o espelho - o informadorvários poderes prosseguem ignorando-os. em tempos de crise há muitos...

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O ESPELHO C onsideremos uma escadaria. Não é confortável su- bi-la voltado de costas e quase ninguém o faz. Mas descê-la voltado de costas não só é desconfortável como é perigoso. Bastante perigoso. O nosso modelo civilizacional coloca-nos numa es- cadaria, ou melhor, convence-nos de que a principal motivação das nossas vidas é subir essa escadaria. So- mos ensinados a focar-nos nos degraus que se seguem e a mantermo-nos concentrados no esforço de subi- -los. São raros os que se distraem desta tarefa e ainda mais raros os que não a aceitam. O que a crise, ou a falência do modelo da civilização ocidental, tem vindo a fazer é confrontar-nos com a possibilidade de sermos obrigados a descer a esca- daria. Com os olhos treinados para a tal subida lumi- nosa, descobrimo-nos de repente às cegas perante o abismo sombrio dos degraus que se colam, muito a pique ou nem tanto a pique, aos nossos calcanhares. Rodamos sobre nós próprios e olhamos para baixo, para de onde viemos, ou para lugares onde nunca estivemos, lugares para onde talvez nunca sequer te- nhamos olhado. Conseguiremos ver? Conseguiremos compreender o que nos é estranho? Repudiando o entusiasmo dos fazedores de opinião que, no conforto de se acreditarem imunes aos efeitos nefastos da crise, inventam e propagandeiam um El Dorado de oportunidades criadas pela crise, acredito que esta crise (qualquer crise) poderá ser o pretexto, haja vontade e sabedoria suficientes, para se mudar, para se pensar um modelo melhor. H á frequentemente uma relação perversa entre a satisfação dos interesses de uns, ou entre a rapi- dez e completude com que os interesses são satis- feitos, e o sofrimento que esse processo de satisfação implica em outros. Mesmo quando os interesses de uns e outros não são conflituantes, a escassez de re- cursos quase sempre determina que a satisfação de uns corresponda à privação de outros. Considero que um modelo de civilização melhor terá de ser um modelo que tenda a minimizar os processos que infligem sofrimento e a maximizar aqueles outros que proporcionam bem-estar, ou com toda a ambigui- dade que a palavra suporta, felicidade. Mas ainda que concordássemos em relação a isto, haveria certamente opiniões diversas em relação aos elementos que deveriam ser incluídos no universo a considerar para efeitos de contabilização do sofri- mento e da felicidade, ou dito de outra forma, haveria sempre opiniões diversas acerca dos elementos que deveriam ser incluídos no universo a proteger. Parece- -me em todo o caso inquestionável que os critérios a utilizar para a delimitação desse universo devem ser critérios de natureza ética. Regressemos à escadaria. Se respondessemos apenas aos interesses individuais, tendo em conta a escassez de recursos e o conflito potencial entre muitos dos interesses individuais, cada um de nós escolheria in- cluir no universo a proteger apenas os elementos do degrau em que está, e os elementos daqueles outros degraus em que considera poder vir a estar num futu- ro próximo. Considerando a tal vontade de ascensão que indelevelmente nos forma, esses outros degraus são sempre degraus acima do nosso. Mas em tempos de crise somos obrigados a olhar também, e com uma atenção que grande parte de nós nunca havia experimentado, para os degraus abaixo. Ainda que pudéssemos ter a garantia de que nunca seremos obrigados a descer os degraus, não podemos saber como actuarão os que já foram forçados a fazê- -lo e os que não terão alternativa senão vir a fazê-lo em breve. Dependendo do desespero e da revolta dos que se vêem privados do direito fundamental que o trabalho é em qualquer Estado de direito, dependendo do de- sespero e da revolta daqueles que se vêem privados dos apoios sociais em nome de um imperativo corte na despesa pública de um Estado bulímico, tudo pode estar em causa. Ainda que se acredite que não fomos trazidos até esta crise pelo sistema de valores vigente, é pelo menos in- questionável que o sistema não foi capaz de impedir que a ela chegássemos. É portanto legítima a suspei- ta de que o sistema também não será capaz de tratar convenientemente os estragos. Nesse sentido não será abusivo pensar que a crise nos predispõe para a mu- dança e, mais importante, nos predispõe a aceitar que nessa mudança tenhamos em consideração os mais desfavorecidos, aqueles a quem paradoxalmente prestamos pouca atenção em tempos de maior abun- dância. Em tempos que não são de crise, o acordo tácito que geralmente é aceite (e no qual grande parte de nós descansa a consciência) é o seguinte: é o rendimento que cada um de nós tem que determina a medida do sofrimento que conseguimos evitar. Considera-se que alguém que não tenha rendimentos que lhe assegu- rem um bem-estar mínimo é ele próprio responsável por isso. Em geral não é considerado merecedor de qualquer tipo de apoio e é estigmatizado. Em tempos de crise, esta lógica altera-se completamente. Desaproveitar pois a crise, não tentando criar um mo- delo melhor, é tanto mais imperdoável quanto é ver- dade que os tempos de escassez determinam grande sofrimento a uma grande quantidade de pessoas. Convém ressalvar que ainda que sejam interesses in- dividuais (o tal medo de descer a escadaria ou do que o que a massa que a desce pode fazer-nos) que nos levem a questionar o sistema de valores existente e a encarar como positiva a possibilidade de mudá-lo, é importante que não sejam esses interesses individu- ais a determinar a mudança nem a forma como que- remos mudar. A mudança terá de ser feita de acordo com princípios éticos e é cada vez mais urgente a de- claração dos mesmos. U m elemento descontente pode tornar-se um ele- mento agitador. É pelo menos um elemento poten- cialmente agitado. Em tempos de abundância, esses elementos corres- pondem a situações isoladas facilmente neutralizadas pela ordem vigente. Não constituem uma ameaça e os vários poderes prosseguem ignorando-os. Em tempos de crise há muitos elementos desconten- tes, muitos elementos agitados. A Física diz-nos que quando isso acontece o resultado é um aumento da temperatura do sistema, sendo isso o mínimo que pode acontecer. O movimento de cada um dos muitos elementos, de cada uma das muitas partículas, é um movimento aleatório. Se cada partícula for polarizada é fácil, muito fácil, criar um fluxo. E um fluxo tem um poder enorme. Criador ou destrutivo. Em tempos de crise a massa dos descontentes, dos predispostas à mudança, dos disponíveis a responder a novos apelos, é um material poderoso. E não falta quem queira utilizá-lo. Para o Bem e para o Mal. Não falta quem queira manipular-nos. E é fácil mani- pular seres sós. A solidão é-nos intrínseca. Existimos encerrados num corpo e muito do que sentimos é im- partilhável. Nem que seja a dor. Existimos encerrados numa vida e muito do que vivemos é impartilhável. Nem que seja porque os outros tendem a afastar-se quando passamos por dificuldades. As dificuldades, tal como as doenças, confrontam-nos, de forma cruel, com a nossa condição de seres sós. Nessas alturas os outros acusam-nos ou apiedam-se. De uma maneira ou de outra estigmatizam-nos. Nessas alturas, os ou- tros reflectem a nossa consciência da solidão, inten- sificam-na. Em tempos de crise há muita gente a passar por difi- culdades semelhantes e “mal de muitos, conforto de tolos”. E na verdade todos temos qualquer coisa de tolo e a tolice acentua-se em relação àquilo que ins- tintivamente nos consola. Quando a desgraça é gene- ralizada, as dificuldades correspondem mais a uma experiência de integração do que de estigmatização. Partilhar uma desgraça, ainda por cima com muita gente, em vez de agravar a solidão, ilude-a. Ser vítima de uma epidemia não é a mesma coisa do que adoecer sozinho. E é potenciando esse processo de iludir a solidão que a ordem vigente, os poderes instituídos, se defendem da mudança. Em tempos de crise, a ordem vigente tende a despertar-nos valores que nos façam sen- tir menos sós, que nos façam sentir pertença de um grupo. A ideia de Família e a ideia de Deus, que ha- bitualmente nos aconselham, não são suficientes em tempos de crise. É então que surge recorrentemente a Pátria glorificada. Em nome dessa Pátria, propõem-nos que aceitemos como inevitáveis os sacrifícios a que nos querem obri- gar. É-nos oferecido o aconchego de nos sentirmos parte de um grupo valioso em troca da pacificação ou da domesticação. Voltando ao campo da Física: se uma partícula livre for sujeita a um disciplinado sistema de forças, dei- xa de apresentar um movimento aleatório: deixa de contribuir para o aumento da temperatura do sistema e não engrossará qualquer fluxo que se queira criar. Passa a fazer parte de uma estrutura ordenada a que se chama cristal. Aprisionada na posição que lhe é destinada na rede cristalina, a partícula passa a exibir apenas ligeiros movimentos vibratórios. A partícula tem agora um papel a desempenhar e esse papel é o de ocupar aquela posição. Deixou de ser livre, mas já não está só e pertence a uma estrutura tida como valiosa porque o caos é mais comum do que a ordem, e tende- -se a atribuir mais valor ao que é mais raro. Fuligem, carvão, grafite, vidro ou diamante não são mais do que átomos de carbono. A forma em que eles se apre- sentam menos livres é aquela que dá origem ao mate- rial mais raro e tido como mais valioso: o diamante. A Pátria é muitas vezes apresentada como um dia- mante quando um Estado quer disciplinar os seus cidadãos. Como a solidão a que estamos condenados cria muitas vezes a necessidade de nos sentirmos per- tença de qualquer coisa, a Pátria funciona como um eficaz sistema de forças. Com a devida exaltação da Pátria, os poderes e os seus cúmplices sabem que adoptaremos pacificamente medidas de restrição inaceitáveis e que podemos ser desviados da vontade de mudança ou seduzidos para mudanças de que não conhecemos a face verdadeira. A presunção de que somos livres para aceitarmos o que afinal nos é imposto tem tanto de formalmente legitimador como de anestesiante. Muitos esgotam a prática da liberdade na possibilidade de dizer pu- blicamente o que lhes passa pela cabeça. A liberdade de exprimir opiniões é apenas uma das faculdades de cidadania efectiva num regime democrático. O mais incapaz dos governantes cedo aprende que a enume- ração de queixas e o papaguear de insultos por si só não veiculam qualquer reivindicação e consequente- mente não periga a manutenção da ordem vigente. O mais ignorante dos governantes também sabe que quanto menos instruídos forem os cidadãos mais facilmente serão usados, manipulados e domestica- dos. E os nossos sucessivos governantes têm feito um bom trabalho nesse capítulo, porque em vez de terem apostado na educação apostaram na sedução. Educar um cidadão é autonomizá-lo, é dar-lhe um poder cujo exercício pode resultar na rejeição do governante. Seduzir um povo permite tornar as dificuldades pre- sentes suportáveis com a promessa inexequível de um oásis futuro. O mais incapaz dos governantes sabe que um povo que não é ensinado a pensar por si mesmo apenas actua de uma de duas maneiras: como animal domesticado a chicote ou como macaco de imitação. O menos corrupto dos governantes sabe que o povo ide- al para ser manipulado é aquele a que foi previamen- te incutido o fascínio pelos vencedores, tenham eles vencido no que quer que seja, como quer que seja. Um povo não educado é um povo pouco confiante em si mesmo, e para esse quanto mais duvidosas forem as razões por que os seus governantes venceram menos excluído se sentirá da possibilidade de ele próprio vingar. M as há mais razões que podem comprometer ou confundir a mudança para um modelo melhor. Se é verdade que os tempos de maior escassez de recursos fazem com que prestemos atenção a quem é mais desfavorecido do que nós e nos dispunhamos à mudança, também é verdade que os tempos de crise acirram a defesa dos interesses individuais. Se respondermos apenas aos interesses individuais, o medo de podermos vir a ficar numa situação pior do que aquela em que estamos e a consciência de que te- mos menos oportunidades e que os recursos são mais escassos levar-nos-ão a querermos ser protegidos em relação a grandes sacrifícios, levar-nos-ão a não estar- mos interessados em que essa protecção seja esten- dida a grupos de que garantidamente não viremos a fazer parte. É fácil de ver que este entendimento pode originar comportamentos sexistas, racistas, especistas, xenó- fobos, homofóbicos, ou quaisquer outros comporta- mentos discriminatórios. Em tempos de maior abundância existe alguma ver- gonha por parte dos poderes em relação a certos ins- tintos ou a certas opiniões eticamente condenáveis. E essa vergonha é útil porque, ao obrigar-nos a mentir ou a omitir em nome de um Bem a que ainda não ade- rimos instintivamente, contribui para que essa ade- são instintiva aconteça nas gerações futuras. Mas em tempos de crise, em tempos de excepção, os poderes desleixam-se e muitas vezes a vergonha perde-se. Sem a justificação da crise atrever-se-ia, por exemplo, o Cardeal Manuel Monteiro de Castro a fazer decla- rações que podem ser entendidas como uma defesa de que as mulheres devem ficar em casa em vez de trabalharem fora? O comentador Rebelo de Sousa a fazer declarações que podem ser entendidas como uma defesa de que os nossos interesses são prejudica- dos quando se tenta regular a indústria alimentar de forma a minorar o sofrimento dos outros animais? O primeiro-ministro a dar a entender que somos piegas e que o espaço da lusofonia é grande para os que não têm trabalho cá? O Presidente da República a expor os seus receios de que o rendimento que aufere (lar- gamente superior ao da grande maioria daqueles que representa) não chegue para manter o nível de vida a que considera ter direito? Estes “deslizes” resultam evidentemente do ambiente nervoso e emotivo que a crise origina. Mas são impor- tantes porque revelam que, confessada ou inconfes- sadamente, há sofrimentos que não valoramos ou que não valoramos tanto. Por isso é importante que a Ética tente delimitar de forma clara a fronteira do universo daqueles de que importa contabilizar o sofrimento e que estabeleça, caso entenda haver lugar para isso, ponderações a esse sofrimento. Enquanto isso não for feito, os governantes terão uma boa desculpa para condenarem e salvarem quem entenderem. Sim, por- que a escassez que a crise acarreta determina que vai ter que se escolher sobre o que não devia ser suscep- tível de escolha. Talvez governar seja em grande parte isso: escolher sobre o que não devia ser susceptível de escolha. A crise mostra isso de forma despudorada. Despudorada e sofrida, porque os sacrifícios serão maiores. E há coisas que não queremos que nos façam mas que estamos dispostos a ignorar que sejam feitas a outros, ou a permitir que sejam feitas a outros, ou mesmo a advogar que sejam feitas a outros. Convém identificar essas coisas. Convém identificar esses outros. Será que egoisticamente permitiremos que esses outros sejam elementos de grupos a que garantidamente não pertenceremos? Será que cobardemente permitire- mos que esses outros sejam aqueles que não sabem ou não podem defender-se? Se em tempos de abun- dância a tentação de ceder a este facilitismo é grande, em tempos de crise é ainda maior. Haja, pois, coragem para tratar estas questões. Haja generosidade para deixar que seja o Bem a fazê-lo. CRISE - ÉTICA E VALORES PESSOAS DO SÉCULO XXI, BEM-VINDAS AO BANQUETE DAS CONSEQUÊNCIAS: NÃO HÁ DEMOCRACIA NEM REPRESENTAÇÃO SEM IMPRENSA LIVRE. A MÃO INVISÍVEL TAMBÉM FALHOU NA DISTRIBUIÇÃO DAS IDEIAS E DO CONHECIMENTO. O CAPITALISMO VENCE QUANDO SE DESCARTA O INDIVÍDUO. PESSOAS LIVRES E BEM FORMADAS DÃO MUITO TRABALHO A FAZER. É PRECISO TRATAR DELAS, TIRÁ-LAS DA FOME, EDUCÁ-LAS E DAR-LHES PODER. É PRECISO SAÚDE, EDUCAÇÃO, CULTURA, COMIDA E DEMOCRACIA. NÃO SÃO LUXOS, SÃO RAZÕES PARA VIVER. O MUNDO PRECISA DE UM NOVO MODELO DE NEGÓCIO. A COMUNICAÇÃO TAMBÉM. É PRECISO INVESTIGAR, VERIFICAR FACTOS, FAZER COISAS COM TEMPO E DESCOBRIR NOVAS MANEIRAS DE LEVAR A VERDADE ÀS SUAS CONSEQUÊNCIAS. O ESPELHO É UM JORNAL DE PAPEL, DE PAREDE, DE BOCA EM BOCA OU DE MÃO EM MÃO. O QUE FOR PRECISO. AQUILO QUE, EM CADA MOMENTO, GARANTA O NOSSO PAPEL E OS NOSSOS OFÍCIOS. O ESPELHO É UMA MÁQUINA QUE MOSTRA AQUILO QUE PRECISAMOS DE VER. Tudo funciona. O inútil tem espaço para circular e está protegido. Vasta é a alcatifa. O útil tem idêntica protecção, mas menos espaço e mais correlação (condição que lhe subtrai tempo, va- lor que abunda no inútil). Por outro lado, elementos externos visitam este sistema todos os dias. Quando entram no edifício são prontamente harmonizados. Recebem satisfação em troca. Já o inútil acha-se em estado privilegiado. É o único que pode ser ambulató- rio e com capacidade de detectar os vazios invisíveis do edifício. Aqui é BXL (Bruxelas, Bélgica), no Parlamento Euro- peu, construção sem autor – ignora-se o arquitecto, sabe-se apenas ser de um atelier transitório – descrita uma vez como “hipotético recife”. Ali é LUX (Luxem- burgo), serviços administrativos instalados num pla- nalto. A seguir é STR (Estrasburgo, França), sede ofi- cial parlamentar, edifício projectado à semelhança da Torre de Babel pintada por Bruegel o Velho. Uma área combinada de um quilómetro quadrado, suprapaís da mesma dimensão que o Vaticano. Como caminha o inútil em Bruxelas? Não como em Estrasburgo, onde o percurso do edifício é circular e tudo termina como começa, marcando infinitos en- contros consigo próprio, a que nunca falta. Em BXL o inútil pode exercer à vontade um peripatetismo sem propósito. A planta oferece-lhe um roteiro de torres por ordem alfabética, imemorizável, distribuído pelo siglário dos blocos: ASP, PHS, WIE, RMD, EAS, ATR, WIB, JAN, MTY, MOY, MON. Tudo, porém, foi planeado para o útil. Este não pode ser peripatético. Está em exercício da representativi- dade democrática. Atravessa o siglário sem questio- nar a harmonia. Não precisa de sair daqui. O edifício tem uma rua interna no piso zero, 200 metros de com- primento, onde dispõe de cabeleireiro, quiosque, la- vandaria a seco, três bancos, ginásio, cantina, espaço para fumadores. E, no piso -2, um supermercado, com serviço de correio. Os gabinetes têm sofá-cama de sol- teiro e casa de banho com duche. O inútil cruza-se com o útil. Ajudam-se. A título de exemplo: enchem com documentos de trabalho uma das 754 arcas de plástico (cuja utilidade original é mo- vimentar material de exército) mensalmente enviadas para STR, carregadas por 30 funcionários em dez ca- miões TIR. Logo seus caminhos voltam a separar-se. Útil e inútil não vêem o edifício da mesma forma. O primeiro está num porta-aviões exercendo micropolí- tica europeia e nacional. O segundo vê que as janelas, espelhadas, só dão para outras janelas, espelhadas, e que a alcatifa é cada vez mais vasta. 2 O edifício sem autor não foi erguido: ergueu-se. É o que os elementos exteriores vêem de fora. É magnífico e foi autogerado. Na verdade, o edifício nem está lá fora, está dentro de si mesmo, retirado da zona que ocupou. Nem é o que é. Em nomenclatura oculta, mas ainda existente, é um Centro Internacional de Congressos. Estas abstracções topológicas não interessam a nin- guém. A harmonia do espaço de circulação é o crucial. Há uma lei interna, político-administrativa, chamada “Regimento”. O anexo XVI informa sobre as “Directri- zes para a interpretação das regras de conduta aplicá- veis aos deputados”, distinguindo entre “comporta- mentos de carácter visual, que podem ser tolerados na condição (…) de se manterem dentro de proporções razoáveis”, e “comportamentos que acarretem a per- turbação activa de qualquer das actividades parla- mentares”. Em finais dos anos 90, o deputado Florus Wijsenbeek perturbou. Protestou contra a vastidão e extravagância do edifício atravessando várias vezes de bicicleta a rua interna do piso zero. Foi repreendido pelos disciplinadores do Parlamento, que funcionam numa entidade chamada Colégio de Questores. 3 O Parlamento é uma endomáquina. Edgar Morin, ex- trapolado (de O Método – 1. A natureza da Natureza): o Parlamento é como “o átomo” que “não precisa [de] trocas para existir. Pelo contrário, efectua trocas in- ternas múltiplas e intensas” entre suas partículas, partículas efémeras e “ainda mais efémeras chama- das ressonâncias”. “Tudo se passa até como se, em certos casos, as partículas interagissem consigo pró- prias. Daí em diante, o átomo surge-nos como uma endomáquina, uma máquina introactiva praticando permanentemente trocas internas, e ocasionalmen- te trocas externas". Só que não há escala atómica. O Parlamento é uma mega-endomáquina que serve uma máquina maior, o organismo UE (União Europeia). 4 161.625.000 eleitores (de 500 milhões de cidadãos) elegeram 754 eurodeputados em 2009. O sistema em que funcionam é parademocrático. A probabilidade é que o sufixo desapareça da palavra. Mas o edifício continua a absorver os mecanismos de lobbying em- presarial e não-governamental. O Parlamento existe e existirá. Isso não constitui um problema. O inquérito a fazer é como intervir em Leviatã. Para fazê-lo, é pre- ciso o seu antípoda: a exomáquina. Não-corporativa, não-sindical, não-partidária, e que funcione contra a sociolatria. 5 Tudo funciona. O inútil tem tempo e aguarda. QUE FAZER? Dulce Maria Cardoso NÚMERO 1 12 Novembro 2012 2000 exemplares [email protected] A ntes de sabermos o que fazer temos de perceber aquilo que se está a passar. Há muita gente que já percebeu mas muito pouca disposta a tirar disso as conse- quências necessárias. O capitalismo entrou na década de 1990 numa nova fase da sua globalização. Gra- ças à queda dos sistemas que lhe eram alternativos e ao desenvolvimento das co- municações, o capitalismo global deixou definitivamente de precisar de estados e fronteiras. Hoje, a grande maioria dos governos em todo o mundo não são outra coisa senão agências locais dos grandes conglomerados capitalistas. Já não faz ple- no sentido dizer palavras como Estados Unidos, Alemanha, China, União Europeia ou Portugal. Palavras como Goldman Sachs ou Monsanto, essas sim, significam alguma coisa de importante. Os grandes conglomerados não têm nacionalidade, nem localização geográfica. Raramente têm rostos humanos. Dominam os recur- sos energéticos, naturais e financeiros de quase todo o planeta. Estes conglomerados têm um plano para a Europa do sul que podem a qualquer momento estender a outros países europeus: tornar-nos pobres. A pobreza não é uma consequência de políticas erradas. É o resultado de políticas deliberadas. Tor- nar-nos pobres significa tornar os nossos territórios apetecíveis para o investimen- to que se costuma dizer estrangeiro mas não é estrangeiro, é global. Deste modo, os conglomerados precisam de mão-de-obra barata, terra barata, empresas bara- tas. Até os capitalistas portugueses mais inteligentes já perceberam o essencial: também eles são um alvo a abater. Os bancos portugueses, as grandes empresas portuguesas são muito pequenos no quadro global. Serão arruinados e absorvidos. É por isso que os grandes media e os seus donos estão contra este governo de servidores dos conglomerados globais, porque os patrões estão contra este governo ou tentam desesperadamente aproveitar as migalhas que caírem da mesa da ruína do país. É pena, e sinal de profunda alienação, que a esquerda parlamentar se recuse a ver a evidência: o inimigo dos trabalhado- res e da chamada classe média não são os capitalistas portugueses. É o capitalismo global. O que há a fazer é portanto muito claro. Primeiro, uma revolução, seja de que tipo for, que faça cair o regime. Depois, denunciar a dívida e sair da União Europeia que tem revelado ser a armadilha mortal em que os conglomerados mergulharam a Europa. Finalmente, aguentar dez anos ou mais de vida dura, mais dura do que aquela que já estamos a ter, mas não para pa- gar dívidas eternas: para aliar a nossa economia com a dos países do Mediterrâneo e outros, tornar-nos autónomos, salvar a nossa terra, os nossos bancos e empresas, o nosso povo, no quadro de uma economia virada para a preservação dos recursos naturais e o abandono do sonho de progresso contínuo com que o capitalismo global enganou a maior parte de nós. ENDOMÁQUINA T al como a Europa, o Miguel está tapado por faltas. Já está no estágio do curso de técnico de seguros, que lhe dará equivalência ao 12.º ano. Mas basta mais um erro, mais uma balda, para se per- der. Logo a seguir ao estágio, disseram-lhe, terá uma colocação. Sonha com essa independência económica para ter algum tempo para pensar. Só então, depois do próximo Verão, começará a fazer um plano. Quer dizer, nos tempos do 16ème arrondissement, em Paris – quando o emprego da mãe nas limpezas trouxe fi- nalmente alguma paz –, o Miguel já tinha tido um pla- no de mobilidade social. Ia acabar o curso técnico dos liceus e depois tirar uma especialização de dois anos em elevadores. É um mercado seguro, sem flutuações. Nos tempos do 16ème, apesar da falta de espaço na pe- quena chambre de bonne com a mãe, o Miguel criou raízes. Conheceu gente de todo o lado e deu-se com ricos e pobres. Brincou com a jeunesse dorée e trocou ideias com indianos, alemães, ingleses, com gente de todo o mundo. Durante algum tempo sossegou a revol- ta que trouxe da Ameixoeira, em Lisboa, onde deixou, aos nove, a ideia de casa e os amigos. “Quando me tra- tavam bem, a revolta desaparecia.” Desses tempos tem saudades da mãe, de alguns ami- gos e do cartão Imagine’R com que os estudantes fran- ceses sacam descontos muito significativos no acesso à cultura. “Fui a muitas antestreias aos Champs-Ely- sées num cinema que parece uma ópera.” Outros tem- pos. Agora, que as decisões estão mais perto do resul- tado, o Miguel sabe que foi nesse tempo que os dados começaram a brincar com o azar. A decisão pelo curso técnico em vez da continuação do baccalauréat cientí- fico e, acima de tudo, o regresso a Portugal sem a con- clusão do secundário tornam muito difícil o regresso a França para a universidade. Mas “aqui, acordo todos os dias em casa. Não me arrependo.” O Miguel tem ido aos protestos e às manifestações, mas até agora, pelo que consegue perceber, só há uma coisa que em França era muito diferente: “A Justiça. Aqui, um rico bêbado é um bon vivant, um pobre é só um bêbado. Quem rouba uma carcaça vai preso, quem rouba um milhão é um homem de negócios.” Mas não é assim em todo o lado? “Não! Lá, quando o Chirac saiu da Presidência caíram-lhe em cima.” Em Portugal, entre, vá, não digamos fome, mas a eventualidade de saltar refeições e o sonho de ficar em casa e de reconquistar o direito de “construir uma família daqui a dez anos”, o Miguel não pode falhar. Vai ter de jogar sem falhas as cartas que tem na mão: o francês estupendo, o perfil grego, o olhar nórdico e a vontade de ser português. MIGUEL O FUTURO DA EUROPA C heira a plástico acabado de sair do micro-ondas. O recipiente está quente, as almôndegas nem tanto. A mulher olha sem expressão para o ecrã do com- putador portátil, agora já sem companhia para este almoço que se quer rápido. Levantou-se há minutos outra utilizadora da mesma mesa, a caminho da casa de banho onde irá lavar os talheres, o prato, o copo. O tupperware vai assim mesmo para casa, com restos do esparguete com atum cozinhado ontem à noite. Ouve- -se daqui a água a correr no lavatório. Se nos esforçar- mos até conseguimos sentir o cheiro a detergente. Lá fora a chuva cai porque é Outono em Lisboa. E di- zem que temos que estar tristes. Ou pelo menos muito austeros, vá. Já vamos descer a rua até à Casa dos Carapaus, primei- ro deixem-me dar-vos o quadro geral da coisa. E quan- do digo coisa, quero com isso dizer escritório. Neste andar alto há cada vez mais gente à hora do almoço. Já quase ninguém sai para comer, uns quantos fazem um passeio de caçadores-recolectores até a um supermer- cado próximo. De regresso ao escritório, comem-se saladas ou pratos pré-cozinhados. Enquanto se fala da crise, que é como quem diz da vida. Antes de sair para a rua e para chuva, ponho-me a pensar nisto da comida trazida de casa. Será só um de- talhe da transformação de quase todos em operários de marmita? Chamam-lhe a proletarização da classe média, ou lá o que é. Mas que momentos do nosso dia dizem mais sobre nós enquanto cidadãos, enquanto povo? De dinamarqueses e chineses percebo pouco, mas se estamos a falar de portugueses parece-me que é à mesa que melhor socializamos. É à mesa que descobrimos os grandes amores. É à mesa que fecha- mos os melhores negócios. É à mesa que tratamos de ter ideias. E de prometer a quem nos quiser ouvir que vamos levá-las à prática. Até suponho que Buíça e companhia tenham partilhado uns copos de tinto e uns pastéis de bacalhau antes de irem tratar da saúde ao rei D. Carlos. Agora fora de suposições, sem dúvida que à mesa fazemos de tudo e também comemos e be- bemos e conversamos, claro. Desço agora a rua em direcção a uma tasca duplex que resiste apesar de lá entrarem cada vez menos clien- tes. A Casa dos Carapaus mantém-se aberta, a poucos metros do Largo do Rato. Se por lá almoço é porque a refeição completa tem um preço simpático. E a comi- da não desmerece. Ao entrar vejo primeiro o ar ausente do patrão. Espera não sei o quê atrás do balcão, com um pano branco esquecido entre as mãos. Vejo depois que não há mais ninguém na sala, nem o cego habitual da mesa junto às escadas. “Gosto em vê-lo.” Subo as escadas e encontro o empregado no primeiro andar, que sorri e pensa alto: “É o primeiro.” Parece que foi ontem. Parece que ainda ontem estava neste televisor a imagem sem som de José Sócrates a defender o PEC-não-sei-quantos. E tanta coisa mudou ao almoço nos chamados dias úteis. Claro que esta é uma realidade urbana. Conheço bem o que tem muda- do em Lisboa, sobretudo nos restaurantes e nos locais de trabalho. Parto do princípio que em áreas rurais a tal austeridade poderá não ter obrigado ainda a mu- danças tão grandes na forma como se almoça. Vai-se menos ao supermercado e mais à horta. Haverá antropólogos atentos a estas mudanças súbi- tas na gastronomia urbana, se ainda não emigraram todos. Mas o assunto não toca apenas a antropólogos do quotidiano, a economistas ou a historiadores. Isto é também um campo para a ciência política, como se pode ver nos livros de Astérix e Obélix. A aldeia que resiste continua a fazer os seus banquetes de javalis. Ou por outras palavras: “As ovelhas estão calma e mansamente a morrer de fome, os lobos não”, como diz em Lisboa o poeta urbano brasileiro Viton Araújo. Atrás dos balcões dos restaurantes há quem reaja de várias formas. Uns ficam à espera do dia em que terão que fechar as portas de vez, mas isso nem será bem reagir. Outros optam por fazer obras, por mudar a de- coração, por carregar um bocado nos preços – espe- ram que os menos afectados pelo terrorismo da dívida externa continuem a sonhar às quintas-feiras com co- zido à portuguesa bem servido. Desço agora do Largo do Rato até à Baixa de Lisboa. Entre as minhas reacções preferidas está a dos ideó- logos da cafetaria A Nova Pombalina, na Rua do Co- mércio. É marketing de ardósia, filosófico e de abrir o apetite: “Coma hoje pode amanhã não poder”. Assim mesmo, sem vírgulas nem contemplações. A destreza com o giz e com as palavras é importante, sim. É o ma- rketing, estúpido. Mas se estas sandes de leitão não fossem tão boas não seria a mesma coisa. Já dizia não sei quem: não deixes para amanhã uma sandes de leitão que podes comer hoje. Não se preocupem que o leitão era muito auste- ro. E vegetariano. “COMA HOJE PODE AMANHÃ NÃO PODER” O mundo é de quem o quiser. Com a globalização – esse palavrão que quer dizer tudo e nada – o mundo tornou-se mais pequeno para alguns. Mas não mudou assim tanto. É verdade que há multinacionais mais poderosas que os governos de vários países juntos. Que em nome do “desenvolvimento”, nomeadamente, co- metem crimes com total impunidade (o nome Ken Saro-Wiva ainda dirá alguma coisa?). Mas não foi sempre assim? O que eram as companhias majestáticas do século dezanove senão “agentes impe- rialistas”, literalmente, em busca de recursos naturais alheios? O que fazia o cartel de petrolíferas Sete Irmãs quando, já em pleno século vinte, punha e depunha di- rigentes ao sabor dos interesses do capitalismo iluminado da altura? A deposição de Mossadegh no Irão, em 1953, é apenas um exemplo da ingerência que o Médio Oriente, em particular, sofre há décadas. Portanto o fenómeno não é novo. E não deve desanimar-nos nem assustar-nos. Pelo contrário, já devíamos conhecer o bicho e saber como fazer para o apanhar no seu próprio jogo. Podemos estar desiludidos com ela, não sentir orgulho ou não acreditar muito nela, mas a União Europeia é, apesar de tudo, nossa. Foi com ela que a Europa enterrou ódios primários e ideologias fascizantes. Foi graças a ela que não houve, até hoje pelo menos, uma terceira guerra mundial. Foi com ela que nos tornámos mais ricos com a descoberta de outras línguas, culturas e matérias que eram, até então, praticamente esotéricas, como os direitos humanos e o ambiente. Desistir da União Europeia só porque ela hoje em dia é dominada por um grupo de pobres de espírito oportunistas equivale a entregar o ouro aos bandidos. Dar-lhes de bandeja aquilo que eles não merecem. O que é preciso fazer é reivindicá- -la, retomá-la como legítimos proprietários que so- mos. E para isso é preciso darmo-nos ao trabalho de a co- nhecer e de a infiltrar. Porque é que não há mais ci- dadãos independentes no Parlamento Europeu? Ou uma estratégia, com os vários aliados que temos na Europa, para que isso aconteça? Os cépticos dirão que nada mudaria, ou mesmo que isso equivale a uma “venda” ao sistema. Qual é a alternativa? Ficar fora da mesa é assim tão mais eficaz? Se a União Europeia é hoje um poço de desequilíbrios e de passividade perante o domínio de alguns países, é porque o deixámos acontecer. Aceitámos o seu di- nheiro e as suas regras sem a questionar e sem nos interessarmos por ela. Não devemos continuar a virar- -lhe as costas. É a partir dela que se devem travar as grandes batalhas em defesa dos direitos que ela pró- pria consolidou. A Europa pode já não ser tão podero- sa no mundo, mas é o que temos e o que, ainda assim, muitos gostariam de ter. © Jorge Nogueira, Miguel, 2012 VAMOS PAGAR 112 MILHÕES DE EUROS POR MÊS, SÓ EM JUROS, ATÉ 2038* Álvaro Rosendo, Andreia Martins, Annett Bourquin, Diogo Seixas Lopes, Dulce Maria Cardoso, Gabriela Lourenço, Joana Gomes Cardoso, João d'Espiney, João Macdonald, João Pacheco, Jorge Nogueira, Luís Gouveia Monteiro, Maria João Guardão, Maria Tengarrinha, Marta Dias Neves, Miguel Machado, Pablo Soto, Patrícia Barbas, Paulo Varela Gomes, Ricardo Lima, Rita Silva, Sérgio Catumba, Steve Stoer *Cálculo d'O ESPELHO com base na informação oficial do Ministério das Finanças sobre os encargos dos juros dos empréstimos da Troika © Álvaro Rosendo, Minas da Panasqueira, 1987 BXL LUX STR João Macdonald João Pacheco Paulo Varela Gomes Joana Gomes Cardoso Luís Gouveia Monteiro 1

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  • O ESPELHO

    C onsideremos uma escadaria. Não é confortável su-bi-la voltado de costas e quase ninguém o faz. Mas descê-la voltado de costas não só é desconfortável como é perigoso. Bastante perigoso. O nosso modelo civilizacional coloca-nos numa es-cadaria, ou melhor, convence-nos de que a principal motivação das nossas vidas é subir essa escadaria. So-mos ensinados a focar-nos nos degraus que se seguem e a mantermo-nos concentrados no esforço de subi--los. São raros os que se distraem desta tarefa e ainda mais raros os que não a aceitam.O que a crise, ou a falência do modelo da civilização ocidental, tem vindo a fazer é confrontar-nos com a possibilidade de sermos obrigados a descer a esca-daria. Com os olhos treinados para a tal subida lumi-nosa, descobrimo-nos de repente às cegas perante o abismo sombrio dos degraus que se colam, muito a pique ou nem tanto a pique, aos nossos calcanhares. Rodamos sobre nós próprios e olhamos para baixo, para de onde viemos, ou para lugares onde nunca estivemos, lugares para onde talvez nunca sequer te-nhamos olhado. Conseguiremos ver? Conseguiremos compreender o que nos é estranho?Repudiando o entusiasmo dos fazedores de opinião que, no conforto de se acreditarem imunes aos efeitos nefastos da crise, inventam e propagandeiam um El Dorado de oportunidades criadas pela crise, acredito que esta crise (qualquer crise) poderá ser o pretexto, haja vontade e sabedoria suficientes, para se mudar, para se pensar um modelo melhor.

    H á frequentemente uma relação perversa entre a satisfação dos interesses de uns, ou entre a rapi-dez e completude com que os interesses são satis-feitos, e o sofrimento que esse processo de satisfação implica em outros. Mesmo quando os interesses de uns e outros não são conflituantes, a escassez de re-cursos quase sempre determina que a satisfação de uns corresponda à privação de outros.Considero que um modelo de civilização melhor terá de ser um modelo que tenda a minimizar os processos que infligem sofrimento e a maximizar aqueles outros que proporcionam bem-estar, ou com toda a ambigui-dade que a palavra suporta, felicidade.Mas ainda que concordássemos em relação a isto, haveria certamente opiniões diversas em relação aos elementos que deveriam ser incluídos no universo

    a considerar para efeitos de contabilização do sofri-mento e da felicidade, ou dito de outra forma, haveria sempre opiniões diversas acerca dos elementos que deveriam ser incluídos no universo a proteger. Parece--me em todo o caso inquestionável que os critérios a utilizar para a delimitação desse universo devem ser critérios de natureza ética. Regressemos à escadaria. Se respondessemos apenas aos interesses individuais, tendo em conta a escassez de recursos e o conflito potencial entre muitos dos interesses individuais, cada um de nós escolheria in-cluir no universo a proteger apenas os elementos do degrau em que está, e os elementos daqueles outros degraus em que considera poder vir a estar num futu-ro próximo. Considerando a tal vontade de ascensão que indelevelmente nos forma, esses outros degraus são sempre degraus acima do nosso.Mas em tempos de crise somos obrigados a olhar também, e com uma atenção que grande parte de nós nunca havia experimentado, para os degraus abaixo. Ainda que pudéssemos ter a garantia de que nunca seremos obrigados a descer os degraus, não podemos saber como actuarão os que já foram forçados a fazê--lo e os que não terão alternativa senão vir a fazê-lo em breve. Dependendo do desespero e da revolta dos que se vêem privados do direito fundamental que o trabalho é em qualquer Estado de direito, dependendo do de-sespero e da revolta daqueles que se vêem privados dos apoios sociais em nome de um imperativo corte na despesa pública de um Estado bulímico, tudo pode estar em causa.Ainda que se acredite que não fomos trazidos até esta crise pelo sistema de valores vigente, é pelo menos in-questionável que o sistema não foi capaz de impedir que a ela chegássemos. É portanto legítima a suspei-ta de que o sistema também não será capaz de tratar convenientemente os estragos. Nesse sentido não será abusivo pensar que a crise nos predispõe para a mu-dança e, mais importante, nos predispõe a aceitar que nessa mudança tenhamos em consideração os mais desfavorecidos, aqueles a quem paradoxalmente prestamos pouca atenção em tempos de maior abun-dância.Em tempos que não são de crise, o acordo tácito que geralmente é aceite (e no qual grande parte de nós descansa a consciência) é o seguinte: é o rendimento que cada um de nós tem que determina a medida do

    sofrimento que conseguimos evitar. Considera-se que alguém que não tenha rendimentos que lhe assegu-rem um bem-estar mínimo é ele próprio responsável por isso. Em geral não é considerado merecedor de qualquer tipo de apoio e é estigmatizado. Em tempos de crise, esta lógica altera-se completamente.Desaproveitar pois a crise, não tentando criar um mo-delo melhor, é tanto mais imperdoável quanto é ver-dade que os tempos de escassez determinam grande sofrimento a uma grande quantidade de pessoas. Convém ressalvar que ainda que sejam interesses in-dividuais (o tal medo de descer a escadaria ou do que o que a massa que a desce pode fazer-nos) que nos levem a questionar o sistema de valores existente e a encarar como positiva a possibilidade de mudá-lo, é importante que não sejam esses interesses individu-ais a determinar a mudança nem a forma como que-remos mudar. A mudança terá de ser feita de acordo com princípios éticos e é cada vez mais urgente a de-claração dos mesmos.

    Um elemento descontente pode tornar-se um ele-mento agitador. É pelo menos um elemento poten-cialmente agitado.Em tempos de abundância, esses elementos corres-pondem a situações isoladas facilmente neutralizadas pela ordem vigente. Não constituem uma ameaça e os vários poderes prosseguem ignorando-os.Em tempos de crise há muitos elementos desconten-tes, muitos elementos agitados. A Física diz-nos que quando isso acontece o resultado é um aumento da temperatura do sistema, sendo isso o mínimo que pode acontecer. O movimento de cada um dos muitos elementos, de cada uma das muitas partículas, é um movimento aleatório. Se cada partícula for polarizada é fácil, muito fácil, criar um fluxo. E um fluxo tem um poder enorme. Criador ou destrutivo.Em tempos de crise a massa dos descontentes, dos predispostas à mudança, dos disponíveis a responder a novos apelos, é um material poderoso. E não falta quem queira utilizá-lo. Para o Bem e para o Mal.Não falta quem queira manipular-nos. E é fácil mani-pular seres sós. A solidão é-nos intrínseca. Existimos encerrados num corpo e muito do que sentimos é im-partilhável. Nem que seja a dor. Existimos encerrados numa vida e muito do que vivemos é impartilhável. Nem que seja porque os outros tendem a afastar-se quando passamos por dificuldades. As dificuldades, tal como as doenças, confrontam-nos, de forma cruel, com a nossa condição de seres sós. Nessas alturas os outros acusam-nos ou apiedam-se. De uma maneira ou de outra estigmatizam-nos. Nessas alturas, os ou-tros reflectem a nossa consciência da solidão, inten-sificam-na.Em tempos de crise há muita gente a passar por difi-

    culdades semelhantes e “mal de muitos, conforto de tolos”. E na verdade todos temos qualquer coisa de tolo e a tolice acentua-se em relação àquilo que ins-tintivamente nos consola. Quando a desgraça é gene-ralizada, as dificuldades correspondem mais a uma experiência de integração do que de estigmatização. Partilhar uma desgraça, ainda por cima com muita gente, em vez de agravar a solidão, ilude-a. Ser vítima de uma epidemia não é a mesma coisa do que adoecer sozinho.E é potenciando esse processo de iludir a solidão que a ordem vigente, os poderes instituídos, se defendem da mudança. Em tempos de crise, a ordem vigente tende a despertar-nos valores que nos façam sen-tir menos sós, que nos façam sentir pertença de um grupo. A ideia de Família e a ideia de Deus, que ha-bitualmente nos aconselham, não são suficientes em tempos de crise. É então que surge recorrentemente a Pátria glorificada. Em nome dessa Pátria, propõem-nos que aceitemos como inevitáveis os sacrifícios a que nos querem obri-gar. É-nos oferecido o aconchego de nos sentirmos parte de um grupo valioso em troca da pacificação ou da domesticação.Voltando ao campo da Física: se uma partícula livre for sujeita a um disciplinado sistema de forças, dei-xa de apresentar um movimento aleatório: deixa de contribuir para o aumento da temperatura do sistema e não engrossará qualquer fluxo que se queira criar. Passa a fazer parte de uma estrutura ordenada a que se chama cristal. Aprisionada na posição que lhe é destinada na rede cristalina, a partícula passa a exibir apenas ligeiros movimentos vibratórios. A partícula tem agora um papel a desempenhar e esse papel é o de ocupar aquela posição. Deixou de ser livre, mas já não está só e pertence a uma estrutura tida como valiosa porque o caos é mais comum do que a ordem, e tende--se a atribuir mais valor ao que é mais raro. Fuligem, carvão, grafite, vidro ou diamante não são mais do que átomos de carbono. A forma em que eles se apre-sentam menos livres é aquela que dá origem ao mate-rial mais raro e tido como mais valioso: o diamante. A Pátria é muitas vezes apresentada como um dia-mante quando um Estado quer disciplinar os seus cidadãos. Como a solidão a que estamos condenados cria muitas vezes a necessidade de nos sentirmos per-tença de qualquer coisa, a Pátria funciona como um eficaz sistema de forças. Com a devida exaltação da Pátria, os poderes e os seus cúmplices sabem que adoptaremos pacificamente medidas de restrição inaceitáveis e que podemos ser desviados da vontade de mudança ou seduzidos para mudanças de que não conhecemos a face verdadeira. A presunção de que somos livres para aceitarmos o que afinal nos é imposto tem tanto de formalmente

    legitimador como de anestesiante. Muitos esgotam a prática da liberdade na possibilidade de dizer pu-blicamente o que lhes passa pela cabeça. A liberdade de exprimir opiniões é apenas uma das faculdades de cidadania efectiva num regime democrático. O mais incapaz dos governantes cedo aprende que a enume-ração de queixas e o papaguear de insultos por si só não veiculam qualquer reivindicação e consequente-mente não periga a manutenção da ordem vigente. O mais ignorante dos governantes também sabe que quanto menos instruídos forem os cidadãos mais facilmente serão usados, manipulados e domestica-dos. E os nossos sucessivos governantes têm feito um bom trabalho nesse capítulo, porque em vez de terem apostado na educação apostaram na sedução. Educar um cidadão é autonomizá-lo, é dar-lhe um poder cujo exercício pode resultar na rejeição do governante. Seduzir um povo permite tornar as dificuldades pre-sentes suportáveis com a promessa inexequível de um oásis futuro. O mais incapaz dos governantes sabe que um povo que não é ensinado a pensar por si mesmo apenas actua de uma de duas maneiras: como animal domesticado a chicote ou como macaco de imitação. O menos corrupto dos governantes sabe que o povo ide-al para ser manipulado é aquele a que foi previamen-te incutido o fascínio pelos vencedores, tenham eles vencido no que quer que seja, como quer que seja. Um povo não educado é um povo pouco confiante em si mesmo, e para esse quanto mais duvidosas forem as razões por que os seus governantes venceram menos excluído se sentirá da possibilidade de ele próprio vingar.

    M as há mais razões que podem comprometer ou confundir a mudança para um modelo melhor.Se é verdade que os tempos de maior escassez de recursos fazem com que prestemos atenção a quem é mais desfavorecido do que nós e nos dispunhamos à mudança, também é verdade que os tempos de crise acirram a defesa dos interesses individuais. Se respondermos apenas aos interesses individuais, o medo de podermos vir a ficar numa situação pior do que aquela em que estamos e a consciência de que te-mos menos oportunidades e que os recursos são mais escassos levar-nos-ão a querermos ser protegidos em relação a grandes sacrifícios, levar-nos-ão a não estar-mos interessados em que essa protecção seja esten-dida a grupos de que garantidamente não viremos a fazer parte. É fácil de ver que este entendimento pode originar comportamentos sexistas, racistas, especistas, xenó-fobos, homofóbicos, ou quaisquer outros comporta-mentos discriminatórios.Em tempos de maior abundância existe alguma ver-gonha por parte dos poderes em relação a certos ins-

    tintos ou a certas opiniões eticamente condenáveis. E essa vergonha é útil porque, ao obrigar-nos a mentir ou a omitir em nome de um Bem a que ainda não ade-rimos instintivamente, contribui para que essa ade-são instintiva aconteça nas gerações futuras. Mas em tempos de crise, em tempos de excepção, os poderes desleixam-se e muitas vezes a vergonha perde-se. Sem a justificação da crise atrever-se-ia, por exemplo, o Cardeal Manuel Monteiro de Castro a fazer decla-rações que podem ser entendidas como uma defesa de que as mulheres devem ficar em casa em vez de trabalharem fora? O comentador Rebelo de Sousa a fazer declarações que podem ser entendidas como uma defesa de que os nossos interesses são prejudica-dos quando se tenta regular a indústria alimentar de forma a minorar o sofrimento dos outros animais? O primeiro-ministro a dar a entender que somos piegas e que o espaço da lusofonia é grande para os que não têm trabalho cá? O Presidente da República a expor os seus receios de que o rendimento que aufere (lar-gamente superior ao da grande maioria daqueles que representa) não chegue para manter o nível de vida a que considera ter direito?Estes “deslizes” resultam evidentemente do ambiente nervoso e emotivo que a crise origina. Mas são impor-tantes porque revelam que, confessada ou inconfes-sadamente, há sofrimentos que não valoramos ou que não valoramos tanto. Por isso é importante que a Ética tente delimitar de forma clara a fronteira do universo daqueles de que importa contabilizar o sofrimento e que estabeleça, caso entenda haver lugar para isso, ponderações a esse sofrimento. Enquanto isso não for feito, os governantes terão uma boa desculpa para condenarem e salvarem quem entenderem. Sim, por-que a escassez que a crise acarreta determina que vai ter que se escolher sobre o que não devia ser suscep-tível de escolha. Talvez governar seja em grande parte isso: escolher sobre o que não devia ser susceptível de escolha. A crise mostra isso de forma despudorada. Despudorada e sofrida, porque os sacrifícios serão maiores.E há coisas que não queremos que nos façam mas que estamos dispostos a ignorar que sejam feitas a outros, ou a permitir que sejam feitas a outros, ou mesmo a advogar que sejam feitas a outros. Convém identificar essas coisas. Convém identificar esses outros. Será que egoisticamente permitiremos que esses outros sejam elementos de grupos a que garantidamente não pertenceremos? Será que cobardemente permitire-mos que esses outros sejam aqueles que não sabem ou não podem defender-se? Se em tempos de abun-dância a tentação de ceder a este facilitismo é grande, em tempos de crise é ainda maior. Haja, pois, coragem para tratar estas questões. Haja generosidade para deixar que seja o Bem a fazê-lo.

    CRISE - ÉTICA E VALORES

    PESSOAS DO SÉCULO XXI,

    BEM-VINDAS AO BANQUETE DAS CONSEQUÊNCIAS:NÃO HÁ DEMOCRACIA NEM REPRESENTAÇÃOSEM IMPRENSA LIVRE. A MÃO INVISÍVEL TAMBÉMFALHOU NA DISTRIBUIÇÃO DAS IDEIASE DO CONHECIMENTO.

    O CAPITALISMO VENCE QUANDO SE DESCARTAO INDIVÍDUO.

    PESSOAS LIVRES E BEM FORMADAS DÃO MUITOTRABALHO A FAZER. É PRECISO TRATAR DELAS,TIRÁ-LAS DA FOME, EDUCÁ-LAS E DAR-LHESPODER. É PRECISO SAÚDE, EDUCAÇÃO, CULTURA,COMIDA E DEMOCRACIA. NÃO SÃO LUXOS,SÃO RAZÕES PARA VIVER.

    O MUNDO PRECISA DE UM NOVO MODELODE NEGÓCIO. A COMUNICAÇÃO TAMBÉM. É PRECISOINVESTIGAR, VERIFICAR FACTOS, FAZER COISASCOM TEMPO E DESCOBRIR NOVAS MANEIRASDE LEVAR A VERDADE ÀS SUAS CONSEQUÊNCIAS.

    O ESPELHO É UM JORNAL DE PAPEL, DE PAREDE,DE BOCA EM BOCA OU DE MÃO EM MÃO. O QUE FORPRECISO. AQUILO QUE, EM CADA MOMENTO,GARANTA O NOSSO PAPEL E OS NOSSOSOFÍCIOS.

    O ESPELHO É UMA MÁQUINA QUE MOSTRA AQUILO QUE PRECISAMOS DE VER.

    Tudo funciona. O inútil tem espaço para circular e está protegido. Vasta é a alcatifa. O útil tem idêntica protecção, mas menos espaço e mais correlação (condição que lhe subtrai tempo, va-lor que abunda no inútil). Por outro lado, elementos externos visitam este sistema todos os dias. Quando entram no edifício são prontamente harmonizados. Recebem satisfação em troca. Já o inútil acha-se em estado privilegiado. É o único que pode ser ambulató-rio e com capacidade de detectar os vazios invisíveis do edifício. Aqui é BXL (Bruxelas, Bélgica), no Parlamento Euro-peu, construção sem autor – ignora-se o arquitecto, sabe-se apenas ser de um atelier transitório – descrita uma vez como “hipotético recife”. Ali é LUX (Luxem-burgo), serviços administrativos instalados num pla-nalto. A seguir é STR (Estrasburgo, França), sede ofi-cial parlamentar, edifício projectado à semelhança da Torre de Babel pintada por Bruegel o Velho. Uma área combinada de um quilómetro quadrado, suprapaís da mesma dimensão que o Vaticano. Como caminha o inútil em Bruxelas? Não como em Estrasburgo, onde o percurso do edifício é circular e tudo termina como começa, marcando infinitos en-contros consigo próprio, a que nunca falta. Em BXL o inútil pode exercer à vontade um peripatetismo sem propósito. A planta oferece-lhe um roteiro de torres por ordem alfabética, imemorizável, distribuído pelo siglário dos blocos: ASP, PHS, WIE, RMD, EAS, ATR, WIB, JAN, MTY, MOY, MON. Tudo, porém, foi planeado para o útil. Este não pode ser peripatético. Está em exercício da representativi-dade democrática. Atravessa o siglário sem questio-nar a harmonia. Não precisa de sair daqui. O edifício tem uma rua interna no piso zero, 200 metros de com-primento, onde dispõe de cabeleireiro, quiosque, la-vandaria a seco, três bancos, ginásio, cantina, espaço para fumadores. E, no piso -2, um supermercado, com serviço de correio. Os gabinetes têm sofá-cama de sol-teiro e casa de banho com duche. O inútil cruza-se com o útil. Ajudam-se. A título de exemplo: enchem com documentos de trabalho uma das 754 arcas de plástico (cuja utilidade original é mo-vimentar material de exército) mensalmente enviadas

    para STR, carregadas por 30 funcionários em dez ca-miões TIR. Logo seus caminhos voltam a separar-se.Útil e inútil não vêem o edifício da mesma forma. O primeiro está num porta-aviões exercendo micropolí-tica europeia e nacional. O segundo vê que as janelas, espelhadas, só dão para outras janelas, espelhadas, e que a alcatifa é cada vez mais vasta.

    2O edifício sem autor não foi erguido: ergueu-se. É o que os elementos exteriores vêem de fora. É magnífico e foi autogerado. Na verdade, o edifício nem está lá fora, está dentro de si mesmo, retirado da zona que ocupou. Nem é o que é. Em nomenclatura oculta, mas ainda existente, é um Centro Internacional de Congressos. Estas abstracções topológicas não interessam a nin-guém. A harmonia do espaço de circulação é o crucial. Há uma lei interna, político-administrativa, chamada

    “Regimento”. O anexo XVI informa sobre as “Directri-zes para a interpretação das regras de conduta aplicá-veis aos deputados”, distinguindo entre “comporta-mentos de carácter visual, que podem ser tolerados na condição (…) de se manterem dentro de proporções razoáveis”, e “comportamentos que acarretem a per-turbação activa de qualquer das actividades parla-mentares”. Em finais dos anos 90, o deputado Florus Wijsenbeek perturbou. Protestou contra a vastidão e extravagância do edifício atravessando várias vezes de bicicleta a rua interna do piso zero. Foi repreendido pelos disciplinadores do Parlamento, que funcionam numa entidade chamada Colégio de Questores.

    3O Parlamento é uma endomáquina. Edgar Morin, ex-trapolado (de O Método – 1. A natureza da Natureza): o Parlamento é como “o átomo” que “não precisa [de] trocas para existir. Pelo contrário, efectua trocas in-ternas múltiplas e intensas” entre suas partículas, partículas efémeras e “ainda mais efémeras chama-das ressonâncias”. “Tudo se passa até como se, em certos casos, as partículas interagissem consigo pró-prias. Daí em diante, o átomo surge-nos como uma endomáquina, uma máquina introactiva praticando permanentemente trocas internas, e ocasionalmen-te trocas externas". Só que não há escala atómica. O Parlamento é uma mega-endomáquina que serve uma máquina maior, o organismo UE (União Europeia).

    4161.625.000 eleitores (de 500 milhões de cidadãos) elegeram 754 eurodeputados em 2009. O sistema em que funcionam é parademocrático. A probabilidade é que o sufixo desapareça da palavra. Mas o edifício continua a absorver os mecanismos de lobbying em-presarial e não-governamental. O Parlamento existe e existirá. Isso não constitui um problema. O inquérito a fazer é como intervir em Leviatã. Para fazê-lo, é pre-ciso o seu antípoda: a exomáquina. Não-corporativa, não-sindical, não-partidária, e que funcione contra a sociolatria.

    5Tudo funciona. O inútil tem tempo e aguarda.

    QUE FAZER?

    Dulce Maria Cardoso

    NÚMERO 112 Novembro 2012 2000 exemplares [email protected]

    Antes de sabermos o que fazer temos de perceber aquilo que se está a passar. Há muita gente que já percebeu mas muito pouca disposta a tirar disso as conse-quências necessárias. O capitalismo entrou na década de 1990 numa nova fase da sua globalização. Gra-ças à queda dos sistemas que lhe eram alternativos e ao desenvolvimento das co-municações, o capitalismo global deixou definitivamente de precisar de estados e fronteiras. Hoje, a grande maioria dos governos em todo o mundo não são outra coisa senão agências locais dos grandes conglomerados capitalistas. Já não faz ple-no sentido dizer palavras como Estados Unidos, Alemanha, China, União Europeia ou Portugal. Palavras como Goldman Sachs ou Monsanto, essas sim, significam alguma coisa de importante. Os grandes conglomerados não têm nacionalidade, nem localização geográfica. Raramente têm rostos humanos. Dominam os recur-sos energéticos, naturais e financeiros de quase todo o planeta.Estes conglomerados têm um plano para a Europa do sul que podem a qualquer momento estender a outros países europeus: tornar-nos pobres. A pobreza não é uma consequência de políticas erradas. É o resultado de políticas deliberadas. Tor-nar-nos pobres significa tornar os nossos territórios apetecíveis para o investimen-to que se costuma dizer estrangeiro mas não é estrangeiro, é global. Deste modo, os conglomerados precisam de mão-de-obra barata, terra barata, empresas bara-tas. Até os capitalistas portugueses mais inteligentes já perceberam o essencial: também eles são um alvo a abater. Os bancos portugueses, as grandes empresas portuguesas são muito pequenos no quadro global. Serão arruinados e absorvidos. É por isso que os grandes media e os seus donos estão contra este governo de servidores dos conglomerados globais, porque os patrões estão contra este governo ou tentam desesperadamente aproveitar as migalhas que caírem da mesa da ruína do país. É pena, e sinal de profunda alienação, que a esquerda parlamentar se recuse a ver a evidência: o inimigo dos trabalhado-res e da chamada classe média não são os capitalistas portugueses. É o capitalismo global. O que há a fazer é portanto muito claro. Primeiro, uma revolução, seja de que tipo for, que faça cair o regime. Depois, denunciar a dívida e sair da União Europeia que tem revelado ser a armadilha mortal em que os conglomerados mergulharam a Europa. Finalmente, aguentar dez anos ou mais de vida dura, mais dura do que aquela que já estamos a ter, mas não para pa-gar dívidas eternas: para aliar a nossa economia com a dos países do Mediterrâneo e outros, tornar-nos autónomos, salvar a nossa terra, os nossos bancos e empresas, o nosso povo, no quadro de uma economia virada para a preservação dos recursos naturais e o abandono do sonho de progresso contínuo com que o capitalismo global enganou a maior parte de nós.

    ENDOMÁQUINA

    Tal como a Europa, o Miguel está tapado por faltas. Já está no estágio do curso de técnico de seguros, que lhe dará equivalência ao 12.º ano.Mas basta mais um erro, mais uma balda, para se per-der. Logo a seguir ao estágio, disseram-lhe, terá uma colocação. Sonha com essa independência económica para ter algum tempo para pensar. Só então, depois do próximo Verão, começará a fazer um plano. Quer dizer, nos tempos do 16ème arrondissement, em Paris – quando o emprego da mãe nas limpezas trouxe fi-nalmente alguma paz –, o Miguel já tinha tido um pla-no de mobilidade social. Ia acabar o curso técnico dosliceus e depois tirar uma especialização de dois anos em elevadores. É um mercado seguro, sem flutuações.Nos tempos do 16ème, apesar da falta de espaço na pe-quena chambre de bonne com a mãe, o Miguel criou raízes. Conheceu gente de todo o lado e deu-se com ricos e pobres. Brincou com a jeunesse dorée e trocou ideias com indianos, alemães, ingleses, com gente de todo o mundo. Durante algum tempo sossegou a revol-ta que trouxe da Ameixoeira, em Lisboa, onde deixou, aos nove, a ideia de casa e os amigos. “Quando me tra-tavam bem, a revolta desaparecia.”Desses tempos tem saudades da mãe, de alguns ami-gos e do cartão Imagine’R com que os estudantes fran-ceses sacam descontos muito significativos no acesso à cultura. “Fui a muitas antestreias aos Champs-Ely-sées num cinema que parece uma ópera.” Outros tem-pos. Agora, que as decisões estão mais perto do resul-tado, o Miguel sabe que foi nesse tempo que os dados começaram a brincar com o azar. A decisão pelo curso técnico em vez da continuação do baccalauréat cientí-fico e, acima de tudo, o regresso a Portugal sem a con-clusão do secundário tornam muito difícil o regresso a França para a universidade. Mas “aqui, acordo todos os dias em casa. Não me arrependo.”O Miguel tem ido aos protestos e às manifestações, mas até agora, pelo que consegue perceber, só há uma coisa que em França era muito diferente: “A Justiça. Aqui, um rico bêbado é um bon vivant, um pobre é só um bêbado. Quem rouba uma carcaça vai preso, quem rouba um milhão é um homem de negócios.” Mas não é assim em todo o lado? “Não! Lá, quando o Chirac saiu da Presidência caíram-lhe em cima.”Em Portugal, entre, vá, não digamos fome, mas a eventualidade de saltar refeições e o sonho de ficar em casa e de reconquistar o direito de “construir uma família daqui a dez anos”, o Miguel não pode falhar. Vai ter de jogar sem falhas as cartas que tem na mão: ofrancês estupendo, o perfil grego, o olhar nórdico e a vontade de ser português.

    MIGUELO FUTURO DA EUROPA

    C heira a plástico acabado de sair do micro-ondas. O recipiente está quente, as almôndegas nem tanto. A mulher olha sem expressão para o ecrã do com-putador portátil, agora já sem companhia para este almoço que se quer rápido. Levantou-se há minutos outra utilizadora da mesma mesa, a caminho da casa de banho onde irá lavar os talheres, o prato, o copo. O tupperware vai assim mesmo para casa, com restos do esparguete com atum cozinhado ontem à noite. Ouve--se daqui a água a correr no lavatório. Se nos esforçar-mos até conseguimos sentir o cheiro a detergente. Lá fora a chuva cai porque é Outono em Lisboa. E di-zem que temos que estar tristes. Ou pelo menos muito austeros, vá.Já vamos descer a rua até à Casa dos Carapaus, primei-ro deixem-me dar-vos o quadro geral da coisa. E quan-do digo coisa, quero com isso dizer escritório. Neste andar alto há cada vez mais gente à hora do almoço. Já quase ninguém sai para comer, uns quantos fazem um passeio de caçadores-recolectores até a um supermer-cado próximo. De regresso ao escritório, comem-se saladas ou pratos pré-cozinhados. Enquanto se fala da crise, que é como quem diz da vida. Antes de sair para a rua e para chuva, ponho-me a pensar nisto da comida trazida de casa. Será só um de-talhe da transformação de quase todos em operários de marmita? Chamam-lhe a proletarização da classe média, ou lá o que é. Mas que momentos do nosso dia dizem mais sobre nós enquanto cidadãos, enquanto povo? De dinamarqueses e chineses percebo pouco, mas se estamos a falar de portugueses parece-me que é à mesa que melhor socializamos. É à mesa que descobrimos os grandes amores. É à mesa que fecha-mos os melhores negócios. É à mesa que tratamos de ter ideias. E de prometer a quem nos quiser ouvir

    que vamos levá-las à prática. Até suponho que Buíça e companhia tenham partilhado uns copos de tinto e uns pastéis de bacalhau antes de irem tratar da saúde ao rei D. Carlos. Agora fora de suposições, sem dúvida que à mesa fazemos de tudo e também comemos e be-bemos e conversamos, claro.Desço agora a rua em direcção a uma tasca duplex que resiste apesar de lá entrarem cada vez menos clien-tes. A Casa dos Carapaus mantém-se aberta, a poucos metros do Largo do Rato. Se por lá almoço é porque a refeição completa tem um preço simpático. E a comi-da não desmerece.Ao entrar vejo primeiro o ar ausente do patrão. Espera não sei o quê atrás do balcão, com um pano branco esquecido entre as mãos. Vejo depois que não há mais ninguém na sala, nem o cego habitual da mesa junto às escadas. “Gosto em vê-lo.” Subo as escadas e encontro o empregado no primeiro andar, que sorri e pensa alto: “É o primeiro.” Parece que foi ontem. Parece que ainda ontem estava neste televisor a imagem sem som de José Sócrates a defender o PEC-não-sei-quantos. E tanta coisa mudou ao almoço nos chamados dias úteis. Claro que esta é uma realidade urbana. Conheço bem o que tem muda-do em Lisboa, sobretudo nos restaurantes e nos locais

    de trabalho. Parto do princípio que em áreas rurais a tal austeridade poderá não ter obrigado ainda a mu-danças tão grandes na forma como se almoça. Vai-se menos ao supermercado e mais à horta.Haverá antropólogos atentos a estas mudanças súbi-tas na gastronomia urbana, se ainda não emigraram todos. Mas o assunto não toca apenas a antropólogos do quotidiano, a economistas ou a historiadores. Isto é também um campo para a ciência política, como se pode ver nos livros de Astérix e Obélix. A aldeia que resiste continua a fazer os seus banquetes de javalis. Ou por outras palavras: “As ovelhas estão calma e mansamente a morrer de fome, os lobos não”, como diz em Lisboa o poeta urbano brasileiro Viton Araújo.Atrás dos balcões dos restaurantes há quem reaja de várias formas. Uns ficam à espera do dia em que terão que fechar as portas de vez, mas isso nem será bem reagir. Outros optam por fazer obras, por mudar a de-coração, por carregar um bocado nos preços – espe-ram que os menos afectados pelo terrorismo da dívida externa continuem a sonhar às quintas-feiras com co-zido à portuguesa bem servido. Desço agora do Largo do Rato até à Baixa de Lisboa. Entre as minhas reacções preferidas está a dos ideó-logos da cafetaria A Nova Pombalina, na Rua do Co-mércio. É marketing de ardósia, filosófico e de abrir o apetite: “Coma hoje pode amanhã não poder”. Assim mesmo, sem vírgulas nem contemplações. A destreza com o giz e com as palavras é importante, sim. É o ma-rketing, estúpido. Mas se estas sandes de leitão não fossem tão boas não seria a mesma coisa. Já dizia não sei quem: não deixes para amanhã uma sandes de leitão que podes comer hoje. Não se preocupem que o leitão era muito auste-ro. E vegetariano.

    “COMA HOJE PODE AMANHÃ NÃO PODER”

    O mundo é de quem o quiser. Com a globalização – esse palavrão que quer dizer tudo e nada – o mundo tornou-se mais pequeno para alguns. Mas não mudou assim tanto. É verdade que há multinacionais mais poderosas que os governos de vários países juntos. Que em nome do “desenvolvimento”, nomeadamente, co-metem crimes com total impunidade (o nome Ken Saro-Wiva ainda dirá alguma coisa?).Mas não foi sempre assim? O que eram as companhias majestáticas do século dezanove senão “agentes impe-rialistas”, literalmente, em busca de recursos naturais alheios? O que fazia o cartel de petrolíferas Sete Irmãs quando, já em pleno século vinte, punha e depunha di-rigentes ao sabor dos interesses do capitalismo iluminado da altura? A deposição de Mossadegh no Irão, em 1953, é apenas um exemplo da ingerência que o Médio Oriente, em particular, sofre há décadas. Portanto o fenómeno não é novo. E não deve desanimar-nos nem assustar-nos. Pelo contrário, já devíamos conhecer o bicho e saber como fazer para o apanhar no seu próprio jogo. Podemos estar desiludidos com ela, não sentir orgulho ou não acreditar muito nela, mas a União Europeia é, apesar de tudo, nossa. Foi com ela que a Europa enterrou ódios primários e ideologias fascizantes. Foi graças a ela que não houve, até hoje pelo menos, uma terceira guerra mundial. Foi com ela que nos tornámos mais ricos com a descoberta de outras línguas, culturas e matérias que eram, até então, praticamente esotéricas, como os direitos humanos e o ambiente.Desistir da União Europeia só porque ela hoje em dia é dominada por um grupo

    de pobres de espírito oportunistas equivale a entregar o ouro aos bandidos. Dar-lhes de bandeja aquilo que eles não merecem. O que é preciso fazer é reivindicá--la, retomá-la como legítimos proprietários que so-mos.E para isso é preciso darmo-nos ao trabalho de a co-nhecer e de a infiltrar. Porque é que não há mais ci-dadãos independentes no Parlamento Europeu? Ou uma estratégia, com os vários aliados que temos na Europa, para que isso aconteça? Os cépticos dirão que nada mudaria, ou mesmo que isso equivale a uma “venda” ao sistema. Qual é a alternativa? Ficar fora da mesa é assim tão mais eficaz?Se a União Europeia é hoje um poço de desequilíbrios e de passividade perante o domínio de alguns países, é porque o deixámos acontecer. Aceitámos o seu di-nheiro e as suas regras sem a questionar e sem nos interessarmos por ela. Não devemos continuar a virar--lhe as costas. É a partir dela que se devem travar as grandes batalhas em defesa dos direitos que ela pró-pria consolidou. A Europa pode já não ser tão podero-sa no mundo, mas é o que temos e o que, ainda assim, muitos gostariam de ter.

    © Jorge Nogueira, Miguel, 2012

    VAMOS PAGAR 112 MILHÕES DE EUROS POR MÊS, SÓ EM JUROS, ATÉ 2038*

    Álvaro Rosendo, Andreia Martins, Annett Bourquin, Diogo Seixas Lopes, Dulce Maria Cardoso, Gabriela Lourenço, Joana Gomes Cardoso, João d'Espiney, João Macdonald, João Pacheco, Jorge Nogueira,

    Luís Gouveia Monteiro, Maria João Guardão, Maria Tengarrinha, Marta Dias Neves, Miguel Machado, Pablo Soto, Patrícia Barbas, Paulo Varela Gomes, Ricardo Lima, Rita Silva, Sérgio Catumba, Steve Stoer

    *Cálculo d'O ESPELHO com base na informação oficial do Ministério das Finanças sobre os encargos dos juros dos empréstimos da Troika

    © Álvaro Rosendo, Minas da Panasqueira, 1987

    B X L L U X S T RJoão Macdonald

    João Pacheco

    Paulo Varela Gomes Joana Gomes CardosoLuís Gouveia Monteiro

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