aristteles. Acontece que essa hiptese vive como que sombra da primeira: s ao Uno cabe plenamente o ser; fora de Deus todo ser revela-se afetado por uma alteridade radical, oriunda, em ltima instncia, do nada. Assim, o outro que no o ser s na medida em que for destitudo de sua alteridade. ao menos interessante observar que o descompasso em que acaba incidindo a metafsica leva a intensificar a presena do pantesmo, como se se tratasse de uma precipitao inevitvel; precisamente isso o que mais caracteriza talvez a metafsica moderna. E o que se v nesse caso que Plato no deixa de estar certo: o pantesmo leva ao alogon, ou seja, crise da metafsica, ou morte de Deus. Esgotadas as duas hipteses referidas, resta a segunda, sempre repelida e apelidada pela tradio de concepo equvoca do ser: tudo distinto de tudo. No h nenhum exagero em afirmar que, vistas as coisas na perspectiva em considerao, o grande programa da filosofia contempornea, a partir de certos avanos introduzidos j pelo prprio Hegel, est em pensar a multiplicidade na medida em que ela se oferece eivada de alteridade. Assim, de muitas maneiras, forra-se o horizonte do que pode ser chamado de ontologia da finitude radical. Cabe aqui acenar ao tema atravs de algumas observaes em torno de dois tpicos: a questo da contradio e a da diferena. Deve-se afirmar que a origem da dialtica mas no nos interessa examinar aqui, j pela complexidade do tema, os diversos sentidos da palavra dialtica, para os pr-socrticos, Plato e Aristteles situase no contexto da metafsica; nessa acepo seu primeiro grande

pensador foi sem dvida Plato, quer no sentido de uma dialtica interior ao mundo divino das Ideias, acima j referida, quer no sentido da dialtica ascensional, atravs da qual a alma supera as baixezas da multiplicidade sensvel a favor da contemplao das coisas divinas. A dialtica platnica , assim, duplamente metafsica, em dois sentidos. E no fim da histria da metafsica a dialtica volta a ocupar novamente o centro da cena; agora, com Hegel, a realidade inteira que deve ser metafisicamente superada pela integrao no elemento divino. Mas, com Hegel, anuncia-se um adendo ao nosso tema em tudo decisivo. Se a metafsica entra em crise, no deve causar espcie que esse seu produto que a dialtica sofra tambm as metamorfoses decorrentes dessa crise. E o que se verifica como procurei mostrar longamente em outro lugar que o peso maior da dialtica se v transferido da sntese final para as aventuras do mundo em suas contradies; passa-se, pois, a falar, por exemplo, em dialtica negativa. Fao aqui duas observaes. Em primeiro lugar, no se trata de rebaixar a dialtica condio de mtodo, ainda que privilegiado, mas que faria dela um mtodo entre outros. curioso observar que nem Hegel nem Marx manifestaram interesse acentuado em pensar em nvel metodolgico a questo da dialtica; alis, espanta at que eles raras vezes refiram o assunto o que no quer dizer que "falte" em um e outro algo como um tratado de metodologia. As coisas "pioram" ainda mais se se pensa que, em Hegel, a dialtica nem sequer pretende ser um tipo de abordagem universal do real: amplos setores da realidade, como o reino da matria e o das matemticas, e todo o comrcio que se possa viabilizar entre ambas simplesmente escapam prpria possibilidade da inteligibilidade dialtica. E que a dialtica no deve ser considerada um mtodo na acepo usual da palavra; ela ostenta agora, de sada, uma pretenso ontolgica: a prpria estrutura da realidade tal como Hegel a entende que se desdobra pela trama das contradies. E isso est longe de qualquer cientificismo metodolgico, como tambm de qualquer preeminncia que se pretenda atribuir questo dos mtodos formalizados. A segunda observao esclarece melhor o tema por referir-se questo da histria. Se Hegel recusa atribuir dialeticidade matria e matemtica porque elas no conseguem alar-se ao nvel da processualidade histrica; esta se orienta para outros endereos, e no prprio Deus que a dialtica se sente realmente em casa. Em ltima instncia, no pensamento hegeliano, no obstante a presena at mesmo vigorosa dos temas que iluminariam os prprios alicerces da crise da metafsica, tudo quer-se resolver em termos definitivamente metafsicos a sntese totalitria tudo deve absorver. Um passo mais, e com Marx as coisas se transmutam de modo muito claro e definido. E que Marx, avesso aos estratagemas metafsicos, s conhece uma cincia: a histria. E nesse novo contexto ele se importa com dois itens bsicos: a natureza histrica da cincia e a historicizao da natureza dois itens, de resto, que caminham juntos. De fato, hodiernamente, dessora-se o espao em que se pudesse considerar uma cincia em si mesma, enquanto autnoma,

indiferente ao contexto tecnolgico e social. Os tempos modernos encarregaram-se de destronar tal tipo de cincia; introduziu-se, por exemplo, j com Francis Bacon, a ideia de que saber poder, cincia dominao; e, um pouco antes de Marx, Augusto Comte percebeu muito bem as implicaes dessa inveno moderna que o engenheiro, o homem que estuda a cincia e que a traduz para o terreno da manipulao tcnica desse modo, cria-se a tecnologia. Mesmo que se deva defender o necessrio exerccio da pesquisa pura, tal pureza acabar fatalmente adulterada pelos avanos da tecnologia e do bem-estar social. E isso j vai to longe que a tese deve ser invertida: a tcnica no decorre da cincia; a tcnica assevera a correta interpretao de Heidegger pertence antes prpria essncia da cincia moderna. Comea-se a superar, j por a, a surrada dicotomia da doutrina dos dois mundos, um espiritual e superior, o outro material e inferior, que estabeleceu as razes do abismo, no humanismo clssico, entre o elitismo da vida contemplativa e a marginalidade do simples artesanato. Paradoxalmente, a prpria definio do homem como animal racional que entra em colapso; o elemento racional j no se contrape ao corpo, e a cincia j no exclui o arteso; a defesa da pesquisa pura s se entende, por assim dizer, a ttulo provisrio, a cincia rebate necessariamente na prtica, quando no for motivada de modo mais ou menos imediato por essa mesma prtica. E tudo isso acasala-se perfeitamente bem com o asserto de Marx de que j no existe mais uma natureza em si: tudo j foi transformado pelas mos do homem, tudo foi cartografado, medido pelo viageiro trabalho humano. Isso significa que a natureza foi infringida em seu estatuto originrio: de coisa ela passa a ser objeto o prprio planeta em que vivemos agora um imenso objeto. Acontece que o objeto s existe em sua relao com o sujeito, e essa relao encontra sua expresso mais avantajada justamente na investigao cientfica e na manipulao tecnolgica. Quando Marx afirma que s h uma cincia, a histria, ele quer dizer precisamente isto: a atividade humana historiciza a natureza, e o lugar mais adequado a tal historicizao est nas cincias irmanadas tecnologia transformadora. A histria, j pelas vias do fazer tcnico, pertence prpria essncia da cincia, e isso nada tem a ver com a pasmaceira relativista tem a ver, sim, com o andamento do mundo. O segundo tpico concentra-se na questo da diferena. nessa palavra hoje to difundida que se pode ter ao menos o ponto de partida de tudo o que a crise da metafsica trouxe de afirmativo. O tema poderia ser perquerido enquanto singularmente complicado com o problema da contradio dialtica. Deixo por ora esse caminho de lado. E tomo outro rumo, o do pensamento de um antidialtico radical (ao menos na acepo hegeliana da dialtica): penso em Heidegger, mas tambm nos mltiplos modos de se fazer presente a palavra diferena (mesmo quando ela permanece encoberta), em posies as mais diversas, diversidade que j ostenta uma bela histria e to dspar que nem se pode pensar em tudo reduzir a Heidegger; mas so

justamente os caminhos dessa mltipla divergncia que mostram toda a relevncia do tema. Tento aqui, em breves linhas, traar o sentido de um itinerrio, ou ao menos daquilo que parece s-lo no obstante todo o peso do leque das divergncias. Portanto, o pensador maior do tema da diferena sem dvida o j clssico Heidegger. A expresso consagrada "diferena ontolgica", que abre espao para pensar a separao entre ser e ente. Apenas o lembrete: se a metafsica confunde o ser com o ente, em especial com Deus, esse ente absorve o ser, e o ser entificado passa a funcionar como fundamento. Segue-se disso o esquecimento do ser. A questo deve ser retomada, em consequncia, a partir de suas razes histricas da a necessidade da destruio da metafsica. Destruio quer dizer: clarear o campo em que se pe a questo do ser. Se a questo toda gira em torno da relao entre ser e ente, digamos, com certa pressa, que o tema se abre em duas perspectivas: a do ser e a do ente. Ou ento, em duas direes: o ser em sua relao com o ente, e o ente em sua relao com o ser. Est tudo nessa questo da dependncia: no h ser (ou sentido) sem o ente, e no h ente sem o ser. Sabe-se que o primeiro Heidegger chegou a referir-se dependncia do ser em relao ao ente. No fundo, ter-se-ia de admitir que toda a questo do ser s faz sentido pelo ente, para o ente que h ser. Ora, j cedo Heidegger se afasta dessa colocao, a ponto de incidir no que convm chamar de esquecimento do ente. Pois, de fato, o ser passa a ocupar todas as atenes do filsofo. O que interessa est no ser em sua diferena autnoma, na plenitude de sua soberania: nada acontece no ser alm do prprio ser. E Heidegger fala em mandado do ser: de algum modo, o ser se desvela no ente, mas a medida de tal desvelar estaria pura e simplesmente no prprio ser. O sentido da linguagem vem todo inteiro do ser, e a palavra filosfica deve restringir-se, em ltima instncia, em saber escutar o ser. Nada difcil de prever que, nessa soberania do ser, alguns intrpretes sintonizassem um processo de personalizao do ser, ou quase, e isso para o encantamento de certos telogos que a pressentem uma espcie de reordenao do elemento divino; mas a h tambm o contrapeso da desconfiana de um Sartre: "J'y flaire l'alination'. Mas o grave nisso tudo est naquilo que chamei de esquecimento do ente. Se a inteno de base concentra-se na superao da metafsica, do discurso onto-teo-lgico, precisamente a fundamentao divina do discurso que deve ser abandonada. E desde o incio Heidegger fezse prdigo nesse sentido: o tempo o horizonte do ser; outro exemplo: a origem da obra de arte explica-se pela conjugao entre o mundo (ser) e a terra; ou ainda: a motivao originante do filosofar j no se encontra mais na admirao embutida no teologismo de uma realidade j constituda, e sim no Erahnen, numa perplexidade desamparada que apenas pressente o advir; e por a afora. Vale dizer que o pensamento requer a postulao de uma nova ontologia, toda fincada no nvel da finitude. Mas justamente a reivindicao da finitude que parece resultar prejudicada pelo desvalimento do ente

sobrevindo daquele mandado do ser: digamos que o ente se v como que destitudo de qualquer responsabilidade ontolgica. E, se assim , fica difcil perceber a que veio todo esse projeto de uma nova ontologia. Claro que os heidegge-rianos ortodoxos assumem por inteiro aquela autonomia do ser. Entretanto, o impasse acaba sendo radical: ou bem se admite, na relao entre ser e ente, a participao efetiva do ente, ou ento se assiste ao esvaziamento do ente. As razes do prprio Heidegger em favor de sua postura no deixam de ser respeitveis, principalmente por sua averso ao subjetivismo individualista e, por extenso, prpria presena da dicotomia sujeitoobjeto e toda sua tremenda carga histrica eivada de metafsica. Mas talvez se possa dizer que a posio de Heidegger peca por certa estaticidade, ou por vinculao excessiva s amarras histricas, vistas de um modo um tanto determinista. Pois toda a gravidade da questo concentra-se na realidade do ente: o esquecimento do ser, repito, apenas acoberta o esvaziamento do ente, daquilo que Plato chamava de menos-ser. E precisamente esse esvaziamento do ente que parece prolongar-se em Heidegger. Evidentemente, nisso tudo est em causa o prprio cerne do pensamento heideggeriano; e no se deveria ento avanar que esse pensamento tambm deve ser considerado como "vtima" daquele mandado do ser? No entanto, talvez no contraponto que representa essa reserva resida toda a importncia das teses do nosso filsofo em pouco maneira dos pr-socrticos, para os quais no o filsofo que fala, e sim o ser atravs de sua palavra. Seja como for, a presena maior de Heidegger vem sendo feita na contramo das intenes do pensador, justamente atravs desse processo de abertura para pensar o ente em todas as suas possveis dimenses isso, a ponto de s vezes ter-se a impresso de que a filosofia foi quase relegada. No importa: o que conta est nesse af em vasculhar o esquecido, o plano ntico. O tema, ento, passaria a ser este: o ser do ente, o ente em sua diferena; tal seria o desgnio maior envolto na famosa diferena ontolgica. J num primeiro passo, impe-se aqui a destruio da metafsica, ou seja, o desmonte do "corporativismo" da poltica do governo teolgico, viciado que era na distribuio de benesses com critrios bem definidos e sobejamente propalados: quanto mais longe de Deus, menos favorecido se tornava o ente. , digamos, na infra-estrutura do real que os entes resultavam prejudicados. Nem cabe estranhar, por isso mesmo, que, com a crise da metafsica, a proliferao das cincias tenha se verificado de modo realmente espantoso; pense-se que, ainda ao tempo de Kant, s havia uma nica cincia: a fsico-matemtica. Mas, j no correr do sculo passado, houve um verdadeiro processo de liberao, e praticamente tudo passa a ser objeto de investigao; rompem-se as atribuies de superior e inferior, ttulos gerais, como materialismo e espiritualismo, esvaziam-se de sentido. E fatal que se empreste importncia ao dito menos-ser, por ele que agora se aprimora o gosto, e as grandes hierarquias se tornam suspeitas.

Nesse contexto expande-se a descoberta do outro e tome-se o adjetivo outro em sua acepo a mais ampla; busca-se ver o outro em sua diferena. Com isso, entram em jogo as prprias bases da cultura ocidental. No por acaso que o sculo XVIII pe-se a ruminar, pela primeira vez na histria, o conceito de humanidade, e, a partir de fins do sculo passado, as andanas da antropologia cientfica que cito a ttulo de exemplo privilegiado no cessam de desanuviar outras e outras veredas de civilizao e de condutas singulares. O planeta se faz subitamente pequeno, e busca concertar uma nova unidade, compatvel agora, ainda que aos tropeos do aprendizado e dos amargores do inconformismo, com a descoberta das diferenas. Para concluir, que fale o poeta, e nada melhor para deixar ver os novos desgnios e o lugar preciso da razo do que Drummond, que sabe ser nosso maior seno nico pensador: [...] Aprenders muitas leis, Lus Maurcio. Mas se as esqueceres depressa, outras mais altas descobrirs, e ento que a vida comea, e recomea, e a todo instante outra: tudo distinto de tudo, e anda o silncio, e fala o nevoento horizonte; e sabe guiar-nos o mundo. Pois a linguagem planta as suas rvores no homem e quer v-las cobertas de folhas, de signos, de obscuros sentimentos, e avenidas desertas so apenas as que vemos sem ver, h pelo menos formigas atarefadas, e pedras felizes ao sol, e projetos de cantigas que algum um dia cantar, Lus Maurcio. Procura deslindar o canto. Ou antes, no procures. Ele se oferecer sob forma de pranto ou de riso. E te acompanhar, Lus Maurcio. E as palavras sero servas de estranha majestade. tudo estranho. Medita, por exemplo, as ervas, enquanto s pequeno e teu instinto, solerte, festivamente se aventura at o mago das coisas. A que veio, que pode, quanto dura essa discreta forma verde, entre formas? [...] Bornheim: Introduo ao filosofar (1) (2620 reads) I Posio do

Problema

O comportamento originante do filosofar e a possibilidade de esclarecer a problemtica que tal comportamento coloca, constituem o objeto do presente estudo. Baseado na convico de que no se trata de um problema que possa ser descartado como simplesmente secundrio ou de menor importncia, o autor parte, assim, do pressuposto de que a colorao fundamental de uma filosofia j se determina, em certo sentido, a partir mesmo da atitude inicial assumida por todo filsofo. Trata-se, portanto, da problemtica implicada no ponto de partida do filosofar. Referimo-nos ao filosofar, e queremos, desde logo, estabelecer uma distino preliminar. A atitude inicial do filsofo determina o carter ltimo de sua filosofia. Mas esta determinao, profundamente

enraizada no ato de filosofar, no deve ser confundida com o problema do primeiro princpio filosfico, com a primeira afirmao, a partir da qual um determinado filsofo poder alicerar e desdobrar o todo de seu pensamento, obediente incoercvel tendncia para a sistematizao, que inerente natureza mesma da filosofia. Este ponto de partida, primeiro princpio, seja ele de natureza lgica, ontolgica, gnosiolgica ou de qualquer outro teor, sobressai de uma problemtica antecedente e condicionante, que vem a confundir-se com certas exigncias existenciais de todo filosofar. Tomemos um exemplo. O fato de um Descartes haver estabelecido o cogito como ponto de partida, assero primeira de toda a sua metafsica, d a este cogito uma primazia absoluta dentro de uma certa ordem dedutiva. Mas o estabelecimento desse primeiro princpio metafsico radica e corresponde a todo um itinerrio prvio. No caso particular de Descartes, tal itinerrio , ao menos parcialmente, conhecido, pois o prprio filsofo nos transmitiu, em diversas de suas obras, as etapas que o levaram a filosofar. Sabemos, por exemplo, de seu descontentamento em face da situao da cincia de seu tempo (1). Homem dado a viagens, fala-nos da necessidade de percorrer "o grande livro do mundo", a fim de conhecer os costumes de seus contemporneos, bem como os de povos estrangeiros (2), e termina a primeira parte do Discurso do Mtodo declarando: "Tomei um dia a resoluo de estudar tambm em mim mesmo, e de empregar todas as foras de meu esprito na escolha dos caminhos que deveria seguir ". (Idem. p. 132) Pode-se mesmo afirmar que o itinerrio anterior ao cogito, seguido pelo Pai da Filosofia moderna, coincide com o predomnio de um profundo sentimento de insatisfao, insatisfao que se vai traduzir, de maneira mais especfica, nas diversas etapas que constituem o processo da dvida metdica. Assim, se o cogito o ponto de partida metafsico da filosofia cartesiana, o filsofo Descartes faz arrancar as suas preocupaes de uma srie de circunstncias que vo condicionar todo o seu pensamento. O problema que o autor deste trabalho se prope analisar nas pginas que seguem, no o do cogito ou de qualquer outro princpio semelhante ou de anloga funo. No tampouco o da legitimidade de um tal ponto de partida. Mas o problema a que se vai atender aqui o da atitude inicial do filosofar, ou seja: aquele especfico comportamento que leva o homem a ocupar-se de filosofia, a sentir-se at mesmo um condenado a essa tarefa, segundo o sentimento de Scrates. (4) Ora, desde esta vivncia de insatisfao para nos atermos ao exemplo de Descartes at "a resoluo de estudar", h um caminho mais longo do que primeira vista possa parecer, h mesmo todo um itinerrio coincidente com a biografia do filsofo. Alis, aqui topamos com a nossa primeira dificuldade, pois quem diz biografia, diz algo de estritamente individual e de inconfundvel em sua originalidade: existem tantas biografias quantos homens no mundo. E se assim ,

pode parecer, em um primeiro momento ao menos, que tudo o que resta a fazer a histria da vida dos filsofos ilustres, transferindo o problema para a extenso da Histria, sempre inacabada, da Filosofia,e fragmentando-o em um nmero indefinido de captulos exemplares. Contudo, quem se resolve ou se sente condenado a fazer filosofia, assume, pelo simples fato dessa resoluo, uma certa responsabilidade, um compromisso que, como todo compromisso, impe determinadas condies, as quais coincidem e ao mesmo tempo transcendem o que possa haver de arbitrrio e irredutvel em uma existncia individual. (5) O caminho do filsofo um inelutvel compromisso com a natureza da filosofia, o que vale dizer: com o prprio sentido do real e de sua verdade. A autenticidade no s de uma filosofia, mas tambm a de uma vida filosfica, dependem de sua fidelidade ao real. O estudo da conscincia filosfica, desde a sua etapa ingnua e prfilosfica at o despertar para o problema do sentido da realidade, acompanhando as etapas bsicas e necessrias de seu desenvolvimento, o que se prope, mais especificamente, o autor destas pginas. Evidentemente, a histria da filosofia oferece um rio> e variado material para este estudo, que no deve nem pode ser rejeitado. Se quisermos saber quais as caractersticas do comportamento filosfico e da atitude inicial do filosofar, nada mais correto, concreto e evidente do que perguntar aos prprios filsofos, aqueles que construram o monumento da filosofia. Este inevitvel otimismo inicial, porm, no tarda em resultar frustrado, e a decepo invade o pesquisador, logo ao incio do trabalho. De fato, poucos filsofos ocuparam-se do tema ou deixaram transparecer ao menos aspectos de sua biografia espiritual. O que normalmente se observa que a obra filosfica apresenta-se j pronta, montada nas suas concluses, deixando completamente de lado, num abandono impondervel para a pesquisa, aquilo que se poderia chamar a pr-histria de um determinado sistema filosfico. Encontra-se um desenvolvimento temtico, mas, do ponto de vista do comportamento pessoal do filsofo, no se percebe facilmente o que o levou a um tal desdobramento de idias. Outras vezes, o problema abordado em umas poucas linhas, quase por acaso, e o tema, longe de ser realmente ventilado, proposto, j de antemo, como resolvido, levando o leitor a uma srie de conjeturas. Ou ainda, vemnos em socorro uma pgina de importncia secundria, ou um ensaio de juventude ou alguns trechos de correspondncia: apenas breves indicaes, que permitem vislumbrar, aqui ou ali, um aspecto do problema. Neste desamparo, a compensao pode vir de alguns poucos

pensadores, de tipo existencial, cuja obra, muitas vezes, resume-se em uma espcie de dirio ntimo. Por outro lado, a atmosfera geral de uma determinada filosofia pode facultar o acesso atitude do respectivo filsofo diante da realidade. Assim, a leitura de um Schopenhauer termina por revelar-nos uma postura em face do real profundamente diversa da que encontramos em Nietzsche, por exemplo. Mas, tanto estes filsofos existenciais como aqueles em que podemos discernir atravs das construes filosficas uma atitude bsica, ao invs de aclarar o nosso problema apenas como que nos advertem da importncia fundamental do mesmo, acenando s dificuldades que ele oferece. Em suma, ao cabo de algumas perscrutaes ao longo da Histria da Filosofia, o primeiro e mais iminente perigo que surge o de dissolver a problemtica da atitude filosfica inicial em alguma modalidade de relativismo, afogando a questo nas brumas da histria. Uma falsificao do problema consistiria em dissolv-lo na diversidade de Weltanschauungen, quer dizer, em compreender a filosofia como o espelho que d unidade cultural a uma determinada poca. E isto em nome do bem conhecido argumento que diz que a filosofia das concepes do mundo, fazendo soobrar a problemtica filosfica dentro de certos limites do horizonte histrico, s pode faz-lo em nome de uma filosofia, e esta, por sua vez, coloca, em p de igualdade com qualquer outra, o problema de sua validez. E, dentro da perspectiva que estamos examinando, este historicismo tambm no poderia fugir, como qualquer outra modalidade de filosofia, ao problema da atitude inicial do filosofar. Vale dizer que a legitimidade da filosofia no pode obedecer a uma pesquisa reduzida ao estritamente histrico, pois se se trata de legitimidade, o plano meramente histrico, a quaestio facti, revela-se por definio insuficiente e deve ser transcendido. Ou bem a perspectiva historicista, em qualquer de suas modalidades, correta, e neste caso o nosso problema a rigor no existe, pois se confundiria simplesmente com uma espcie de culturologia ou tipologia, exigindo da filosofia a abdicao de seus foros de cincia: ela no passaria, portanto, de uma espcie de morfologia filosfico-cultural, que jamais seria total e completa, incidindo naquela fragmentao a que nos referimos acima; ou ento, contrariamente, devemos admitir o erro em que incide o historicismo, impondo-se a tarefa de julg-lo transcendendo-o conseqentemente assim como se julga qualquer outra filosofia. Portanto, se quisermos manter de p o nosso problema, somos obrigados a dar razo a Husserl, quando, em uma de suas obras, distingue filosofia e Weltanschauung: "A histria, a cincia emprica do esprito em geral, incapaz de decidir com seus prprios meios, em um ou outro sentido, se se pode distinguir a religio como forma particular de cultura, da religio como idia, isto , como religio vlida; se necessrio distinguir da arte, forma da cultura, a arte

vlida; do direito histrico o direito vlido; e finalmente se necessrio distinguir entre a filosofia no sentido histrico e a filosofia vlida; se h ou no entre uns e outros a relao da idia, no sentido platnico da palavra, com a forma velada de sua apario". (6) Embora no possamos aceitar integralmente o extremo rigorismo desta distino, tpica do "cientificismo" do Pai da Fenomenologia, cabe reconhecer que o prprio Husserl no deixa de acentuar o imenso valor da histria para o filsofo. (7) De fato, para o problema em discusso, o mrito fundamental do historicismo, alm da enorme riqueza de material que possa oferecer a sua modalidade de pesquisa, consiste, malgrado as suas limitaes, em ter recolocado o problema da natureza da filosofia, bem como o da atitude inicial do filosofar, que decorre daquele. Pois se tocamos aqui no problema do historicismo, no para mostrar a incompatibilidade de uma posio imanentista em face da natureza prpria da filosofia que foge ao tema proposto porm para destacar ainda mais a importncia da motivao na atitude inicial do filosofar. E aqui temos um problema que, se mergulha profundamente em condies scioculturais,se determina sobretudo a partir do telos que lhe prprio: a busca da verdade. No , maneira de Husserl, o problema da validez da filosofia que nos vai interessar. Se recusamos legitimidade tese historicista, porque nos sentimos mais libertos para acentuar uma caracterstica do problema sobre a qual deveremos insistir ao longo deste trabalho: referimos-nos densidade existencial que acompanha necessariamente o filosofar; e, como bvio, a dimenso existencial do homem no pode ser dissociada de sua profunda e fundamental historicidade. Precisamente em relao radical historicidade do ser humano, o historicismo desfalece e se revela insuficiente. (8) Mas abordemos o problema sob um outro aspecto: o do surto histrico do pensamento filosfico. A deficincia fundamental deste tipo de anlise a sua objetividade alienadora. No se respeita nela a distino entre o comportamento filosfico e o comportamento do historiador da filosofia, ou seja, daquilo que Heidegger chama de Philosophiewissenschaft. (9) Sem dvida, a anlise histrica imprescindvel; ela que nos permite aceder ao condicionamento possibilitador de certa etapa do desenvolvimento da filosofia. Contudo, embora reconheamos a necessidade de tal tipo de anlise, importa salientar aqui a sua radical insuficincia. O fato foroso de haver a filosofia surgido em um determinado momento da cultura ocidental no suficiente para considerar a explicao desse fato como um problema coincidente com o da atitude inicial do filosofar. Na verdade, o problema colocado dentro da moldura da origem histrica da filosofia mesmo se deixarmos de lado o carter de particularidade inerente a tal tipo de elucidao contribui muito menos do que primeira vista parece para a temtica do filosofar.

Por mais que se busquem causas histricas para explicar a gnese do pensamento filosfico, por mais ricas que sejam as concluses alcanadas neste domnio, sempre sobrar um resduo irredutvel e por assim dizer refratrio explicao causal: sempre cairemos na necessidade de aludir a um "milagre grego". Diante da possibilidade dessa investigao histrica, dois parecem ser os caminhos bsicos que podem ser seguidos. O problema consiste em buscar as causas histricas da filosofia e da cultura grega, e o primeiro caminho implica em fazer um inventrio das influncias extra-gregas egpcias, babilnicas, fencias, persas, etc. que tenham contribudo para a formao do mundo grego. Mas na medida em que esse tipo de explicaes for coroado de sucesso, o fenmeno mesmo que se quer explicar esvai-se, pois dissolve-se a originalidade da cultura grega, no sentido de que se reduz o grego a elementos pr-gregos. Impe-se, ento, o reconhecimento de que a especificidade da cultura grega permanece inexplicada, e assim, por mais ricas que sejam as anlises, subsiste o fato de que esta cultura diferente das outras culturas da poca. O outro caminho, que permanece aberto, o da tentativa de uma explicao interna, desde dentro da prpria Grcia, do original grego, para chegar, assim, origem da filosofia antiga. As anlises aqui se enriquecem e podem ser conduzidas pelos mais diversos pontos de vista: filolgico, literrio, religioso, artstico, econmico, poltico, etc. Mas a riqueza dessas anlises no consegue, aqui tambm, elidir aquele resduo que permanece sempre inexplicado. Realmente, a cincia do individual, do histrico, no tem fundo, da por que uma anlise da cultura grega permanecer sempre insatisfatria. No h cincia, no h intuio, no h amor, que possa fazer um indivduo compreender de maneira absoluta um outro indivduo, seja pessoa ou fato cultural, histrico. A assero de Herclito rigorosamente vlida: "Mesmo percorrendo todos os caminhos, jamais encontrars os limites da alma, to profundo o seu Logos ". (Cf. DIELS. fragm. 45) Se abrimos esse parntese sobre a perspectiva histrica na considerao da origem do pensamento filosfico, no foi, evidentemente, para roubar a virtude prpria desse tipo de anlise, mas para mostrar a sua radical insuficincia na abordagem do problema que nos interessa. A nosso ver, o que a histria no pode fornecer, pod-lo- uma anlise de ordem antropolgico-existencial, radicada, portanto, no comportamento daquele ser que faz e responsvel pela filosofia. Para isto, devemos pagar o preo prprio de todo conhecimento cientfico, isto , devemos ficar no plano do geral. Mas precisamente a possibilidade de permanecer nesse plano do geral que permite pr a descoberto a extenso universal da atitude originante do filosofar, e deste modo vincul-la a todos os que penetram no mbito filosfico, sejam gregos ou no, ressalvadas, evidentemente, as peculiaridades de cada indivduo, e respeitadas as

circunstncias

histricas.

Afirmamos acima que, se quisermos saber da atitude inicial do comportamento filosfico, o caminho que se impe de imediato consultar os filsofos. Realmente, se desejarmos perceber, de maneira mais concreta, a complexidade do problema, lancemos mo, por um instante, de certos exemplos que nos oferece a Histria da Filosofia. Olhando sobre o passado da filosofia, deparamos com certas atitudes bsicas, predominando diversamente, umas ou outras, em cada filsofo. Karl Jaspers destaca trs destas atitudes (Introduction la philosophie. Trad. Jeanne Hersch. Paris, Pion, 1952, p. 15-18), que talvez no sejam as nicas possveis, mas que so encontrveis com certa freqncia, resguardadas diferenciaes por vezes fundamentais: a) A primeira atitude nos vem da Grcia clssica. Plato e Aristteles pretendiam ver na admirao o impulso inicial de todo filosofar. No comportamento admirativo o homem toma conscincia de sua prpria ignorncia; tal conscincia leva-o a interrogar o que ignora, at atingir a supresso da ignorncia, isto , o conhecimento. b) A segunda atitude Karl Jaspers a encontra na dvida, podendo-se apontar, Descartes como sendo o seu representante clssico. Neste comportamento, a verdade atingida atravs da supresso provisria de todo o conhecimento ou de certas modalidades de conhecimento, que passam a ser consideradas como meramente opinativas. A distino grega entre doxa e episteme tem a mesma raiz. A dvida metdica agua o esprito crtico prprio da vida filosfica, e nisso reside a sua eficcia. c) Finalmente, a terceira atitude implica no sentimento de insatisfao moral. Se em seu comportamento usual encontramos o homem absorvido no mundo que o cerca, a filosofia se impe como tarefa a partir do momento em que esse homem quotidiano cai em si e pergunta pelo sentido de sua prpria existncia. O mundo exterior abandonado em conseqncia de um sentido de insatisfao, levando o homem a tomar conscincia de sua prpria misria. Assim Epteto, por exemplo, quando escreve: "O princpio da filosofia, para aqueles que se dedicam a esta cincia como deve ser (...), a conscincia de sua prpria fraqueza e de sua impotncia nas coisas necessrias ". (Entretiens. Trad. Joseph Souilh. Paris, Les Belles Lettres, 1946. t. 2. p. 41) Sem dvida, nessas trs modalidades de atitude h muito de verdade, no sentido de que elas so encontradas em todo filsofo, em um grau maior ou menor, a despeito da possvel predominncia de uma ou outra sobre as demais. Na admirao encontramos um

comportamento de abertura o mais espontneo e original possvel do homem diante da realidade. Sem a dvida, no chega a se desenvolver o indispensvel esprito crtico, que deve acompanhar toda tarefa de ordem filosfica. E pela inquietao moral, fundamentase o filosofar em seus aspectos ticos. A sntese dessas trs atitudes poder-se-ia. constituir, talvez, no ideal do complexo comportamento inicial do filsofo, desde que se verificasse dentro de um determinado equilbrio. Este sentido de sntese apresenta-se, ao menos, como primeira e tentadora soluo em face da pluralidade de comportamentos. Mas tal equilbrio dificilmente pode ser verificado, porque as atitudes tomadas em si mesmas, enquanto atitudes, e na medida em que uma, como de fato acontece, predomina sobre as demais reclamam um certo grau de exclusividade, levando-as, em conseqncia, a se repelirem. E a sntese, nesse caso, se possvel, j no coincidiria com o impulso inicial, mas seria, muito mais, o fruto de um trabalho de reflexo sobre o problema, incidindo em um dever-ser abstrato; ou ento, colocando essa diversidade de atitudes sobre outras bases, teramos a descrio de mltiplas experincias, constitutivas todas do filosofar. Esta diversidade, contudo, no pode ser posta de lado por ns, mas impe-se precisamente como o material que deve ser explicitado para a compreenso do problema. Com isto queremos dizer que o impulso inicial do filosofar, longe de constituir um problema de uma pea s, apresenta-se como um todo complexo, cujos aspectos fundamentais devem atender s prprias caractersticas bsicas da natureza da filosofia. A referncia a aspectos e a possibilidade de falarmos no predomnio de uma atitude sobre as demais decorrem do fato de que se empresta a uma atitude maior valor que s outras. Ora, nessa diferenciao valorativa que reside o cerne do nosso problema, pois podemos e devemos ento perguntar qual delas apresenta carter de maior fundamentalidade, em funo da natureza da filosofia, e como deve ser compreendida esta fundamentalidade dentro da diversidade de aspectos. O presente ensaio pretende mostrar que o elemento originante e precpuo do filosofar, no obstante a inalienvel complexidade do fenmeno, reside na atitude admirativa. Realmente, tomadas em si mesmas, todas as trs atitudes apontadas revelam-se insuficientes e parciais. A dvida, tal como se apresenta em um Descartes, supe j um estgio bastante adiantado da filosofia, ou melhor, supe outras filosofias. Apenas a partir de uma saturao de conhecimentos e de pontos de vista existentes, pode a dvida surgir e impor-se com necessidade. Mas se supe esse relativo ceticismo frente a outros conhecimentos propagados, diante de uma pluralidade de filosofias ou de concepes de vida que se contradizem, ento a dvida passa a ser uma decorrncia daquela saturao; e assim a constituio da filosofia suporia j uma

indispensvel existncia de filosofias, suporia ao menos a vigncia de determinadas maneiras de ver o real. A dvida, conseqentemente, parece ser sempre secundria, no se justificando, portanto, sem uma fundamentao anterior. Por isso mesmo, a predominncia da atitude da dvida liga-se, facilmente, ao excesso de esprito crtico. O mesmo pode ser dito da insatisfao moral, com a seguinte agravante: se a "conscincia da prpria fraqueza" consegue aguar o esprito para o problema do homem, muito freqentemente leva a circunscrever a problemtica filosfica a esse problema, e o sentido de totalidade, prprio da filosofia, , assim, restringido. Neste caso, a filosofia iria incidir em um moralismo. Quanto admirao, parece que, embora tambm insuficiente para explicar a complexidade do impulso inicial do filosofar, atende exigncia precpua de abertura para o real, de primeiro despertar em face de v.ma realidade que dever ser pensada pelo filsofo. Se razes dessa ordem mostram que a dvida e a insatisfao moral no esto isentas de parcialidade e at mesmo de algum desvio em relao a certas exigncias da filosofia, no h, contudo, como exclulas deste todo que o comportamento filosfico, o que, naturalmente, desaconselha a decidir, sem mais, pela prioridade da admirao. A complexidade deste problema da atitude inicial do filosofar nos revelada mais amplamente se considerarmos alguns dos pontos de vista sobre a matria expressos por Aristteles, que foi um dos primeiros a ver na admirao a fonte do filosofar. No fcil, diga-se desde j, julgar a posio aristotlica. (13) Assim, logo no incio do primeiro livro de sua Metafsica, refere-se a diversos aspectos da origem do filosofar, sem revelar, porm, nessas indicaes, a preocupao de unific-las com organicidade maior, dando mesmo a impresso de que o problema para ele no apresenta maiores dimenses. Vejamos algumas destas indicaes presentes no corpus aristotelicum. J a primeira frase da Metafsica liga todo o conhecimento e, portanto, tambm a filosofia com o desejo: "Todos os homens desejam naturalmente saber ". (Metaphysics. Trad. H. Tredennick. London, Loeb Classical Library, 1947. A, 1, 980a.) E Aristteles v uma confirmao disto no "prazer causado pelas sensaes", especialmente a visual. Alis, o ver e o conhecer, na Grcia antiga, esto intimamente ligados, como o mostra a etimologia das palavras que designam o ato de conhecer. (Ver sobre o assunto BRUNO SNELL. La cultura greca e le origini dei pensiero europeo. Trad. V. D. Alberti. Einaudi, 1951. p. 22 e segs) Uma segunda indicao, que se segue imediatamente primeira, a excluso, no filosofar, do comportamento prtico, utilitrio, interesseiro. A segunda frase da Metafsica assevera: "O que o mostra o prazer causado pelas sensaes; pois, fora mesmo de sua

utilidade, elas nos agradam por si prprias, e, mais do que todas as outras, as sensaes visuais. Com efeito, no somente para agir, mas mesmo quando no ns propomos nenhuma ao (...)". (Op. cit., Idem) E mais adiante, referindo-se ao primeiro homem que descobriu uma arte, afirma que "no foi somente em razo da utilidade de suas descobertas, mas por sua sabedoria e sua superioridade sobre os outros. Depois as artes novas se multiplicaram, dirigidas, umas para as necessidades da vida, as outras para o seu prazer; e sempre os inventores destas ltimas artes foram considerados como mais sbios que os outros, e isto porque as suas cincias no tendem utilidade. Assim se explica que todas essas diferentes artes j estavam constitudas quando foram descobertas as cincias, que no se aplicam nem ao prazer, nem s necessidades, e nasceram primeiro nos pases onde reinava o cio ". (Op. cit., Idem 981b) Em outras passagens, insiste Aristteles neste seu ponto de vista, e a sua preocupao fundamental parece ser sempre a mesma: a de no confundir a atitude filosfica com o utilitrio, o prtico, em qualquer de suas dimenses. E quando fala em cio, no nos diz propriamente o que entende por esta palavra, ou melhor, ele s a especifica de maneira negativa, como sendo o no-prtico, e nada mais. Mais do que ressaltar o cio, Aristteles parece estar sobretudo preocupado em excluir do comportamento filosfico enquanto tal, qualquer dimenso utilitarista, pois se refere a este aspecto em quase todas as abordagens do tema. Uma terceira indicao encarece a importncia do comportamento admirativo. Num texto muito denso e complexo, escreve Aristteles: ", com efeito, a admirao que leva e levou os primeiros homens especulao filosfica.. No incio, sua admirao voltava-se para as primeiras dificuldades que se apresentavam ao esprito; depois, progredindo pouco a pouco, estenderam sua investigao a problemas mais importantes, tais como os fenmenos da lua, os do sol e das estrelas, e enfim gnese do Universo. Ora, perceber uma dificuldade e admirar-se reconhecer a prpria ignorncia (por isto o amante dos mitos , em certo sentido, amante da sabedoria, pois os mitos so compostos de maravilhas)". (Op. cit., Idem, 982b) Aristteles no d margem a dvidas: a admirao o elemento fundamental da gnese do filosofar. Mas o comportamento admirativo enlaa-se com um quarto aspecto: Aristteles liga a admirao conscincia da ignorncia, que brota da percepo de uma dificuldade obviamente de carter intelectual. A vivncia da admirao apresenta-se, portanto, condicionada; alm disto, destituda de ingenuidade. O que Aristteles faz, em verdade, afirmar a admirao como a atitude responsvel pela gnese da filosofia enquanto desperta no homem a conscincia da ignorncia atravs da percepo de uma dificuldade; mas o Estagirita no se detm nesta rede de problemas, deixando de lado, em especial, a anlise da natureza da admirao. Pode-se at mesmo dizer que ele d a impresso de proceder de acordo com uma longa tradio sobre

a matria, cujo ponto de partida j se encontraria no gosto ou no amor ao mito, idia presente no texto acima citado atravs de uma interrelao de palavras, que liga o amante dos mitos ao amante da sabedoria. Deixando de lado o intrincado problema das relaes entre o mito e a filosofia (19), curioso observar, contudo, que o nico filsofo anterior a Aristteles a mencionar o tema da admirao Plato tambm sugere uma relao entre mitologia e filosofia: "A verdadeira marca de um filsofo o sentimento de admirao que tu experimentas. Realmente, a filosofia no tem outra origem, e aquele que fez de ris a filha de Thaumas, no , parece-me, um mau genealogista". (PLATO. Theeteto, 155d.) Talvez no seja to difcil unir o desejo de saber, o desinteresse, a ignorncia, a admirao e o mito, tais como aparecem nas primeiras pginas da Metafsica, embora se deva permanecer alerta contra juzos fceis e apressados em relao a este aspecto da doutrina aristotlica. Mas, em outras passagens de sua obra, Aristteles nos d ainda outras indicaes sobre o problema, e, de maneira especial, h uma que nos parece inquietante e escapa serenidade clssica do incio da Metafsica. Referimo-nos ao que se l no volume intitulado Problemas, do corpus aristotelicum, quando fala "sobre a Inteligncia, o Esprito e a Sabedoria". (Problems. Trad. W. S. Hett e H. Rackham, London, Loeb Classical Library, 1957. t. 2. cap. XXX, 953a at.957a) Nestas pginas, pergunta Aristteles por que pertence a melancolia ao ser do filsofo. Entre os melanclicos coloca ele os poetas, os artistas, os guardies da comunidade humana e sobretudo os filsofos, considerando, entre os de tempos recentes, Empdocles, Plato e Scrates como melanclicos tpicos. (Op. cit., 953a) Distingue a melancolia natural da melancolia doentia, e refere-se aos diversos tipos de carter daqueles cujo temperamento melanclico por natureza. (Op. cit., 954a, b) O importante a salientar nestas pginas de Aristteles a compreenso da vida filosfica a partir deste seu ethos que a melancolia. (24) Como se v, o problema em Aristteles est longe de ser simples, e talvez seja at mesmo insolvel. Realmente, no nos diz como relacionar* a admirao com a experincia da melancolia. E os problemas se impem: porque a melancolia implica em uma espcie de desgosto, um tornar o homem solitrio, mas de uma solido que exige dele a abertura para a compreenso do real. Tal como a descreve Aristteles, h, na experincia da melancolia, um esforo, ou melhor, ela adquire dimenso filosfica a partir deste esforo. Na admirao, ao contrrio, deparamos com um comportamento no qual predomina o passivo, o receptivo. A melancolia, quando desprevenida, est mais voltada para o interior, ao passo que a admirao muito mais para o exterior. Como conciliar estes aspectos? Ou melhor: existe a possibilidade de conciliao, ou se trataria, muito mais, em Aristteles, de duas posies distintas, assumidas, talvez, em etapas diversas de sua vida?

(25) E mais: como se compreende que uma experincia como a da melancolia possa levar o homem a abraar a tarefa filosfica? Se a melancolia acentua a solido, ela como que desliga o homem do mundo. A admirao, bem ao contrrio, parece caracterizar-se por uma abertura ao mundo, e conseqentemente por uma ruptura com qualquer tipo de experincia melanclica. Qual destas duas atitudes a mais fundamental? Se as duas tm as suas razes de ser, qual delas corresponde melhor ndole da filosofia? Ou seriam ambas momentos integrantes do filosofar? Mas neste caso, de que maneira? Como se processa esta integrao? Com o que dissemos at aqui, cremos ter conseguido, ao menos, explicitar qual o nosso problema e indicar certos aspectos que permitem avaliar a sua complexidade. Para responder a todas as questes que colocamos acima, devemos realizar uma srie de anlises. Iniciaremos com o problema da admirao em sua modalidade mais simples, isto , a admirao ingnua. Para esta anlise no suficiente distinguirmos diversos tipos de admirao ou de comportamentos que lhe so aproximados, assim como se distingue, to freqentemente em manuais de filosofia, uma admirao passiva da admirao ativa. Impe-se, muito mais,, acompanhar o processo interno da admirao, os elementos que lhe so constitutivos, para procurarmos saber, em seguida, se esta experincia atende ao problema da atitude inicial do filosofar, se deve ou no ceder o seu lugar a alguma outra modalidade de experincia, como a dvida ou a melancolia, ou se estas outras experincias no se integram, em algum sentido que deve ser verificado, no processo total da conscincia filosfica diante do real.

NOTAS: (1) "J h algum tempo percebi que, desde meus primeiros anos, recebera muitas falsas opinies como verdadeiras, e que aquilo que depois fundamentei em princpios to mal assegurados, s poderia ser muito duvidoso e incerto; de modo que me era necessrio empreender seriamente, uma vez por todas, a tarefa de me desfazer de todas as opinies que at ento recebera em minha crena, e comear tudo novamente desde os fundamentos, se quisesse estabelecer algo de firme e de constante nas cincias. (...) Agora que meu esprito est livre de todo cuidado, e que consegui um repouso seguro em uma solido agradvel, esforar-me-ei seriamente e com liberdade em destruir de um modo geral todas as minhas antigas opinies." (In Oeuvres et lettres. Paris, Bibliothque de la Pliade, 1952. Mditations touchant la premire philosophie. p. 267.) E ainda: "Nada direi da filosofia, a no ser que, vendo que foi cultivada pelos mais excelentes espritos que viveram desde muitos sculos, e que a despeito disto nela nada se encontre que no seja objeto de disputa e. conseqentemente, que no seja duvidoso (...)" (Idem. Discours de la

mthode,

p.

130).

(2) "(...) dediquei o resto de minha juventude a viajar, a ver cortes e exrcitos, a freqentar pessoas de diversos humores e condies, a recolher diversas experincias, a experimentar-me nos encontros que a sorte me propunha, e em tudo fazer tal reflexo sobre as coisas que se apresentavam, que delas pudesse tirar algum proveito. Pois parecia-me poder encontrar muito mais verdade nos raciocnios que cada um faz sobre aquilo que lhe importa, e cuja realizao logo o punir se julgou mal, do que nos raciocnios que um homem de letras faz em seu gabinete, sobre especulaes que no produzem efeito algum, e que no trazem talvez outra conseqncia que permitir tanto maior vaidade quanto mais afastadas estiverem do senso comum, por suporem maior emprego de esprito e de artifcio no esforo de tornlas verossmeis. E tive sempre um extremo desejo de aprender a distinguir o verdadeiro do falso, para ver claro em minhas aes e caminhar com segurana nesta vida" (Idem. p. 131). (4) Cf. PLATO. Apologia de Scrates. 29a e 31d. Em carta a Niethammer, a esposa de Hegel atribui a seu marido as seguintes palavras: "Ser condenado por Deus a ser um filsofo!" (cit. por HERRMANN GLOCKNER. Hegel. Stuttgart, Fr. Frommanns Verlag, 1954. p. 273. v. 1.) (5) Podemos dizer, com MONTAIGNE, que "cada homem traz em si a forma inteira da condio humana" (Essais. Paris, Bibliothque de la Pliade, 1950. p. 900). (6) Veja-se todo o texto de HUSSERL sobre o problema, in La philosophie comme science rigoureuse. Trad. Quentin Lauer. P. U F., 1955. p. 106 at o fim. O texto citado est na p. 102 e segs. Logo em seguida pergunta: "Como poderia, pois, o historiador decidir sobre a verdade dos sistemas filosficos dados e sobretudo sobre a possibilidade em geral de uma cincia vlida em si? (...) Quem nega um sistema determinado no menos obrigado a dar razes do que quem nega a possibilidade de todo sistema filosfico enquanto tal". E mais adiante acrescenta: "A histria como tal no pode sequer provar a afirmao segundo a qual at agora no houve filosofia cientfica alguma; ela s pode prov-lo por outras fontes de conhecimento, e estas j so filosficas". E mais: "Toda crtica verdadeira e penetrante j fornece meios de progresso, indica idealmente o caminho para fins e meios verdadeiros e, conseqentemente, para uma cincia objetivamente vlida. Naturalmente, deve-se acrescentar a tudo isto que a impossibilidade histrica de defender uma posio espiritual como um fato nada tem a ver com a impossibilidade de defend-la do ponto de vista da validez". (7) "Gostaria assim mesmo de insistir expressamente sobre o fato de que eu reconheo plenamente o imenso valor da histria, no sentido mais largo da palavra, para o filsofo" (Idem. p. 106).

(8) Numa perspectiva histrica, o problema vem tona no itinerrio que conduz de Dilthey a Heidegger. Leia-se, por exemplo, a lcida anlise de LUDWIG LANDGREBE, in Philosophie der Gegemvart. Bonn, Athenaem-Verlag, 1952. p. 104 e segs. (9) Einfuehrung in die Philosophie. Tuebingen, M. Niemeyer Verlag, 1953. p. 9. Com muita razo escreve GABRIEL MARCEL: "Sem dvida, um filsofo deve 'saber' a Histria da Filosofia, mas, segundo o meu ponto de vista, quase exatamente no sentido em que um compositor deve saber harmonia; (...) o filsofo que capitulou diante da Histria da Filosofia no , por isto mesmo, um filsofo" (Du refus l'invocation. Paris, Gallimard, 1940. p. 87). (13) Nas observaes que se seguem no pretendemos, a rigor, "julgar" a posio de Aristteles e muito menos interpretar os diversos elementos que ele aponta como constitutivos do problema que nos ocupa; isto suporia anlises mais amplas e um levantamento de toda a obra do Estagirita. Buscamos to-s chamar a ateno para certas dimenses do problema referidas por Aristteles, a fim de mostrarmos mais amplamente a densidade da questo. (19) J. Tricot, na sua traduo da Metafsica (Paris, J. Vrin, 1953, p. 17) cita o seguinte raciocnio de Ross: "O mito est cheio de fatos que excitam a admirao; quem admira pensa que. ignorante; quem se cr ignorante deseja 'a' cincia; portanto, o amante dos mitos um amante da cincia (um filsofo, no sentido etimolgico)". O problema se adensa porque o amante dos mitos por excelncia o poeta, sendo o mundo dos mitos o objeto da primeva poesia grega. Por outro lado, Bruno Snell, na p. 60 da obra acima citada, sugere uma relao entre a admirao e o sentimento religioso prprio dos gregos; pois, concluindo a sua anlise, diz: "Surpresa, maravilha e admirao so os sentimentos que o aparecer da divindade desperta no homem de Homero". E logo depois, pergunta: "O ato da orao no acaso tambm para os gregos dos sculos posteriores um gesto de admirao?" (24) H um interessante comentrio de WILHELM SZILASI a este e outros textos correlatos de Aristteles, in Macht und Ohnmacht des Geistes, Bem, A. Francke Ag., 1946, p. 229 e segs. A certa altura de seu comentrio, escreve Szilasi o seguinte: "A melancolia do filsofo no doena, mas sua natureza (physis). ou seu hbito (ethos) (955a40; 954a27). A melancolia, enquanto doena, s pode ser compreendida a partir da existncia. Pois toda doena a desmedida de um momento latente do 'ethos', que permanece encoberto no estado de sade. O que pertence natureza de um homem pode tornar-se doente, e isto acontece quando a doena d independncia a um determinado elemento da natureza prpria, fazendo deste elemento o desmedido. Mas errado falar em doena quando toda a natureza do homem por si mesma desmedida, quando a prpria

natureza que transborda no desmedido (935a38). Pois a natureza demonaca e no divina (463b14). No transbordamento, ela vai alm de si. Assim, tambm a embriaguez torna manifestas certas propriedades do carter, quando as leva ao excesso (953a32, b25). Mas quem por natureza desmedido, isto , quem tem sua existncia determinada pelo excesso, para atingi-la no precisa de motivao exterior; sua melancolia e sua embriaguez so originais e permanentes. "Entre aqueles cujo excesso provm de sua natureza autnticos melanclicos pelo poder de sua natureza encontramos os filsofos. O que , ento, a melancolia, que funda o herico e o filsofo, vinculando ambos ao sentimento da noite e compreenso do sonho?" (refere-se ao ensaio de Aristteles intitulado Da divinao quanto ao sono, 2, 463b 12 464b 18). " essncia do melanclico pertence uma misso, que ele recebe de Deus, para lutar, como Hracles e Belerofo, contra os seres que habitam as trevas ameaadoras; ou para lutar, como Aias, contra si prprio e o mundo que o cerca, isto , contra a insensibilidade e a indolncia do corao." E mais adiante: "Os filsofos, esses heris da condio humana, esses melanclicos pela desmedida de sua condio, como Empdocles, Scrates, Plato, receberam tambm eles uma misso dos deuses, isto , do todo do ente uma misso irrealizvel, que os demais nem chegam a compreender (...). Uma misso que s deixa feridas, abertas no pelos outros, mas pela grandeza de sua incumbncia, como vingana do mistrio em que penetraram e que buscam esclarecer. " a misso de ir alm da condio humana, a fim de que apreenda o ser do todo e o todo do ser, a fim de que contra a destruio que decorre do destino cotidiano, contra o erro, a loucura e o acanhamento se prepare para o nico fundamental: participar de tal modo do todo, que a participao seja viso do todo, contato com sua unidade, compreenso do ser. Para.isto, a existncia deve estar apta a sair de si, a desaparecer para si e para as exigncias mundanas; a dissolver .os laos que a ligam aos entes, laos que impedem o perguntar filosfico do ser e que lhe permitem alcanar no mximo a entidade do ente; deve encontrar a solido que conduz ao encontro fundamental. "(...) O que torna o filsofo melanclico esta luta em duas frentes: a escurido da noite, que abriga em si tudo o que ameaa e destri, mas que , por outro lado, o regao do mistrio; e a luta deve ser mantida ao mesmo tempo contra o que ameaa e a favor do mistrio a mais herica de todas as lutas. A melancolia da filosofia une a coragem e a sensibilidade, coragem contra a noite e sensibilidade para a noite (isto , para o nada) (464a32), a fim de que a condio humana seja preservada e que a mensagem seja recebida. A melancolia d ao filsofo o poder de enfrentar os perigos da noite; permite-lhe tambm conhecer, indo alm dos claros limites de cada instante, o princpio unificador do todo. Por isto, exercita a sua

sensibilidade com o longnquo, como os atiradores que aprendem a atingir alvos distantes. "Assim, educa sua vigilncia para salvar da noite e conquistar para o dia (464a12). Vive na luz, para a iluminao do ser; suporta, porm, a noite, talvez pesadamente; conhece-a bem, tanto em suas ameaas quanto em suas possibilidades de revelao. Sua existncia reconquista constantemente o limite. A melancolia encontra o seu fundamento num saber: o saber que, facilmente, a posse do ser do todo reverte ao nada. "Foi dentro deste mesmo horizonte aristotlico que o mais grego dos filsofos modernos, Nietzsche, interpretou a sua prpria existncia: 'Sou um adivinho? Um sonhador? Um brio? Um intrprete de sonhos? Um sino da meia-noite?'. So as mesmas palavras de Aristteles. E ainda estas sobre a noite: 'Nela se revelam coisas que no devem ser ouvidas durante o dia; na fresca brisa, quando se acalmou o barulho de vossos coraes ento a noite fala. . .'. Tambm Aristteles diz que a noite o elemento do filsofo, do melanclico (464a)". (P. 301 a 304 do livro de Szilasi.) (25) Sabe-se que a verso que veio at ns dos Problemata no foi escrita, em grande parte ao menos, pelo prprio Aristteles, mas por discpulos seus. Sabe-se tambm que Aristteles escreveu um livro com este mesmo ttulo, e pode-se constatar, atravs dos autores que fazem referncia obra perdida, que o contedo de ambas o mesmo. E especialmente a parte que diz respeito ao temperamento melanclico considerada aristotlica por Plutarco e por Ccero (cf. o estudo introdutrio de W. S. Hett, da edio acima citada). Bornheim: Introduo ao filosofar (2) (3277 reads) II Anlise da Admirao

Ingnua

Devemos analisar inicialmente o fenmeno da admirao tal como se verifica em sua manifestao primria, em seu primeiro desabrochar, ainda dentro de um horizonte de ingenuidade e espontaneidade, buscando-lhe as caractersticas mais fundamentais. Quais so estas caractersticas e como compreend-las? A primeira o sentido de abertura que a acompanha. E a dimenso desta caracterstica pode ser elucidada a partir de um comportamento antiadmirativo por excelncia e em um sentido radical: referimo-nos atitude pessimista. Pois o pessimismo consiste no fato de que o homem no sente admirao por no querer ou no poder diante de nada. Ou melhor: s constitui surpresa, para ele, o fato de que haja pessoas que se admiram. E assim mesmo, esta modalidade de admirao pessimista vem acompanhada de um sentimento de

comiserao, de piedade e mesmo de revolta, que solapa a natureza ltima da postura admirativa. A expresso "admirao pessimista'' implica, pois, um sentimento contraditrio. Interessa-nos aqui apenas o pessimismo ingnuo, que surge quase como manifestao instintiva ou como vontade ainda inexplicitada de pessimismo. Nietzsche faz distino entre o pessimismo da inteligncia e o pessimismo da sensibilidade. (Die Unschuld des Werdens, Der Nachlass II Teil. Stuttgart, A. Kroenet Verlag, 1956. p. 399) O primeiro, diramos ns, vem unido a uma interpretao da realidade, apresentando-se, freqentemente, explicitado em uma doutrina ingnua mais ou menos desenvolvida, ou expressando-se, agressivamente, em certas frmulas como "nada h de novo sob o sol", "tudo se repete monotonamente", "melhor fora no ter nascido do que suportar a misria da vida", etc. Recusa-se, portanto, a realidade, buscando-se a sua neutralizao, porque nada revela, nem esconde sentido algum, e toda tentativa de compreenso do real incide em um malogro. A modalidade de recusa da segunda forma de pessimismo qual, talvez, de um ponto de vista gentico, fosse redutvel a primeira mais do que pensar a realidade, sofre-a como um mal, manifestando-se como uma espcie de alergia ou de inconformismo vivido. Ela pode ser considerada ingnua, no sentido de que se processa em um plano pr-crtico, coincidindo com um certo grau de apatia. A marca precpua deste pessimismo ingnuo um comportamento afetado de uma desconfiana bsica e, portanto, profundamente negativo diante da realidade. Ora, na admirao ingnua ns encontramos exatamente o oposto. Se o pessimismo uma recusa ao real, a admirao a semente que comea a reconhecer um sentido neste mesmo real, Se o pessimismo a vontade que teima sobre si prpria, na admirao brota o primeiro gesto de abertura do homem para uma realidade que o transcende. No h ressentimento ou desgosto, mas gosto, afeio, pela realidade, que se revela em uma atitude receptiva, de disponibilidade pura. Na admirao, verifica-se um simpatizar, no sentido etimolgico da palavra, um sentir unido ao real, e esta disponibilidade apreende o real como uma presena insofismvel, porque,. longe de impor-lhe o que quer que seja, o deixa ser em toda a sua dimenso, como plenitude de presena. J neste sentido podemos compreender as palavras de Heidegger: "Semelhante deixar-ser significa que ns nos expomos ao ente como tal e que ns transportamos ao aberto todo o nosso comportamento" (Vom Wesen der Wahrheit. Frankfurt, Klostermann, 1954. p. 15). Este expor-se faz com que sintonizemos com a realidade, de tal maneira que o ato de expor-se e o deixar-ser o real, o aberto, se entrelaam, permitindo entender como a admirao ingnua se processa sobre um fundo amoroso, raiz ltima que em seu silncio deixa a realidade falar. Es liebt in uns, conforme a feliz expresso utilizada por Peter Wust. (Naivitaet und Pietaet, Tuebingen,

J.

C.

Mohr,

1925.

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57)

O dar-se do homem se combina, assim, com o dar-se do real, e a admirao supe esta total reciprocidade na confiana. E por real, realidade, se deve entender aqui no apenas o mundo da natureza, mas tambm a esfera do homem, bem como a sua obra, o mundo da cultura: realidade, portanto, na acepo mais ampla da palavra. Tudo o que tem fora de ser passvel de admirao. Na admirao, pois, encontramos a primeira abertura do homem para o real. Convm, contudo, adentrar um pouco mais nossa anlise em torno dessa caracterstica do ato admirativo como um abrir-se. Diz ainda Heidegger: "A palavra deixar-ser o ente, necessria aqui, no pensa, porm, em omisso e indiferena, mas em seu contrrio". E, no mesmo texto, logo mais adiante: "O deixar-se-entrar no desvelamento do ente no se perde neste, mas desdobra-se em um retorno diante do ente, a fim de que este se manifeste no que e como e tome dele a medida de sua adequao". (Op. cit., p. 14-15) Quer dizer, o dar-me ao real e o deixar-ser o real implicam em uma intimidade de participao, de tal modo que "le monde est tout au dedans et je suis tout hors de moi", segundo a expresso de Merleau-Ponty. (Phnomnologie de la perception, Paris, Gallimard, 1954. p. 467) Esta presena no pode, porm, ser compreendida como uma espcie de fuso entre o eu admirante e a realidade admirada. Quem admira no se dissolve na realidade que admira, nem esta se desfaz naquele. Pois, bem ao contrrio, o que caracteriza a admirao o reconhecimento do outro como outro, e porque eu o reconheo enquanto tal posso admirar-me. No se trata de confuso, e sim de um respeito cujas razes mergulham em uma inocncia ingnua e piedosa. Compreende-se, assim, Nietzsche, quando afirma: "O pessimista perfeito seria aquele que compreende a mentira, mas , ao mesmo tempo, incapaz de desfazer-se de seu ideal: abismo entre querer e conhecer" (Op. cit., idem, p. 400). precisamente este abismo que no se verifica na admirao ingnua, pois no ato admirativo o ideal e o real como que coincidem, e, por isto mesmo, a realidade se manifesta ao admirante como dotada de plenitude de sentido. E no s se desfaz o abismo entre o querer e o conhecer, mas o pessimismo, como toda e qualquer modalidade de comportamento egocntrico, anulado. Assim, a primeira caracterstica da admirao ingnua a afirmao, compreendida como abertura, do outro como outro, que releva do sentimento de pura disponibilidade, amorosa e desinteressada. Esta disponibilidade, se traz em seu seio o reconhecimento do outro como outro, do diferente como diferente, nos conduz a uma segunda caracterstica da admirao, pressuposto fundante da primeira: a conscincia. Num fragmento de Pascal podemos ler: "Os animais no se admiram".

(Penses, fragm. 401, Brunschvieg) A importncia e a verdade desta observao de Pascal no podem ser exageradas. O animal vive de tal modo imbricado em seu meio ambiente, que todo o seu comportamento se determina por um imanentismo funcional. Por isto, a adaptao plena do animal ao seu meio ambiente e a sua possibilidade de sobrevivncia coincidem com a sua impossibilidade de destacar-se da natureza, de tomar distncia do "seio que o gerou", para usar uma expresso de Rilke. (8) O fato de no poder distanciarse do meio que o cerca, de no poder reconhec-lo como heterogneo e de no lhe ser possvel, em conseqncia, adotar um comportamento indicativo, constitui precisamente o abismo que separa o animal do homem, abismo que se impe como um fato irrefutvel. O animal apenas age; o homem age e sabe que age. (9) o mesmo Pascal quem afirma ainda: "O homem apenas um canio, o mais fraco da natureza; mas um canio pensante. No preciso que o universo inteiro se arme para esmag-lo: um vapor, uma gota de gua, so suficientes para mat-lo. Mas, mesmo que o universo o esmagasse, o homem seria ainda mais nobre do que o que o mata, porque ele sabe que morre, e conhece a vantagem que o universo tem sobre ,ele; e disso o universo nada sabe. Toda a nossa dignidade consiste, pois, no pensamento. a partir dele que nos devemos elevar e no do espao e da durao, que no saberamos ocupar". (Op. cit., fragm. 347) Dentro desta perspectiva, a peculiaridade, a distino, o que torna, propriamente, o homem um ser distinto, reside no fato de ele possuir conscincia, e sua importncia to evidente, que torna ridcula qualquer tentativa de releg-lo a um segundo plano: "No no espao que devo procurar minha dignidade", diz Pascal. (Op. cit., fragm. 348) Colocada a conscincia, nos situamos j no "prprio nervo de todo o fenmeno humano, instalamo-nos no segredo do homem, isto , em sua interioridade, pois o homem se sabe homem, e este saber-se vai afetar, transformar profundamente toda a sua relao com o mundo exterior sua conscincia. E assim, se a conscincia de si, reflexiva, s , geneticamente falando, segunda, todavia a conscincia ingnua ou natural, espontaneamente voltada para fora de si, s pode ser justificada admitindo o pressuposto da subjetividade, da interioridade, ou seja: deste saber-se em sua intimidade. Ora, esta conscincia ingnua apresenta-se com duas caractersticas bsicas, que permitem compreender a sua estrutura. A primeira a distncia. O homem sente-se cu sabe-se separado daquilo que o cerca. Esta distncia, contudo, para ser aquilatada, no se deve confundir com a que se verifica entre duas exterioridades. Se o homem pudesse ser considerado como pura exterioridade, dissolverse-ia a conscincia, e ele passaria a ser coisa entre coisas. Se, ao contrrio, pudesse ser reduzido interioridade pura, desapareceria a distncia caracterstica da conscincia encarnada. Como, porm, a interioridade, o saber-se em sua intimidade, no se processa com uma

pureza total, a distncia resulta em termos de uma ambigidade radical. Por um lado, a conscincia est toda tendida para fora de si, orientada para as coisas, para o mundo, habitando-o e sentindo-se em casa nele, pactuando, conseqentemente, com a exterioridade. .Mas, por outro lado, este pactuar jamais implica em um confundir-se com a realidade. A conscincia de tal natureza, que em seu ato no permite a fuso, a penetrao completa no mundo; ela permanece sempre conscincia, decorrendo da o irremedivel da distncia, do' abismo que a separa daquilo que lhe exterior. E precisamente nesta duplicidade de aspectos reside a sua ambigidade, o carter de sua relao com o mundo: uma interioridade exterior e uma exterioridade interior, presena ausente e ausncia presente. Neste sentido, comparada com a vida animal, pode-se mesmo afirmar que a vida humana como que atingida por uma inadaptao profunda. A segunda caracterstica da conscincia ingnua esclarece estes aspectos e permite compreender melhor o seu carter relacional. Prpria da conscincia humana a experin